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Confiança, capital social e desenvolvimento

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Academic year: 2021

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Confiança, capital social e desenvolvimento

Maria Lucia Macie l *

Em seu artigo “Building Trust” Locke constata e discute a recente explosão do interesse no tema da confiança e sobretudo nas formas de promovê-la, particularmente naquelas situações em que a cooperação é um ingrediente vital.

Este interesse parece advir de:

· necessidade de desenvolver conceitos que reflitam a complexidade e o inter-relacionamento das várias esferas de intervenção humana, servindo como um termo guarda-chuva, que pode ser compreen- dido e utilizado transversalmente por diferentes disciplinas;

· reconhecimento dos recursos embutidos em estruturas e redes so- ciais não contabilizados por outras formas de capital e valorização de sua importância para o desempenho econômico;

· busca por instrumentos para o incremento da competitividade e do crescimento econômico para fazer face aos desafios da globalização da economia.

O maior mérito da primeira parte do artigo de Locke é justamente o de tentar organizar e sintetizar as tendências dessa literatura que tem proliferado nos últimos anos, multiplicando (e confundindo) definições e concepções do que venham a ser “confiança” e “capital social”. O sucesso do best-seller Fukuyama contribuiu apenas para confundir ainda mais a questão. Com o objetivo de mapear a questão, Locke distingue e discute duas grandes tendências principais: a primeira, de natureza mais sociológi- ca, argumentando que a confiança é produto de padrões históricos de longo prazo de associativismo, engajamento cívico e interações extrafamiliares; a segunda, de natureza mais econômica, enfatizando o interesse próprio de

* Professora do Departamento de Sociologia da UnB, Pesquisadora Visitante no Instituto de Economia da UFRJ, Professora Associada ao Programa de Pós-Graduação em Ci- ência Política da UFRJ. A autora agradece as discussões anteriores com Sarita Albagli e Fernanda Wanderley que contribuíram para a reflexão sobre essa temática. E-mail:

mlmaciel@centroin.com.br.

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longo prazo e o cálculo de custos e benefícios por atores maximizadores de ganhos na promoção de comportamentos de confiança.

Enquanto, na versão associativa, confiança é sinônimo de amizade, na perspectiva econômica stricto sensu as relações estáveis de confiança, reciprocidade e cooperação são vistas como instrumentos para azeitar as relações entre agentes econômicos e melhorar a eficiência de arranjos organizacionais entre e no interior das firmas. Argumenta-se que, mesmo nos países de economia avançada, o mercado, para funcionar mais eficien- temente, precisa ser complementado por relações não mercantis. A confiança constitui, desse ponto de vista, ingrediente chave para reduzir

“falhas de mercado”, aumentando a previsibilidade do entorno e diminu- indo riscos. Por outro lado, o próprio mercado (incluindo as relações de trabalho) pode ser erosivo desses vínculos sociais relevantes ao seu desem- penho.

Ambas as linhas da literatura sobre confiança são importantes para elucidar o papel que os vários fatores – interesse próprio, instituições e organização da sociedade civil – desempenham em promover e/ou susten- tar a confiança. Locke chama a atenção, no entanto, para o fato de que ambas sofrem de sérios problemas conceituais e empíricos que limitam sua utilidade para compreender como a confiança pode ser criada, especial- mente em condições adversas.

Como alternativa ao pessimismo das visões dicotômicas que ele critica, o autor propõe ser possível criar ou construir confiança em comu- nidades locais, visando ao desenvolvimento econômico. De maneira geral, os trabalhos que procuram estabelecer mecanismos para medir ou para criar confiança/capital social partem do princípio de que este componente das relações sociais é algo que se traduz em quanta, objetivamente, e que pode, portanto, ser cientificamente (re)produzido. Esta concepção asso- cia-se, por sua vez, a uma abordagem instrumentalista que preconiza a criação de características de relações sociais como meios para atingir deter- minados fins, estes últimos associados em geral ao desempenho econômico.

Este tipo de pragmatismo instrumentalista é mais presente na lite-

ratura econômica do que na sociológica e, nesta, aparece mais nas

abordagens norte-americanas que nas européias. Quando a preocupação

centra-se mais na análise dos processos sociais reais do que na preocupa-

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285 ção em receitar soluções, incorre-se menos no equívoco de tentar definir

uma relação social pelos seus efeitos. Por isso, Locke não menciona a vertente européia (como os trabalhos de Bourdieu – e.g., 1980 e 2000 – sobre capital social), mais crítica sociologicamente e sem qualquer preocu- pação quanto à intervenção social.

Ao procurar oferecer uma versão alternativa às linhas que ele criti- ca, o autor propõe uma abordagem também instrumentalista, embutindo no conceito o resultado da ação além da definição do comportamento.

Se entendermos, como Locke, o capital social como fator de confi- ança e ambos, conseqüentemente, como fatores de sucesso econômico, podemos cair em pelo menos duas armadilhas conceituais perigosas. Em primeiro lugar, essa discussão parece obscurecer a diferença entre os dois conceitos e, de fato, trata-os como praticamente intercambiáveis. Desse modo, não teríamos como entender capital social sem a constatação da confiança nem a confiança na aparente ausência de um capital social. Nes- te erro incorreu Banfield há muitos anos atrás, quando condenou o

“familismo amoral” italiano como obstáculo à ação coletiva em prol da comunidade, sem perceber suas contradições inerentes. O que nos leva à segunda armadilha. O perigo de uma conceituação que incorpora apenas as dinâmicas que geram resultados positivos em termos de cooperação e sucesso econômico é terminar numa explicação circular em que os resulta- dos que se busca explicar são parte da “variável independente”.

É preciso lembrar que relações de confiança constituem um dos

sustentáculos da organização da Cosa Nostra e de outras organizações

mafiosas. Da mesma forma, embora em sentido inverso, é possível desta-

car que relações familiares coletivamente dinamizadas são um dos fatores

de sucesso dos distritos industriais do centro-nordeste da Itália, sem que se

possa falar propriamente de “confiança” (M ACIEL , 1996). Nessa região,

freqüentemente chamada de Terceira Itália, empresa e família são pratica-

mente sinônimos; o interesse familista, ao contrário do que preconizam

Banfield e outros, resultou em processos de cooperação entre empresas e

entre estas e governos e universidades locais, com o objetivo de dinamizar

as empresas e desenvolver as microrregiões. Considerando esses exemplos

opostos (ambos no mesmo país) nota-se a relevância da idéia de que o

conceito de capital social – ou o de confiança – só terá maior capacidade

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explicativa para o surgimento e êxito das iniciativas produtivas se sua defi- nição for independente dos resultados.

Se partirmos da idéia de que as mesmas redes sociais e seus recur- sos possibilitam a geração de resultados diferentes para as transações econômicas, positivos e negativos, contraditórios ou não, estaremos em condições de explorar melhor os mecanismos concretos através dos quais o capital social – e o que Locke chama de “confiança” – pode facilitar ou dificultar o surgimento de padrões de relações econômicas.

Se por um lado Locke acerta ao criticar a tendência economicista e instrumentalista, por outro ele corre o risco de incorrer em equívocos se- melhantes. A perspectiva “otimista” de Locke, ao recair no instrumentalismo resultante do raciocínio circular, generaliza a receita como se fosse possível aplicar um mesmo conjunto de recomendações a todos os casos, indepen- dentemente de suas especificidades histórico-culturais e políticas. Além disso ela pressupõe a relação automática entre capital social, confiança e desen- volvimento econômico.

O que se constata na prática, como por exemplo nos estudos da RedeSist

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sobre arranjos produtivos locais, é a necessidade de levar em conta as características culturais, econômicas e políticas em que os atores sociais aproveitam oportunidades surgidas da combinação da posição de- les em redes sociais e da estrutura dessas redes, podendo – ou não – resultar no que S CHMITZ (2003) chama de “eficiência coletiva”.

É exatamente nesse sentido que os dois estudos de caso apresenta- dos são extremamente relevantes. Eles mostram como relações sociais e fatores locais específicos foram determinantes nos empreendimentos bem sucedidos e nos impactos de desenvolvimento local. Mas eles apontam para dois aspectos que tendem a contradizer, em parte, a perspectiva de Locke: i) o sucesso não foi gerado a partir de uma ação de cima para baixo, seguindo uma receita de política pública, e sim pela iniciativa dos produto- res que – num segundo momento – tiveram algum tipo de apoio de governos e instituições públicas e privadas; e ii) não se pode aplicar uma regra geral

– ou “modelo” – de forma universal, sem levar em conta os potenciais específicos e as características históricas locais.

Mas o que aparece como questão principal – e que remete ao pro-

blema das definições múltiplas de confiança e de capital social – é que eles

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cooperação com objetivos específicos de sucesso econômico. Nada nesses casos comprova maior confiança entre os atores do que existia antes. Coo- peração e confiança não são sinônimos.

A constatação de Locke quanto à possibilidade de impulsos socioeconômicos locais é interessante. Mas não diz respeito a confiança.

Perspectivas semelhantes já foram desenvolvidas, especialmente na linha dos “sistemas locais de inovação” e do desenvolvimento local. Como de- monstram os dois exemplos apresentados, do Sul da Itália e do Nordeste do Brasil, a combinação de necessidade/liderança/governança tende a ativar processos de aprendizagem coletiva por interação – ou learning by interacting (J OHNSON e L UNDVALL , 2003) – que freqüentemente resultam em sucesso competitivo e alimentam um “círculo virtuoso” de desenvolvi- mento socioeconômico local. (Ver também A LBAGLI e M ACIEL , 2002)

Tais questões apontam para o debate sobre a possibilidade ou im- possibilidade de redirecionar tendências – dadas às vezes como irreversíveis

– em sistemas sociais que supostamente carecem de capital social, bem como sobre o papel das normas e estruturas sociais como elementos impeditivos ou propulsores da mudança social.

Em síntese, formações sociais são estruturas complexas que não podem ser vistas como meros produtos do planejamento, mas sim resul- tam de construção social ao longo de processos históricos de colaboração, competição e conflito. E, nesses processos, desempenham papel funda- mental as políticas e estratégias, tanto públicas como privadas. A conclusão, portanto, é que a oposição “intencional/espontâneo” discutida na literatu- ra sobre capital social representa uma falsa dicotomia.

Nota

1 Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais: www.ie.ufrj.br/redesist.

Referências bibliográficas

A LBAGLI , S. e M ACIEL , M.L. (2002) Capital social e empreendedorismo

local. In: L ASTRES , H.M.M. et al.(coord.) Proposição de Políticas para a

Promoção de Sistemas Produtivos Locais de Micro, Pequenas e Médias

Empresas Brasileiras I, Fase II. Disponível em: www.ie.ufrj.br/redesist.

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B OURDIEU , P. (1980) Le capital social: notes provisoires. In: Actes de la recherche en sciences sociales, n. 31, jan.

____ (2000) Les structures sociales de l’économie. Paris: Seuil.

J OHNSON , B. e L UNDVALL , B. (2003) Promoting Innovation Systems as a Response to the Globalising Learning Economy. In: C ASSIOLATO , J.E.;

L ASTRES , H.M.M. and M ACIEL , M.L. (orgs.) Systems of Innovation and Development. London: Edward Elgar.

M ACIEL , M. L. (1996) O Milagre Italiano: caos, crise e criatividade. Rio de Janeiro/Brasília: Relume Dumará/Paralelo 15.

____ (2002) Cooperativas Populares no Desenvolvimento de Sistemas Produtivos Locais Inovadores. In: L ASTRES , H.M.M. et al., (orgs.) Interagir para competir: promoção de arranjos produtivos e inovativos no Brasil. Brasília: Sebrae; Finep; CNPq.

S CHMITZ , H. Local Upgrading in Global Chains. In: C ASSIOLATO , J.;

L ASTRES , H. and M ACIEL , M.L. (orgs.) Systems of Innovation and

Development: Evidence from Brazil. Cheltenham, GB: Edward Elgar,

no prelo.

Referências

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