TEORIA DA CONSTITUIÇÃO – UMA INTRODUÇÃO Rui Verde
Benilde Moreira Alexandra Polido
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Índice
O-Introdução...3
PARTE I – O que é uma Constituição?...4
1- Constituição e poder político...4
2- Constituições escritas e informais...9
3-O Poder Constituinte...10
4- Constituições falsas e verdadeiras...13
PARTE II- Doutrinas enformadoras da Teoria moderna da Constituição...16
5- Pensamento “fundacional”: Locke, Hobbes, Rousseau...16
6-Conceitos essenciais: Liberdade, igualdade e democracia...19
PARTE III- Dimensões clássicas da Constituição...24
7- O Estado: Conceito e evolução histórica...24
8- Teoria Clássica do Estado...31
9- Entidades Políticas Supra e Infra Estaduais...48
PARTE IV: A Experiência Constitucional Portuguesa...56
10- Síntese histórico-jurídica do constitucionalismo português...56
11- Análise das Constituições Portuguesas até 1976...60
O-Introdução
Este texto versa sobre a Teoria da Constituição, entendida como o estudo dos aspectos essenciais que definem uma Constituição. Como surge? Para que serve? O que é ou pode ser? Quais os valores e princípios que a podem enformar? Que tipos de Constituição existem? E por aí adiante. Não se pode conceber uma Constituição como saída do nada. A Constituição frutifica num terreno histórico, político e cultural,e habitualmente é o mais legal e ilegal dos actos, pois abole um regime político-legal e cria outro regime político-legal. O aqui afirmado traduz-se na forma como estudaremos o actual constitucionalismo. Este não tem uma dogmática e uma exposição fechada em termos académicos. É o resultado da evolução da história e filosofia e da própria evolução do mundo pós Segunda Guerra Mundial e também das transformações constitucionais de cada um dos países.
Este texto é um texto de estudo, realizado a pedido dos alunos e resulta da remodelação dos apontamentos preparados para as aulas. Não tem ao nível formal: bibliografia, citações e referências cruzadas, o mínimo do perfeccionismo desejado.
PARTE I – O que é uma Constituição?
1- Constituição e poder político.
Em qualquer sociedade existe sempre uma luta entre grupos rivais para exercer o poder, entendo-se o poder como a capacidade de determinar regras de comportamento e exercer coacção. Isto quer dizer que sempre que vivemos em conjunto com outras pessoas têm que surgir ditames que ordenarão a nossa vida em comum. Alguém terá a capacidade de estabelecer essa ordem, essa organização e obrigar os outros a cumpri-la.
Quem determina essa ordem tem o poder político( porque exercido na comunidade em que vivemos, na Polis). Ora, a Constituição começa por tratar das formas pela qual esses grupos rivais hão-de lutar para exercer o poder. Ao exercício do poder político chama-se governo.
O primeiro dado da questão diz-nos que a Constituição regula a luta de grupos rivais pelo exercício do governo de um comunidade ( cujo exemplo mais acabado, mas em desconstrução, é o Estado).
O segundo dado leva-nos à escolha. Como escolher o grupo que nos governa? Serão os mais fortes? Os mais belos? Os mais sábios? Os que Deus escolheu? Ou haverá eleições e uma escolha por toda a comunidade?
Esta é outra questão a que uma Constituição vai responder. Como escolher
o poder.
Uma vez escolhido o governo podemos deixá-lo fazer o que ele quer (mandar-nos pintar o cabelo de louro) ou controlá-lo, criar barreiras que ele não ultrapasse,”luzes vermelhas” que parem o exercício do poder. A esta nova função da Constituição ( que por muitos é considerada a mais importante) chama-se: o controlo do poder político. O grupo que é escolhido para nos governar deve ser controlado. Tudo isto são aspectos essenciais a que uma Constituição deverá dar resposta. Também, não temos a certeza que esse poder governa sempre bem. Utilizando um exemplo português existe a ideia que o Governo Salazar obteve uma certa aprovação popular nos anos 1930 e 1940. O que é certo é que não gozaria nos anos 1950, como a campanha presidencial de Humberto Delgado claramente comprovou, mas não houve mecanismo constitucional adequado para o remover. E este é um dos aspectos fundamentais e ligado ao controlo de poder: a remoção do poder. O poder além de estar controlado tem que ser susceptível de ser retirado das suas funções.
Finalmente, e como último aspecto a ser abordado por uma Constituição está a relação entre governantes e governados. As “luzes verdes” i.e. aquilo que os governantes podem fazer, e as “ luzes vermelhas”
aquilo que lhes está vedado. Tempos houve em que se falou de um poder
absoluto, em que os governantes tudo poderiam fazer. Hoje fala-se dos
direitos individuais ou fundamentais, como núcleos invioláveis, em que
nenhum governo pode mexer ou interferir.
Em suma, a Constituição é a lei do poder político que se traduz no exercício de violência de forma legítima. Ou de forma mais detalhada, é o quadro de normas que define o funcionamento do poder e as relações dos indivíduos com ele.
Todas as organizações têm uma constituição, um quadro de normas que define a estrutura e funções dessa organização, bem como os direitos e deveres dos seus membros, mas como referido, a organização que aqui nos interessa é aquilo a que se convencionou chamar o Estado ( cuja caracterização veremos mais adiante), e que até hoje tem sido a organização mais complexa inventada pelo ser humano.
Um problema adjacente é o seguinte: como deve ser uma
Constituição ? O que é uma “ boa constituição”? Sir John Laws , um juiz
de topo inglês define como boa Constituição “aquela em todos os cidadãos
têm direitos iguais perante a Lei”. Isto leva-nos à Constituição dos Estados
Unidos da América, que contém uma disposição análoga e é vista, pela
generalidade do mundo académico internacional, como uma “boa
constituição”. Mas escolhendo uma situação, ligada ao tratamento igual
perante a lei e à dignidade da pessoa humana, chegaremos a conclusões
curiosas.
Problema constante na história dos EUA foi o da escravatura e do tratamento das pessoas hoje chamadas “afro-americanas”. A mesma Constituição que proclamava a igualdade do homem perante a lei teve várias aplicações práticas e viu-se interpretada de formas distintas a propósito da questão acima referida. A Constituição norte-americana é muito judicializada, competindo aos tribunais a sua defesa, bem como a interpretação do seu sentido e alcance. Em relação aos problemas levantados pela integração dos” afro-americanos” na sociedade americana, existem três decisões do Supremo Tribunal, que apontam para distintas soluções. A primeira é a Dred Scott v.Sandford , tomada em 1857, e que resulta de uma acção proposta por um escravo negro. A decisão foi muito curiosa porque assentou na seguinte premissa, como os escravos não são cidadãos, não podem vir colocar processos em tribunal. E , assim mantendo-se a letra da Constituição, negaram-se os mais elementares direitos a um ser humano. O que também é verdade é que esta decisão judicial foi um catalisador da Guerra Civil americana.
Finda a Guerra Civil, com a vitória do Norte e a abolição da escravatura
e emancipação dos afro-americanos, tudo pareceria encaminhar-se para
uma rápida integração. Mas não foi assim. O Norte , subsequentemente ao
assassinato de Lincoln, rapidamente retirou o exército federal do Sul e estes
antigos Estados escravocratas começaram a introduzir legislação que
dificultava a vida aos africanos. Designadamente, obrigando-os a
frequentar escolas distintas, carruagens de comboio diferentes, etc ( uma espécie daquilo a que na África do Sul se veio a chamar “apartheid”). Mais uma vez o Supremo Tribunal foi chamado a pronunciar-se sobre a questão, o que fez no caso Plessy v. Ferguson em 1896, e deliberou adoptando a fórmula “separated but equal”. Com este dito entendeu o Supremo que os brancos e negros podiam estar separados, desde que as instalações fossem iguais. E assim se consagrou o “apartheid” nos EUA. Foi só em 1954 com o caso Brown v. Board of Education que o mesmo Supremo Tribunal, com a mesma Constituição à frente, declarou a ilegalidade das escolas públicas separadas. Decisão que teve que ser imposta em certos Estados do Sul dos EUA com a presença do exército federal nas escolas.
O que temos aqui é uma Constituição que garante muitos e bons direitos, que é aclamada pelo mundo fora ( e de facto é dos melhores documentos constitucionais jamais produzidos) e que foi interpretada de forma diferenciada e díspar em três ocasiões diferentes.
A conclusão é que não há uma “boa constituição”.Tudo depende
muito das circunstâncias históricas, políticas e culturais, bem como das
personalidades, fenómenos que extravasam o mundo do Direito, embora
como se viu o influenciem de forma determinante.
2- Constituições escritas e informais.
Uma distinção usualmente utilizada nos manuais é entre Constituições escritas e não escritas, apontando-se como exemplo paradigmático destas últimas o Reino Unido. Dizendo-se também que uma Constituição escrita garante melhor os direitos e funcionamento das instituições, porque as normas são claras e lidas por todos.
O problema é falso. Por um lado a Constituição do Reino Unido está escrita, não está é codificada, não está apresentada num único documento. Mas o Act of Settlement de 1701 institui a moderna monarquia, o Parliamentary Acts de 1911 e 1949 estabelecem a proeminência da Câmara dos Comuns, e por aí adiante. Por outro lado , o facto das Constituições estarem escritas não garante a sua aplicabilidade. A Constituição Portuguesa tem variados artigos a que ninguém liga nenhuma e não são pura e simplesmente aplicados (veja-se a título de exemplo os artigos acerca do não alinhamento e desmantelamento de blocos militares- e Portugal faz parte da NATO!, ou os artigos acerca das políticas económicas, não falando nas ainda existentes referências ao socialismo que ninguém leva a sério) .
A virtude da Constituição inglesa é que tem um processo de revisão
simples. Basta uma maioria absoluta da Câmara dos Comuns e tem alguma
construção judicial, o que quer dizer que é facilmente adaptável ao espírito
dos tempos. Não é necessário, como em Portugal, fazer-se uma revolução para se mudar uma Constituição, ela vai evoluindo e transformando-se.
3-O Poder Constituinte
Quem faz uma Constituição? A teoria moderna criou um conceito chamado “poder constituinte” que procura juridicizar o acto de força bruta que é ,quase sempre, a criação de uma nova Constituição.
Reza assim a teoria: o poder constituinte é a autoridade ou força concreta que cria, garante ou elimina uma Constituição. O grande teórico deste poder, a propósito da Revolução Francesa é o Abade Syéiés, que considerava este poder como ilimitado. Hoje a doutrina tende-o a ver como limitado pelas normas básicas de direito internacional. Este poder está nas mãos do povo. É o povo que decide sobre uma determinada Constituição.
Embora para se fugir à ideia de povo como massa, manipulável
plebiscitariamente, se tenha introduzido o conceito de povo como
pluralidade, envolvendo os indivíduos enquanto tal, mas também as
organizações, networks e instituições de que os indivíduos fazem parte,
mas que formulam uma vontade própria e autónoma, chamando-se atenção
para as estruturas de comunicação (Habermas) ou de deliberação
(Ackerman) que permitam um diálogo informado e racional acerca das
decisões políticas fundamentais.
Para que este poder constituinte se manifeste existem procedimentos que actualmente estão tipificados e que vão desde uma Assembleia Constiutinte soberana, uma Assembleia Constituinte não soberana, uma ou várias convenções populares ou/e um referendo, que pode estar acoplado a uma projecto saído de uma Assembleia ou de outra autoridade qualquer.
Esta teoria é atraente e racional, mas contém muitos problemas inultrapassáveis. Analisemos dois casos. O primeiro é o da Constituição da República federal da Alemanha( que se deve chamar Lei Fundamental ou Básica- Grundgesetz e não Constituição- Verfassung). Esta Constituição (de 1949), ainda hoje em vigor e com um vigor renovado, resultou da Segunda Guerra Mundial e foi imposta pelos aliados que, embora tenham entregue a sua redacção a um conselho parlamentar alemão, tiveram uma interferência determinante nas opções fundamentais, e obrigaram os alemães a modificar uma primeira versão que apresentava um poder executivo demasiado forte. O que apressadamente foi feito, com o auxílio de uma plêiade de juristas alemães a declararem que o resultado correspondia às tradições legais germânicas. Mas como muitos juristas alemães, a começar por um dos mais importantes, Carl Schmitt;
declararam, anteriormente, que o Nazismo correspondia ao sentir concreto
do povo alemão e por isso a legislação devia ser interpretada, segundo esse
sentir concreto, i.e. segundo o Nazismo, as declarações dos juristas alemães
têm o valor que têm. O que é facto é que a Alemanha tem uma Constituição
imposta, discretamente, pelos Aliados vencedores da Segunda Guerra Mundial. O povo alemão não teve muito a ver com o assunto…
Menos discreto foi o General MacArthur Comandante Supremo das forças ocupantes do Japão, também a seguir à Segunda Guerra Mundial.
Perante uma proposta japonesa de Constituição que pouco mudava, pura e simplesmente deitou-a fora e mandou dois oficiais do seu Estado-Maior redigir uma Constituição que foi diligentemente aprovada por uma assembleia de Japoneses, eleita segundo regras fixadas pelos americanos. O poder constituinte da Constituição Japonesa foi o General MacArthur.
É certo que ambos os povos têm respeitado estas Constituições e votado ano após ano em eleições, segundo os métodos e para os órgãos previstos nelas, o que lhes dá uma legitimidade tácita. Mas, também é certo que o poder constituinte foi uma força militar e nada mais.
Na esfera constitucional, mais do que em qualquer lugar, o político, a
força e o jurídico andam de mãos dadas, pelo que qualquer teorização dura
o tempo de um regime…No fundo, o conceito de povo não passa de uma
formalidade. Quem detém a força em determinado momento é que decide
sobre a Constituição. Também há que referir que as Constituições que
deveriam surgir depois de cuidadas e racionais ponderações, são, quase
sempre, o fruto de situações de turbulência imensa em que a racionalidade
e ponderação não abundam.
4- Constituições falsas e verdadeiras.
O que aqui se vai discutir são duas coisas. Primeiro se há um conteúdo mínimo para se considerar um documento como uma Constituição, em segundo lugar o problema da aplicação das Constituições. Muitas vezes são escritos textos, que são apresentados como Constituições, mas que depois não são aplicados, ou só de forma muito esporádica. É a questão das falsas Constituições ou “sham constitutions”.
No moderno constitucionalismo entende-se que uma Constituição serve essencialmente para limitar o poder dos governantes e garantir os direitos dos governados. Por isso uma Constituição para o ser deve conter sempre mecanismos tipo”separação de poderes”,”checks and balances”, garantir o Estado de Direito, eleições livres e regulares e um poder judiciário independente. Outros dirão que qualquer documento que contenha uma organização do poder e estabeleça a relação deste com os governados, nem que seja em termos de submissão é uma Constituição.
Todos nós sabemos de países que têm Constituições “constitucionais” e
países que têm Constituições “ não constitucionais” habitualmente porque
seguem outros modelos de organização política. Ou ditaduras ( que em
todo o caso ,de um modo geral, seguem o modelo das “sham constitutions”
e não assumem frontalmente o seu estatuto) ou países de orientação teocrática que recusam os modelos ocidentais.
Problema diferente é o das “sham constitutions”.Neste caso temos
Constituições que contém variadas disposições, mas cuja maioria não é
aplicada. Um caso paradigmático é o da Constituição da União Soviética de
1936. É claro que a União Soviética viveu debaixo de uma ditadura pessoal
de Estaline, entre 1928 e 1953, e que o posto principal que deteve foi o de
secretário geral do Comité Central do Partido Comunista (função que nem
sequer estava prevista na Constituição. Estaline exerceu o poder na União
Soviética de forma a torná-la uma potência mundial, na esteira de antigos
Czares como Pedro ou Catarina. Fê-lo usando da máxima violência, para
alcançar rápidos resultados. Essa violência que foi aplicada a tudo e a todos
(desde o seu círculo mais íntimo até ao mais modesto) foi executada sem
qualquer respeito por uma Constituição instituída pelo próprio Estaline, que
criava uma estrutura política e organizativa do Estado, atribuía vários
direitos aos cidadãos (embora os mais importantes tivessem ligados ao
trabalho, descanso e educação, o que demonstrava a perspectiva de o ser
humano como um mero elemento que tinha que trabalhar, descansar e
educar-se para trabalhar melhor para engrandecer a União Soviética) que
pouco ou nada eram respeitados. Aliás Estaline só esporadicamente ocupou
os cargos políticos previstos na Constituição, e não os mais importantes, e
não foi por isso que de facto não foi o dirigente único e supremo da URSS
durante mais de vinte anos. A Constituição serviu sobretudo como elemento de propaganda, embora na parte dos direitos dos trabalhadores, pelas razões expostas, tivesse alguma aplicação.
Resumindo: há Constituições “constitucionais”, que respeitam os
cânones do modelo constitucional moderno; Constituições não
constitucionais, que não respeitam esses cânones e falsas Constituições,
que respeitando ou não, na sua letra, depois , não são aplicadas, na sua
maioria ou totalidade.
PARTE II- Doutrinas enformadoras da Teoria moderna da Constituição
5- Pensamento “fundacional”: Locke, Hobbes, Rousseau
Na base do constitucionalismo europeu moderno estão duas ideias abstractas. A primeira é a da pré-existência de um “ estado natural” de sociedade. Nesse “ estado natural” não existe uma autoridade política definida o que implicará um desenvolvimento normativo de tipo constitucional que formalize um poder político. A segunda ideia, intimamente ligada à primeira, é que esse desenvolvimento se faz através de um pacto/ contrato social voluntário. Isto é, presume-se que a humanidade não quer viver numa situação instintiva e original, outrossim prefere organizar-se e ter normas básicas de funcionamento, e que por isso acorda de livre vontade num modelo regulador da sociedade.
Locke, Hobbes e Rousseau, cada um à sua maneira teorizaram estes
conceitos. John Locke (1632 - 1704) por muitos apontado como o fundador
do liberalismo expunha a questão da seguinte forma: existe um “ estado
natural” em que os indivíduos dispõem de determinados direitos” naturais”,
designadamente, o direito à vida, propriedade e liberdade. Para resolver
conflitos que surjam do exercício simultâneo e concorrente desses direitos
a sociedade contrata entre si, de forma unânime, o estabelecimento de um governo, que é escolhido por voto maioritário. Esse governo tem o dever de proteger os direitos naturais e promover o bem-estar. Então, segundo Locke, o governo tem deveres e não direitos, e dependerá do consentimento do povo. Até porque, e este será um ponto de partida de Locke, os seres humanos são iguais e ninguém pode por alguém sob a sua autoridade sem ser pelo próprio consentimento. Defende Locke que o governo deverá ser nomeado e demitido periodicamente pela maioria daqueles com um interesse na comunidade, sendo certo que a maioria se justifica pela sua força inerente, e não por ter ou deixar de ter razão em aspectos concretos.
Nessa medida Locke proclama com veemência que os poderes do governo devem estar limitados para proteger os direitos e liberdades dos indivíduos.
Além de promover a ideia de tolerância.
Thomas Hobbes (1588 - 1679) tem uma visão do “estado natural”
muito diferente de Locke. Segundo Hobbes, a humanidade vive numa
constante guerra de uns contra os outros, pelo que sem governo, todos nos
destruiremos uns aos outros. Por isso Hobbes entende que existirá um “
contrato social” segundo o qual os membros de um hipotético “ estado
natural “ acordarão na instituição de um soberano que garantirá a
segurança. Também aqui o governo depende do consentimento dos
governados. Hobbes acredita de igual modo que detemos determinados
direitos “ naturais” ligados ao respeito pelos compromissos, liberdade e
igualdade. Mas para eles serem assegurados têm que existir leis e governo.
Assim a população cederá a sua liberdade a um soberano, que fará e aplicará as leis. Este soberano (que poderá ser uma assembleia ou uma pessoa) terá poderes ilimitados para preservar a vida e manter a ordem, mas não poderá actuar para outros fins.
Rousseau (1712 - 1778) acreditava que o homem era bom por natureza, e que era corrompido pelo governo autoritário e pela existência de desigualdades sociais, o que só seria resolvido pela instituição de leis humanas que tratassem todos por igual e dessem a todos os indivíduos um voto igual e livre em todas as deliberações legislativas. E, defendia também que não existia um verdadeiro conflito entre os interesses individuais e comunitários desde que o governo incluísse todos. Propugnava por um “ contrato social” segundo o qual as vontades individuais seriam combinadas numa vontade geral. O que significa que todos devem participar no governo em termos iguais através do voto e aceitar o veredicto da maioria.
Agora, essa vontade geral deveria ser imposta a todos, criando uma vontade única e uniforme, em que todos se sentiriam livres por terem participado na sua formação, mas a que todos deviam obedecer sem dissidências. As leis aprovadas pela maioria livre e igual de todos devem ser aplicadas igualmente e sem excepções a todos os cidadãos.
Nestes três autores são visíveis as raízes essenciais do
constitucionalismo moderno, em que alguns temas são comuns, como a
necessidade de a Constituição depender do consentimento de povo, de as ideias básicas serem a liberdade, a igualdade político-jurídica e alguns direitos fundamentais. Também a ideia das decisões serem tomadas por maioria é realçada. Depois, mais complicada é a questão dos limites do poder do governo. Se Locke defende sem rebuço um governo limitado, já Hobbes aceita que este seja ilimitado para garantir a vida e a segurança, mas não intervenha em mais nada, enquanto Rousseau parece não colocar limites ao governo desde que este esteja a desempenhar o preceituado pela vontade geral, quando deliberada por uma maioria livre e igual, condição suficiente para o funcionamento da comunidade política.
6-Conceitos essenciais: Liberdade, igualdade e democracia
Liberdade, igualdade e democracia serão os conceitos estruturantes do
constitucionalismo europeu. Curiosamente o primeiro a ser incorporado e
praticado em termos constitucionais foi o de liberdade. Desde o século
dezanove que pontifica como elemento central. Enquanto que a democracia
apenas se espalhou ao longo de século vinte, e na sua forma mais
aprofundada, somente a partir da segunda metade desse século. Quanto à
igualdade, é um conceito mais difuso, e por isso se a ideia de igualdade
perante a lei, tem andado de mãos dadas com o triunfo da liberdade, um
conceito mais completo de igualdade, se tal é possível, tem tido algumas dificuldades de afirmação.
Além de terem afirmações temporais diferentes, os próprios conceitos também têm dificuldades de explanação óbvias. O que é a liberdade? O ponto de partida dirá que a liberdade consiste na inexistência de obstáculos ao desenvolvimento da acção individual. Isto é, somos livres se pudermos agir sem impedimentos. Mas também se tenta definir liberdade com referência a um objectivo, valor ou ideal. Por exemplo, somos livres se aderirmos à Igreja e cumprirmos os seus preceitos. Ou como referia Rousseau, a nossa liberdade determina-se pela capacidade participarmos na definição da vontade geral e na submissão à mesma. O problema desta definição é que historicamente, em nome deste tipo de liberdade se têm cometido as maiores arbitrariedades sobre o indivíduo, debaixo da capa do interesse colectivo ou bem comum. Por outro lado, uma visão mais pragmática sempre dirá que não adianta ter possibilidade de acção se não temos meios para essa acção. Aqui propõe-se ligar a liberdade à capacidade económica. Quem é pobre não tem liberdade porque não pode agir. Sempre se dirá que agir pode sempre, o que poderá acontecer é não alcançar os objectivos a que se propõe. Mas tal não será uma questão de liberdade. A generosidade dos conceitos torna-os inúteis.
Talvez maiores dificuldades, ainda, se coloquem ao conceito de
democracia. Se entendermos democracia como a tomada de decisões por
voto maioritário, então esta é coeva da introdução do liberalismo moderno.
Mas a questão é: voto maioritário de quem? De um modo geral só a partir de meados do século vinte é que toda a população teve direito de voto. Até lá a capacidade de voto estava remetida aos proprietários e pessoas com interesses relevantes na comunidade. Excluídos estavam as mulheres, os negros, os pobres, etc. Por isso se costuma dizer que durante muito tempo existiu liberdade sem democracia.
Outra questão que se levanta é acerca da força do voto maioritário.
Um voto maioritário obriga a todos, maioritários e minoritários. Embora a resposta genérica seja afirmativa, existem muitas gradações. Já Locke defendia a necessidade de os direitos básicos serem respeitados. Por isso parece claro que a democracia é mais que a simples decisão maioritária.
Impõe também o respeito pelos direitos fundamentais do indivíduo. Por
isso, o autor contemporâneo americano Dworkin (1996,17 e ss.) afirma que
a democracia consiste no tratamento igualitário de todos os cidadãos. E que
se tal em princípio se consegue pela adopção de decisões por maioria,
outras vezes para proteger os direitos iguais de pessoas iguais haverá que
afastar as decisões das maiorias e deixar actuar outros mecanismos como os
judiciais. Portanto a democracia deverá ser entendida como um conceito
compreensivo e complexo envolvendo a decisão por maioria, a protecção
dos direitos fundamentais e o tratamento igualitário dos cidadãos. Tal como
na definição de liberdade parecerá que a generosidade dos conceitos acaba
por implicar a sua inoperância ou mesmo esvaziamento. Se se entende liberdade como a possibilidade de acção sem obstáculos, então talvez se deva entender democracia como a tomada de decisões pela maioria dos votos de determinada comunidade, remetendo a questões dos direitos dos indivíduos e da protecção das minorias para os conceitos de liberdade e igualdade.
Finalmente, a igualdade, que tem também dois sentidos muito óbvios.
Segundo o primeiro somos todos seres humanos iguais, por isso temos que
ter um tratamento igual face à lei e ao governo. Um outro sentido mais
arrojado, procura uma igualdade sócio-económica advogando a
redistribuição da riqueza para atingir esse desiderato. Se o primeiro sentido
de igualdade é razoavelmente consensual e está na base dos
contratos/pactos sociais fundadores do moderno constitucionalismo, já o
segundo sentido tem implicações muito mais discutidas. John Rawls(1971)
tentou explicitar este sentido nos termos de uma sociedade não socialista
dizendo que se deveria, para se obter justiça social, maximizar o valor da
liberdade do menos afortunado membro da sociedade, se necessário
redistribuindo o rendimento dos ricos para os mais pobres. Rawls vê-se
assim a defender um conceito de liberdade abrangente, bem como de
igualdade. Como tem sido referido estes conceitos mais generosos tornam-
se redundantes pervertendo por vezes as boas vontades iniciais. Até que
ponto se deverá redistribuir o rendimento, sem que isso ofenda a liberdade
de cada um? Até que ponto ao tirarmos a uns para dar a outros não os estamos a tratar de forma desigual? Estas são questões a que levam os conceitos compreensivos.
Então, talvez seja melhor depurar os conceitos e apreender a sua
radicalidade original. Liberdade é acção sem obstáculos, democracia o voto
por maioria e igualdade o tratamento semelhante de todos perante a lei e o
governo. Mesmo assim não serão conceitos fáceis.
PARTE III- Dimensões clássicas da Constituição.
7- O Estado: Conceito e evolução histórica.
O conceito de Estado é, tradicionalmente, entendido como “Um povo fixado num território, de que é senhor, e que dentro das fronteiras desse território institui, por autoridade própria, os órgãos que elaboram as leis necessárias a vida colectiva e imponham a respectiva execução “(Jellinek).
Desta simples observação pode concluir-se que são três os elementos que compõem um Estado: Povo, Território e Poder Político. Mas o Estado nem sempre existiu com as características tais como as conhecemos hoje em dia.
Ao longo da história existiram vários tipos de Estados que, pelos seus elementos estruturantes, se aproximam, de alguma maneira, do Estado tal como o conhecemos. Pressupõe-se que existiram sociedades anteriores à formação do Estado mas que não atingiram o grau de institucionalização que caracteriza a organização política estadual. Por exemplo, a família patriarcal e a tribo, designadas por sociedades políticas pré-estaduais.
Jellinek é, habitualmente, o autor referenciado para a classificação dos
diversos tipos de Estado. Aliás, autor que é seguido por diversos
académicos portugueses como é o caso de Jorge Miranda e Freitas do
Amaral. A tipologia definida por estes autores assenta na seguinte
classificação: Estado Oriental; Estado Grego; Estado Romano; Estado
Medieval; Estado Moderno. Este, por sua vez, dividido em Estado Estamental ou Corporativo, Estado Absoluto e Estado Constitucional.
Iremos, de seguida, analisar cada um destes tipos de Estado.
A - ESTADO ORIENTAL
O Estado Oriental desenvolve-se nas civilizações mediterrânicas da Antiguidade Oriental - Babilónia, Egipto (entre outros) e tem como traços mais marcantes a teocracia (poder político reconduzido ao religioso), a forma monárquica (combinada com Teocracia porquanto o monarca é adorado como um Deus) uma larga extensão territorial, reduzidas garantias jurídicas dos indivíduos (o que não quer dizer que não tivessem quaisquer direitos) e ordem desigualitária, hierárquica e hiératica da sociedade.
B - ESTADO GREGO
Não se pode falar de Estado Grego, mas Estados gregos ou Cidades-
Estado. Apenas com a unificação helénica, trazida por Alexandre, a Grécia
atinge alguma unidade. Como quer que seja, a Polis grega era caracterizada
por uma reduzida expressão territorial. O centro da vida política era
constituído pelo povo que em Assembleia exercia a autoridade suprema. A
governação da Polis estava assente no exercício de direitos políticos por
parte dos cidadãos, o que, contudo, não conduzia à concessão plena de
direitos civis (por exemplo, não podiam escolher qual a religião que
queriam praticar, tal escolha era um sacrilégio).
Pela primeira vez verifica-se a concepção de uma ideia de poder politico e quadros classificativos dos sistemas políticos que inspiraram as grandes correntes de pensamento Ocidental (oligarquia, democracia, teocracia).
C - ESTADO ROMANO
O Estado romano sofreu várias vicissitudes. Começou por ser uma
monarquia, depois uma república e finalmente um império. Em todo o caso
nas suas linhas constantes, a Roma Imperial poderia definir-se como um
Império autocrático, ou seja, Estado soberano, absoluto e independente de
qualquer constituição política. A nível político, revelava-se através da
criação gigantesca de um Império em termos territoriais - constituído pelo
agrupamento de famílias. É, igualmente, um Estado de base municipal
quando organiza um Império em 3 Continentes. Com o consolidar do poder
do Imperador desenvolve-se a noção de poder político como poder
supremo e uno. Recnonhecia-se, neste tipo de Estado uma autoridade
política do povo, ainda, que este fosse o último a exercê-la. Daqui se retira
que existe uma clara separação entre o Estado e os indivíduos, o que em
termos jurídicos leva à distinção entre poder público do Estado e o poder
privado, bem como a uma caracterização do individuo como pessoa
jurídica com determinados direitos e prerrogativas. Por exemplo, os direitos
básicos do cidadão como o jus suffragii – direito de eleger; o jus honorium
– direito de acesso as magistraturas; o jus connubii – direito de casamento legítimo; o jus commerci – direito de celebração de actos jurídicos.
D - ESTADO MEDIEVAL
A propósito do Estado Medieval, Jorge Miranda refere que “Na Idade Média não há Estado com as características que lhe são atribuídas em toda a Europa, isto porque o Feudalismo dissolve a ideia de estado, na medida em que o poder se privatiza e passa do imperium para o dominum esta é a concepção patrimonial do poder”.
Isto porque não há uma relação geral e imediata com os súbditos.
Estes direitos não são conferidos individualmente, mas sim em função de um grupo em que se integram, são direitos em concreto e em particular como expressão da situação de cada pessoa, direitos que se apresentam como privilégios e regalias, imunidades que uns têm e outros não, em vez de serem genericamente atribuídos a todas as pessoas.
Neste tipo de Estado a realeza encontra-se no topo da hierarquia feudal mas, está de tal maneira longe que não existe uma relação directa com os vassalos.
E - ESTADO MODERNO
É o tipo de Estado, característico da Idade Moderna e Contemporânea.
(século XVI a XX). Surge directamente associado à tentativa de formação
do Estado Nacional (estado correspondente a uma nação, o factor de
unificação política deixa de ser a religião para passar a ser uma finalidade
de nova índole). O Estado Moderno assenta num processo de centralização do poder político levado a cabo pelos monarcas que, de forma gradual, se foram libertando da pressão do papa e respectivo clero e nobreza.
Desenvolve-se o conceito de soberania estadual (poder supremo e aparentemente ilimitado), o que permite ao monarca ter uma plena liberdade de acção externa, no respeito do princípio da igualdade entre todos os Estados e, ao mesmo tempo ver reduzidos privilégios e prerrogativas feudais e eclesiásticas.
As principais características do Estado Moderno são: rápida centralização dos poderes políticos no rei; definição dos limites territoriais e o controle efectivo deste pelos órgãos do estado; conceptualização e afirmação da ideia de estado nação; definição de estado como ente soberano (ou seja dotado de um poder supremo na ordem interna e de um poder independente na ordem Internacional); a secularização do estado.
(separação entre igreja e Estado); o culto crescente da razão de estado;
aperfeiçoamento das garantias individuais; início do período Constitucional
com a revolução Francesa e Americana.
Na concepção do Estado Moderno é, ainda, estudada a seguinte categorização:
I - Estado Estamental ou Corporativo
O rei e os estamentos, ou seja, as ordens desenvolvem entre si uma relação na qual o primeiro deve ter em consideração a opinião do segundo, os quais têm voz através das Assembleias Estamentais (Parlamentos, Estados Gerais, Cortes), com faculdades ora deliberativas ora consultivas.
O rei só por si não podia determinar a evolução dos acontecimentos políticos, necessitava de recorrer ao apoio de forças estruturais que tinha que necessariamente ouvir.
II - Estado Absoluto
O rei ao centralizar o poder faz com que os Estamentos (ordens) desvaneçam. O Estado é absoluto não porque o monarca viva à margem da lei, mas porque tem todo o poder e portanto faz a lei. Nesta linha veja-se, por exemplo a expressão de Luís XIV “L’ ETAT C’ EST MOI”. Aquilo que podia limitar o papel do rei era o Direito e, de alguma maneira, as Leis fundamentais. Este é um período do Absolutismo onde o rei se afirma por
“direito divino”(o rei governa porque foi escolhido por Deus).
Num segundo período o Iluminismo introduz o “ despotismo
esclarecido” (poder absoluto e arbitrário), segundo o qual o Estado é uma
associação que visa prosseguir o interesse público, devendo rei ter plena
liberdade de meios para o alcançar.
Em termos históricos o Estado Absoluto permitiu a unidade do estado através da elevação do papel da Lei como Fonte de Direito, pela formação de exércitos nacionais e pela intervenção até ai inédita em áreas como a Economia.
III - Estado Constitucional
Na determinação do momento do Estado Constitucional, registam-se três factos históricos essenciais: a Revolução Francesa; o aparecimento das primeiras constituições escritas nos EUA; a influência filosófica e jurídica da Alemanha.
É na Constituição que se vão localizar as novas ideias quanto ao poder. Os direitos e garantias dos cidadãos, a separação de poderes, passam a ser fundamento de validade de qualquer sociedade (ou seja a limitação do poder é uma das bases do Estado Constitucional ou Liberal bem como a ideia de liberdade), cujos pressupostos doutrinários se podem encontrar em Adam Smith e Benjamin Constant.
No sec. XX assistimos a profundas transformações politicas,
económicas e sociais, em que o Estado Constitucional, de ênfase liberal, dá
lugar ao ênfase social. Alguns dos marcos dessa transição e que ainda hoje
perduram revelam-se no papel intervencionista do Estado em vários
domínios, no aparecimento de regimes totalitários (que são Estados em que
os interesses ou direitos do indivíduo estão absolutamente subordinados aos
da colectividade) de teor fascista e comunista, na descolonização, na
organização da sociedade Internacional, na protecção Internacional dos Direitos do Homem.
8- Teoria Clássica do Estado
A teoria clássica do Estado começa por definir os fins do Estado, e embora estes se diferenciem de época para época, existe um consenso actual (embora em discussão cada vez mais intensa). Os fins do Estado serão:
I – Segurança - necessidade que levou os homens a instituir um poder político, garante a estabilidade de bens, da duração de normas e da irrevogabilidade das decisões do poder;
II - Justiça - ideal a atingir pelo Direito, existência de regras e normas que têm de ser inspiradas pela justiça;
III - Bem- estar social – o Estado deve desempenhar um papel fulcral na concretização das aspirações do bem estar do Homem, como por exemplo criar hospitais, escolas e estradas.
Diferente dos fins, são as funções, ou seja, aquilo que o Estado tem de fazer para alcançar os seus fins. São as seguintes as funções do Estado:
A - Funções jurídicas
Em primeiro lugar pode destacar-se a função legislativa – actividade dos
órgãos do Estado que têm por objecto directo e imediato estatuir normas de
carácter geral e impessoal, inovadoras da ordem jurídica (quando se fala em poder legislativo diz respeito a todo o que imponha a vontade do Estado sob a forma de Lei mas quando se fala em função legislativa apenas se deve fazer referencia ás leis em sentido material, é que poder legislativo é um conceito político enquanto função legislativa deve traduzir conceito científico). Mas não basta ao Estado elaborar as Leis. Interessa-lhe, igualmente, velar pela sua execução, pela sua aplicação. A função executiva visa, então, assegurar a execução das leis e a aplicação de sanções aos seus infractores, podendo revestir diversas modalidades:
1ª - ao surgir um litigio cumpre ao Estado decidi–lo autoritariamente (ou seja castigando e impondo a reparação de prejuízos causados). Quando um indíviduo desacate a lei compete aos órgãos do Estado reprimir a ofensa;
2º - preventiva da violação de lei;
3º - atribuição de poderes e deveres a orgãos do estado B - Funções não jurídicas
Para além das funções jurídicas, o Estado exerce as chamadas funções não jurídicas. Daqui são elencadas as seguintes funções:
a) Política – actividade dos órgãos do Estado cujo objecto directo e
imediato é a conservação da sociedade política e a definição e
prossecução do interesse geral mediante a livre escolha das soluções
consideradas preferíveis;
b) Técnica – actividade dos agentes do estado cujo objecto directo e imediato consiste na produção de bens ou na prestação de serviços destinados à satisfação de necessidades colectivas de carácter material ou cultural de modo a obter a máxima eficiência de meios empregues. Quando o Estado pelos seus serviços ensina, educa, constrói, cura, sem dúvida que uma parte da sua actividade é jurídica na parte em que os seus agentes gerem escolas, hospitais, museus mas que se prolongam por essa actividade técnica.
As teorias do Estado foram desenvolvidas pelos autores que hoje constituem aquilo que chamamos os “clássicos” na definição do moderno Estado, e que são o repositório de onde hoje pudemos partir para os novos problemas trazidos pela União Europeia e pela “ Globalização”.
Na Teoria de Jellinek verifica-se que há actos do Estado que ficam
fora das suas funções, nomeadamente a guerra. Aqui, o Estado propõe – se
a dois fins: i) estabelecimento e tutela do direito; ii) afirmação da força e o
incremento da cultura. Estes dois fins podem ser alcançados com a criação
de normas e actuando concretamente para alcançar objectivos
individualizados. As funções do estado são diferencidadas como uma
actividade livre (pelos interesses gerais) e outra vinculada (ao cumprimento
de deveres jurídicos). Os actos praticados pelos órgãos do estado
classificariam – se materialmente em leis, actos administrativos e decisões judiciárias.
Temos, por outro lado, a Teoria de Duguit. Esta, parte do conceito de acto jurídico, ou seja, a manifestação de vontade, feita com intenção de produzir uma modificação na ordem jurídica existente, próxima ou futura.
O acto jurídico pode assumir uma de várias formas: acto regra (feito com intenção de modificar regras abstractas constitutivas do Direito objectivo);
acto condição (aquele que lhe torna aplicáveis certas regras que lhe eram inaplicáveis por ex: o acto de nomear um funcionário torna aplicáveis ao nomeado todas as regras que regulam os direitos e deveres dos funcionários); acto subjectivo (origina uma obrigação especial individual que nenhuma regra abstracta lhe imponha, por ex: um contrato).
Na teoria de Duguit as funções do estado, em sentido jurídico, podem ser enumeradas da seguinte forma: função legislativa (prática de actos regra); função administrativa (prática de actos condição de actos subjectivos); função jurisdicional (resolução pelo Estado de uma questão de direito que lhes é submetida e na sua decisão assegura a eficácia da resolução).
Kelsen é considerado como o principal representante da escola
positivista do Direito. Para este autor, o Estado é, simplesmente, um
sistema de normas e, por isso, toda a função do Estado é uma função da
criação jurídica. É com Kelsen que surge a concepção do sistema
hierarquizado de normas jurídicas. Estas encontram-se estruturadas numa pirâmide abstracta. No topo encontra-se a Constituição do Estado, que subordina as restantes normas jurídicas. Desta elaboração teórica nasce, também, a ideia de um sistema de tutela da integridade da Constituição, uma vez, que esta é o garante da existência dos demais actos normativos.
Diferenciadas as várias perspectivas de fins e funções de Estado retomemos Jellinek e a sua famosa definição de Estado. Começámos por referir que os elementos integrantes do Estado são: o POVO (composto pelos cidadãos ou nacionais de cada Estado), o TERRITÓRIO e o PODER POLÍTICO. Analisemos, em concreto, cada um destes elementos integrantes do Estado.
I – O Povo: Cidadania e nacionalidade
O Povo é o elemento pessoal ou humano do Estado. Vejam-se os artigos 2º,
3º, 10º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Afirma-se,
usualmente, que é o “Conjunto dos indivíduos que, a fim de realizar em
comum um ideal específico de segurança, justiça e bem – estar, decide
assenhorar – se de um determinado território e institui, por autoridade
própria, um poder político capaz de reger a vida colectiva do país”. Ou
seja, Povo será o conjunto de indivíduos ligados pelos laços da
Nacionalidade ou Cidadania.
Dentro deste elemento, a doutrina faz distinção entre a POPULAÇÃO e a CIDADANIA. A população abrange os estrangeiros e os apátridas residentes no território nacional, bem como turistas e visitantes que temporariamente residam e exclui os nacionais não residentes. A Cidadania é uma questão do Direito interno de cada Estado (artigo 4º da CRP). O conceito de cidadania assenta nas seguintes características: é uma qualidade do nacional de um país; é específica das pessoas singulares, dos seres humanos num estado Democrático; é um verdadeiro direito de cada indivíduo revestindo a natureza de direito fundamental (artº 26º CRP); é um vínculo jurídico político (que une um indivíduo ao seu Estado).
Outra questão é a Nacionalidade (existem autores que utilizam indistintamente o conceito de Cidadania e Nacionalidade como é o caso de Marcello Rebelo de Sousa e Jorge Miranda). Esta revela a pertença à Nação e não ao Estado. A nacionalidade tem sido considerada um atributo de pessoas colectivas ou mesmo de coisas (por exemplo, a empresa x de Nacionalidade Alemã, o barco x de Nacionalidade Grega).
Existem fundamentalmente dois critérios de atribuição de cidadania
ou nacionalidade, pontos que serão abordados muito brevemente, por serem
objecto de estudo de outras áreas do direito. Assim, para atribuição da
nacionalidade ou cidadania consideramos: i) o jus sanguinis, critério que
utiliza a noção de laços de sangue ou de filiação em relação a nacionais de
certo Estado; ii) jus soli , critério que determina a Nacionalidade através do
local de nascimento. É usual, ainda, distinguir entre: i) aquisição originária da cidadania (produz efeitos desde o nascimento artº 11º da Lei Nacionalidade); ii) aquisição derivada da cidadania (que apenas têm efeitos posteriores ao nascimento artº 12º da Lei Nacionalidade). 1
Nas Constituições portuguesas podemos encontrar referências expressas à cidadania. Na Constituição de 1822, na Carta Constitucional e na Constituição de 1838, definiam-se os critérios de atribuição de Nacionalidade. Nas Constituições Republicanas a matéria foi remetida para legislação ordinária (à semelhança do que acontece hoje) uma vez que o artigo 4º da CRP se absteve de qualquer definição material em sede de cidadania.
Uma nota importante, no que diz respeito a esta matéria, está relacionada com a naturalização. Coloca-se, neste campo, a questão de saber se os cidadãos naturalizados gozam dos mesmos direitos que os cidadão de origem. Pois bem. A Constituição vigente não prevê qualquer reserva ou restrição desse tipo. E através da lei não parece ser possível contradizer aquele efeito, em virtude dos princípios da igualdade e universalidade, também eles consagrados na nossa Constituição. Existem restriçõs, sim, mas expressamente consagradas no texto constitucional.
Assim, a capacidade eleitoral passiva para Presidente da República está reservada aos portugueses de origem.
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