Registros de minha passagem pela terra :
Arthur B ispo do Rosário
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Agora, gostaria
dessem um agrado para os coveiros,
pois seu Bispo era uma pessoa ilustre. E gente ilustre, quando é enterrada, seus parentes dão um agrado para os c o v e i r o s /’ (Jorge Gorila, paciente da Colônia Juliano Moreira no enterro de Arthur Bispo do Rosário, em 10.7.1989)
Escola de Artes Visuais — Parque Lage
18 de outubro a 5 de novembro de 1989 De segunda a sexta-feira, das 10 às 21 horas
Sábados e domingos: das 10 às 18 horas
‘Minha missão é esta,representar a existência da terra. É o significado
Á importância um acervo
A e x p o s iç ã o de A r th u r B ispo do R osário r e p r e s e n ta p a r a a Colônia Juliano M oreira e a A s s o c ia ç ã o d e A m ig o s dos A r tis ta s da C JM m o tiv o d e a legria e orgulho. Ë uma h o m e n a g e m à qu ele que ven cen do todas as a m a r r a s d e um a in stitu içã o total, conse
gu iu d a r a s a s a sua c r ia tiv id a d e e nos le g a r e s t e i m p o r ta n te a c erv o .
B is p o fa le c e u aos 78 anos, d ep o is de v iv e r c e r c a d e 50 anos na Colônia Juliano M orei
ra , In s titu iç ã o do M in isté rio da Saúde s i
tu ada e m J a c a r e p a g u á , no R io d e Janeiro.
A fu n d a ç ã o da Colônia s e deu em 1924 e ainda h o je a p r e s e n ta c a r a c te r ís tic a s asila- r e s com e s tr u tu r a s m a s s ific a d o r a s que c o n s titu e m um p e r m a n e n te d esa fio para a q u e le s que tra b a lh a m p a r a tran sform á- la. S ão 1874 in ter n o s v ít i m a s da psiqu iatri- z a ç ã o e da s e g r e g a ç ã o so c ia l que p e r d e r a m sua c id a d a n ia e su a s m a r c a s in d iv i
duais. N e s te c o n tex to s u r g e de fo rm a e s p o n tâ n ea a obra do B isp o c o m o uma con
t r a d iç ã o à a n om ia do asilo.
B is p o m a n te v e sua d ig n id a d e e um p r o je to d e v id a com um a lógica e x tr e m a m e n te p a r tic u la r , a rticu la d o e m m u ito s m o m e n tos c o m um d elírio m ístic o . E s te p ro je to p o ss ib ilito u a e le m a n t e r r e la ç õ e s de troca c o m a s p e s s o a s de seu a m b ie n te , v iv e r u m a e s tó r ia d e a m o r e p ro d u zir p e ç a s de g r a n d e b e le za p lá s tic a , re p re se n ta n d o o m u n d o e n tr e a s p a red es de seu quarto.
E s t a e x p o s iç ã o c on stitu i um m a r c o nas e s t r a t é g i a s d e d iv u lg a ç ã o e busca do r e c o n h e c im e n to so c ia l p a r a a obra do artista.
Ê este um dos objetivos da Associação dos A m ig o s dos A rtistas da CJM, que aponta ainda para a necessidade de formulação de uma política que defina a guarda e con
servação do acervo e que venha valorizar o talento genial de A rth u r Bispo.
Primeira E xposição de Pintura e Arte Feminina
“ A arte tam bém ajuda a curar.
Curar, aqui, significa melhorar, suavizar, tentar reajustar. E en
tão, o que se poderá cham ar arte- terapia, desdobram ento sutil da praxiterapia. Quando a tal não se presta diretam ente, a arte serve com o instrum ento de penetração à intim idade psíquica do enfermo.
Tal qual um revelador químico que faz surgir corpos novos, a ar
te, assim usada, nos mostra os as
pectos incógnitos da enferm idade.
Aos que não quiserem com preender através outras motiva
ções bastará fazer apelo à sua p erspectiva m ais saliente: provar aos leigos na m atéria que a doen
ça m ental não é a im placável des-
truidora com o em geral se pensa.
A distorção da personalidade que lhe é conseqüente não deve fazer supor ruína. Mas, apenas subver
são de níveis e superposição de ângulos, criando facetas novas, que não são destroços e sim dispo
sições personalíssim as até então desconhecidas, inéditas pois. Ê o que provam essa s dezenas de pin
turas e trabalhos agora expostos.
O argum ento dessa tese não é ofe
recido aos menos enfronhados no assunto pelo especialista. Os pró
prios enferm os, pelas suas produ
ções, é que melhor o dizem, e de m aneira eloqüente” .
Heitor Péres, diretor
-Créditos- Colônia Juliano M oreira
Dra. Izabel do Carmo Torres da Silva, direto
ra
Dra. Denise de Almeida Corrêa, coordenado
ra de Reabilitação e Integração Social Dr. Pedro Gabriel Godinho Delgado, coorde
nador de Ensino e Pesquisa
Maria Amélia Mattel, diretora do Museu Nise da Silveira
A ssociação de Amigos dos Artis
tas da Colônia Juliano Moreira
Diretoria Provisória:
Dra. Izabel do Carmo Torres da Silva, Dra Denise de Almeida Corrêa, Dr. Pedro Gabriel Godinho Delgado, Maria Amélia Mattel, Fre derico Morais, Dr. Luiz Carlos Vanderlei Soa
res, Brigitte Anna Exter-Hòlck, Annie Lupori- ni, Márcio Rollo, Carla Guagliardi, Elisa Vil- lono, Nelly Gutmacher e Luciano Mattei.
Escola de Artes Visuais
Luiz Aquila da Rocha Miranda, diretor Nelson Augusto, coordenador de exposições
E quipe Técnica E xposição:
Frederico Morais, curador Maria Amélia Mattei, Brigitte Exter-Hòlck, Annie Luporini, auxiliares Gerardo Villaseca, montagem
Catálogo:
Frederico Morais: editor
Brigitte Anna Exter-Hòlck : fotografias Know How (Rua de Santana, 183, sobreloja):
diagramação, composição, arte-final e revi
são
Tribuna da Imprensa: impressão
Divulgação
Neusa Assis da Cruz (Colônia Juliano Morei
ra)
Vera Alvarez (Escola de Artes Visuais)
“Os doentes mentais são como beija-flores, nunca pousam, ficam a dois metros do chão.”
D e acordo com o prontuário médico da Colônia Juliano M oreira, pode-se contar com menos de 20 palavras a bio
grafia de A rthur Bispo do Rosário. Ele m or
reu no último dia 5 de julho, com 78 anos, dos quais 50 como interno. E ra solteiro, de n atu ra
lidade desconhecida, alfabetizado, sem paren
tes, com antecedentes policiais. O diagnóstico médico diz que ele sofria de esquizofrenia- paranáide. E tudo.
A leitura de alguns raro s depoimentos e en
trevistas do a rtista , de depoimentos de duas ou três pessoas que com ele conviveram mais assiduam ente na Colônia e, sobretudo, a pes
quisa de sua própria obra, perm item am pliar um pouco m ais esta escassa biografia.
Em um dos estandartes e em dois dos “ m an
tos” por ele costurados, fica-se sabendo que Bispo viu à meia noite do dia 22 de dezembro de 1938, sete anjos azuis deixarem Jesus Cris
to junto ao m urado do quintal da casa onde m orava com sua m ãe, situada à rua São Cle
m ente, 301, em Botafogo, “ entre as ruas das P alm eiras e M atriz” .
Da infância e juventude de Bispo nada se sa
be, inexistindo na Colônia qualquer documen
tação a respeito de seus antecedentes fam ilia
res. Perguntado sobre sua m ãe, Bispo apon
tou para um a im agem da Virgem M aria, di
zendo: “ Minha m ãe é esta aí” .
Sabe-se, entretanto, que A rthur Bispo foi da M arinha de G uerra e, como tal, teria viajado por diversos países. E ntre seus pertences en
contrados no Pavilhão Ulisses Viana, estava, além da Bíblia c de vários exem plares do No
vo Testam ento, um “ Guia da M arinha A rm a
d a ” , de Domingos Heitor Soares. Bispo era tam bém lutador de boxe e os dados dis
poníveis indicam que iria seguir um a carreira profissional. Mas por algum a razão desconhe
cida, encontrava forte oposição de seus supe
riores, na M arinha, que dificultavam ao m áxi
mo esta sua atividade. Como explica o próprio Bispo em depoim ento de 11.3.1988, concedido a Conceição Robaina, assistente social da Colô
nia: “ Resolvi cair fora porque os oficiais não gostavam de m arinheiro no jornal. Me pren
diam quando eu tinha lutas m arcadas com em p resário s” .
Bispo era um homem forte e violento. Du
ran te muito tem po foi, conforme a gíria dos pacientes, “ faxina” . Como ele diz no depoi
mento citado: “ De 1942 até 1982, quem tra b a lhava aqui era eu: dava comida aos doentes, dava conta dos pavilhões, nunca deixei de tra balhar aqui na casa junto com os funcioná
rios. Sempre fui “ faxina” dos fortes, para dar nos doentes quando estavam agitados, para e n tra r nos cubículos. Na P ra ia Vermelha bati muito em pacientes, m as os m aus que que
riam quebrar tudo. E ra obrigado a cham ar o médico para pegar o doente” . Na verdade, m ais do que “ faxina” , Bispo foi o “ xerife” de seu pavilhão, o que significa dizer que ele deti
nha um a parcela considerável de poder. Anti
go boxeador, enrolava a mão com um a toalha m olhada e batia duro nos seus colegas. Bateu tanto que ele mesmo acabou prisioneiro, nu
m a solitária, por um período de três meses. E foi a essa época, provavelm ente em 1967, que ouviu um a voz lhe dizer: “ E stá na hora de vo
cê reco nstruir o mundo” . Seguindo à risca es
ta ordem , decidiu, por conta própria, perm a
necer em sua cela por sete longos anos, ini
ciando a reconstrução do mundo na form a de
“ bordados” e objetos.
A pesar de seu isolamento — sem pre se recu
sou a abandonar a área da Colônia —, ele esta
va bem inform ado sobre o que acontecia no país. M antinha em seu quarto pilhas de jor
nais e rev istas, e num de seus trabalhos ele faz questão de m encionar que aquele dia, o da criação da obra, era o das eleições para go
vernadores: 15.11.1982. Eleições, aliás, decisi
vas p a ra o país.
P rovavelm ente, depois da visão no quintal de sua casa, Bispo começou a peram bular pe
la cidade, encarnando a figura de Cristo e até
Negro solteiro
sem parentes
marinheiro e boxeur antecedentes policiais
esquizofrênico paranóide meio século internado na Colônia Juliano Moreira artista genial
“ encenava” levitar. Quando lhe perguntavam se ele era Cristo, respondia : “Sou depois de
le” . Já interno na Colônia, afirmava com ab
soluta convicção: “Jesus Cristo sou eu” . Num dos seus estandartes, descreve uma de suas caminhadas até o Centro da cidade. Sem men
cionar o dia e o ano, diz que eram 11 horas e que ele estava na rua 1.° de Março, à altura da Praça 15, de onde se deslocou para a Igreja da Candelária, a ela acedendo pelo lado leste.
Descreve então a porta, seus gradeados, altu
ra etc. Tudo indica que, em seu delírio, ele fo
ra ali “ apresentar-se” a Jesus Cristo, e que te
ria sido preso nessa ocasião e em seguida in
ternado no Hospício da Praia Vermelha, de onde foi transferido para a Colônia Juliano Moreira. São divergentes, entretanto, as in * formações contidas na ficha e no prontuário
médico de Bispo existente na Colônia e as que constam do depoimento que ele deu a Concei
ção Robaina, em 1988, no que tange à data de sua primeira internação e seus deslocamentos por três instituições psiquiátricas. Aceitemos, por hora, que sua internação na Colônia se deu no dia 25 de janeiro de 1939, com 27 anos, vindo da Praia Vermelha, tendo passado algum tempo no Pavilhão de Triagem, de onde foi transferido para o Pavilhão Ulisses Viana. A
“ficha do doente" anota ainda uma segunda entrada na Colônia, em 23.8.1944 e uma tercei
ra, em 14.4.1948, desta feita procedente do Centro Psiquiátrico D. Pedro II no Engenho de Dentro.
Por outro lado, a crer no depoimento de Bis
po, ele teria realizado seus primeiros traba
lhos artísticos ainda na Praia Vermelha: “ Eu tinha lá o cubículo, comecei a fazer carros de boi, essas miniaturas todas que faço” . E em sua rápida passagem por Engenho de Dentro, ele teria sido estimulado pelo diretor a conti
nuar esculpindo seus boizinhos.
A primeira imagem de Arthur Bispo em seu cubículo, costurando nomes, datas e roteiros, chegou ao público através de uma reportagem sobre a Colônia, veiculada no programa Fan
tástico, da TV Globo, em 18.5.1980. O senti
mento que ficara daquelas imagens era a de alguém lutando contra a perda de sua identi
dade, de alguém que tentava provar um pas
sado, narrar uma história pessoal.
Dois anos depois, na mostra denominada “A margem da vida", organizada por Frederico Morais, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o público podia ver, pela primeira vez, algumas obras de Bispo. A exposição reu
nia trabalhos de artistas vinculados a vários segmentos marginalizados da sociedade bra
sileira, como presidiários, crianças da Funa- bem, idosos internados em asilo e doentes mentais. O impacto das obras de Bispo foi enorme. Menos de um ano depois, o psiquiatra e fotógrafo Hugo Denizart realizaria um filme sobre Bispo, com duração de 32 minutos, cujo título, “ O prisioneiro da passagem” , fora bus
cado em Foucault. O mesmo Denizart realiza
ria logo a seguir o filme "Na região dos dese
jos” , sobre as mulheres internas da Colônia.
Preocupada com o destino que seria dado ao acervo de Arthur Bispo, a atual diretora da Colônia, dra. Izabel do Carmo Torres da Silva, promoveu algumas reuniões, das quais parti
ciparam a coordenadora de Reabilitação e In
tegração Social da Colônia, Denise de Almei
da Correia, Pedro Gabriel Godinho Delgado, coordenador de ensino e pesquisa, Conceição Robaina e Maria Amélia Mattel, diretora do Museu Nise da Silveira, da Colônia, além de Frederico Morais, Luis Carlos Wanderlei Soa
res e Márcio Rollo. A morte de Bispo pegou a todos de surpresa. Decidiu-se então, em reu
nião realizada no dia 19 de julho, criar uma as
sociação de Amigos dos Artistas da Colônia Juliano Moreira, que cuidaria prioritariamen
te da obra de Bispo. Uma diretoria pi ovisória foi eleita e dela participaram, além dos nomes cisados, Nelly Gutmacher, Brigitte Exter- Hóelck, Carla Guagliardi e Annie Luporini. Os objetivos da Associação, definidos nessa reu
nião, foram os seguintes: levantamento e ca
talogação das obras, documentação fotográfi
ca, restauração das peças em estado precário de conservação, divulgação em exposições, debates e publicações, e, finalmente, encon
trar um novo local com condições adequadas para guarda do acervo.
No enterro de Arthur Bispo, um paciente da Colônia, de nome Jorge Barros, o Jorge Gori
la, como é conhecido, fez a saudação fúnebre.
Falou do querido colega e amigo dizendo que
“nós nos sentimos orgulhosos como internos, de ter alguém importante assim” . Prova dis
so é que ao final da cerimônia, sugeriu que
“ as pessoas dessem um agrado para os covei-,
ros, pois Bispo era uma pessoa ilustre, e em
enterro de gente ilustre, os parentes dão um
agrado para os coveiros". (Frederico Morais)
Frederico Morais
A reconstrução do universo segundo
Arthur Bispo do Rosário
A
firm e i c e rta vez que toda o b ra de a r te , se v e rd a d e ira m e n te o rig in a l, é u m a m e tá fo ra do m undo. Um m undo p a ra le lo ao re a l e, a p e sa r de inv en tad o , fundado nele, nas viv ê n cia s e p rojeções de seu c ria do r no m undo re a l. E sse m undo cria d o pelo a r tis ta é, com o o d a qui de fo ra, com plexo e co n tra d itório e com o ele tem rev elaçõ es e in terd içõ es, tótens e ta b u s, zonas o b sc u ra s e zonas ilum inadas.
C ria r a rte é v e r m undo como que pela p rim e ira vez, é b u sc a r a orig em , o gesto que o fundou. E re a p re n d e r cad a coisa, cad a ob
jeto, é d a r novos significados às coisas existen tes, é re in v e n ta r, re c o n stru ir, reconduzir.
A o b ra c ria d a por A rth u r Bispo do R o sário na Colônia Juliano M oreira no m eio século em que este v e ali in tern ad o é, de form a m a is en fática ainda que a de ou
tro s a rtis ta s contem porâneos, es
sa te n ta tiv a de re c o n stru ç ã o do universo, e, com o ta l, é a rte au
tê n tic a , que com ove e pede refle
xão.
A ntes que u m a voz o in c ita sse a c u m p rir sua m issão, Bispo não h a v ia ainda sentido o fogo que co rró i as e n tra n h a s de todo o v e r
d a d e iro cria d o r. Suas ex p eriên cias m a io re s tin h a m sido o m a r e o rin g u e, a in stab ilid ad e das ág u a s e do p ró p rio corpo diante do a d v e rsá rio . Num caso e nou
tro , é com o se o chão lhe fa lta sse ou lhe e sc a p a sse continuam ente.
A costum ou-se, p o rtan to , a fazer do d esequilíbrio a n o rm a de sua vida. E m ce rto s m om entos, p a ra fic a r de pé, p a ra so b rev iv e r, só lhe re s ta v a m as p a la v ra s , como ele esc re v e u num dos seus panos, legendando a im a g em de um co r
po c u ja s p a rte s ele d esc re v e ra m in u c io sa m e n te : “ E u preciso d e s ta s p a la v ra s e s c r ita s ” .
D epois que te v e a visão de C ris
to flu tu a n d o so b re o q u in tal de su a c a s a , às v é s p e ra s do N a ta l de 1938, p ro cu ro u lite ra lm e n te levi- ta r , e rg u e r-se ac im a da realid ad e co tid ia n a , fic a r a m eio cam inho e n tre o céu e a te r r a , que é, aliás, o e sp a ç o re se rv a d o à arte . Pe- ra m b u lo u en tão p elas ru a s do Rio de J a n e ir o a té se r preso e em se
g u id a in te rn ad o . Deu início, a s
sim , a u m a o u tra viag em , esta m a is difícil e longa: e ra o m e rg u lho n a s pro fu n d ezas do seu m a r in te rio r, o m a r desconhecido, das tr e v a s , dos se n tim e n to s c o n tra d i
tó rio s, do caos. T entou ainda se
g u ir lu tan d o , ag o ra co n tra um inim igo m a is poderoso ainda, a in stitu iç ã o p siq u iá tric a . O antigo b o x eu r continuou batendo, m as em seus colegas p a c ie n tes, com o se e s te s fossem seus inim igos. Na v e rd a d e , seu inim igo e s ta v a d en tro dele, e ra m os fa n ta s m a s que o ro n d a v a m , e co n tra estes não b a s ta v a te r punhos fortes. A Hu
go D e n iz a rt ele afirm o u : “ Cada louco é guiado po r um ca d á v e r. O louco só fica bom quando se livra d esse m o rto ” . P a r a liv ra r-se d es
se c a d á v e r só h av ia dois c a m i
nhos, a m o rte ou a arte . Optou por e s ta últim a.
Sentindo-se in c ap a z de d ese
n h a r, a té p orque sua atividade com o b o x eu r d e ix a ra seqüelas em su a m ão d ire ita , p a rtiu logo p a r a o objeto trid im en sio n a l, es
culpindo, com a aju d a de in s tru m e n to s p re c á rio s, peq u en as pe
ç a s de m a d e ira , com as quais ia r e tr a ta n d o um m undo a g rá rio , de onde, ta lv ez , te n h a vindo: bois, c a rro s de boi, estáb u lo s, e ta m bém a vid a que c o rria por perto : circo , co re to etc. Isto ele fez nos p rim e iro s anos de sua loucura, m a s e r a m a is p ro p ria m e n te a r te s a n a to , n ão d iferindo m uito do
que é com um ente catalogado co
mo arte popular.
A a rte en q u an to m issão regene- r a d o r a , e n q u a n to anti-destino ( p a r a u s a r u m n a e x p re ssão de A ndré M a lra u x ), só tem início p a r a A rth u r Bispo, quando ele é a rr a n c a d o da su a escu rid ão pela c la rid a d e da voz que m andou ju n t a r os fra g m e n to s de seu m undo d e stro ç a d o e organizá-los de um a fo rm a nova, co e ren te , um a fo r
m a que co rrig isse as im p e rfe i
ções e in ju s tiç a s do m undo em que vivem os. Com eçou então u m a c o rrid a co n tra o tem po: fo
ra m se te anos costu ran d o panos e m u m ifican d o objetos na o b sc u ri
d a d e de u m a cela que m al dava p a r a e s tic a r o corpo. Mas a
“ ru ín a esq u izo frên ic a' de que fa
la N ise d a S ilveira é ta m b ém esta r e la ç ã o e n tre a c a rê n c ia do e s p a ço físico e a ex ten sã o do mundo in te rio r, a c o n tra d içã o e n tre um a b io g ra fia tã o c u rta com o a de Bis
po, e a o b ra por ele realizada.
Bispo viveu ali o seu “ de profun- d is ” , rev iv e u em sua cela o mito da c a v e rn a , e os objetos que ele c o n stru iu ali, cobrindo-os com um azul desbotado, são com o que so m b ra s , p erso n a g en s desse m is
te rio so rein o de H ades, habitados p or m orto-vivos.
Ju n to , os textos costurados por Bispo em su a cela fo rm am um a esp écie de su m m a do conheci
m ento, u m a enciclopédia ilu s tra d a, u m a H istó ria U n iv ersa l a que ele se re fe re num dos seus panos.
Como um ilu m in ista, ele p rocu
ro u c o n c e n tra r em su p o rtes tão p re c á rio s todo o conhecim ento que ele tin h a do m undo: nom es, d a ta s , lugares,, pesos, m edidas, reg iõ es, p aíses, cidades, ru a s, b a irro s , casaS, ig re ja s, navios de g u e rr a , c a rá v e la s , r e g a ta s , todos os ofícios e profissões, b rin q u e
dos in fan tis, m a rc a s , sím bolos, sin a is, códigos, b a n d e ira s, o co r
po diplo m ático , os jogos e as fes
ta s , m isse s, enfim , tudo o que viu e sonhou ao longo de sua vida.
S uas n a r r a tiv a s constituem a s
sim um épico, com o a O disséia de H om ero. C osturados, este s textos e im a g e n s p e rm a n e c e rã o p a ra se m p re com o láp id es, com o e s te ia s, hieróglifos, com o as tá b u as de M o ists, com o um tex to s a g ra do, p a r a se r d ecifrad o pelos pós- te ro s.
O m undo re c ria d o por A rthur Bispo é a lta m e n te h ierarq u izad o e e s tru tu ra d o , a s e ta p a s de sua co n stru ç ão sucedendo-se de for
m a co e re n te e lógica. P rim e iro o texto, que in s ta u ra a nova ordem , b ase “ te ó ric a ” dos fu ndam entos do seu universo. Texto fre q ü e n te m e n te ilu stra d o , a im a g em conti
nuando a p a la v ra ou v ice-versa, a fin a l, e s c re v e r e d e se n h a r têm o rigem no m e sm o gesto, pedem os m esm os in stru m e n to s de t r a balho lá p is, pincel ou, no caso de Bispo, ag u lh a e linha.
Os te x to s e stã o distrib u íd o s ini
c ia lm e n te em oito g ra n d e s e s ta n d a rte s e em v ário s outros m eno
res. N eles, Bispo d escrev e a vi
são que te v e de J e s u s C risto às v é s p e ra s do N a ta l de 1938 e o dia em que p ro v av e lm en te foi rec o lhido e levado p a r a o hospício da P r a ia V erm e lh a, após te r sim u la
do u m a le v ita ç ã o jun to à Ig re ja da C a n d e lá ria . D escreve os ro tei
ros de bonde, na sua e s tre ita geo
g ra fia c a rio c a (B otafogo, onde m o ra v a , U rc a , F lam en g o , Gló
r ia , C a te te e C en tro ), as coisas que viu no cam inho, do P ão de A çú c ar ao soldado com seu fuzil c in tila n te à p o rta do P alá cio do C a te te , o m a p a do B ra sil com sua d iv isão te rr ito r ia l, o corpo h u m a no e to d a s as p a rte s que o com põem , bem com o as doenças e seus sin to m as, os p aíses que pro
v a v e lm e n te visitou quando m a ri
n h eiro , as insíg n ias da M arinha, o corpo diplom ático, o desfile de M isses, os c a rro s dos em b aix ad o re s com re sp e c tiv a s b an d e iras, jogos in fan tis, um rin g u e de boxe.
Um dos e s ta n d a rte s é a ex a ta d escriçã o , com o u m a planta- b aix a da Colônia Ju lian o M orei
r a , com todos os pavilhões e o mo
do de c h e g a r a ela.
Vêm em seguida as roupas. De todas, a m a is im p a c ta n te , v e rd a d e ira sín tese d a s preocupações de B ispo, é o “ m an to do reconhe
c im e n to ” , isto é, a roupa que o id e n tific a r ia ‘no m om ento em se a p re s e n ta s s e a D eus. Na p a rte in
te rn a , ele re la c io n a os nom es de todos aq u eles que, eleitos, o a c o m p a n h a ria m em sua viagem , e que p e rm a n e c e ria m à sua d ire i
ta n aq u e le m om ento de glória.
N a p a r te e x te rn a . Bispo m o stra com im a g e n s de cores v a ria d a s su a p a s sa g e m pela T e rra , a longa e s tra d a de sua vida, q u ase tudo o que depois v am o s v e r na fo rm a de objetos. V estir o m an to e ra co
mo v e s tir o m undo, c a r re g a r tudo o que nele existiu.
Além do m anto, Bispo bordou fard õ es, um azul, com o rn am e n tos flo rais, dois de feltro, negros, com o rn am e n to s e textos. No p ri
m eiro, Bispo volta a referir-se à visão de Cristo, e b orda a tabela de co re s que ele c h a m a de “ sem- b r a n te s ” . No outro u m a nova lis
ta de m édicos, g en e rais, advoga
dos, a lm ira n te s, alguns de form a c ifra d a , confundindo-se com a de
co ração . P re p a ro u ta m b ém um fa rd ã o verd e com m ed alh as co
m e m o ra tiv a s d as lu ta s, de 1938 a 1982 (que lu ta s te ria m sido?). Na m a n g a esq u erd a, o sím bolo da J u stiç a . Há fin alm en te u m a capa v erm e lh a e p re ta , que ele dizia se r de E xu, e que d ev eria se r ves
tid a po r L úcifer.
Bispo d o rm ia num a d as celas que fo rm a v am o seu aposento, so
b re u m a c o b e rta e um tra v e sse i
ro colocados d ire ta m e n te no chão. A c a m a ele a p rep a ro u com todo o cuidado, cobrindo-a com véus. E ra bem m ais um a nave.
N ela, vestindo o m an to sagrado, ele su b iria ao céu.
Concluídos os textos principais e seu enxoval, Bispo partiu para a construção de objetos. Estes eram a ilustração tridimensional dos textos, cada um paciente
m ente coberto por uma linha azul, com o que embalsam ados, identificados por seus nomes. Em sua quase totalidade referem-se aos ofícios ou compõem o univer
so dom éstico: escada, esquadro, fio-de-prumo, formão, tramela, rede, fita m étrica, colher de pe
dreiro, serrote, régua, mata- borrão, carrinho de feira, rala
dor, renda de bilro, abridor de la
ta, am assador de pilão, colher, cortador de gram a, rolo de pas
tel, m arreta, cabide, arco-de- pua, chocalho, m artelo, chave de porca, tesoura, grelha, papel hi
giênico, bilboquê, foice, enxada, machadinha, trilhos e até um desses sacos de areia que se colo
cam junto às portas para impedir a entrada de baratas. Um inven
tário com pleto de ura certo está
gio da sociedade brasileira.
Bispo d istingue c la ra m e n te es
te s objetos-m um ificados dos de
m ais, feitos de m a d e ira , e das a ssem b la g es. Os p rim e iro s, de um azul desbotado, são duplos ou so m b ras de objetos que ex istira m an tes, que correspondem a vivên
cias dele, Bispo, localizad as na infância. E spécie de arqueologia existen cial. Alguns d esses obje
to s p e r m a n e c e m i s o l a d o s , destacando-se po r sua dim ensão, por seu c a r á te r d o cu m en ta l ou sim bólico. Há um navio de m ira p a ra exercício de tiro , um saco p a ra tre in a m e n to de boxeadores, um garraffio de oxigênio, um t a buleiro de x ad rez com re sp e c ti
vas p e d ra s, e outros que p o d ería
mos c h a m a r de objetos ducham - pianos.
As assem b la g es reúnem objetos g e ra lm e n te in d u strializad o s, p ro
duzidos em sé rie , ligados ao con
sum o e à cu ltu ra de m a ssa. Em cad a p ainel u m a linha de objetos:
c a n ec as de alum ínio, botões, g a r ra fa s de p lástico com pap éis pi
cados, fe rra g e n s, sabonetes, co
lh eres, sa p ato s, m a te ria l elétrico e eletrônico. As vezes os objetos diferem , m as as te x tu ra s e os m a te ria is se assem e lh a m . V istas em conjunto e s ta s acum ulações fazem le m b ra r um b a z a r ou loja de fe rra g e n s. São com o m ostruá- rios e não por acaso Bispo d enom inava-as de v itrines. Os objetos “ em b a ls a m a d o s” d e s c re vem vivências d istan te s no te m po, de sua in fân cia, com o aquele bodoque com que ele presenteou R osângela, o m undo a rte sa n a l, da ro ça , que ficou p a ra trá s , no q u in ta l da c a sa da R ua São Cle
m ente, Rio antigo. E ste s objetos têm u m a a u ra especial, pro v av el
m en te a m e sm a luz que ilum inou Bispo no dia de sua gloriosa vi
são.
E n q u an to e s ta p rim e ira sé rie de tra b a lh o s tem um a envolvência p o é t i c a e n o s t á l g i c a , a s assem b la g es têm um sentido di
gam os assim m ais sociológico e m esm o crítico. Afinal, a q uase to
ta lid a d e d esses objetos foi reco
lhida ali m esm o na Colônia Julia- no M oreira, que tem as dim en sões de u m a cidade, com um a g ran d e população de p acientes, funcionários e resid e n te s, se rv i
da por ônibus, escola p rim á ria , ig re ja , pequenos quiosques etc. E um m icrocosm o urb an o , a p e sa r de sua ap a rê n c ia r u ra l. Velhos, e n c a rd id o s, d e s g a s ta d o s pelo tem po, sujos, pobres, estes obje
tos são o r e tra to c ru e l da Colônia, são a v itrin e de um estado de pe
n ú ria e abandono.
Os b astõ es d as m isses, cad a um com su a re sp e c tiv a faixa, nas quais Bispo d escrev e tudo o que sabe de c a d a país, fo rm am um conjunto im p re ssio n a n te por seu c a r á te r aleg re e festivo, com o se ele quisesse r e c ria r o próprio b ri
lho do desfile.
E ste clim a lúdico e festivo p ro s
segue no m a r. Ao lado dos barcos de g u e rr a , dos to rpedeiros e con
tra to rp e d e iro s, d as fra g a ta s e en- co u ra çad o s, form ando au tên ticas a rm a d a s , Bispo criou tam bém b a r c a ç a s p a r a tra n s p o rte de p a s
sa g e iro s, c a ra v e la s , veleiros, calques, b a rc o s à vela, em ban- d eirad o s, em dia de com petição.
R ealizou ainda assem b la g es com objetos de m a d e ira nu a, às
vezes com r a la m ão de cal. Não têm a m e sm a o rg an iz aç ão das o u tras, os objetos aqui ro m p em o alin h am en to , e x tra p o la m os b o r
dos do su p o rte, le m b ran d o as construções m e rz de S chw itters ou os co n tra-relev o s de T allin. E realizou objetos isolados, já re fe ridos, de d ec ifra çã o ainda difícil, ilu stra tiv o s de ce rto s c o m p o rta
m entos ou se n tim e n to s, com forte c a rg a sim bólica, ou sim p lesm en te e n c a n ta d o re s, com o e sta pe
quena ca ix a na qual p ap é is re c o r
tados e m ulticoloridos são como no tas m usicais.
A rth u r Bispo distingue-se dos a rtis ta s de E ngenho de D entro por a tu a r no cam po trid im en sio nal. E le não produziu im agens desen h a d as ou p in ta d as. E, m es
mo tendo esculpido nos p rim e iro s tem pos alg u m as fig u ra s de an i
m ais, nunca foi um escultor. O que e le s e m p re fez fo ra m O bjetos. E textos. N este sentido, pode-se dizer que os a rtis ta s de Engenho de D entro estão p a ra o Im p ressio n ism o , o C ubism o, o E x p ressio n ism o e p a ra a A rte A b strata assim com o A rth u r Bis
po e stá p a ra a Pop-A rt, o Novo R ealism o, as te n d ên c ias arqueo
lógicas, a nova e s c u ltu ra e a té p a ra a A rte C onceituai. Se os p ri
m eiros são m odernos, Bispo é pós-m oderno. A m a rc a dos a r tis ta s de E ngenho de D entro é o bom gosto, o refin am en to , o desenho caprichoso, as to n a lid a d es sutis.
Ao co n trá rio , Bispo é tosco, rude e d ireto , pois que lid a com m a te riais p obres, os m a te ria is da vi
da. N este sentido, ele é v e rd a d e i
ra m e n te um a rtis ta b ru t (ou na tra d iç ã o b ra s ile ira , um a rtis ta in- com um ), um bricoleur, um faze
d o r d e c o i s a s , a u t o r d e rea d y-m a d es. V ale d izer, ele é um d em iurgo, alguém capaz de a r r a n c a r as coisas de sua b a n a li
dade e de sua co n c retu d e m a te ria l p a ra d ar-lh es um novo signi
ficado.
Sua o b ra tr a n s ita , assim , com ab soluta n a tu ra lid a d e e com pe
tê n cia , no te rritó rio da a r te de v a n g u a rd a , do D ada.
Com ecem os por aproxim á-lo de M arcel D ucham p, o a r tis ta fun
d ad o r de q u ase tudo o que se faz hoje. A lguns O bjetos aqui expos
tos p o d eriam se r confrontados sem dificuldade com o b ra s super- conhecidas de D ucham p, ta is co
m o “ R o d a d e B i c i c l e t a ’ ’ (1913/1964), “ P o rta G a r ra f a s ”
(1914/1964), com o aquela c a p a de p lástico d a s a n tig a s m á q u in as de e s c re v e r U nderw ood, que ele cham ou de “ P lia n t de v o y ag e”
(1966). S u p re m a iro n ia: an tes de vir p a ra cá, e s ta c a p a de plástico preto, na q u al fala-se de histó rias de p esca d o re s, co b ria a “ roda da fo rtu n a ” , ou se ja , lite ra lm e n te , Bispo pôs a r te sobre a rte , fez um rea d y -m a d e duplo, d u as o b ras de D ucham ps em u m a. E n tre os ob
jetos c ria d o s por Bispo existem duas sa co la s que ele cham ou de u rn as fem in in as e que se rv ia m p a ra g u a r d a r as tira s contendo os nom es d a s m u lh eres. D ucham p ta m b ém m andou coS turar duas sacolas de tecido x adrezado a que deu o nom e de perso n ag em m a s
culino e perso n ag em fem inino.
O utro ponto a aproxim á-los, o jo
go de xadrez.
Sem que algum dia tiv e sse saído de su a cela p a r a v is ita r exposi
ções ou fo lh ea r re v is ta s de a rte em alg u m a biblioteca so fistica
d a , B ispo fez nos anos 60 a sse m b la g es com o as de A rm an, C e sar, M a rtia l R a y sse e D aniel S p o erri, in te g ra n te s do Novo R ealism o. N as acum ulações de todos este s a rtis ta s , com o n as de Bispo, vem os b a sic a m e n te os m esm o s objetos ou dejetos, todos saídos da sociedade in d u stria l e do consum o. A d iferen ç a resid e a p e n as no a c ab a m e n to , pois os a r tis ta s europeus dispunham de m a is re c u rso s técnicos, m a te ria is e econôm icos, chegando in
clusive a envolver os objetos em re sin a s p lá stic a s e em concreto a r m a d o . A s p r i m e i r a s a sse m b la g es de A rm an e ra m vi
trin e s, estan d o os objetos p ro teg i
dos por ca ix a s de vidro. O que P ie r re R e sta n y disse sobre o t r a balho de seus lid e rad o s v ale ta m bém p a ra o que fez Bispo: “ um gesto fu n d a m e n ta l de a p ro p ria ção do r e a l, ligado a um fenôm e
no q u a n tita tiv o de ex p ressão , o re a l p ercebido em si e não a t r a vés do p ris m a de u m a em o çã o ” . O Novo R ealism o, a firm a R es
ta n y , “ introduz na a rte um relais sociológico em estad o essen cial de co m u n ica çã o ” .
E s ta se m â n tic a da q u a n tid ad e e do refugo que e stá na produção de Bispo e dos novos re a lis ta s , nós podem os e n c o n tra r ig u al
m en te na im a g é tic a Pop, na obra de alguns flu x ista s, com o Vostell e Ben V au tiere (vide seu “ A rm á
rio de A rm a n ” exposto pela p ri
m eira vez na Documenta de Kas
sel, de 1972, autêntico bazar) e até nos prospectes de Waldemar Cordeiro.
Contudo, o modo de organização nas a sse m b la g es de Bispo é ao m esm o tem po m ais radical e m e
nos aleatório que o dos novos- realistas franceses. Não se trata, em última análise, apenas de quantidade, m as também de qua
lid ad e. B asta observar, por exem plo, o caráter despojado da vitrine que reúne canecas de alumínio, na qual a forma revela uma notável unidade visual, re
sultando numa estrutura de cará
ter geom étrico. O m esm o efeito ótico que encontram os num i quadro-objeto construído com pe
quenas placas de plástico, um
“ farfalhante” que Aluísio Carvão assinaria sem pestanejar.
A lógica form al com que Bispo envolve seus trabalhos antecipa certos aspectos da nova escultura inglesa, de um Tony Cragg, por exem plo. Ambos, o inglês e o bra
sileiro, pesquisam um tipo de or
ganização que vai além da sim ples acum ulação. A unidade vi
sual, em am bos, é dada pela cor, pela dim ensão ou função dos ob
jetos, pelos m ateriais. Como Bis
po, Cragg dá ênfase ao arranjo e não à fatura, elê não se considera um escultor, pois que não modela nem desbasta, m as um manipu
lador de objetos. Um sím ile na
cional poderia ser o jovem artista Barrão, que aliás acaba de intro
duzir o texto em seu trabalho.
As aproxim ações da obra de Ar
thur Bispo com a produção con
tem porânea não cessam ai. Seus objetos-m um ificados têm muito em comum com o que fizeram e ainda fazem alguns artistas que integram a corrente arqueológi
ca francesa, com o Boltanski, Ga- siorovski, Le Gac, Bertrand ou Bertholin, todos lidando com a m em ória, tomada literalm ente ou recriada com o uma espécie de arqueologia da alm a e do senti
mento. Todos eles lidam não com o tem po histórico ou cronológico, m as com o tem po confabuladp. A proxim idade é m aior com Bol
tanski, que procurou resgatar o passado através de objetos que ele procurava envolver, como Bispo, numa aura sacralizadora.
Os textos costurados de Bispo lem bram , por sua vez, os textos m anuscritos de Joaquim Torres- Garcia, nos quais ele funde pala
vra e im agem . Um d esses livros cham a-se “ La ciudad sin nom
bre” , de 1941, escrito em Monte
vidéu e que Torres-Garcia consi
derava uma sim ples ficção, ape
sar de reconhecer possíveis coin
cidências com o real de todo o dia. Anônimo em sua cidade sem nome, o fundador do U niversalis
mo Construtivo observa casas, veículos, praças, o policial, as lo
jas, a estação de trem , circula en
tre pessoas, percebe um sorriso, capta o sentido de um gesto, ouve a m úsica que vem de uma casa distante, sente-se bem. Percorrer com os olhos os panos, roupas, faixas e objetos costurados por Bispo é, da m esm a m aneira, per
correr um universo que, sendo a transcrição literal das suas vi
vências, passa também por ser uma ficção. Porque a m em ória não age com o um computador, m ecanicam ente, ela é uma espé
cie de sonho, no qual as coisas mudam de forma, peso, tam a
nho, mudam até na dim ensão da dor ou da alegria.
O m anto e as dem ais roupas de Bispo, por sua vez, rem etem aos parangolés de Hélio Oiticica, tan
to q u a n to su a c a m a - n a v e assem elha-se à casa-ninho de Oi
ticica em sua residência nova- iorquina ou ao Eden que ele expôs em Sussex, Inglaterra. E po
deríam os falar ainda da obsessi- vidade de Opalka em relação aos núm eros, tão sem elhante à obses- sividade de Bispo com os nomes, das m ini-tapeçarias de Olly Hei- m eheim er, a lembrar as faixas que Bispo criou para o seu desfile' de m isses, de fazer inveja a Ru
bens Gerchman e de tantos ou
tros artistas incomuns como van Genk, Schulthess, Walla e Wolfli, todos transitante pelos m esm os cam inhos difíceis e fascinantes que Ugam a loucura à arte.
“0 louco é guiado por
bom ouando se livra ”
Uma história de amor
R o sân g ela é um nom e singelo, b an a l. P o d e ria se r ap en as m ais um e n tre as ce n te n as de nom es que a p a re c e m costu rad o s em su a s o b ras ou anotados em tira s de papel, com o ele co stu m av a fa zer. O nom e de alguém que ele co
n h e c e ra an tes de se r jogado na vala com um dos p ac ie n tes da Co
lônia Ju lian o M oreira.
P a r a A rth u r Bisbo do Rosário, e n tre ta n to , R osângela e ra um no
m e esp ecial, que o m arcou pro
fu n d am e n te. O utras m ulheres a c o m p a n h a ra m a tra je tó ria de Bispo na Colônia, bem com o seu trab a lh o cria d o r. M as só um a, R osân g ela, conseguiu to c a r sua alm a, prov o car-lh e ciúm e e pai- -xão, re v e la r a d elicadeza de sem tim en to s que ex istia no boxeur que so fria de esquizofrenia para- nóide e, assim , p ro v ar, co n tra as te o ria s r e tró g a d a s , que o doente m e n tal, com o q u alq u er se r hu
m ano, tem ou n ec essita de afeti- vidade.
Com R osângela oço rreu o que N ise da S ilveira já c o n s ta ta ra en tr e os seus p a c ie n tes de Engenho de D entro: ela funcionou como
“ efeito c a ta liz a d o r” , trazendo-o de volta ao espaço cotidiano, ou o que, em p sic an á lise , se ch a m a de tra n s fe rê n c ia .
E n q u a n to viveu, Bispo protegeu sua o b ra com o se protege um bem precioso, um tesouro, difi
cu ltan d o ao m áx im o o acesso a ela, rec u san d o -se a m ostrá-la e até m esm o a com entá-la. Com sua m o rte , su a o b ra com eça fi
n alm en te a s e r a n a lisad a. E tanto quanto su a o b ra , o p róprio espaço do a r tis ta pode se r fin alm en te de
v assad o , alguns de seus segredos co m eçam a se r desvendados, en ig m a s explicados.
R o sân g ela é um deles. Seu no
m e a p a re c e em d iversos objetos e contextos, de fo rm a a b e rta ou d issim u la d a . E m m uitos tr a b a lhos o nom e foi e scrito tem pos de
pois de concluídos, pois à época de su a rea liza çã o . R osângela ain
da não e n tra ra em sua vida. Bis
po c o n stu m a v a dizer que “ ho
m em algum pode v iv e r sem um b a rc o . O hom em que não tiv e r um b a rc o e s ta r á p erd id o ” . Pois na p a r te e x te rn a do teto de um a d a s e m b a rc a ç õ e s po r ele cria d a s, a p a re c e , d e s ta c a d a m e n te , o no
m e de R osângela. Seu nome e n c o n tra-se ainda no a b a ju r ver- m e l h o d e u m a d e s u a s a ssem b la g es, reunindo lu m in á
ria s e sim ila re s, ela dá nom e a u m a a v e n id a na cidade por ele in
v e n ta d a . N um a p la ca de m ad eira ao lado d a re p ro d u çã o c irc u la r de u m a m ad o n a. Bispo anotou a au sên cia de R o sân g ela, e m b a r a lhando as le tr a s com que d irá : te vi, te am ei. E n tre seus perten ces, u m a an o ta ç ã o : “ R osân g ela: di
re to ra de tudo o que te n h o ” . No- depoim ento d ado a C onceição Ro- baina, ele diz: "Sou guiado por u m a m u lh er. C onform e ela m a n d a r eu ex e cu to ” . R osângela foi assim a luz d e su a vida, a m ulher- gu ia, seu barco , su a paixão. P or ela tudo f a r ia : “ E u sou seu e s c ra vo, tudo o que tenho é seu, tudo o que faço é se u ” , com o lhe confes
sou um d ia, sem m e ia s-p a la v ra s.
D u ra n te c e rc a de dois anos, en tr e 1981 e 1982, u m a e s tu d a n te de psicologia de 24 anos, m o ren a, q u ase a lta , foi c u m p rir seu e s tá gio n a Colônia Ju lia n o M oreira.
Coube-lhe c u id a r dos
pacientes
do pavilhão U lisses V iana, en tre os q u ais e s ta v a A rth u r Bispo.
Q uando ela a p a re c e u pela p ri
m e ira vez em seu cubículo, Bispo aplicou o te ste da cor, isto é, convocou-a p a r a e n tr a r no seu delírio. E la recu so u , descrevendo e x a ta m e n te as cores que via em su a roupa e no seu rosto. Como um bom boxeador, Bispo acusou o golpe e co n tra -a ta c o u : “ Se você não p erc e b e m inha cor, não pode fa la r com igo” . Na segunda visita Bispo voltou a in sistir no teste, R o sân g ela o u tra vez se recusou a e n t r a r no jogo d e lira n te , e Bispo, d e rro ta d o , disse-lhe então: “ Vo
cê é d a n a d in h a m e n in a ” .
Bispo não fala v a. E ra m uito fe
chado. Q uase nunca saía do seu q u arto . R o sân g ela costum ava
de uni jogo áe c ria n ç a s Dizia que eu não ap re n d ia as re g ra s do x a
drez porq u e, com o toda m ulher, eu tin h a u m a m en te p eq u e n in a ".
E assim , pouco a pouco, Bispo foi se aco stu m an d o à p rese n ça de R o sân g ela em seu territó rio . B eijava-lhe a m ão quando ela en
tr a v a e quando saía. Q ueria vê-la todos os dias. “ M uitas vezes, a t a re fa d a , eu o cu m p rim e n ta v a de longe, ab an an d o a m ão, m a s ele p ro te s ta v a dizendo que um a d a m a não d e v e ria a g ir assim . Nem tam pouco u s a r c a lç a co m p rid a ” . Q ueria sua p re se n ç a , todo o te m po. No caos de seu espaço, p re p a rou u m a c a d e ira só p a ra ela, com ro d as, p a r a que ela pudesse se d e slo c a r sem esforço, le v ad a por ele. C om eçou a to m a r banho d ia ria m e n te , cuidando de sua apa-
sola longa e o u tra s peças íntim as que d ev e ria m se r v estid a s por J u lie ta . R osângela perguntou-lhe e n tão com o se ria o final, se m or
r e r ia m ju ntos com o e sta v a no t e x t o o r i g i n a l . B i s p o su rp re e n d e u -a com a lucidez de sua re sp o sta : “ C laro que não, afi
n a l tr a ta -s e de u m a re p re s e n ta ção te a tr a l " . D ecidiram então ap e n as c o m e n ta r a peça, e depois o u tra s, que ele p a re c ia conhecer m uito bem .
S em p re no ataq u e , Bispo com e
çou a p rese n teá -la com objetos que fazia, objetos toscos, de m a d e ira , um a colher de pau, coisas ú teis, d o m ésticas. Um dia deu- lhe um estilingue. R osângela quis s a b e r por que: “ P orque lem b ra m inha in fâ n c ia ” , respondeu. Em
s a ir com os outros p acien tes, levando-os a p a s s e a r, ajudando- os a fa z e r c o m p ra s, g a s ta r os tro cados que rec eb em m e n salm en te. Bispo ja m a is sa ía dos lim ites do p av ilh ão . E ra , segundo R osân
g e la , um hom em educado e fino, q u e “ tin h a b e rç o ” . E le lhe contou q ue fo ra rico , m a s que um advo
g ad o e s p e rto lhe ro u b a ra todo o seu dinheiro, insistindo com ela p a r a que o localizasse. G aran te que ele fa la v a o u tra s línguas, além do p o rtu g u ês. Jo g a v a x a
drez, tendo
constru íd o ele p róprio um ta b u le iro com as re sp e c tiv a s p e ç a s , to d a s envolvidas com a m e s m a lin h a azul. “ T entou e n s in a r-m e a jo g a r — conta ela — m a s eu não ap re n d ia . S ugeri em tro c a que jo g á ssem o s d a m a , o que ele rec u so u , dizendo tra ta r -s erê n c ia e d r su a s ro u p as, a r r u m ando s u a s tr a lh a s no espaço exíguo. A p a r tir de u m a c e rta época tr a n c a v a a p o rta depois que ela e n tra v a , com m edo que ela fosse em b o ra . O rganizado, a n o ta v a tudo o que se re fe ria às sessõ es com R o sângela num a ag e n d a. O dia, ho ra, d u raç ão , e um re su m o dos te m a s discutidos.
Ao fim de c a d a se m a n a , m o s tra va a ela su a anotações.
A p aix ão e o ciúm e a u m e n ta r a m . O d elírio ta m b é m . C erta época propôs a R osângela que r e p re se n ta s se m ju n to s um a peça de te a tro . E scolheu “ R om eu e J u lie ta ” , de S h a k e sp e a re , com o p ri
m e ira p eç a. Lim pou u m a d as ce
la s, a rm o u o ce n ário , p re p a ro u u m a c o rtin a , providenciou o v es
tu á rio d ela. inclusive u m a c a m i
seus devan eio s. Bispo com eçava a so n h a r com um la r, a enchê-lo com seus objetos, te r um a com p a n h e ira , quem sa b e filhos. Um dos p ainéis aqui expostos, reu n in do objetos de m a d e ira , sem linha ou cor, é bem ilu stra tiv o do seu e stad o de esp írito naquele m o
m ento. N ele vem os m achado, cu telo, v a sso u ra , soquete, m artelo , chocalho, p ete c a , u m a m in iatu ra de p ern a-d e-p au e um in stru m e n to se m elh an te àquele " p a u de c h u v a ” dos índios. E m todos es
te s objetos a p a re c e o nom e de Ro
sâ n g e la e d a ta s , to d a s referen te s ao ano de 1982.
No
m ach ad o Bispo anotou: R o sângela e sta g iá ria , a u se n te d esde o dia 15.9.1982. No que p o d eria se r um triâ n g u lo desses que se põe a trá s do autom óvel q uando ele e s tá engule ado, e s c re
v eu: “ pode a b rir o portão, sítio, ro ça , R o sân g ela” . No outro ele p a re c e e s c re v e r: so rria. E stes objetos fala m , portanto, de sua in fân cia, de um am biente fam i
lia r, do tra b a lh o a rte sa n a l, en
fim , de um am biente pro teto r e aconchegante. M as são, ao m es
mo tem po, objetos que podem fe
r ir, b a te r, m ach u car.
A gora que A rth u r Bispo m orreu e que seu b a z a r com eça ser d es
feito, vam os descobrindo aqui e ali, em m eio à b ara fu n d a g era l, objetos isolados, os quais, reu n i
dos, g an h a m um significado no
vo, au m en tan d o m ais ainda o in
te re s s e pelo conjunto de sua obra.
O bjetos estra n h o s, como um a te lha a m a r ra d a envolta por um a m oldura de tecido, um c a rro com trê s p e d ra s, um objeto circ u lar com ro d as que deslizam sobre um a superfície, com o se fora um m oinho de te rr a , coisas assim , in
sólitas e en ig m á tic a s, “ m áquinas c e lib a tá ria s ” ou “ objetos não- id e n tifica d o s", ainda sem ró tu los, com o as escu ltu ra s que vêm povoando a a rte contem porânea desde os anos 70. E stran h o s p a ra nós, este s objetos e ra m p a ra Bis
po ap en as p a r te da ca sa onírica que ele co m eç av a a construir.
M as o estág io de R osângela na Colônia ch eg av a ao fim , ela e s ta va p re ste s a fo rm a r-se e, com o diplom a na m ão, seu destino se
ria outro. Bispo inquietou-se. Co
m eçav a a p erc e b e r que ele não era a única pessoa a m e re ce r sua aten ção e carinho, perguntava sobre seus pais e irm ão s, nunca porém sobre seu m arido. P ara ele, R osângela era pu ra, intocada por q u a lq u e r outro hom em . S-abia o nom ç com pleto dela. Mas no seu delírio ela e ra , de início, ap e
n as R osângela M aria, em segui
da, R osângela M aria de Jesu s e, fin alm en te , M aria de Jesus. Ele a tra n sfo rm a v a em Virgem M aria, assim com o ele, que tinha R osá
rio no nom e, se tra n s fo rm a ra em Je su s. E la e ra a M aria, dele, de Je su s. De volta à rea lid ad e ele p e rc e b e ra , fin alm en te, que ela p e rte n c ia ao m undo lá de fora e não a p e n as ao m undo lá de den
tro , da Colônia, o m undo dele.
P o r isso co stu m a v a referir-se aos objetos que fez à essa época como m undanos. C aiados, p a ra purifi
car.
Num esforço d ra m á tic o para in te g ra r-se ao seu m undo, ao pe
rigoso m undo lá de fora. Bispo perguntou-lhe se poderia assistir à su a fo rm a tu ra . R osângela re s pondeu a firm a tiv a m e n te , conse
guiu au to rizaç ão da direção da Colônia e até e s ta v a providen
ciando um te rn o p a ra a solenida
de. Bispo, en tu sia sm ad o , com e
çou a ju n ta r dinheiro para c o m p ra r-lh e um presente. Mas à ú ltim a h o ra desistiu de ir à festa de colação de g ra u e R osângela, fo rm a d a , não tev e coragem de v o lta r à Colônia. Não queria c o n s ta ta r o ev e n tu a l abandono de A rth u r Bispo do R osário. “ Não fui eu que o escolhi como pacien
te. Foi ele que m e escolheu para c u id a r d e le ” , concluiu. A intuição de R o sângela e s ta v a ce rta . Bispo segurou en q u an to pôde a dor de sua au sên c ia, m a s no dia 9 de m a rç o de 1983 ele foi in ternado no H ospital J . M anfredin, da Colô
nia, que é p a r a onde vão os in te r
nos em m om entos de c rise aguda.
(F re d e ric o M orais)
“Mamãe, olha Jesus lá no fundo do quintal”
Missão do Bispo no manicômio A Pedro Gabriel Go Que pode um psiquiatra dizer so
bre o artista?
Seguramente nada que não seja a tediosa repetição do “ monólogo da razão sobre a loucura” , que não seja a imposição de uma taxo- nomia. Quanto Arthur Bispo do Rosário internou-se na Colônia fa
zia exatos cem anos que o primei
ro psiquiatra científico proclam a
ra que “ a loucura é uma doença cerebral, ordinariam ente crôni
ca, que cursa sem febre” . Toda a imponente nosologia (as esquizo- frenias, as m anias) não é muito mais que uma construção a arqui
tetura de tal monólogo erigiu os asilos.
Bispo morava desde 1938 no mais inclemente dos conjuntos pavilhonares da Colônia de Jaca- repaguá. Chegou ali para ser mais um “ crônico” daquele mani
cômio em feérica expansão: lon
ga vida deveria ter o estabeleci
mento, objeto do entusiasmo dos dirigentes do Estado Novo (até o autor da Polaca, o cérebro da di
tadura de 1937, havia visitado a Colônia anos antes). Sendo ele um
“ enviado de Deus” , viveria anôni
mo, um Bispo?, aniquilado como os m ilhares de internados do asi
lo? Quem era o Bispo? Que vi
da/m issão iria cum prir no Núcleo Ulisses Vianna durante meio sé
culo?
Bispo foi internado no Natal de 1938 no Hospício da P raia Verme
lha, levado pela Polícia Civil do então Distrito Federal. Era soltei
ro, sem data de nascimento co
nhecida, sem filiação registrada em seu cheio de lacunas Prontuá
rio n? 11.530. Os esparsos regis
tros (perderam -se páginas intei
ras pela incúria do asilo e pela fal
ta de apreço a documentos de di
versos pesquisadores de sua obra) sobre aquele “ crônico cal
mo” , que “ se acreditava médico dos médicos", mostram sua into
lerância às regras do manicômio, mosteiro cruel que não escolhera.
Em seus períodos de jejum, justi
fica a recusa alim entar dizendo- se ora Deus, ora “ de Mosteiro” , dizendo que precisava “ ir secan
do até a Passagem ” . Há quase 10 anos não tomava mais medica
mentos, exceto para seus proble
mas respiratórios. Os neurolépti-
cos que ingeriu, sempre com má- vontade, durante décadas, não im pediram sua comunicação com Deus e com as m ilhares de escul
turas que recebia ordens de com
por, e que iam se erigindo em es
talagm ites de formas e tamanhos diversos na caverna que escolhe
ra (a caverna do Bispo era o anti
go “ bolo” , o mais cruel dos locais repressivos da Colônia, uma espé
cie de quarto-forte coletivo). Pou
co sabemos sobre suas quatro saídas e entradas mencionadas no prontuário até 1948. A Passagem definitiva foi no dia 5 de julho des
te ano, às 19 horas, por “ infarto do miocárdio, artériosclérose, bron- copneumonia” , e surpreendeu a quem o conhecia: ele estava apa
rentem ente bem, em sua saúde precária, e não a anunciara.
“ Transporei, então, essa força da minha natureza corpórea, su
bindo por degraus até Àquele que me criou. Chego aos vastos palá
cios da memória, onde estão tesoi- ros de inumeráveis imagens trazi
das por percepções de toda a espé
cie. Quando lá entro, mando com
parecer diante de mim todas as im a g e n s que q u ero . Uma s apresentam -se im ediatam ente, outras fazem-me esperar por mais tempo, até serem extraídas de receptáculos ainda mais recôn
ditos; outras irrompem aos turbi
lhões e saltam para o meio, como que a dizerem — "Não seremos nós?” Eu, então, com a mão do espírito, afasto-as do rosto da me
mória, até que se desanuvie o que quero e lá do seu esconderijo apa
reça à vista. Outras imagens ocorrem-me com facilidade e em série ordenada, à medida que as chamo. Lá se conservam distintas e classificadas todas as sensa
ções: nas sinuosidades secretas e inefáveis, onde tudo entra pelas portas respectivas e se aloja sem confusão” .
Assim se expressou outro bispo anacoreta, que igualmente rece
bera a missão divina de reprodu
zir o mundo em sua ordem. P ara Arthur, tratava-se também de perseru tar o nevoeiro por “ onde sahi o diurno noturno verbo” .
iodinho Delgado Um nevoeiro “ coberto/espuma esponja” , que aquele portador de
“ Schizophrenia, Tipo Paranói- de” , ao recusar heroicamente o e s t a t u t o d e ‘ ‘ c r ô n i c o ’^
(diagnóstico-sentença que erige a psiquiatria asilar), foi lentamente desbastando, revelando, na per
manente epifania de seus cin
qüenta anos de vida manicomial.
Seu eixo Grécia / fina pluma
“ Fina plum a” : o milagre de ins
tau rar o diferente com o mesmo instrumento que igualava para to
dos os crônicos seus rostos e no
mes, o fio do uniforme azul de in
ternado.
Em meio à placidez gélida, se
pulcral, do asilo, que contrastava, na violência dos dias adm inistra
dos e das noites selvagens, com a resistência desesperada da vida (“ nós somos gente viva!” , me disse uma vez um velho senhor in
ternado em outro Núcleo), uma cela monacal viveu meio século de perm anente turbilhão:
Venha as virgens em cardumes
-Programação paralela
C o n ferên cia s/d eb a te s :
19.10.20.30 h. A rte e Loucura E xp ositor: H ugo D enizart D eb ated ores: P ed ro P ellegrin o
H enrique Autur
23.10.20.30 h. Arte nas In stitu ições P siq u iátricas E xp ositor: H eloisa Correia Toledo F erraz
D eb a ted o res: Luiz Carlos V anderlei Soares Carla G uagliari
26.10,20,30 h. B isp o e a Arte Contem porânea C on feren cista : F red erico M orais
D eb ated or: M árcio Rollo F ilm e s /v íd e o s
D u ran te a ex p o siçã o estarão sendo projetados os fil
m es “ P risio n eiro da P a s s a g e m ” e “ Na R egião dos D e
s e jo s ” , de H ugo D enizart e o vídeo sobre o Projeto de
L ivre C riação A rtística da Colônia Juliano M oreira.
“Você está
com Jesus Cristo. Jesus Cristo sou eu.”
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