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Pontificia Universidade Católica de São Paulo PUCSP Norma Leonor Hall Freire

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Academic year: 2018

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(1)

Pontificia Universidade Católica de São Paulo

PUC/SP

Norma Leonor Hall Freire

INTERSTÍCIOS

Colaboração para os Estudos Semióticos dos Textos com Memória Própria

Doutorado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

(2)

Norma Leonor Hall Freire

INTERSTÍCIOS

Colaboração para os Estudos Semióticos dos Textos com Memória Própria

Doutorado em Comunicação e Semiótica

Tese apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

-

PUC/SP

como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica

Área de Concentração: Signo e Significação nas Mídias

(3)

São Paulo

2013

Banca Examinadora

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

(4)
(5)

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

INTERSTÍCIOS

Colaboração para os Estudos Semióticos

dos Textos com Memória Própria

RESUMO DE PESQUISA

Palavras-Chave -

texto - memória - fragmento - mosaico - temporalidades - símbolo - ritual

(6)

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

INTERSTICES

Collaboration for Semiotic Sudies of the Texts with Own Memory

ABSTRACT

Keywords -

text - fragment - mosaic - memory - temporalidaes - symbol - ritual

(7)

SUMÁRIO

I_ UM MAPA, UM PONTO OU DOIS

10

I.1_Introdução 11

II_ O MANUSCRITO,

um recorte fotográfico

20

Da Estrutura do Texto

22

O Mar Coalhado

23

A Roda da Fortuna

25

Val de Flores

25

Leomites 27

Joaquim de Fiore

27

Um Códice Iluminado

28

A Despedida

30

Olhar mais doce

31

Farpas Apocalípticas

32

Os Espirituais

33

O Culto do Divino

34

Brajlides, Valydes, Baliides...

35

Isabel

35

Trovadores e Cruzados

Os Cátaros

42

Cultura do Paratge

43

Inquietação e Heresia 44

Os Rosários de Maria 46

O Ramo da Consolação

48

Heterodoxias

49

Pastores

53

Uma Risca Prateada

Polos de Navegação

55

O Galego-Português

55

Coitas

58

Ritos do Trovar

60

O Paço Real

60

Tomar, castelo

61

Mentalidade Cruzadística

61

Caminhos da Jerusalém Celeste

65

Exempla

66

(8)

II.6_ Doces Amores

71

II.7_Conclusão

74

III_ CONTEXTOS 78

Constelações

79

Reformas Monásticas 80

Comunidades, alguns aspectos

84

Sertões

84

O Tempo dos Mosteiros

88

Gramática

90

Imaginação

90

Meditatio

92

A Lectio Divina

94

A Lectio Escrita

95

O Livro

95

Repertórios Auxiliares 96

Nominação

97

O Mosteiro e o Reino 102

A Ordem de Cister em tempos de crise

104

A “Badia” Florentina / D. Frei Gomes

105

IV_ ESPAÇOS INTERMEDIÁRIOS

109

Mapa Noturno

Símbolos

114

Temporalidades

115

Liminaridade e Communitas

116

Imediaticidade

127

Topos e Tropos

128

Ritos de Passagem

130

Processos de Criação

131

Bricolagem

134

Retórica

135

Ponte

137

A Língua dos Nomes Próprios

141

V_TEMPORALIDADES DISTINTAS

143

Honi, o Fazedor de Círculos, e o Plantador de Alfarrobeiras 144

Salmo 90 [89] 147

Uma Carta de Maimon 149

Uma Carta de Pedro

150

(9)

Os Sete Dormentes de Éfeso

Isra e Miraj

Psicopompos

Lendas do Reno e Alhures

O Monge de Heisterbach

Schimpf und Ernst

Affligem

Um anjo passarinho

Pecopin e Baldur, Guntram e Liba

Um “Conte noir à Sevillana”

SANTO AMARO

Introdução

Um santo português

Entrelaçamentos

Um santo beneditino

São Mauro

São Mauro

Almendral

Os Santos Mártires

Mauron

Mouros

Santo Amaro Peregrino

ANEXOS

(10)

UM MAPA, UM PONTO OU DOIS

1

(11)

Introdução _ Um mapa é uma representação visual de um determinado espaço, uma forma

sim-bólica de apresentar as relações que se vislumbram entre os elementos desse espaço tais como

obje-tos, regiões, conceiobje-tos, temas etc. Com esse objetivo, empreendo o mapeamento do percurso

traça-do na elaboração traça-do presente estutraça-do, que se quer não como uma leitura exaustiva traça-do ‘Conto de

Amaro’, uma narrativa medieval manuscrita entre os séculos XIV e XV em Portugal, mas sim como

uma tentativa de localizar o texto num espaço-temporal que lhe julgo próprio, o das ritualidades.

O texto trata da viagem de Amaro ao Paraíso, num trajeto que percorre mar e terra. O conceito de

liminaridade desenvolvido pelo antropólogo Victor Turner (1967:2008) a partir da estrutura dos

ri-tos de passagem é importante para a compreensão desses espaços “entre”. Nos riri-tos, a duração da

fase que está entre o antes e o depois, nas zonas liminares entre a partida e a chegada, varia

confor-me a cultura e a natureza do rito. Em alguns ritos de iniciação e festivais sazonais ela pode durar

muito tempo ou prolongar-se como se na verdade fosse um corredor comprido, um trem em meio a

uma floresta de símbolos; um túnel que pode se transformar na contemplação estática de um asceta,

de um eremita, de um monge num mosteiro ou nos passos de um peregrino - aspectos da

religiosi-dade e da mente humana a que Turner aplica seu método de análise simbólica e comparativa.

Perce-bo no Conto de Amaro que veio à luz no Mosteiro de Alcobaça, elementos de um ritual de

passa-gem que transcorre em vários níveis.

O texto tem intitulação polêmica. Em algumas versões Amaro aparece como “santo” e em outras

ele é simplesmente “Amaro”. No início do século XX foram feitas pelo menos duas edições do

ma-nuscrito. Em 1906 José Joaquim Nunes apresentou um trecho selecionado para publicação numa

coletânea de uso didático [conto de Amaro, inserto no códice alcobacense n. 266]

2

, algum tempo

depois da edição empreendida por Otto Klob

3

, publicada na íntegra pela revista Romania com o

tí-tulo ‘Vida de sancto Amaro, texte portugais du XIVe siècle’. Adota-se aqui a perspectiva proposta

no título de Nunes, fiel ao original, a mesma que adota a edição de Elsa Branco da Silva, publicada

integralmente em 2002

4

.

Além das mencionadas são conhecidas outras edições do mesmo manuscrito. Branco da Silva cita

a que Eugen Heinen, em 1973

5

, fala da narrativa como “lenda” e a tese não publicada de Maria

Luí-sa Meireles Pinto

6

. Hilário Franco Júnior

7

, autor de um artigo da obra, menciona ainda as de

Eliza-2 NUNES, José Joaquim (1967) ‘Crestomatia Arcaica - excertos da literatura portuguesa desde o que mais antigo se

conhece até o Sec. XVI’, 6a. edição, Lisboa:Livraria Clássica Editores

3 KLOB, Otto (1901) Vida de sancto Amaro, texte portugais du XIVe siècle. Romania, 30, 1901, p. 504- 518. Ms.

Alco-baça 266.

4 BRANCO DA SILVA, Elsa (2002) Conto de Amaro -Edição de texto português medieval e introdução, pp 241 e sgs in

NASCIMENTO, Aires do, 2002, op cit

5 HEINEN, E.(1973) Die altportugiesische Amaro-Legende, éd. Eugen Heinen, Münster

6MEIRELES PINTO, M.L (1961) O conto de Amaro. Leitura crítica do texto e glossário, tese de licenciatura,

Universi-dade de Lisboa, 169 p.

7 FRANCO JR, Hilário (2010) Concepts of time in medieval Portugal: temporalities and simultaneities in the Conto de

(12)

beth Zacherl

8

(1979), e a tese de Laura Remartinez Paes de Vasconcellos (1997)

9

. Entre as

referên-cias, há que destacar o trabalho de Néri de Barros Almeida, pesquisadora e autora do tema.

Na leitura do Conto, valemo-nos da edição de Branco da Silva. Quando nos referimos ao texto

“De Sancto Amaro” que consta do Ho Flos Sanctorum de 1513 em língua portuguesa, usamos a

edição reproduzida num ensaio de Maria Clara de Almeida Lucas, publicado em 1986

10

.

Se a edição do Conto de Amaro não é tarefa simples, a interpretação do texto configura-se como

um ‘enigma no âmbito da literatura medieval’, considera Branco da Silva (ibid:244) ao notar que a

diversidade de opiniões que cerca sua leitura “não esconde a dificuldade de identificação da origem

do conto”. A observação de Branco da Silva nos anima a buscar, não a identificação da origem do

conto - ao qual Mário Martins

11

se refere como “uma aventura marítima digna dum Júlio Verne

me-dieval” - mas sugerir os possíveis fios da trama em que ele se tece até a sua inclusão no códice 266.

De início, o título prendeu minha atenção. Dois têrmos o compõe, um gênero e um nome

interli-gados pela preposição “de”, relacionando memórias seculares.

Entre aqueles dois termos situo a viagem propriamente dita, o “ritual de passagem” de Amaro no

capítulo “O Manuscrito de Alcobaça, um recorte fotográfico” e percorro o contexto de dois modos:

no plano interno da comunidade monástica e no plano externo a essa comunidade, o Reino

portu-gues. Está no capítulo “Contextos”.

No Conto, a viagem começa quando o jovem homem menino Amaro - um homem pio - sai da

praia do desejo e embarca em alto mar. Dessas passagens, quase uma colagem dos textos que

apoi-aram a análise do texto (são textos bíblicos, salmos, belos.... merecem melhor serei breve)

falare-mos no capítulo “Espaços Intermediários”. O mar que Amaro atravessa no texto manuscrito em

Al-cobaça é por vezes coalhado, há monstros serpentes, pedaços de gente, naufrágios, ilhas enfim, tudo

aquilo que sempre cabe ali, mais a doce voz da Virgem conduzindo os marinheiros. Fora do mar há

ilhas e terra firme, pontilhada por mosteiros em cujos nomes se reconhecem sons ibéricos e

medi-terrâneos, até o vislumbre do castelo ao longe, suas torres e muralhas: o Paraíso.

A descrição das paisagens é generosa a seu modo, e regrada nos termos: limita-se aos floreios

co-dificados que remetem a fórmulas fixas, de uso já na tradição homérica. A construção

indicava na

oralidade uma “idéia essencial” - só há um modo de dizê-la - e à sua passagem abre-se um espaço

de imaginação para o receptor, mesmo que ele se situe a séculos de distancia. Através desses

inter-valos medianamente permissivos é possível perceber no Conto de Amaro uma pontuação distinta da

que foi introduzida pela letra - de certo modo relacionada às tais deixas formulares, uma construção

que persiste muito além da passagem irregular do oral para o escrito.

Percebi também um outro ponto, embora não com tanta concretude. Fica no episódio do castelo,

já no final - ouvem-se flores, frutos, perfumes dulcíssimos, clima ameno, dia eterno, cantorias, há

jovens belas ali, no Paraíso - e o porteiro que não deixa Amaro passar da soleira do sonho ou

me-8 ZACHERL, E. (1979) Conto de Amaro in col. Texte romanischer Volksbücher 5; Salzburg:Internationale

Arbeitsge-meinschaft für Forschungen zum romanischen Volksbuch,

9 VASCONCELLOS, L. Paes de (1997) Conto de Amaro: edição e estudo de um texto do códice alcobacense no 266,

tese, Universidade nova de Lisboa, 192 p.

10 ALMEIDA LUCAS, Maria Clara (1986) A Literatura Visionária na Idade Média Portuguesa volume 105, in

Bibliote-ca Breve, Lisboa:Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.

11 MARTINS, Mario (1956) Estudos de Literatura Medieval, Braga, pp 24-27 apud Luciano Rossi “A literatura

(13)

lhor, deixa-o entrar para uma vistoria guiada, porque reconhece nele um bom homem - mostra-lhe,

inclusive, a árvore dos frutos proibidos. Esse ponto marca a volta, um retorno de herói sem glória,

trazendo apenas um poucochinho da terra do Paraíso da Criação entrevisto, o mais próximo que lhe

foi permitido chegar da realidade que almejou. Viveu para isso, mas para isso havia que morrer.

O Amaro do conto manuscrito em Alcobaça não volta à terra em que nasceu - segundo algumas

versões, um vago Oriente que crê no Paraíso terreal - mas à uma outra, um Ocidente que reconta a

sua história.

Ocorre que naquele limiar do Paraíso, ele descobre que haviam se passado 276 anos entre a

parti-da e a chegaparti-da. O conto termina - não com a vitória de praxe do herói clássico que enfrenta a morte

e os perigos do destino - mas com um Amaro mortal, vivendo vida santa mais de acordo com os

trabalhos e os dias, morrendo morte mais santa, uma dormição livre da esperança vã de um paraíso

terreno, um passaporte tranquilo para o paraíso dos anjos, no além. Menciona-se ainda que no

tem-po que lhe resta de vida no mundo, Amaro funda um monastério em Treville ou Troisville.

É preciso dizer que existem realmente locais conhecidos como Treville e Troisvilles no mapa da

Europa, referindo-se a senhorios reunidos no período medieval. Por exemplo, na Italia piemontesa,

na França ao norte do Passo de Calais, e um local de povoamento muito antigo, memória idem, na

região basca de Iruri que os franceses chamam Treville. Lá viveu o conde de Treville, Jean-Armand

du Peyrer, governador do Condado de Foix, nascido em Oloron-Sainte-Marie em 1598 e morto em

1672 nas suas terras em Iruri/Troisvilles/Treville onde era Señor de Elizabia (Castelo de Eliçabia y

Casamajor) na região ocidental dos Pirineus dos dois lados da fronteira entre a Espanha e a França.

O capitão dos Mosqueteiros do Rei na obra de Alexandre Dumas - publicada inicialmente como

fo-lhetim no jornal

Le Siècle

em 1844 - foi inspirada nesse personagem histórico.

Castelo de Elizabia - Construção

de 1660 na região basca de Iruri /Treville: povo descende da civilização pré-histórica responsável pelas

pinturas rupestres de Altamira [Cantabria], Santimamiñe [Biscaia], Ekain [Guipúzcoa] e Isturitz [Baixa Navarra]

(14)

Mosteiro de Alcobaça - Fundação em 1153, quando o estilo romanico ainda era usado no norte de Portugal. Na construção, a igreja seguiu influências

do gótico inicial, adaptado à busca de monumentalidade, verticalidade e luz , ao estilo da Ordem

Planta atual da Igreja e Mosteiro de Sta Maria de Alcobaça: memória em construção.

Abaixo, o pórtico barroco da Fachada (1702~): do projeto primitivo, permanece apenas a grande rosácea e o portal axial. No interior da Igreja, o gótico dos arco-butantes, as abóbadas de cruzeiro e a cobertura comum às três naves. Estantes inclinadas (atris), bancos e suportes no Scriptorium: com o advento da imprensa, a sala passou a servir de

(15)

O Conto de Amaro é um conto cristão e mestiço. Mestiço porque na sua caminhada até a letra,

incorporou diversas tradições e continua. Cristão porque está inserido numa experiência mística do

cristianismo cisterciense. Falaremos desse conto como se fosse obra aberta num cone invertido, pois

continuadamente a história recebe adendos que preenchem vazios de início, a letra que em Alcobaça

omitiu o local da partida de Amaro e sua origem. Essas variantes, que permitem perceber que a

nar-rativa respira viva fora da escritura, apontam insistentemente para o Oriente e é possível que assim

seja, entre outros motivos porque várias narrativas do mesmo códice

12

apontam nessa direção.

Numa dessas versões, é um anjo quem aconselha os pais dele a chamá-lo assim. Essa variante

co-meça na Anunciação. Na versão, ficamos sabendo que por sugerência divina o menino que vai

nas-cer dali a nove dias em uma antiga cidade - Antioquia - será Amaro.

Esses acréscimos ampliam o alcance da história, sinalizam diferenciações, acrescentam

identifica-ções, carne e ossos ao personagem Amaro - ao mesmo tempo um igual a tantos outros aos quais se

atribui o mesmo nome e dos quais se diferencia por ser ele, Amaro, um singular que se chama assim

- igual a tantos outros singulares etc. No condão dessa circularidade, o Amaro do conto também é

reconhecível, em todas as versões da história, pela vontade tamanha de um Paraíso Terreal - uma

característica geral que o distingue do conjunto dos demais “amaros”. São “esses Amaro” quem

parte em busca do Desejado, um lugar que ele sabe só de nome, mas não onde é, onde fica.

Nesse conjunto de “amaros”, a versão manuscrita em Alcobaça não faz referência a anjo algum,

mas menciona uma voz anunciando certa noite que Deus ouviu-lhe a prece e quer cumprir seu

“rro-go e desejo”. Essa voz incorpórea marca o início do Conto manuscrito como se fosse um recorte de

fotografia. Em obediência a essa voz, o Amaro manuscrito inicia os preparativos da viagem.

vendeo e desbaratou todollos bees que avya, e deu muito dello aos pobres e o al guardou per sua des-pesa, e levou cosigo dezaseis mãcebos grandes e arryzados. E chegou com elles a huu porto e mercou hua nave, e meteo‘sse em ella cõ sua conpanha (...) per onde o Deus quisesse guiar. E a cabo de onze semanas chegaram a hua insola pequena que nõ era povorado se nõ de huu moesteiro de irmitaães (...) E foy sse entom aa inssoa e topou com huu irmitã (...) E elles indo pera o moesteiro, virã jazer acerqua do moesteiro gram cõpanha de lyonees e outras bestas maas, tantas que era maravilha.

A viagem pelo desconhecido será longa e perigosa mas Amaro é precavido e rico de bens que o

situam vagamente, não entre nobres pois não há referência a títulos, mas mercadores marinheiros

(16)

talvez. A situação social de Amaro também é vaga no recorte cristalizado no Flos Sanctorum

im-presso em 1513

13

- a primeira recolha de hagiografia medieval em língua portuguesa - que, como o

manuscrito de Alcobaça, está guardado na Torre do Tombo. No Flos Sanctorum de 1513, o texto

copiado de um original castelhano anônimo assegura que Amaro partiu

muy bem com os proves e com os mingoados e o outro levou consigo pera a barca e pera sua despesa e pera sua companha, e seus criados que aviam de hyr com elle: e foy se pera hũa çidade que era ri-beyra do mar e ally esteve hũus dias hatee que fez fazer hũa nave muy boa. e forte o mais que pode. e como foy de todo cõprida: ha guarneçeeo muy bem de viandas e de todo o que lhes fazia mester.14...

Alçaram vela dali, continua a edição do Flos Santorum de 1513, e “andarom pollo mar sete dias e

sete noctes que nom folgarom” ao fim dos quais chegaram a uma ilha viçosa em que havia sete

ci-dades e outros castelos e onde os homens “erã muy feos e cruees: e has molheres muy fremosas”...

Ho flos sanctõrum em lingoajem portugues (BNL Ans. 443): consta do cólofon (f. 267r.) que foi impresso em março de 1513 por Hermão de Campos & Roberto Rabelo, em Lisboa

Impressora de madeira de 1568: capacidade para imprimir 240 cópias por hora

Aqui, os dois manuscritos diferem. No266, Amaro e seus companheiros chegam primeiro à uma

“inssoa pequena” habitada por ermitãos e feras, onde os animais s travam misterioso torneio no dia

de São João

13 O início da vida de Amaro falta na compilação do Flos Sanctorum, nos diz Almeida Lucas (1986, op cit, p 22, nota 9) 14 Flos Sanctorum de 1513 apud Maria Clara de Almeida Lucas (1986) A Literatura Visionária na Idade Média

(17)

E Amaro pregutou ao irmitão que fora aquello. E el disse que oyto dias avya que aly jaziã (...) E cad’anno e cada dia de San Johã que se ajuntavã e faziã huu torneo e que pereciã muitas dellas. E des que lhe deu aquello que lhe cõpria [pão e água doce] disse lhe que se fosse daly e nõ estevesse hy mais. 15

Só depois o manuscrito se refere à “inssoa grande que era povorada de cinquo castellos” onde “os

hom

es daly erã muito longos e grandes, luxoryosos e d’outras maas condicções” - sem mencionar,

entretanto, as “sete cidades” de que fala o Flos Sanctorum e tampouco as mulheres “fremosas” que

diz existirem ali. Mas há discrepâncias de outro nível entre as edições do Flos Sanctorum português

e o manuscrito alcobacense. A principal, é que versão impressa do Flos estabelece de início a

santi-dade do personagem-título, que inexiste na versão portuguesa manuscrita.

Embora conste do original castelhano do qual foi traduzido o Flos Sanctorum português, a Vita

‘De Sancto Amaro’

16

não consta da compilação das Vitae feita no século XIII pelo dominicano

Ja-copo da Varazze, “Flores seu Legenda Sanctorum” que, completada por outros

materiais, está na

origem da versão castelhana

17

- favorecendo a hipótese de acréscimo na edição espanhola

18

.

Monge trabalhando em Scriptorium (Jean Miélot, 1472)

15 Conto de Amaro, Lisboa B.N. Alc. 462 apud edição de Elsa Maria Branco da Silva (2002 op cit)

16Para mais informações dessa complexa trajetória editorial remete-se ao ensaio de José Aragüés Aldaz “De la Leyenda

de los Santos: primeros apuntes” in “À tout seigneur, tout l’‘honneur, mélanges offerts à Claude Chauchadis” Ed. Mónica Güell/Marie‐Françoise Déodat‐Kessedjian, Toulouse, CNRS‐Univ. de Toulouse‐

Le Mirail (Collection Méridiennes), 2009, pp. 81‐98.

17 Valemo-nos aqui de duas traduções da Legenda Dourada de Jacopo da Varazze: uma em portugues, com apresentação

e notas do prof. Hilário Franco Júnior (‘Legenda AureaVidas de Santos’, São Paulo:Companhia das Letras, 2006) e ou-tra em francês, com introdução, pesquisa de fontes e notas do abade J.-B.Roze, cônego honorário da Catedral de Amiens (La Légenda Dorée de Jacques de Voragine, Paris:Rouveyre Editeur, 1902, digitalizada na Abadia de St Benoît de Port-Valais em 2004)

18 Pelo menos três outras antigas edições espanholas assumem Amaro como santo. Dessas edições em castelhano, duas

são quinhentistas - uma de Toledo, datada em 1520, ‘e outra de Burgos, de 1522, ‘La Vida del bienaventurado Sant Amaro e de los peligros que passo hasta que llego ao Parayso terreal’. Vamos encontrar ainda um fragmento incompleto da narrativa acrescentado ao final e “encadernado junto com outra obra de caráter cientifico e geografico, o Lucidário de Sancho IV”, nos diz Richard Kinkade (1974:516; nota 14), responsável pela localização do texto num códice em letra gótica do final do século XIV, arquivado na Biblioteca da Universidade de Salamanca, na Espanha (Ms 1958,

(18)

O que surpreende é que nas edições posteriores a 1513 do Flos Sanctorum português houve uma

diminuição sensível no número das hagiografias porque algumas, como a

Vita

De Santo Amaro,

de-sapareceram

19

, sugerindo uma possível reavaliação dos critérios de seleção.

Consta também que em terras onde se falava o idioma espanhol a narrativa corre de mão em mão

em livretos de cordel, e é tão popular no início do XVII que o poeta e antologista Pedro Espinosa

citado por Jaime Sanchez Romeralo (1971), coloca-a entre as crenças mais difundidas e as verdades

mais duvidosas da época

sabemos que el ave fénix, el canto del cisne, los granos de helécho, la sirena de la mar, los duendes, la verdad, la sombra del Marqués de Villena, y Juan de Espera en Dios es lo mismo que la fortuna, la historia de San Amaro, y el cuentecillo del ánima de Trajano

A qual historia de San Amaro ele se refere?

Devoção antiga, profundamente arraigada na cultura popular, a figura de Santo Amaro é uma

mais queridas do santoral hispânico. Após os Descobrimentos, a devoção propagou-se pelas

colôni-as ibériccolôni-as de além-mar, independentemente do fato de santo Amaro não ter registro na Acta

Santo-rum nem tem dia fixo marcado no Calendário Litúrgico. Mas, dizem, tinha sepultura no Almendral.

19apud Maria Clara de Almeida Lucas (1984) Hagiografia Medieval Portuguesa (volume 89) in Biblioteca Breve,

(19)

Reliogiosidade: abstração e arte primitiva nas iluminuras de um Beatus português. Uma das mais importantes cópias do Beatus de Liébana, esse Comentário ilustrado

ao Apocalipse de São João foi realizado por um monge de nome Egeas ou Egas por encomenda do rei Afonso Henriques (1109-1185). Posteriormente, o beatus foi

doado em agradecimento ao Mosteiro de Santa Maria de Lorvão (Penacova) por Sancho I, filho e herdeiro. No século XIII, a infanta Teresa, filha de Sancho I, e suas companheiras ingressaram no mosteiro, que passa para mãos

femininas sob a Ordem de Cister.

Fundado por volta do século IX, dedicado a São Mamede e tendo como patrono secundário o mártir São Pelágio, o mosteiro evidencia no nome do padroeiro e na sua iconografia antiga as influências moçárabes, vinculando-se à uma

(20)

Alcobaça, antiga biblioteca e scritorium dos monges

(21)

A versão manuscrita do Conto de Amaro é encontrada num códice datado do final do século XIV/

primeira metade do XV. A narrativa é redigida por mão única em letra gótica, português arcaico:

suspeita-se que possa haver, mas não se conhece versão escrita anterior a essa. O códice possui

de-licadas iluminuras nas iniciais dos capítulos, tem capa em pele sobre madeira, apresenta aqui e ali

algumas manchas de umidade: são 171 fólios em pergaminho, obra do scriptorium do Mosteiro

Cis-terciense de Santa Maria de Alcobaça; atual distrito de Leiria.

Da esquerda para a direita: Península Ibérica; Portugal: em destaque, município de Alcobaça; Freguesias (divisões administrativas) de Alcobaça

Na Biblioteca Nacional de Lisboa (Torre do Tombo), onde está, a obra atende pelo código ALC.

462 mas é mais citada pelo número da antiga marcação conventual, 266, que recebeu a

denomina-ção tardia de “Colecdenomina-ção Mystica de Fr. Hylario da Lourinhãa, Monge Cisterciense de Alcobaça”. O

mesmo número da marcação conventual consta à página 118 do ‘Index Codicum Bibliothecae

Al-cobatiae’ publicado pela Typographia Regia de Lisboa em 1775, vinte anos depois daquele

terremo-to seguido de tsunami e incêndio que devasterremo-tou a cidade.

Em 1834, com a extinção das ordens religiosas masculinas e a nacionalização de seus bens em

Portugal – medidas que valeram a alcunha ‘Mata-Frades’ ao então ministro da Justiça Joaquim

An-tónio de Aguiar – o códice 266 foi retirado de seu lugar de costume, uma estante preta na Sala dos

Indices do mosteiro, e remetido junto com outros documentos para Lisboa, via Peniche, em dezenas

de caixotes de livros e manuscritos numa viagem por terra que pareceu bem mais longa e mais

aci-dentada que seus 95 quilômetros. No século XIX o códice foi redescoberto pelo filólogo suíço Jules

Cornu (1849-1919) nos arquivos da Torre do Tombo.

Professor em Praga e depois em Gratz, estudioso das línguas românicas, Jules Cornu ou “doutor

Julio” como o chamava José Joaquim Nunes, lingüista do Algarve e futuro diretor da Faculdade de

Letras de Lisboa, visita Portugal em 1878, 1880 e 1891. “Ao mesmo tempo que estudava a língua

nos textos, aprendia-a também no uso vivo, e isto facilitava-lhe imenso as investigações literárias”,

lembra Nunes.

(22)

Gramática Histórica da Língua Portuguesa. Além da obra, Jules Cornu publicou estudos de

partícu-las arcaicas, da métrica do ‘Cancioneiro Geral’, etimologias e editou alguns textos do manuscrito

266: entre eles, um Tratado de Devoção (1882:381-390), a Vida de Eufrosina (1882:357-365) e a

Vida de Maria Egípcia (1882:366-381), de tradição oriental - mas não aquele de que falamos, o

Conto de Amaro, manuscrito nesse mesmo Códice aos fólios 111r – 123v.

Quem o faz, e publica na revista Romania XXX de 1901 com o título “A Vida de Sancto Amaro,

texte portugais du XIV siècle”, é o lingüista Otto Klob (1909:504-518). Num artigo da Romania,

entre as páginas 504 e 518, Klob assinala a inexatidão do título em latim no catálogo de 1775,

“His-toria cujusdam Uauri qui concupivit videre paradisum terrestrem”; e sugere que o mesmo é tirado

da rubrica do próprio manuscrito: "Hystoria de certo homem pio chamado Mauro, o qual depois de

perigozos e quazi impraticáveis trançes, conseguio o desezo que tinha de ver o Paraizo terrestre".

Ao concordar que o texto é de intitulação polêmica e sugerir uma análise mais atenta, Néri de

Al-meida (2001:197-216) assinala que a “Vida de Santo Amaro é um exemplo de como a composição,

o significado e a atuação histórica da hagiografia podem ultrapassar” os limites deste gênero

literá-rio. Entre as reflexões que a obra permite, destacam-se o ensaio recente do professor Hilário Franco

Júnior (2010) que nos fala da confluência do mental, do religioso, do cultural e do social nos

con-ceitos de tempo presentes no Conto de Amaro. Richard Kinkade (1974:525), que associa-o aos

‘immrama’ irlandeses, avançando a hipótese que a “Vida de San Amaro” talvez seja o primeiro

ro-mance hagiográfico da Espanha. Nesse caso, pensa Kinkade, não seria interessante investigar os

méritos da tese levantada por Teófilo Braga (1843-1924) - prontamente rechaçada por Marcelino

Menéndez y Pelayo (1856-1912) - sugerindo que “os romances de cavalaria devem sua gênese às

novelas hagiográficas? ”.

Viagem de São Brandão: imagem

dos imrama celtas presentes numa narrativa cristã (Cod. Pal. Germ. 60, fol. 179v in Biblioteca da Univ de Augsburg,Alemanha, ca 1460) 20

Da Estrutura do Texto _ Sem entrar no mérito da sugestão de Kinkade, reconheço que o fato da

travessia de Amaro dar-se numa sucessão de ilhas pode sugerir uma aproximação com a estrutura

narrativa dos ‘immrama’, viagens iniciáticas com raízes na mitologia céltica. Mas a complexidade

da história de Amaro sugere-me outras associações, a partir dessa mesma estrutura.

Voltando ao texto de Amaro, nos é dito que ao deixarem aquela ilha “maldicta que Deus maldisse

por muitos maaos pecados” ele e os seus companheiros atravessam o “Mar Ruyvo por hu Deus

guyou os filhos de Israel” e chegam a outra ilha grande e bela, de nome Fonte Clara, cujos

(23)

tes, “das mais fremosas criaturas que avy[a] no mu[~]do”, jamais morriam de nenhuma dor - “se nõ

de vilhice e vivya hy o home treze[~]tos annos comunalmente”. Sete semanas ficaram naquela

“ter-ra tam saborosa e tam sãa” e talvez ficassem pa“ter-ra sempre se Amaro não escutasse o conselho de

uma “dona”, só isso sabemos dela, que o desperta daquele torpor. Partem naquela mesma noite.

Depois de muito tempo, tanto mar que já não sabiam dizer qual parte do mundo era, avistaram

sete naves ancoradas. Aproximam-se , crendo ser notícia de terra por perto.

Mas não. Ficam retidos num “mar quoalhado”, tal como estavam os barcos que avistaram

e viram belfas21 marynhas que eram fortes e esquivas e eram mayores que cavallos e e[~]travam

den-tro e aquellas sete naaos e tiravã de denden-tro dellas os hom[~]ees mortos que hy jaziam, que morryã cõ fome, e comyã nos. E eram tantas que nõ ha home que as possa cõtar.

O Mar Coalhado_Transidos de medo, começam a chorar “muy fortemente e a chamar “polla

gloriosa Virge Maria madre de Jhesu Christo”, a quem se dirigem como “estrella do mar”, “castello

forte e basticido de todo bem”, protetora dos “mizquinhos filhos de Eva maldicta”. Quando

ador-mecem, surge “uma donzella muy fremosa vestida muy nobreme[~]te” - muito bem acompanhada

de um cortejo de “fremosas donzellas” e uma “proçissom de donzees menynos, e erã todos de hua

hidade”. A Virgem conforta Amaro dizendo-lhe que lhe daria entendimento para sairem dali.

E parecia a Amaro que todallas lumieiras do mu[~]do eram aly e que todo o mu[~]do acendiã.

O entendimento recebido foi ciência digna de velho marinheiro. Amaro mandou buscar todos os

odres de vinho, água e vinagre do barco, “como he de costume de trazere[~] home[~]es que andam

sobre o mar”, e os enchessem “de ve[~]to”. Bem amarrados à embarcação, os odres foram então

jogados na água e, com a ajuda deles, o barco flutuou. Os companheiros partiram. O narrador nos

diz: “e bem parece que este mu[~]do anda em roda e corre”, o que remete à uma visão de mundo

vinculada à imagem da Roda da Fortuna, que ressurge com força no Ocidente a partir do século XII

.

Roda da Fortuna

A Idade Média recebeu esta imagem - símbolo de mutação, das alternâncias - como herança de Boécio (ca. 480- 524) autor de ‘Consolatio Philosophiae’22. No século XIII, Ramon Llull usa a

metáfora para criticar os valores sociais da burguesia urbana (iluminura do Codex Buranus - Carmina Burana, ca 1230)

21 Do latim bellŭa-, animal corpulento; coisa monstruosa.

22Ricardo da Costa e Adriana Zierer nos dizem que o tema da Fortuna percorre toda a ‘Consolatio Philosophiae’: depois

(24)

Boécio preso: matemático, filósofo e cônsul romano junto aos ostrogodos, Boécio foi acusado de conspirar a favor do Império Bizantino.

Na prisão, onde é torturado e morto, escreveu a ‘Consolatio Philosophiae’. Nessa obra final, Boécio dialoga com a Filosofia e utiliza a metáfora da Roda para explicar o sentido do interminável movimento da Fortuna:

nem boa nem má, pois a vida na Terra, gira.

(detalhe de miniatura em cópia manuscrita da ‘Consolatio Philosophiae’ de 1385 (Itália, MS Hunter 374, folio 4r)

Doutrina de Ramon Llull (ca.1232-1315), condenada: a hierarquia católica não viu com bons olhos a identificação da fé com a razão (miniatura do séc XIII-XIV da ‘Ars Magna’

de Ramon Llull, fonte Societat Catalana d'Estudis Històrics).

Segundo o maiorquino23, a teologia e a filosofia eram uma só coisa, assim como como a ciência e o estudo deviam estar

a serviço da contemplação divina. Essa idéia percorre sua extensa obra, da ‘Ars Magna’ à ‘Doutrina Para Crianças’, em que finaliza o capítulo das sete Artes Liberais com a metáfora da Roda da Fortuna 24 .

23 Umberto Eco considera o lugar de nascimento determinante na trajetória de Llull, pois Maiorca era “à época,

encruzi-lhada das três culturas, cristã, islâmica e judaica, a ponto que a maior parte das suas 280 obras reconhecidas terem sido escritas inicialmente em árabe e catalão” in La búsqueda de la lengua perfecta (1994) Barcelona: Critica, p. 42

OnLine:://www.uruguaypiensa.org.uy/imgnoticias/959.pdf

24“Filho, assim como a roda que se move gira, os homens que estão nos ofícios ditos acima se movem. Logo, aqueles

que estão no mais baixo ofício em honramento desejam se elevar cada dia até chegarem à cabeça da roda soberana, na qual estão os burgueses. E como a roda está sempre a girar e a se inclinar para baixo, convém que o ofício de burguês também caia”. (Ramon Llull. Doutrina Para Crianças LXXIX, 10 apud Da Costa “A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: Al-Farabi e Ramon Llull”

(25)

A Roda da Fortuna_ A situação que é descrita na sequência do episódio do Mar Coalhado,

refor-ça essa percepção de movimento em roda. Enquanto o narrador nos fala de um tempo de mundo em

que o homem “ora he pobre, ora eh rryco, ora exalçado, ora abayxado, ora eh viçoso, ora sem viço”,

a navegação prossegue. Depois de três dias e três noites, Amaro e seus companheiros avistaram

ter-ra e, nela, uma gter-rande abadia cercada de muros altos. Aqui fecha-se um ciclo na narter-rativa - não no

mesmo ponto, um pouco mais acima - pois Amaro, descendo à terra em busca de água e alimentos,

como já o fizera antes, ouve de um ermitão que aquele lugar chama-se “Inssoa Deserta”,

despovoa-da de gente “por muitos lyoões e serpentes e otras muitas maas alymarias”. Por isso, mas

princi-palmente porque “ora em dia de Sam Johã Bautista ouverõ antre sy grande batalla e cada huu anno

lydam assy em aquel dia” - Amaro deve partir: “nõ poderás sofrer o fedor dellas”. Assim, somos

reconduzidos ao episódio daquela primeira ilha, a “inssoa pequena”, e lembrados que a natureza

caprichosa do destino humano, da qual se falara pouco antes, relaciona-se na sua circularidade a

algo que também ocorre na estrutura espaço-temporal da narrativa.

Nesse desenho, a data chama atenção por outros motivos: primeiro, porque o dia de São João (24

de junho no calendário juliano) corresponde na Idade Média à forma cristianizada de um rito

mile-nar, presente em culturas distintas. Celebrado nos solstícios de verão (Hemisfério Norte) ou de

in-verno (Hemisfério Sul) aparece associado ao culto do fogo e do sol - do qual as características

fo-gueiras e danças circulares, como a quadrilha, são reminiscências rituais. Segundo, porque nessa

mesma data, 24 de junho, celebravam-se na antiga Roma e em vastas porções do império as festas

da deusa Fortuna.

Divindade de passado arcaico, anterior à fundação da cidade, a Fortuna romana era invocada na

proteção dos amores e das empresas, sempre presos às revoluções dos dias e dos anos, ora associada

a deuses do panteão etrusco; ora à memória de Tiquê, a tutelar grega; ora a Kairós, uma das

dimen-sões de Cronos; ora a divindades marinhas. São tantos seus atributos e suas faces que, superpostas

num plano vertical, poderiam vislumbrar-se numa torre totêmica quase alcançando o céu. Na Idade

Média, a Fortuna surge associada às transformações às quais a precariedade humana está sujeita e

está representada nas figurações da Roda.

Val de Flores_ Amaro ficou ali aquela noite. Mas ao ouvir os “grandes braados e muy medrosos

daquellas allymarias” não conseguiu conciliar o sono: “colheo suas ancoras e alçarõ sua vela e

co-meçarõ a singrar”. Quando nasceu o sol viu muito perto outra terra, “a mais fremosa e mais avõdada

do mu[~]do”. Ali havia um mosteiro, perto de uma serra: “un moesteiro de frades brancos e

ho-me[~]es de bõoa vida”. O nome do mosteiro era Val de Flores: e ali haviam grandes rios, muitas

fontes, muitos jardins, muitos prados e muitas virgens.

A caminho do mosteiro, encontra um “velho que toda sua cabeça era cãa”, e a quem “os leoões e

outras alimaryas” vinham pedir que os benzesse e beijavam seus pés e mãos humildemente

25

. Daí

25 Na literatura medieval os monstros têm conotação de advertência, de previsão de um futuro possível que se mostra

(26)

seu nome, Leomites, um frade que “fora natural de Babylonya, a deserta

26

”. Leomites reconhece

Amaro imediatamente, como se o esperasse, e chama-o pelo nome. “E sabe, amigo”, disse-lhe

“que esta tua viida me foy mostrada pello anjo de Deus. E nõ me digas mais da tua faze[~]da ne[~] da tua viida, que eu o sey bem, e per quantas coytas passaste. E eu te direy como faças e[~] guisa que tu acabes o que demãdas”

Babilonia, a Deserta: no olhar da figura sentada, o passado à frente (Detalhe do capitel em estilo românico de meados do século XII na Igreja de St. Pierre em Chauvigny, na França)

No Apocalipse de São João um anjo anuncia a queda da Babilonia em versos de grande beleza que nos falam daquela cidade “vestida de linho fino” que será chorada por reis, negociantes, marinheiros:

“Ay, ay da grande cidade! (...) Nunca mais se ouvirão em tuas ruas a música das harpas, flautas e trombetas (...) nem se ouvirá em ti o ruído da pedra do moinho” (Rev. 18:1-24)

26 Situada numa região povoada há três mil anos, a Babilônia esplendorosa

dos dias de Nabucodonosor (632-562 aC.) declinou até o segundo século depois de Cristo,

quando ficou deserta (reprodução dos Jardins Suspensos da Babilônia, Petit Larousse, edição de 1912)

Babilonia, 1932: soterrada em areia por

mais de mil e setecentos anos, a reconstrução da cidade teve início em 1983 quando Sadam Hussein, então presidente do Iraque, decidiu erigir ali um palácio. Evocando Nabucodonosor,

(27)

Leomites_ A precognição de Leomites, como se ele fosse capaz de memória do futuro, é traço

insistente e de aspecto formular na tradução cristã dos ‘i

mmrama

’. Remete à tradição oral dos

anti-gos celtas da Irlanda e da Escócia gaélica, em que os estados liminares de percepção eram aceitos

como coisa natural. Nessa cultura, o ‘outro mundo’ ficava logo ali e de certo modo os respectivos

habitantes frequentavam-se cordialmente em determinadas situações. As situações de passagem

des-tacam-se como momentos especiais - fossem elas no solstícios do inverno, celebrados no Samahin,

à beira de uma fonte, na soleira de uma porta, na voz dos poetas. Denominados ‘fili’ (do proto-celta

*

widluios

= visionário, aquele que vê) os poetas eram figuras respeitadas nessa tradição, tal como o

foram os poetas gregos aos quais se também se atribuiu saber mântico, memória divinizada. Na

Ir-landa céltica pré e pós-cristã, o treinamento da memória de um poeta podia levar muitos anos e

in-cluia, como prêmio, o saber divinatório.

A precognição também é celebrada na tradição cristã como um traço peculiar dos santos Padres

que habitaram o Deserto nos primórdios do Cristianismo, assim como o foi, antes deles, dos

profe-tas que habitaram os tempos bíblicos: a previsão da morte de Saul e sua sucessão por Davi (I

Samu-el 28:7), a interpretação dos sonhos do faraó por José (Gênesis 37:6,7), as profecias de DaniSamu-el (Dn

2:1-49) ou, ainda, a visão de Ezequiel junto ao rio Quebar na terra dos caldeus - a Babilonia

esplen-dorosa da época de Nabucodonosor para onde ele foi levado prisioneiro em 597 aC.

Imagens belas e fortes como as da Bíblia povoaram como realidade viva o imaginário da Idade

Média. Nos monastérios não podia faltar o livro das Sagradas Escrituras, o Novo e o Velho

Testa-mento, essenciais à meditação dos monges. Um deles, Joaquim de Fiore (ca 1130-1202), que já

es-tivera em viagem na Terra Santa, foi tocado especialmente pela visão de Ezequiel junto ao rio em

que se destaca, mais uma vez, a imagem da roda e uma noção especial de movimento

27

.

Joaquim de Fiore_Figura central do milenarismo medieval, sem que ele mesmo possa ser

consi-derado milenarista ou quiliasta

28

, o abade calabrês tomou o hábito sob a Ordem de Cister antes de

desligar-se dela e fundar sua própria ordem Florense. Jamais profetizou um reino de mil anos,

tam-27 De uma nuvem, um vento forte e um fogo com labaredas Ezequiel viu surgir três seres vivos semelhantes ao homem.

Cada um deles tinha quatro rostos e quatro asas, mãos de homem sob as asas, pernas retas, pés de bezerro. Um dos ros-tos era de homem, o da esquerda era de touro [ou bezerro], outro de águia e o de leão à direita. Eles não se viravam quando andavam: cada qual andava para adiante de si. E junto aos seres Ezequiel viu também rodas altas, formidáveis, uma para cada um dos quatro rostos. Quando os seres andavam, as rodas andavam e se levantavam junto a eles porque, narra Ezequiel, “o espírito dos seres viventes estava nessas rodas” (EZ 1, 5-20).

28 O têrmo ‘quiliasta’ vem do grego arcaico khilioi, khiliasmos e é encontrado nos versos do Apocalipse de São João

(28)

pouco atribuiu natureza terrena e social ao paraíso. Entretanto, poucos autores de comentários ao

Livro da Revelação

29

se preocuparam como ele em por ordem na história e pouquíssimos, se algum

antes dele, enfatizaram de modo tão original o elemento visionário como uma forma de

continuida-de entre o Velho e o Novo Testamento - continuidacontinuida-de essa continuida-de certo modo rompida pela tendência

das primeiras exegeses de começar, ou centralizar, a história do fim dos tempos no Apocalipse de

São João. Nesse sentido, a relação entre os elementos imagéticos da visão bíblica de Ezequiel

30

, que

ressurgem tão poderosamente em João embora com significado e em contexto distinto

31

, podem ter

fornecido uma chave para que Joaquim de Fiore vislumbrasse através deles uma ponte entre o

pas-sado e o futuro e, nessa ponte - “figuras do mundo’”

32

- reconhecesse o próprio presente.

Um Códice Iluminado_ A descoberta de um códice iluminado contendo imagens esquemáticas

possivelmente destinadas a sensibilizar ou tornar mais claro o pensamento, seja para uso próprio de

Joaquim de Fiore ou para transmissão entre os discípulos, reforça essa hipótese. Segundo fontes do

século XIII, De Fiore teria sido o autor dos desenhos, produzidos em diferentes épocas e reunidos

por discípulos após a sua morte. Séculos depois, a descoberta desses esquemas acrescentou

enten-dimento à obra do abade calabrês e demonstrou, entre outras coisas, o uso da imagem como

media-ção estética entre o sensível e o inteligível durante a Idade Média. Identificado como ‘Liber

Figura-rum’ (Livro das Figuras), o códice foi encontrado e traduzido em 1936 num seminário na província

italiana de Reggio Emilia

33

por Ms. Leone Tondelli. Duas medievalistas, Marjorie Reeves and

Bea-trice Hirsch-Reich, dedicaram-se junto com ele ao estudo

34

e divulgação da obra.

A leitura que De Fiore propõe ao Apocalipse não segue um modelo profético linear, isto é, não se

aproxima do texto como um relato sequencial do que irá acontecer entre uma determinada época e o

próximo fim dos tempos. Tampouco aproxima-se dele como se fosse um tratado teológico

organi-zado conforme algum padrão a-histórico, tendência dos intérpretes pós-agostinianos, nota Bernard

MacGinn (1992:14). Ao contrário, a abordagem de Joachim de Fiore se dá através de uma “leitura

cíclica ou recapitulativa do texto, percebido como um relato profético do que virá antes do fim, mas

sob a forma de repetições complexas, ou relatos alternados da mesma mensagem” (MacGinn, ibid).

29 O Livro da Revelação, o último do Novo Testamento, também conhecido como Apocalipse (do grego apokalypsis,

"revelação") foi escrito à época do imperador Domiciano (final do século I), quando a perseguição dos romanos aos cristãos se tornou mais feroz. No texto, o único verdadeiramente profético do Novo Testamento, o autor se identifica como João desterrado na ilha de Patmos, mar Egeu (Rev. 1:9) e é atribuído ao apóstolo São João,

30 O Leão, o Touro, a Águia e o Ser com Rosto Humano - ver nota 17 do presente estudo e trecho do texto em anexo 31 No Apocalipse 4 e 5 (ver anexo) as figuras da visão de Ezequiel são destacadas, mas agora em relação ao Cristo. 32 No seu Comentário ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsim, Veneza, 1527, reimpresso em Frankfurt, 1964) Fiore

associa os “seres viventes” da visão de Ezequiel a quatro ordens de homens que atuam na história: a dos apóstolos, ca-racterizada pelo Leão, a inteligência tipica das Escrituras; a dos mártires, pelo Bezerro, a inteligência histórica das Es-crituras; a da Águia, pelos contemplativos, a inteligencia analógica das Escrituras e a do Homem, representando os dou-tores, a inteligência moral das Escrituras. No “Liber Figurarum” os seres viventes são representadas pelas Rodas. Para maior detalhamento da questão remete-se ao artigo de Cláudio Reichert do Nascimento “Joaquim de Fiore: Trindade, história e milenarismo” in Revista Mirabilia 14 , Jan/Jun 2012, pp 81-99 - org de Noeli Dutra Rossato.

33 Posteriormente descobriram-se outros dois manuscritos,em Oxford (1942) e em Dresden. O de Oxford é o mais

anti-go, produzido entre 1200 e 1230 em um monastério calabrês, provavelmente na Abadia de San Giovanni in Fiore.

34 Em 1972 publicaram “The Figurae of Joachim of Fiore” (Oxford/Warburg Studies) em que as figuras são percebidas

(29)

Liber Figuraram, pl XV: esquema da Carruagem que transporta o Trono divino. De Fiore designa as “Rodas” pelos nomes dos seres viventes que surgem nas visões de Ezequiel e João. No espaço entre as rodas maiores confrontam-se alegorias de Jerusalém, cidade celeste, figura da salvação e da Babilonia, caos, figura da perdição

(Codex Reggio-Emilia, sec XIII. Fonte: Centro Internazionale di Studi Gioachimitti).

Liber Figurarum, pl XI: esquema dos círculos trinitários. Para Joaquim de Fiore, a história do mundo transcorre entre os tempos do Velho e do Novo Testamento, sob a dominância da Santíssima Trindade. A partir desse paradigma transcendental e ponto de convergência (o ‘centro oval comum aos três círculos) a historia humana é dividida em três Idades conectadas entre si e à Trindade (relações representadas nas letras Alfa e Omega). A primeira Idade (círculo ver-de) é a do Pai na qual os homens vivem de acordo com a carne. A segunda Idade é a do Filho (azul) visualizada como uma transição entre a carne e o o espírito. A terceira Idade ou estágio é a do Espírito Santo (vermelho) e supõe, ao seu

(30)

Através dessa concepção de movimento circular em progressão constante rumo à salvação - ou,

para retomar a imagem de Ezequiel, rodas em que habita o espírito dos seres viventes - Joaquim

imprime dinamismo à interpretação do Apocalipse, resgatando o texto para a concretude de épocas

distintas da qual se deu a Revelação ou, dito de outro modo, abrindo a possibilidade de atualizar, no

cotidiano da fé, as realidades percebidas na profecia. Ao mesmo tempo que a interpretação do abade

de Fiore reforça a noção dos elementos simbólico e visionário como formas de autenticação das

mensagens divinas, ela permite vislumbrar, na estrutura e nos símbolos do Apocalipse joanino, uma

continuidade em relação aos momentos históricos em que a receptividade a tais símbolos,

modifi-cados pelo contexto, é mais pungente no plano humano. Na abertura do seu Comentário ao

Apoca-lipse, Joaquim de Fiore escreve que a leitura do texto significou, para ele

a chave do passado, o conhecimento das coisas que virão, a abertura do que estava selado, o desvela-mento do que estava oculto (Expositio in Apocalypsim, folio 3r apud Bernard McGinn, op cit , p 19)

O Apocalipse ao qual as obras

35

do abade e fundador do mosteiro San Giovanni in Fiore

acrescen-taram outra leitura, tiveram grande impacto e sabor de novidade em sua época - não imediatamente

após a morte dele, mas nos anos e séculos seguintes - e nos explicam uma certa concepção medieval

de tempo em progressão circular, subjacente à circularidade das celebrações e à percepção do tempo

linear. É possível visualizá-la, por exemplo, na espiral ascendente que norteia a estrutura narrativa

do ‘Conto de Amaro’ rumo ao Paraíso Terreal principalmente a partir do encontro com Leomites,

quando ele rompe o círculo vicioso da Roda da Fortuna e vai progressivamente abandonando os

elementos terrenos que o caracterizavam desde o nascimento e ascende a outro plano espiritual. Ao

final desse encontro, Amaro é e já não é o mesmo Amaro que nasceu talvez num Oriente, ou o

capi-tão do barco que venceu o mar Coalhado, ou aquele ser humano que temia o urro das feras ou que

as delícias do mundo poderiam tentar. No mosteiro de Val de Flores

36

quando vê os leões se

apro-ximarem, ele treme pela última vez. Os animais vem de rastros, cabeça na terra, lambem-lhe os pés

e mãos e começam a gemer.

“E lhe disse aqell frade [Leomites]: Sabes porque jeme[~]? por tal que lhes deites a bençõ”. E Amaro ergeo a maão e beenzê os e logo os lyoões forõ muy ledos e hyam trebelhando porque os bee[~]zera aquell home[~] sancto, e forõ pera o mato.

A Despedida _À semelhança de algumas sociedades de que nos falará Claude Lévi-Strauss no

século XX, Amaro transforma-se para permanecer igual a si mesmo, em ciclos cada vez mais

am-plos de repetição e retorno cuja dinâmica implica num progresso gradual que consiste em curvar-se

35 As principais obras reconhecidas de Joaquim de Fiore, além do "Expositio in Apocalipsim", são: "Liber Concordiae

Novi ac Veteris Testamenti", "Psalterium Decem Cordarum". Entre os trabalhos que foram atribuidos a ele na esteira da fama de profeta, estão “De Oneribus Prophetarum", "Expositio Sybillae et Merlini" e “Vaticinia de Summis Pontifici-bus”, que circulou à época conturbada do Conselho de Constance (1414–1418) ao final do Cisma do Ocidente.

36 Note-se a semelhança entre o nome do monastério de Leomites em “O Conto de Amaro”, Val de Flores, e o nome

(31)

à inércia instalada ao mesmo tempo que aceita seletivamente as mudanças inevitáveis que não lhe

tocam o cerne. No processo de depuração espiritual indicado pela estrutura narrativa, é o desejo de

Amaro em ver o Paraíso Terreal que permanece e se depura, é esse desejo que progride.

Gradual-mente, Amaro transforma-se num desejo, o próprio. Por isso, e não por qualquer outro motivo,

Leomites aconselha-o a partir. Despedem-se “hu se anbos acharom quando hy vierõ os lioões”,

... chorãdo muy fortemente. E entom disse Leomites: Meu senhor e meu amigo Amaro grande saudade me ora leixades; beijade me oura vez que nu[~]ca me ja mais veredes em este mu[~]do mas veremo nos no outro e[~] no parayso se Deus quiser”. E Amaro partyo sse

Em grande desespero, “so aly aaquella arvor”, Leomites pede que o Senhor o leve, “pois me

to-lheste meu amigo e meu cõnforto qye me deste” e bate com a cabeça na terra, arranca a barba e os

cabelos, lamenta-se em altos brados

Ay coitado, ay despe[e]rado mizquinho, mal dia nado! Ay senhor Amaro porque me desenparaste? Ay terra, minha madre, porque nõ abres e colhe me de[~]tro que ja mais nõ viva e[~] este mu[~]do?

A lamentação de Leomites não tem paralelo nas narrativas dos

immrama

embora seja tópico

re-corrente em outras tradições. A dor pela partida dos que alegres se vão poderia nos remeter, por

exemplo, ao Ciclo da Bretanha, especificamente ao lamento do rei Artur no episódio da Demanda

do Graal, pressentindo que nunca mais teria consigo nem veria à volta da Távola Redonda muitos

dos cavaleiros que partiam. Mas no “Conto de Amaro” o desespero de Leomites é narrado com

tin-tas mais íntimas, como se o frade velho fosse um penitente de outra ordem e, ao final do pranto, ele

jaz estático na terra “tal como morto”. Nesse gesto, arrasta consigo não só as dores da despedida,

mas de todas as despedidas e das infinitas lamentações de corpos dispersos em arenas, diásporas,

abandonos, exílios, perseguições, a certeza do inevitável fim e a solidão da távola real.

Olhar mais doce_ Desse modo, embora reconhecendo a influencia cristianizada dos

immrama

na

estrutura do “Conto de Amaro”, distinguem-se outras, entre as quais a do pensamento joaquimita.

Ao contrário de muitos contemporâneos, Joaquim de Fiore exortava os cristãos a considerarem os

judeus como irmãos de fé, pródigos que voltariam à casa paterna, à “Igreja dos fiéis” que os

recebe-ria num futuro próximo. O abade, cujos empreendimentos foram favorecidos pelo beneplácito de

quatro papas, não só acreditava na conversão dos judeus - estabelecendo-a como o marco de

transi-ção da Era do Filho para a Era do Espírito Santo (apud Robert Lerner, 2001:31,38) - como admite

sua autoridade em certos assuntos. Por exemplo, quando fala dos seis dias bíblicos da criação, ele

cita Maimônides (1138-1204), filósofo sefaradita, e apoia-se no argumento de “verdade judaica”

para justificar a crença de que o mundo ia durar seis mil anos (Lerner, 2001:59).

De Maimônides, sabe-se que ele dedicou os sete capítulos iniciais da terceira parte do seu “Guia

dos Perplexos” à

Merkaba

(do hebr, Trono ou Carruagem

37

), um dos mais antigos temas da mística

judaica centrado nas visões e na contemplação divina, cuja origem está, justamente, no livro I do

profeta Ezequiel que nos fala das “Rodas” e dos “Seres Viventes”. Evidentemente Maimônides não

aceita Jesus como o Messias. Homem profundamente religioso, ele admite a vinda do Anunciado

num tempo futuro em que todos serão um (in ‘Mishné Torá’, cap 11,10-12). Mas, à diferença da

tradicional visão apocalíptica-utópica do messianismo judaico, Maimônides descarta os elementos

de catástrofe, milagre ou transcendência na instalação da nova era, insistindo na ininterrupta

conti-37 Cecilia Cintra CAVALEIRO DE MACEDO faz uma leitura das imagens místicas da Merkabah na obra poética do

(32)

nuidade da história

38

. Sua interpretação inaugura um nova etapa na leitura da

Merkaba

, sucedendo a

dos

gaonim,

os sábios do período talmúdico, cujos ensinamentos, centralizados nas academias de

Sura e Pumbedita na Babilonia/Iraque entre os anos 640 e 1048, prevaleceram na diáspora judaica

sob domínio muçulmano.

Em que pesem as profundas diferenças entre Joaquim de Fiore e Maimônides, dito o RaMbaM

(acróstico de Rabi Mosheh ben Maimon), a preocupação com a continuidade e o significado da

his-tória, assim como o descortinamento de uma nova era da humanidade, de certo modo os aproxima -

mesmo que esse tempo vindouro de paz e prosperidade, em que ambos acreditam, seja vislumbrado

sob a hegemonia da Fé Cristã, segundo o primeiro, e sob a luz da Lei Mosaica, conforme o

segun-do. Aproxima-os também o fato de ambos pertencerem a encruzilhadas culturais, a Hispania moura

e o sul da Itália

39

, de cujo cotidiano partilharam cristãos, muçulmanos e judeus. Pelo menos para

uns poucos, nesse período em que viveram e nos locais em que habitaram Maimônides e De Fiore,

o Apocalipse que se anunciava terrível mostrou uma face mais humana, como indício - ou esperança

- de um mundo melhor num plano mais terreno.

Farpas Apocalípticas_O ressurgimento desse olhar mais doce não implicou o desaparecimento

do anterior. A literatura apocalíptica de tendência catastrófica continuou a progredir, acrescentando

sinais cósmicos, sociais e nacionais atualizados ao repertório tradicional. Enquanto o mundo olhava

para os céus e vasculhava a Terra à procura dos indícios do seu fim, um rei - Frederico II, rei da

Si-cília, da Tessalônica, de Chipre e de Jerusalém, imperador do Sacro-império Romano-germânico -, e

um papa - Gregório IX (1148 - 1241) - adotaram em 1239 uma retórica especialísssima para

resol-ver diferenças, trocando entre si farpas apocalípticas e colocando o tema na ordem do dia do

discur-so político. O papa chamou Frederico II de precurdiscur-sor do Anti-Cristo, “a besta que subia do mar”

(Rev,13:1)

40

e o rei devolveu o insulto chamando-o de “aquele que montava o cavalo vermelho” e

tinha o “poder de tirar a paz da Terra, para que os homens se matassem entre si” (Rev, 6:4).

38 Para aprofundamento da questão remete-se ao capítulo sobre Messianismo Judaico in SCHOLEM, Gershom Gerhard

(1994) Gershom Scholem: The Man and His Work, ed Paul R. Mendes-Flohr; Albany, New York: State of New York University Press, p 81

39 Na Calábria, terra natal de Joaquim, desenvolveu-se um centro comercial cosmolita que esteve sob o domínio de

Bi-zâncio (sec IV ao XI) e onde encontraram-se povos gregos, árabes, normandos, lombardos e uma importante comunida-de sefardita. No reinado comunida-de Frecomunida-derico II da Suábia, que assumiu o trono da Sicília em 1198 assegurando o pocomunida-der dos Hohenstaufen no caldeirão cultural do sul da Itália, os judeus calabreses foram relativamente benquistos no reino e con-taram com o apoio real para monopolizar a manufatura da seda. Orfão muito cedo esse rei e futuro imperador, neto do célebre Frederico Barba-Ruiva e filho de Constança da Sicília, criou-se nas ruelas, mercados e jardins de Palermo ao som dos minaretes, sinagogas e basílicas dessa “capital semi-africana aos pés do monte Pellegrino”, nos diz Ernst Kan-torowicz (op cit abaixo, pg 27). Felipe II falava sete línguas e transformou a sua corte num lugar de encontro entre a cultura grega, latina, sarracena e judaica que, pelo arrojo e brilho, espantou os seus contemporâneos. [Para aprofunda-mento da questão remete-se a KANTOROWICZ, Ernst Hartwig (1957) Frederick the Second - 1194/1250, New York: Frederick Ungar Publishing Co.]. Mas o reino surpreendente de Frederico II não sobreviveu à vida dele, e o sonho de Joaquim transformou-se em pouco tempo num inesgotável baú de profecias.

40 A acusação consta de uma encíclica promulgada por Gregório IX entre 21 de maio e 1 de julho de 1239 citada por

(33)

Frederico II: detalhe de miniatura feita pelo monge Matthæi Parisiensis na “ Chronica Majora” Scriptorium da abadia de St Albans / Hertfordshire, Inglaterra, 1200-1259

Nessa bolha inflada por insultos e presságios, Joaquim de Fiore ocupou um lugar de destaque no

panteão oracular e no imaginário coletivo: profecias foram colocadas na sua boca e escritas em seu

nome, em boa fé ou a serviço de manobras políticas. Na construção dessa legenda, é possível

vis-lumbrar a ação de grupos franciscanos e dominicanos (Ordens Mendicantes), mas também de

al-guns discípulos de Joaquim na Calábria e grupos cistercienses (apud Reeves, 2000:148). A decisão

do Capítulo Geral da Ordem de Cister de denunciar Joaquim de Fiore como trânsfuga - ele

abando-nou o mosteiro onde tomou o hábito branco dos cistercienses para fundar sua própria Ordem e viver

a regra de Cister na sua pureza original

41

- causou um abalo na organização contemplativa, deixando

à época um lastro de inconformados e abrindo brechas para a formação de congregações autônomas

no futuro, caso de Portugal a partir de 1567, ligado desde a fundação aos destinos do Reino.

Os Espirituais_ No espaço interno das Ordens Mendicantes, o embate com a hierarquia

traduziu-se no movimento conhecido como “franciscanos espirituais”. Membros dessa Ordem, descontentes

com os rumos tomados pela organização fundada por São Francisco de Assis (1182-1226),

radicali-zaram a interpretação joaquimita do Livro da Revelação e provocaram a reação da Igreja. O ponto

polêmico enfatizado pelos Espirituais tinha data e origem. Segundo eles, o terceiro período da

hu-manidade regido pelo Espírito Santo ia começar em 1260 quando então, sob a regência de uma nova

espiritualidade em marcha desde o nascimento do santo “poverello d'Assisi”, o mundo já não

neces-sitaria de instituições hierárquicas e disciplinares. Um deles, Fra Gerardo de Borgo San Donnino,

cometeu a ousadia de um tratado do Evangelho Eterno (Introductorium in Evangelium Aeternum),

que provocou “escândalo horrível” (Reeves, 2000:3): segundo o texto de Fra Gerardo, do qual só se

conhecem os trechos da Comissão de Cardeais encarregada de investigar o caso, os livros de

Joa-quim de Fiore, embora vindos do Evangelho de Cristo, não só transcendiam a letra, como a

substi-tuiriam nos anos próximos, em que Gregos e Latinos, Cristãos, Muçulmanos e Judeus

prosseguiri-am juntos e em paz até o fim do mundo. Apesar de evitarem-se os ataques diretos ao abade de Fiore,

sua doutrina - que já havia sido condenada como fonte de idéias heréticas no Conselho de Latrão

(1215) - também o foi no geral, “fundamentum doctrine”, pela Comissão de Agnani (1255).

41 O que estava de acordo com o sentimento geral da época e não impediu que no século XVII o nome de Joachim de

Imagem

Ilustração de Hermann Vogel, 1900: nobres que vieram oferecer a Henrique da Saxonia a Coroa dos Reinos Germâni- Germâni-cos encontraram-no preparando armadilhas para aves.

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