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Ó TICA DASF AMÍLIASA TENDIDAS EMS

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Academic year: 2018

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ALBERTO ANTÓNIO COMUANA

O SIGNIFICADO DA ASSISTÊNCIA OFERECIDA PELO PROJETO QUIXOTE:

A ÓTICA DAS FAMÍLIAS ATENDIDAS EM SITUAÇÃO DE “RISCO”

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

São Paulo

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ALBERTO ANTÓNIO COMUANA

O SIGNIFICADO DA ASSISTÊNCIA OFERECIDA PELO PROJETO QUIXOTE:

A ÓTICA DAS FAMÍLIAS ATENDIDAS EM SITUAÇÃO DE “RISCO”

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de MESTRE em Serviço Social, sob

a orientação da Professora Doutora Marta

Silva Campos.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

São Paulo

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AGRADECIMENTOS

À minha família, Beth, Filipe, Schu, Gutuka, Ivens, que várias vezes teve de suportar pacientemente o não me ter presente, ou não lhes dar nenhuma atenção, por conta do meu envolvimento com o presente estudo e o trabalho.

À Maria Palmira, pela disposição de leitora externa e sugestões; à Jeane, pelos gráficos e disposição no que lhe solicitei.

À Suely e à Fátima, pelo constante incentivo material, afetivo, sugestões, suporte técnico para levar avante este trabalho, além de aplicação de questionários para dados qualitativos; À Graziela e ao Auro, pelo acolhimento, por acreditar nas minhas potencialidades.

Aos amigos, colegas de trabalho no Projeto Quixote: Rafik, Paulinho, Marco, Roberto, Ivan, Hilton, Roberto, Rodrigo, João, Felipe, Cecília, Zilda, Nice, Bettina, Simone, Luciana Siqueira, Luciana Escudeiro, Inês, Patrícia, Síglia, Vera, Isabel, Tokie, Neara, Zenaide, entre outros, pois não teria espaço para incluir todos, sem esquecer alguns, e a lista não acabaria.

Às alunas do curso de especialização em Saúde Mental, especialmente Milena e Lúcia.

Às mães e ou responsáveis das crianças, adolescentes que aceitaram participar desta pesquisa e a todos os usuários do Projeto Quixote que a cada intervenção nos ensinam algo novo do particular e genérico do humano.

À Maria Cristina Marques pela revisão e disposição em respeitar minha forma de me expressar em português.

À minha orientadora, Marta por desempenhar a missão, difícil, de orientar.

À Julieta, minha mãe, em memória e vida, com quem, após certo período, foi difícil compartilhar meus desejos, minhas angústias e outros sentimentos, e que, contrariada , deixou-me partir para a diáspora.

Aos amigos e conterrâneos, em Moçambique e no Brasil.

A todos os que participam, ou participaram, em todos os momentos de minha vida, acadêmica ou particular

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais António Comuana Julieta Alberto Mulau

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Quero ser tambor

Tambor está velho de gritar ó velho Deus dos homens deixa-me ser tambor corpo e alma só tambor

só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

E nem flor nascida no mato do desespero. Nem rio correndo para o mar do desespero.

Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero. Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra. Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra. Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra!

Eu!

Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala. Só tambor velho de sangrar no batuque do meu povo. Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Ó velho Deus dos homens eu quero ser tambor e nem rio

e nem flor

e nem zagaia por enquanto e nem mesmo poesia.

Só tambor ecoando a canção da força e da vida só tambor noite e dia

dia e noite só tambor

até à consumação da grande festa do batuque!

Oh, velho Deus dos homens deixa-me ser tambor

só tambor!

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RESUMO

O presente estudo constitui uma visão crítica da assistência prestada aos familiares, sobretudo da pessoa responsável pela criança e pelo adolescente em situação de risco, que freqüenta o Projeto Quixote em particular e outros equipamentos da rede, em São Paulo. Surge como parte das inquietações suscitada pela nossa intervenção junto a famílias de baixa renda em Moçambique e no Brasil, tendo como objetivos compreender o lugar que as práticas de atendimento oferecidas pelo Projeto Quixote ocupam na vida das famílias dos jovens em situação de risco, fazendo uma avaliação qualitativa do alcance das mesmas e procurando o significado, para as famílias estudadas, dessas práticas. Neste sentido, procurou entender as expectativas dos sujeitos atendidos, os princípios em relação ao trabalho desenvolvido e as práticas para apreender a importância atribuída ao equipamento, as necessidades satisfeitas pelas práticas utilizadas, traçando o perfil sociodemográfico, a partir de uma amostra de 10% das famílias ali atendidas no ano de 2003. São estudados: momento e contexto em que a família decide procurar ajuda; natureza do auxílio buscado; fatores determinantes da permanência (adesão) da família no atendimento; identificação do percurso percorrido pelas famílias na rede de atendimento e os fatores de risco, apontados pelos familiares, para situação de rua entre a prole. Partimos de uma concepção do atendimento enquanto complementar aos cuidados necessários para situações específicas dos atendidos, incluído nas estratégias familiares para evitar o abandono e a falta de assistência das crianças e adolescentes da família, capaz de propor-lhes alternativas consideradas viáveis no enfrentamento das situações, mediante o acolhimento e o acompanhamento profissional competente. Utilizaram-se técnicas quantitativas e qualitativas de coleta de dados. Fundamentado na visão histórica e material da realidade social, conclui pela importância da qualidade do atendimento na transformação de práticas e representações sociais e culturais, necessárias diante das demandas apresentadas pelas famílias. Estando a família sempre atuante no sistema de proteção social, qualquer intervenção profissional só tem sentido se a ela integrada. Considerando, ainda, como responsabilidade coletiva a execução de políticas públicas e sociais, é essencial a presença do Estado como seu agenciador e financiador, como suporte ao desenvolvimento familiar.

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SUMMARY

The present study appoints for a critical vision of the assistance given to the parents, specially to the person responsible for the child and adolescent in danger situation, who take part at Quixote project specially, and in another net equipments in São Paulo. It comes as a part of an anxiety which come up by our intervention close to the families with law wages in Mozambique and in Brazil, having as an objective the understanding of, how much important are the services offered by the Quixote project, to the life of the families of the youth in danger situation, making a qualitative evaluation refered to them and looking for the meaning of the studied families, of this practices.

In this sense, we tried to understand the expectations of the attended people, the principles in relation with the developed work and the practices to get the importance given to the equipment, the needs fulfilled by the used practices drawing the social demographic profile, from the sample of the 10% of the attended families in 2003. Are studied: moment and the context where by, the family decided to look for help, the nature of the help searched for; Determined factors of the remaining of the family in attendance; identification of the way done by the families in this attendance net and the danger factors, pointed by the families, for the street situation among the off springs. We start from the acceptation of attendance as complementing the necessary cares for the specified situation of the attended ones, included in the family strategies to avoid the desertion and the luck of assistance of the kids and families adolescent, capable of suggesting alternatives, considered viables in facing the situations, through the welcome and the competent professional follow up, quantitative tecnics were used and qualitative of the data collection. Based on the historic and material vision of the social reality, concluded by the importance of the quality of the attendance, in the transformation of the practices and social representation and culturals, necessary before the claims presented by the families.

The family acting always in the social system protection, any professional intervention, it has a meaning if integrated with considering, still, as a collective responsibility, the performance of public and social politics, is essential the presence of the state as its negotiator and financer, as a support to family development.

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S U M Á R I O

A P R E S E N T A Ç Ã O . . . 9

I N T R O D U Ç Ã O . . . 1 1

C A P Í T U L O I . F a m í l i a : T r a n s f o r m a ç õ e s H i s t ó r i c a s e

C o n c e i t u a i s . . . 1 2 1 . 1 A f a m í l i a e m s u a s R e l a ç õ e s S o c i a i s . . . 1 2 C A P Í T U L O I I . I m p o r t â n c i a d o s f a t o r e s d e M u d a n ç a p a r a

C o m p r e e n s ã o d a R e a l i d a d e d a F a m í l i a B r a s i l e i r a . . . 1 9 2 . 1 C o n c e p ç õ e s T e ó r i c a s a o l o n g o d a H i s t ó r i a . . . 2 . 2 O P r o c e s s o d e I n d u s t r i a l i z a ç ã o e a s t r a n s f o r m a ç õ e s p r o f u n d a s d a f a m í l i a . . .

2 . 3 R e l a ç õ e s d e g ê n e r o e s u a i m p o r t â n c i a n a A n á l i s e d e f a m í l i a : C o n s t r u ç õ e s S o c i a i s . . . 2 . 4 O r i g e m e E v o l u ç ã o d a f a m í l i a B r a s i l e i r a . . .

1 9 2 3 2 6 2 9 C A P Í T U L O I I I . O P r o j e t o Q u i x o t e : O r g a n i z a ç ã o e p r i n c í p i o s d e s e u f u n c i o n a m e n t o . . . 3 3 3 . 1 O r i g e m : A t i v i d a d e s e R e s p o s t a s a o a t e n d i m e n t o f a m i l i a r . . .

3 . 2 R e f l e x õ e s s o b r e a s c o n d i ç õ e s d e d e s e n v o l v i m e n t o d o c u i d a d o à c r i a n ç a e a o a d o l e s c e n t e : o s d e s a f i o s . . . 3 . 3 M o t i v o s d a B u s c a d o s S e r v i ç o s . . . 3 . 4 F a t o r e s q u e p e r m e i a m a r e l a ç ã o e n t r e a e q u i p e e o s u s u á r i o s .

3 3 4 0 4 1 4 3 C A P Í T U L O I V . A s f a m í l i a s a t e n d i d a s p e l o p r o j e t o Q u i x o t e : O

q u e o s d a d o s n o s d i z e m s o b r e e l a . . . 5 6 4 . 1 D e f i n i ç ã o M e t o d o l ó g i c a d o e s t u d o . . .

4 . 2 I n s t r u m e n t o s . . . 4 . 3 P r o c e d i m e n t o s d e A p l i c a ç ã o . . . 4 . 4 P r o c e d i m e n t o d e A n á l i s e . . . 4 . 5 A n á l i s e d o s R e s u l t a d o s . . . 4 . 5 . 1 D e s c r i ç ã o d o p e r f i l s o c i o d e m o g r á f i c o d a s f a m í l i a s e s t u d a d a s . . . 4 . 5 . 2 A n á l i s e q u a l i t a t i v a d a s e n t r e v i s t a s a d i n â m i c a d o

r e l a c i o n a m e n t o e n t r e a s f a m í l i a s e o Q u i x o t e . . . 5 6 5 7 5 8 6 0 6 4 6 4 7 0 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S . . . . 8 0

B I B L I O G R A F I A . . . . 8 4

A N E X O I . . . A N E X O I I . . . A N E X O I I I . . . A N E X O I V . . .

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APRESENTAÇÃO

Esta dissertação está baseada numa pesquisa que busca a compreensão do significado atribuído ao atendimento oferecido pelo Projeto Quixote, a crianças e adolescentes em situação de risco, por parte de seus familiares.

Partimos da convicção de que trabalhar com famílias implica em reconhecê-las como sujeitos e partir da sua perspectiva de compreensão do mundo e de sua história.

Nosso interesse em aprofundar o tema – o que significa o amparo e suporte social da assistência na vida dessas pessoas? – foi-se aguçando desde nossa primeira intervenção profissional no orfanato e no Hospital Central da cidade da Beira, seguida da atuação no Departamento Provincial de Acção Social de Sofala ligado então ao Ministério da Coordenação de Acção Social em Moçambique – atual Ministério da Mulher e Coordenação de Acção Social. Reativou-se durante o curso de especialização em Serviço Social na área de Saúde Mental, nos atendimentos familiares a indivíduos internados na enfermaria de psiquiatria, nos ambulatórios do Hospital São Paulo vinculado à UNIFESP-EPM e nos diferentes programas, em especial no Programa de Esquizofrenia do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina.

Nossa abordagem foi então a da procura da compreensão sobre o lugar que as práticas de atendimento oferecidas ocupam na vida das famílias, expresso, por um lado, nas expectativas manifestas pelos sujeitos atendidos, especialmente no momento e no contexto geral em que a família decide procurar ajuda, incluindo-se aí, como indicador básico, a natureza do auxílio buscado. Por outro, perceptível mediante a análise dos fatores – entre eles, por exemplo, a importância atribuída ao equipamento, a seus princípios e práticas, além do reconhecimento de necessidades satisfeitas pelas práticas utilizadas - que parecem determinar a permanência (adesão) da família no atendimento. Além disso, buscamos o traçado do percurso percorrido pelas famílias na rede de atendimento e a verificação do grau de risco, apontado pelos familiares, quanto à situação de rua em que se encontram os filhos.

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criando oportunidade para que as aspirações possam ser reveladas, dada a mediação do pesquisador, conforme sua capacidade de entendimento.

Na outra ponta, a relação que se estabelece entre usuários e serviços, é definida pela maneira como os profissionais envolvidos vêem as famílias. Certamente o lugar que cada pessoa ou grupo ocupa na estrutura social influencia significativamente a forma do entendimento das relações que estabelece com o mundo.

A preocupação é, portanto, não só com o trabalho prestado em si, mas, particularmente, com relação às representações coletivas sobre ele. Estas representações ultrapassam a compreensão particular dos indivíduos e incidem sobre os profissionais da organização estudada, bem como em toda a rede de atendimento existente no município da São Paulo, disponível para esses usuários.

Sendo assim, esta pesquisa visa a compreender melhor e, possivelmente, ter elementos substanciais para algumas questões suscitadas pela prática diária de atendimento a essa população, de forma a contribuir para a temática de intervenção junto às famílias. É voltada para direcionar melhor ações de atendimento e /ou tratamento e as várias práticas relativas a essas questões

Este estudo poderá proporcionar resultados capazes de auxiliar a repensar o trabalho que foi desenvolvido e aumentar nossa compreensão das práticas de atendimento, possibilitando adequações pertinentes da intervenção. Assim, pretendemos contribuir com o nosso “olhar”, para que as estratégias de abordagem se tornem mais efetivas, adequadas às necessidades e demandas dos ´assistidos’, e possivelmente dêem lugar a intervenções eficientes, que propiciem resultados tangíveis, além de, nos diversos meios operacionais e acadêmicos, apontar outros possíveis caminhos para a assistência da família “concreta” e construir melhor conhecimento do perfil da chamada família “falada”.

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INTRODUÇÃO

Com o objetivo já anunciado de estudar a presença e a importância das representações acerca do atendimento propiciado pelo Projeto Quixote e outros equipamentos da rede, especialmente na ótica das famílias envolvidas, o presente estudo se baseia na análise do cabedal teórico disponível hoje sobre o tema e na realização de um estudo empírico com um grupo de membros dessas famílias.

O primeiro capítulo aborda, ao longo da história da nossa civilização, a construção da família e os eventos marcantes e importantes que configuraram essa instituição, conforme o grau de desenvolvimento da sociedade, bem como os valores por ela prezados. No segundo, faz-se um resgate da configuração da família brasileira e do impacto das políticas sociais sobre ela; abordam-se, também, as diferentes concepções teóricas da instituição família, suas relações e funções segundo o gênero, além da influência da revolução industrial.

No terceiro, situa-se o Projeto Quixote e os fundamentos que embasam suas práticas, desde sua origem, as atividades que presta, os desafios no atendimento familiar, os recursos disponíveis socialmente para dar amparo às crianças e adolescente em situação de risco, os principais motivos de busca do equipamento, bem como os fatores que permeiam a relação entre os profissionais e usuários.

Já o quarto capítulo trata da metodologia e justificativa da sua escolha, os instrumentos e procedimentos utilizados. O capítulo cinco descreve o perfil sócio demográfico das famílias atendidas no Projeto Quixote, a partir de uma amostra de cerca de 10% do universo total atendido pelo núcleo no ano de 2003. Completam este capítulo a análise e a interpretação qualitativa do significado do atendimento.

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CAPÍTULO I

FAMÍLIA: TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS E CONCEITUAIS

1.1. A FAMÍLIA EM SUAS RELAÇÕES SOCIAIS

Para compreendermos o lugar da criança, do adolescente e, de forma geral a família de poucos recursos, parece-nos fundamental situarmo-nos historicamente quanto à forma como a sociedade ocidental lidou com esta população ao longo de tempo. É importante entender as variações da representação social vigente relativamente ao cuidar e ao prover recursos para as populações necessitadas, incluindo as formas diretamente voltadas para as famílias, adotadas pela assistência pública .

Um fato pode ser visto como emblemático das contradições presentes: ao longo da história ocidental cristã, incluindo o Brasil antes do século XX, o ato de abandono de crianças nem sempre foi visto como algo ruim pelo Estado, pela Igreja Católica e pela sociedade em geral. Em certas épocas e circunstâncias, mesmo o aborto chegou a ser estimulado como mecanismo para evitar o infanticídio e a desonra pública de algumas famílias. (MARCÍLIO, 1998) Na verdade, essa situação não ocorria apenas com as camadas mais desprovidas de recursos da sociedade, e, além disso, mesmo em locais de herança igualitária (onde há expectativa de que a partilha dos bens entre os dependentes do provedor possa ser eqüitativa), o abandono foi recurso utilizado para controlar o tamanho da família e a fragmentação da propriedade paterna (MARCÍLIO, idem).

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É importante, dentro dos objetivos deste trabalho, traçar as formas como a família se apresenta, do ponto de vista desta articulação com os diferentes aspectos da vida social, no caso do Brasil.

Os dados referentes à qualidade de vida no Brasil indicam que cerca de metade das famílias brasileiras vive abaixo da linha de pobreza e cerca de um terço abaixo da linha da indigência (UNICEF – BANCO MUNDIAL, 1996).

Isso se deve ao modelo de desenvolvimento que implica na distribuição não eqüitativa da produção social, seja quanto à renda, seja no tocante ao patrimônio, com profundo impacto sobre: o consumo de bens tanto materiais como imateriais; quanto às diferenças entre o campo e a cidade; em relação à expansão urbana desordenada, decorrente dos fortes fluxos migratórios em busca de oportunidades de vida e trabalho. Em suma, o tipo de modelo econômico-social capitalista vigente perpetua desigualdades sociais no Brasil, e ainda decorre e alimenta condições desiguais nas relações internacionais entre países ricos e pobres.

As adequadas condições de saneamento básico e infraestrutura urbana - energia elétrica, água potável, rede de esgotos, entre elas -, não sendo distribuídas eqüitativamente entre a população das diferentes regiões, mostram flagrante incompatibilidade com suas necessidades. A lógica do sistema produtivo, organizando-se em torno do interesorganizando-se na manutenção de um reduto de deorganizando-semprego necessário ao controle do custo da mão-de-obra, hoje com uma porção incrivelmente maior de pessoas “descartáveis”, fruto da flexibilização das condições de contratação e da diminuição de postos de trabalho, deve necessariamente ser levada em conta na compreensão do problema.

A degradação das condições de vida, principalmente a causada pelo desemprego, dentro dos impactos trazidos por esta “reestruturação produtiva” em curso no mundo atual, vem afetando com maior intensidade os países onde não se chegou a constituir um Estado do Bem-Estar Social, como é o caso brasileiro.

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presentes as ações de repressão e controle relativamente às expressões da questão social entre nós. Na chamada “República dos Fazendeiros”, – ou Primeira República - 1889-1930 -(FAUSTO, B., 1998) –, e até mesmo recentemente, isolar e internar constituíram uma política costumeira. Tais políticas atuam de modo desarticulado, não sendo capazes de amenizar as desigualdades sociais e corrigir as distorções estruturais salário /emprego, e assim inviabilizando os níveis essenciais de consumo para os indivíduos e suas famílias (FERRAREZI, 1995).

As ações de enfrentamento da pobreza no Brasil são descontínuas, além de marcadas por assistencialismo e clientelismo, quando não totalmente inexistentes (SPOSATI, 1988).

Assim é que, ao lado do quadro das precárias condições de vida disponíveis à população, acima descrito, devem-se acrescentar as conseqüências da aplicação de políticas sociais neoliberais, que pregam a restrição do investimento (em nome de menor gasto público e da eficiência do Estado), degradando as condições de vida de parcela significativa da população (SOARES, 2003). Tudo isso acrescenta-se aos já escassos recursos anteriormente alocados, nos países periféricos da economia capitalista, nas áreas de saúde, educação etc., sempre em qualidade questionável (PAULILO, 1999) para atendimento das necessidades de crianças, adolescentes e suas famílias 1.

É necessário reconhecermos antes nas relações de produção, no poder hegemônico estabelecido entre os diversos segmentos da sociedade, as causas básicas da desigualdade e da ineqüidade sociais, inferiorizando parcela significativa da população.

O abandono existe, sim, mas não se trata unicamente de crianças e adolescentes largados pelos seus pais ou responsáveis, mas de famílias e populações inteiras discriminadas pelo conjunto da sociedade, sem eqüacionamento de suas questões, cuja responsabilidade caberia - segundo entendemos- fundamentalmente, ao Estado (BECKER, 1997: 63).

A situação socioeconomica, aliada à ineficácia das políticas sociais, contribui

1Entendemos que a carência de serviços se estende a outros setores da vida social; em conformidade com

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para o aumento do número de crianças e adolescentes que ingressam muito cedo no mercado de trabalho, abandonando a escola e algumas vezes passando a viver na rua. Salientamos o surgimento de um contingente importante de crianças e adolescentes que são os únicos responsáveis pela renda familiar (CORRÊA & CORTES, 2002). Isto corrobora a visão, compartilhada por muitos autores, entre eles Soares (2003:14), da ligação do ingresso do adolescente no trabalho ao reforço da renda familiar.

Paralelamente, desde a década de 1970, tem sido documentado o fenômeno de “crianças em situação de rua” nas regiões metropolitanas do Brasil, a partir, entre outros meios, da denúncia proveniente de organizações e da imprensa internacional, o que levou a uma discussão ampliada pelos diversos setores da sociedade e a lutas sociais reivindicatórias de melhorias de vida.

A situação de rua, muitas vezes é, no senso comum, associada ao consumo de drogas. A bibliografia existente sobre o assunto entende que há no uso de drogas por crianças e adolescentes em situação de rua uma procura de prazer, de minimização da miséria e da marginalização, e, também, busca de identidade (RIZZINI, 1991). Segundo o IV Levantamento sobre o Uso de Drogas entre Crianças e Adolescentes em Situação

de Rua, publicado pela CEBRID, essa questão parece estar relacionada a muitos outros fatores, entre os quais o contexto familiar (NOTTO et al., 1996). A criança em situação de rua muitas vezes não é associada à sua condição peculiar de desenvolvimento. Vista como diferente, ela é temida, muitas vezes investida com o significado de algo ameaçador da ordem vigente: a miséria é associada com o mal e a ignorância. Em lugar de se assumir a incapacidade institucional, desloca-se o estigma para os indivíduos (LEITE, 1998). É necessário, certamente, que se tome cuidado para não reduzir, de maneira simplista, a relação entre criança em situação de rua e pobreza, vendo-a apenas como resultado de privação material, porque aí intervêm processos culturais psicossociais mais complexos (SARTI, 1996).

Saliente-se ao mesmo tempo que, na maioria das práticas de atendimento à população abandonada (como as crianças e adolescentes em situação de rua), raramente se parte da “cultura” que estes segmentos constróem, dos conhecimentos que detêm sobre a situação, no sentido de promover programas e/ou políticas que atendam a suas reais necessidades.

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Adolescente, em 1990, a direção da política para esse segmento populacional era fortemente centralizada na esfera federal, além de fortemente fragmentada transversalmente, direcionada à solução emergencial de carências, para cujo enfrentamento adotou-se o assistencialismo repressor e correcional.

Mesmo a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente não significou automaticamente mudança da mentalidade no atendimento a esse segmento, cujo foco deveria ser a garantia dos direitos, da cidadania enquanto sujeito de direitos, com prioridade absoluta, pelo menos legalmente.

A necessidade de reverter esta situação de desatenção às famílias se reforça quando, nas relações cotidianas, observamos que os familiares modificam significativamente sua aparência, seu discurso em relação às questões que enfrentam, na medida em que conseguem um emprego, uma inserção em programas sociais de renda mínima, serviços remunerados, ou perspectivas seguras da sua efetivação, mesmo quando os valores financeiros sejam irrisórios.

Voltando ao comentário sobre o abandono dos filhos pelos seus pais, devemos lembrar que parece mais que os pobres, na verdade, preocupam-se com o destino dos seus filhos e relutam em abandoná-los, mesmo enfrentando crises diversas e permanentes e procurando valer-se das estratégias ao seu alcance para evitar o abandono (VENÂNCIO, 1999:73-75). Ainda segundo o autor (idem, p.162), nas já citadas práticas de abandono, vigentes na República dos fazendeiros ou mesmo atualmente, “... inicialmente, [tal] auxílio tinha por objetivo proteger as crianças, para que não falecessem sem receber a ablução batismal; já no século XVIII, os enjeitados tornaram-se alvo de preocupação do Estado, sendo vistos como trabalhadores em potencial”.

A situação aqui descrita, e a análise feita sobre ela, demonstra explicitamente que a questão de abandono deve ser entendida como inerente à construção social das relações macrossociais, com rebatimento efetivo nas microrrelações, em que pese a criatividade e os recursos encontrados pelos sujeitos para lidar com essa questão, ou melhor, para sobreviver.

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força de resistência, suprindo, a partir de seu interior, as demandas que deveriam estar a cargo do Estado no campo de proteção social. Sendo ampliada sua competência pelo descaso do Estado, a família torna-se uma unidade frágil e sobrecarregada.

Entre as múltiplas atividades que deve desenvolver temos as dirigidas a crianças, pessoas com deficiências, ou invalidez, doentes, idosos, que necessitam de atenção e cuidados cotidianos intensos, não sendo com certeza recomendável sua internação. Trata-se, portanto, de intensa utilização de mão-de-obra dos familiares, ocupação via de regra não remunerada. Acrescentamos que, além dessa prática, é comum a culpabilização e responsabilização das famílias pela maior parte dos sucessos ou fracassos dos seus membros, colocando quase exclusivamente na família, sobretudo nos membros em idade ativa, a responsabilidade de suprir as necessidades que não são atendidas em outras esferas e serviços.

Em função das atividades e compromissos relacionados à sobrevivência, muitas mulheres (ou cuidadores) têm como trabalho cuidar de crianças, mas ironicamente deixam suas crianças sozinhas. Atualmente, seguindo tendência geral no espaço urbano, a maior parte dos membros de famílias de baixa renda permanece separada por longas horas. Embora isso não seja exclusivo dessas famílias, é nelas que as conseqüências são mais agudas e de maior repercussão, já que adicionadas a outras carências, contribuindo certamente para o enfraquecimento dos vínculos familiares.

Entendemos, portanto, que os processos de privação são permeados pela condição de classe social e de poder aquisitivo de seus sujeitos. Num estudo feito em Portugal, acerca das redes de apoio social, constatou-se que as maiores trocas sociais, relativamente à transferência de patrimônio e à prestação de serviços aos parentes, são mais intensas no topo da pirâmide social do que na base: a luta cotidiana, quando os recursos estão abaixo dos exigíveis para a simples sobrevivência, deixa pouco espaço para ajuda mútua ( VASCONCELOS, 2002).

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como é o caso, em grande parte dos países da Europa Ocidental, do Brasil e muitos outros (CAMPOS & MIOTO, 2003). Essa solidariedade, segundo as mesmas autoras, aparece então como um dever social, uma obrigação, independente do desenvolvimento de vínculos emocionais e representa obstáculo ao desenvolvimento de relações familiares marcadas pela relativa autonomia de seus membros. Ao contrário, nos sistemas de proteção social social-democrata, característico dos países escandinavos, existem serviços e assistência de variada natureza criados pelo Estado – “tais como escolas para crianças pequenas, assistência social para idosos e pessoas com deficiências” - que podem ser vistos como instrumentos de uma política de atenção à família moderna, mas são destinados aos indivíduos (cidadãos), “tornando possível a inserção estável da mulher no mercado de trabalho” (PRUZAN, 1995, APUD CAMPOS & MIOTO, 2003:175).

Frisamos aqui que, na ocorrência de descaso da sociedade com as demandas da população, não se trata apenas de estar ausente uma educação crítica em si, já que ela, apesar de ser instrumento importante, não é suficiente.

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CAPÍTULO II

IMPORTÂNCIA DOS FATORES DE MUDANÇA PARA

COMPREENSÃO DA REALIDADE DA FAMÍLIA BRASILEIRA

Dentro do panorama dos estudos existentes em relação à família, a que tivemos acesso, encontra-se uma divisão em termos das concepções teóricas sobre ela, tendendo algumas a destacar os aspectos biológicos e psicológicos em sua gênese e manutenção, e outros, os culturais e sociais. Reconhecendo avanços e limites no poder explicativo de cada uma delas, optamos neste estudo por um “olhar” que valoriza especialmente as determinações sociais e culturais. Aqui enfatizamos inicialmente a revisão desta vertente, na qual incluímos a contribuição essencial dos estudos de gêneros à análise da conjugalidade e da parentalidade em suas transformações dentro e fora do agrupamento familiar. Após traçar rapidamente esse quadro teórico importante para o tratamento da família, procuramos colocá-la dentro de sua situação histórica e social no Brasil.

2. 1. CONCEPÇÕES TEÓRICAS AO LONGO DA HISTÓRIA

Entre os séculos X e XIII, o advento das formações familiares nucleares situa o poder girando em torno do pai, enquanto provedor de recursos econômicos, sendo os outros membros seus dependentes, ainda que participem, providenciando cuidados não supridos por outros serviços públicos ou privados. Normalmente, o poder do chefe da família tem a maior intensidade. Admite-se, entretanto, que a influência do cristianismo retira o poder do pai para dá-lo à força espiritual: Jesus (ou seus seguidores, representantes etc.) passa a disputar essa autoridade sobre os filhos. Segundo os mitos do cristianismo, a mulher incorpora uma imagem vigiada, que oscila entre Eva (pecadora, tentação) e Maria (virtude, pura). (SOARES, 2003)

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em geral. Alguns autores situam essa fase a partir do desenvolvimento industrial e, outros, desde que as populações deixaram de ser nômades, passando a produzir e armazenar seus alimentos. Em parte, ocorre a elaboração do conceito de infância, ainda que alguns autores, baseados em evidências arqueológicas do século X, afirmem que já havia um lugar especial para a infância dentro da família, assim demonstrado pela presença de berços e outros objetos infantis. Tipos de família nascidas em épocas bastante diferentes – como as de 1750, e o de nossos dias -, não são totalmente diferentes (SOARES, 2003:44-55), ainda que seja necessário considerar sempre a influência das variáveis tempo e espaço. SOARES, falando de um aspecto tão fundamental para a aliança familiar como a proibição do incesto, refere-se à contribuição católica para o processo de evolução da família, ao decretar o impedimento de casamento entre parentes próximos até o sétimo grau e, mais tarde, até o quarto grau. Certamente seria pretensioso afirmar que não tenha havido mudanças significativas, decorridos mais de dois séculos e meio, ainda que algumas características estejam preservadas.

Ainda que haja controvérsias quanto ao conteúdo da obra de Engels, e saibamos de suas possibilidades e limites, é importante incluí-lo em nossa opção teórica de análise da família. Afirma ele que, “De acordo com a concepção materialista, o fator

decisivo na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Mas essa produção e essa reprodução são de dois tipos: de um lado, a produção de meios de existência, de produtos alimentícios, de habitação e instrumentos necessários para tudo isso; de outro lado, a produção do homem mesmo, a continuação da espécie. A ordem social em que vivem os homens de determinada época ou determinado país está condicionada por essas duas espécies de produção: pelo grande desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, de outro [...]”.(1991:2)

Para Engels, o matrimônio “[...] surge sob a forma de escravização de um sexo

pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então na pré-história. Assim Marx e Engels afirmam que “ a primeira divisão do trabalho é a

que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos”, pois esse é, acrescenta Engels, “[...] o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história [e]

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iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas das dor e da repressão de outros [...]” (ENGELS, 1991:70-71).

A partir do aparecimento da propriedade privada, a reprodução e a fidelidade conjugal feminina são características da família monogâmica. Dessa forma, podemos entender a família (e não existe um único tipo) como fruto de uma relação construída socialmente, histórica, e não uma instituição natural, obedecendo a padrões culturais diversos. Admitir isto significa concordar com Soares (2003:36-37) quando afirma que se a realidade social é uma construção, ela é passível de ser modificada e sofrer transformações. Tais transformações modificam as próprias relações entre os seres humanos.

De acordo com estas premissas teóricas, a família na sociedade capitalista, pode ser vista como coagida à solidariedade para lidar com as carências e falhas, advindas do mercado e das intervenções do Estado ( SARACENO, 1992). Pode desempenhar este papel de forma heróica, ou não, mas sempre está presente na sociedade uma relação problemática de favorecimento dos mais fortes, numa contradição permanente em relação ao direito à proteção e à privacidade no seio da família.

De uma perspectiva analítica relacionada à questão da transmissão cultural, a partir de concepções sobre a forma como se dão as relações entre indivíduo e seu meio, a família aparece enquanto “referencial central para a constituição da individualidade,

visão-de-mundo e estilos de vida”(DA MATTA, 1991, apud VILLARES, 1996:8-10).

Para DA MATTA (1991, Apud VILLARES, 1996: 8-10), a família, enquanto constituinte da comunidade, é baseada nas “relações de pessoas, [outras] famílias e

grupos de parentes e amigos”. Segundo ele, os amigos são uma espécie de família por afinidade de acordo com os vínculos que com ela estabelecem.

Em função do contexto social onde está inserida, aparece impregnada pelos valores desse local e, em nosso caso, pelos das grandes metrópoles globalizadas no contexto da reestruturação produtiva.

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e o da rua. No entanto, precisamos nos perguntar quanto à capacidade, consistência e habilidades de resposta dessa rede às necessidades e desejos dos seus membros. Será que a tão decantada capacidade de resistência da população de baixa renda seria na verdade uma solidariedade da falta? A situação destas famílias de hoje se enquadraria então mais no modelo da “pobreza de recursos” descrito por De La Rocha em contraposição às “estratégias de sobrevivência” dos pobres (1997, apud CAMPOS & MIOTO, 2003). Não se trata de negar a vitalidade da rede das relações de parentesco, que não são lineares, mas acentuar a qualidade das trocas em função das posses dos envolvidos (VASCONCELOS, 2002: 508-513).

Villares (1998) destaca a importância da família para os sistemas de saúde das sociedades, considerando que todos dependem principalmente da família; ela está incluída como parceira na busca de recursos terapêuticos, no suporte familiar e na experiência de reelaboração das expectativas futuras. Outros autores também afirmam a utilização do apoio familiar, nas famílias capazes de arcar com ele, e estreita relação entre ela e a estrutura assistencial pública ao longo da história (VENÂNCIO, 1999).

Quando um membro da família está doente, todos os restantes ficam afetados em diferentes graus e, muitas vezes, muitos questionamentos se levantam, como afirma Elizabeth Bott: “[...] qualquer que seja a explicação de doença que [se] adote, as

conclusões são desalentadoras. Se o marido adoece, a mulher pergunta a si mesma, consciente ou inconscientemente, o que fez para produzir a doença ou torná-la pior. Quando adota a hipótese de hereditariedade, preocupa-se com os filhos: será que eles

estão marcados? Os filhos formulam a si próprios as mesmas perguntas: será que sou

tão mau filho que levei à loucura? Será que isso vai acontecer comigo? Será que vai acontecer com os meus filhos? Quando é filho que adoece um dos pais pergunta: o que fizemos?” (apud MEDEIROS, 1997:7).

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2.2. O PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES

PROFUNDAS DA FAMÍLIA

Todas as sociedades criam normas que as organizam. Nas sociedades ditas civilizadas, com a presença do Estado democrático, esta organização se faz em grande parte com a formulação de leis por representantes eleitos pela população. Dada a correlação das forças sociais, que em geral favorece a hegemonia de uma classe dominante, posibilitando que esta se utilize de todos os artifícios para manter-se no poder e decidir sobre as questões da vida coletiva, a efetivação dos benefícios legais dirigidos aos dominados só se produz mediante uma relação dialética e contraditória.

Acompanha o início da industrialização, o surgimento de uma nova classe, a burguesia, cujo fortalecimento a torna capaz de exercer domínio econômica, social, e ainda de todo o ideário e imaginário da sociedade. Esta situação foi se consolidando. Os burgueses enquanto proprietários dos meios de produção, do capital e os operários obrigados a vender-lhes sua força de trabalho, para garantir sua existência. A burguesia, apesar de ter sido revolucionária na sua origem, reclama para si o domínio da classe operária, favorecendo a manutenção do status quo social. (SOARES, 2003)

Considerando que as famílias pesquisadas pertencem à população urbana fortemente influenciada pela industrialização, há que avaliar o tipo de conseqüências desse processo tanto nos países onde ele teve início (Inglaterra, França), como em outros em que posteriormente se instalou.

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levou a um processo progressivo de uma clara separação entre casamento, amor e prazer sexual.

No modelo familiar correspondente à gestão industrial fordista, as relações familiares deveriam cumprir-se segundo papéis sexuais bem delimitados, atribuindo ao marido a função de prover financeiramente a família, por meio do seu trabalho, o que o investia da autoridade de chefe de família. Da esposa esperava-se a atuação doméstica restrita e a responsabilidade total de manutenção do “lar”, o que não invalidava, no caso dos estratos de maiores rendimentos e posses econômicos, que pudesse delegar esta função doméstica, contratando uma empregada. Assim, o lugar da mulher, nesse contexto, dependia do lugar que o marido ocupava no mundo público, restando para a esposa a criação dos filhos. Nesse âmbito, a aproximação maior é entre mãe e filhos, sendo maior o distanciamento do pai. O homem dedicava todo o seu tempo a assuntos econômicos para a manutenção da família; lar, para ele, é espaço de lazer, não de negócios (SOARES, 2003).

No século XVIII, separa-se a vida privada (em família) e a vida externa ao lar (pública), “[...] Os laços de cuidados, antes diluídos na comunidade de adultos, agora

passam a se concentrar exclusivamente nas figuras parentais. As orientações, normas dirigidas às famílias e formuladas pelo Estado liberal, diziam respeito às famílias operárias, nunca às burguesas [...]” (SOARES, 2003:56, 57).

Na classe operária, os casamentos aconteciam cedo, pois não tinham o que esperar: as expectativas eram aquelas repetidas eternamente pelas gerações passadas. Viviam na miséria. As mulheres tinham dois papéis: trabalhar na indústria e, também, responsabilizar-se pelas tarefas domésticas (SOARES, 2003), ainda que o principal papel fosse procriar numerosos filhos, cuidar deles, e administrar os custos domésticos, isso é, procurar o menor preço dos alimentos, prepará-los, cuidar das roupas do companheiro, entre outros recursos para sobreviver com salários baixos. A mulher, mesmo quando não tivesse emprego fixo, ou industrial, contribuía com dinheiro proveniente de pequenos serviços, como realização de faxinas domésticas, lavagem de roupas, venda de alguns produtos de porta em porta.

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Neste contexto, a autora explicita uma série de questões: “Teria contribuído para isso o aumento do contingente de operários especializados?” (Idem) “As mulheres serviam como forma impedir a diminuição de vagas de empregos para os homens?”

A família operária manteve por muito tempo a tradição dos laços comunitários, em que os trabalhadores menos especializados apoiavam-se, ajudando-se mutuamente e resistindo (greves) (Idem 56-57). A ajuda mútua, longe de ser um ideal, configurava-se um mecanismo de “sobrevivência de uma organização social em conseqüência de

condições objetivas de vida” (Idem:62).

No plano cultural e ideológico, entretanto, conforme observam muitos autores, todas as transformações ocorridas nas últimas décadas do século XIX, o modelo da família operária acabou cedendo lugar para o da família burguesa.

A classe trabalhadora européia e norte americana não encontrou melhor

forma de criar os filhos, repartir afeição e sexualidade entre os sexos e defrontar as horas de lazer do que imitar ou aspirar aos padrões burgueses. A transformação da estrutura familiar da classe trabalhadora é um dos aspectos não registrados do êxito político da democracia burguesa.” (POSTER, 1979, apud SOARES, 2003:64.)

A revolução industrial é “[...] uma síntese que culmina um período de transição

e dá nascimento ao capitalismo pleno, superando a fase da acumulação primitiva do capital, nesta medida é uma ruptura e uma consolidação, porque consolida definitivamente o modo de produção capitalista, modo que passa a ser identificado ao mundo da industrialização” (ARRUDA, apud SOARES, 2003:49). Segundo o mesmo autor, há uma interdependência advinda da concorrência entres as cidades e a nação, e entre as nações, submetidas à lógica do capital (Idem, 52). A expansão da troca entre as cidades faz surgir a figura do comerciante, comunicador que estimula o desenvolvimento. Esse mesmo processo traz consigo o acirramento das questões de gênero, e por ela interferirem bastante no objeto do nosso estudo e nas relações sociais, vamo-nos deter um pouco sobre isso.

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2.3.

RELAÇÕES DE GÊNERO E SUA IMPORTÂNCIA NA ANÁLISE DA

FAMÍLIA:

CONSTRUÇÕES SOCIAIS

Na qualidade de constitutivo das relações sociais, o gênero é um dos primeiros modos de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1990:14). Desta sorte, embora o gênero não se consubstancie em um ser específico, por ser relacional, atravessa e constrói a identidade do homem e da mulher (SAFFIOTI & ALMEIDA, 1995, apud SOARES, 2003:163).

A questão do gênero não é pode ser vista como unilateral, mas enquanto uma

relação, de modo que a violência de gênero também está inscrita em um padrão relacional.

SCOTT (1990:14) afirma que, no estudo das correntes historiográficas, destaca-se que o núcleo esdestaca-sencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre as duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre sexos e é, também, um primeiro modo de dar significado às relações de poder; e tais diferenças compreendem quatro elementos: símbolos, conceitos normativos, políticos e identidade subjetiva. Há, por exemplo, símbolos disponíveis em determinados contextos, expressos nas doutrinas religiosas, educativas, cientificas, políticas ou jurídicas que afirmam de forma categórica o sentido do masculino e do feminino. É o caso do popular “homem não chora X mulher

delicada”. Ao mesmo tempo, ao serem inseridas numa sociedade de classes, estas normas sociais contêm a violência.

O poder, seja em nível macro ou em micro, tem a mesma natureza: assim, o que já foi exposto mostra que só se distingue o macro e o micro para fins analíticos, pois todos o fenômenos ocorrem simultaneamente nestas duas instâncias, cuja imbricação é profunda.

O gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é

articulado. O gênero não é o único campo, mas ele parece ter construído um meio persistente e recorrente de dar eficácia à significação do poder ocidental nas tradições judaico-cristã e islâmica.” (SCOTT,1990:16.)

Os historiadores devem antes de tudo examinar as maneiras pelas quais as

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uma série de atividades, de organizações e representações sociais historicamente situadas.” (SCOTT, 1990:15). Por exemplo, como se ensina, na família, na escola, o masculino e o feminino?

As condições históricas de produção de bens econômicos e sociais, aliada às necessidades de sua distribuição, determinaram fortemente as relações entre homens, mulheres e seus descendentes. Estas foram se transformando e sendo recriadas, de acordo com as formas de divisão social do trabalho e destinação do excedente.

Em toda parte, basicamente, numa família matriarcal típica, na divisão sexual do trabalho, ao homem cabia a caça, à criança o gado e, às mulheres, a coleta, a cultura do solo e as tarefas domésticas.

Cabia ao homem buscar alimentos e fabricar utensílios para esse fim, o que o torna proprietário dos referidos instrumentos (em função das relações estabelecidas) e, ao separar-se da mulher, leva-os consigo. A mulher fica com os instrumentos domésticos e os filhos, que não herdavam nada dos pais. 2

Quando a agricultura perde a importância como atividade econômica, o homem tem assegurada sua supremacia social (SOARES, 2003), excluindo a mulher da produção e mantendo-a no trabalho doméstico, geralmente insignificante, o mesmo desenvolvido por escravos, o que a aproxima de uma identificação com a escrava. Logo ocorre a passagem do direito materno para o paterno, e a mulher passa a se estabelecer no clã do marido, dando origem à monogamia.

O fortalecimento desse processo social de produção favoreceu a monogamia como sistema predominante, com a individualização da produção, principio que origina a propriedade familiar, a acumulação de riquezas nas mãos particulares (Idem). A produção individualizada tem como efeito a concentração dos excedentes nas mãos das famílias, algumas chegando à opulência.

Não se trata, portanto, de atribuir a identidade de gênero à subjetividade conforme as abordagens da psicanálise freudiana e lacaniana, definida pela pretensa

2

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universalidade. Saffioti (1992), reafirmando que o gênero deve ser visto de forma relacional, opõe-se à ênfase, presente em algumas posturas, nas diferenças anatômicas entre homens e mulheres em sua definição. . Desta forma a relação vai do social para o anatômico, uma vez que este engloba tudo, e não o contrário, do anatômico para o social.

“[...] Entendemos os aspectos psicológicos, sociais e culturais da feminilidade e

masculinidade e não os componentes biológicos, anatômicos e o ato sexual que caracterizam o sexo. O papel de gênero é, então, o conjunto de expectativas em relação aos comportamentos sociais que se esperam das pessoas de determinado sexo.”[...] “[...] Esta ‘cartilha’, bem como as regras prescritas, será diferente a cada período

histórico, dependendo da cultura e das classes sociais.” (MORODIN, 1997, apud SOARES, 2003:9-10 e 149)

As instituições sociais reforçam o comportamento relativo à maternagem nas atividades propostas às meninas – há “separação dos sexos para execução e o gênero

passa a ser estático, imutável, inquestionável ideologicamente. A ideologia do gênero,

como qualquer outra ideologia, tem profundas raízes na subjetividade dos agentes sociais, bem como no terreno objetivo. [...] Simultaneamente, a ideologia do gênero,

como de resto toda ideologia, é moldada pelas experiências e práticas da vida cotidiana e nela está enraizada. Neste sentido, a ideologia é material” (SAFFIOTI,1992-197-198).

O poder reprime a natureza, os indivíduos, os instintos, uma classe, nos afirma (FOUCAULT, 1996:178) “[...] que as relações de poder nas atuais sociedades têm

essencialmente por base uma relação de força estabelecida em momento historicamente determinável, na guerra pela guerra [...]”. Para reinserir a mulher enquanto ‘gente’ nas relações sociais, é necessário ver estas relações de força na perspectiva de uma espécie de guerra silenciosa nas instituições e nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo dos indivíduos (FOUCAULT, 1996:76).

Apesar de seus primeiros traços datarem de três séculos antes de Cristo (SOARES, 2003), a individualidade nasce mais claramente na modernidade.3 Quanto à união conjugal, amplia-se o círculo de pessoas que se tornam passíveis de escolha como

3 Segundo BURKE (2003), há autores que consideram que a modernidade começa no século XV e vai se

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parceiros no casamento, alargando-se também a liberdade de escolha. Agora o casamento será justificado pela noção romântica de individualidade e de amor moderno, ou seja, passa a implicar a expectativa de reciprocidade e de complementaridade entre os cônjuges.Tal pretensão aponta, entretanto, para um ideal inatingível, pelo seu caráter contraditório em relação ao amor e ao casamento modernos, baseados no próprio desenvolvimento e singularidade da individualidade. (VAITSMAN 1994:34, apud SOARES, 2003: 171- 173 e194-195).

2. 4. ORIGEM E EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA BRASILEIRA

Devido às condições de estratificação social e racial existentes no Brasil, não existe um padrão familiar único.

Segundo Soares (2003:69), ao se falar da família brasileira, não devem ser ignorados os aspectos relativos à existência das etnias constituintes da população, tanto autóctones, como européias, africanas e posteriormente asiáticas, embora, geralmente, elas sejam denominadas como raças: brancos, negros, amarelos e vermelhos. Para alguns autores, o conceito de raça é social, construído culturalmente, e esse aspecto é levado em conta e explorado ideologicamente para acentuar o preconceito e fragmentar as capacidades de transformação na perspectiva de classe social, aspecto grave se considerarmos as enormes desigualdades sociais existentes secularmente entre as denominadas raças 4.

De forma análoga à ressaltada no caso das distinções de gênero, também aqui, para alguns autores, se constrói socialmente o conceito de raça a partir dessa diferença de origem geográfica. Isto se faz com exploração ideológica da diversidade, hierarquizando as etnias, tratando-as com preconceito e hierarquizando-as para gozo de privilégios. Fragmenta-se mais uma vez a capacidade de transformação social na

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perspectiva da luta da classe social dominada 5.

Na época da colonização, os homens dividiam suas preferências entre as índias, as negras e as mulheres brancas oficiais, com as quais se estabeleciam, para prover “[...]

a descendência legítima e ampliar o patrimônio familiar [...]”(SOARES, 2003: 70-72). O autor afirma que este comportamento não pode assim ser simplesmente confundido, do ponto de vista sociológico, com a prostituição ou promiscuidade.

No discurso da classe dominante, os escravos não conseguiriam observar a monogamia em suas vilas ‘promíscuas’ – na verdade, estabelecidas para não casamento entre escravos –, embora seja preciso “... considerar [a necessidade de] amas de leite...” (Idem,75). Apreciava-se que os adolescentes brancos masculinos tivessem relacionamento com as negras e mulatas e as engravidassem ( Idem,76).

Em 1889, com o advento da República e o recente fim da escravatura, somados ao deslocamento do eixo econômico do norte para o sul (decadência da cultura da cana-de- açúcar), esboça-se a industrialização, que vai provocar consideráveis modificações nas famílias brasileiras. Não se deve esquecer, também, a influência transformadora da Revolução Francesa com os lemas: liberdade, igualdade e fraternidade.

No final do século XVIII e início do século XIX, não só no Brasil, mas em todo o mundo ocidental, aparece o sentimento de família e a intimidade do lar (ARIÈS, 1981; ALGRANTI, 1997; e COSTAS, 1989, apud SOARES, 2003:8). O estar junto em família acaba atendendo não só às necessidades de nutrição, mas também de relacionamentos. Esses momentos passam a ser elementos de convívio e isolamento do núcleo familiar.

O homem passa a participar mais dos assuntos familiares, em que as normas e condutas passam a fazer parte dos “códigos das boas maneiras” (SOARES, 2003:79), as ações sociais enfatizando o controle, em lugar da educação.

O ideário burguês, ao colocar o homem no papel provedor da família, deixa-o

também numa posição de estrangulamento. Não conseguindo ter no espaço público este poder assegurado, era no espaço privado, da família, que tentava consegui-lo. Porém, qualquer demonstração de violência era mais uma demonstração de impotência do que

5

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de força e poder.” (Idem:80-81.)

A autonomia das mulheres pobres no Brasil na virada do século é um dado

indiscutível. Vivendo precariamente, mais como autônomas do que como assalariadas, improvisam continuamente sua subsistência. Tinham , porém , naquele momento, maior possibilidade que os homens de vender seus serviços: lavando ou engomando roupas, cozinhando, fazendo e vendendo doces, salgados, bordados, prostituindo-se, empregando-se como domésticas, sempre davam jeito de obter alguns trocados.” (SOIHET, 2000, apud SOARES, 2003:82)

Na formulação da política social brasileira, a preocupação com a família enquanto instância necessitada de atenção terá entretanto seu marco ligado às décadas de 30 e 40 do século passado (FONSECA, 2001:17-28). A autora se refere à preocupação expressa por Silvio Romero com relação à endogamia nas famílias de imigrantes, sua distribuição e adaptação no território nacional, com vistas ao estabelecimento de uma política de população, que supunha um certo modelo de família. Na constituição dessas famílias, há uma tensão quanto a este ideal, que deve então combinar raça, família e nação.

Nesse período, a família é apresentada como articuladora entre raça e nação.

Nesta época, os programas tendem a facilitar a constituição da família, propiciando a compra de casa própria e, nos serviços públicos, garantindo a promoção em função do número de filhos, ao invés de outro critério. Os que não têm filhos são penalizados com impostos adicionais (SOARES, 2003:58).

A partir de 1970, com o crescimento do discurso referente à incompatibilidade entre democracia e miséria da maioria dos cidadãos, à família se atribui responsabilidade de colaboração na solução do problema.

(33)

crença de que ela é o remédio adequado para combater a pobreza, isto é, entende-se o capital escolar como meio que favorecerá a ascenção social daqueles que pertencem às faixas de baixa renda. Sem negar sua importância e contribuição no caso, não se pode aceitar a ignorância quanto ao fato de que a erradicação da pobreza exige a combinação de outros fatores, a serem enfrentados numa ação integrada.

Para as famílias incluídas nos programas socais, por exemplo, no caso da cidade de Campinas (FONSECA, 2001), os direitos sociais resultam do seu trabalho remunerado; assim sendo, dispor de dinheiro para os pobres não é sinônimo de estimular a ociosidade nem desestimular a busca por um emprego.

Enfim, podemos afirmar que a concepção sobre a família acabou deslizando para o seu entendimento como de um grupo pequeno, em que em geral as funções dos membros são fortemente especializadas. Tal concepção condiciona a tendência de a questão social ser vivida singularmente pela própria família, tanto como pela sociedade, o que acaba reforçando a predominância de soluções e estratégias individualistas e fragmentárias para lidar com ela e suas manifestações.

À guisa de conclusão quanto ao tema deste trabalho, relativo ao cuidado profissional com as famílias, devemos considerar a importância das aqui mencionadas questões ligadas ao impacto do desenvolvimento histórico capitalista no Brasil sobre a evolução dos modelos familiares.

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CAPÍTULO III

O PROJETO QUIXOTE: ORGANIZAÇÃO E PRINCÍPIOS DE

SEU FUNCIONAMENTO

3.1. ORIGEM: ATIVIDADES E REPOSTAS AO ATENDIMENTO

FAMILIAR

O Projeto Quixote (hoje uma Organização Não Governamental) está vinculado à disciplina de Psiquiatria Social e Psicologia Médica. Foi criado em 1996, pela iniciativa dos técnicos do PROAD (Programa de Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina), enquanto supervisores de alguns educadores em exercício nas ruas, dadas as necessidades surgidas nesse processo.

Ao longo da supervisão, foi constatada a acentuada diferença entre o padrão de uso de drogas da população atendida em consultórios particulares, e aquele da população em situação de rua, ao lado da inexistência de equipamento que atendesse a esses jovens, e mesmo da falta de experiência de intervenção direta com eles. O Projeto foi criado, portanto, devido às necessidades dos profissionais do PROAD, dos educadores que, no seu dia-a-dia, lidavam com essa demanda de atendimento a crianças adolescentes com o perfil já referido. A disparidade no uso de substâncias psicoativas, percebido no processo de supervisão, e o intuito de constituir um recurso alternativo ao circuito de sociabilidade percorrido pela população de crianças e adolescentes em situação de “risco” pessoal e social também foram fatores importantes.

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O Projeto oferece atendimento psicológico, psiquiátrico, pediátrico, social, avaliação das necessidades e demandas pedagógicas através de instrução informal e formal, incluindo inserção educacional e social.

Faz acompanhamento:

▪ no programa “Vivendo Aprendendo”, um espaço que trabalha a alfabetização da criança e do adolescente, a partir dos conhecimentos destes e os estimula à continuidade dos estudos nas escolas da rede oficial, seja no sistema regular ou no supletivo. Percebe-se, aí, que a maioria dessa população já freqüentou alguma escola na vida, mas não conseguiu permanecer nela por causa das condições do próprio equipamento e também em razão de suas próprias dificuldades. Trata-se de um tipo de serviço diferenciado, com equipe multidisciplinar comprometida e capacitada, como dificilmente se encontra disponível na rede pública, e até privada, para atender às necessidades escolares da população demandatária.

▪ no cursosupletivo, em parceria com UNIFESP e outras Instituições;

▪ na Agência Quixote Spray Arte, para profissionalização e inserção, criada, em 2000, com recursos do prêmio empreendedor social–Ashoka, com objetivo de transformar os produtos da cultura Hip-Hop, sobretudo o grafite, em atividade que possa ser ensinada e rentável, auto-sustentável para os seus participantes ( adolescentes e grafiteiros –artista habilitado que trabalha com grafite).Essa Agência dá direito a bolsa-auxílio, participação em oficinas lúdicas pedagógicas de teatro, grafite, break, educação em saúde, capoeira, informática, culinária, percussão. Conta, em geral, com a retaguarda de serviços do Hospital São Paulo – Escola Paulista de Medicina.

Ao longo do tempo, o Quixote tornou-se referência na área de saúde, sobretudo na saúde mental, quer por haver exigüidade de equipamentos que ofereçam atendimento nesta matéria, quer por que os disponibilizados pela política de saúde nos seus segmentos de base não conseguem atender satisfatoriamente à demanda no Município e seus arredores.

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Constata-se que, desde o início do atendimento em grupo, a participação nele se deu, na sua maioria, por indicação dos profissionais e não por iniciativa própria dos familiares, conforme relatório do NAF de 1997. Em geral, as famílias se apresentam impotentes, com pouca ou nenhuma esperança para superar a situação em que estão imersas, mas também buscam soluções imediatas e eficazes, dados o grau, o tempo em que enfrentam a situação, e a complexidade de exclusão, pobreza e miséria que as assola (GUIMARÃES & ALMEIDA, 2003:127-134). Diante das fragilidades dos atendidos e dos próprios equipamentos que realizam tais atividades, entendemos ser grande o desafio para sair de um lugar solitário para um espaço de solidariedade, que aglutine forças de maior impacto no enfrentamento dessas questões, ou melhor, para constituir-se em sujeito coletivo.

Partindo da premissa de que o atendimento das crianças e adolescentes, sem a abordagem de sua família como um todo, pouco contribui para o rearranjo do contexto continente para evitar a exclusão - considerando ainda que a família é freqüentemente solicitada no amparo, suporte e acompanhamento dos seus membros -, o Quixote criou o Núcleo, que se propõe a acolher as dificuldades e procura fortalecer as famílias para que, dentro das suas possibilidades, possam assumir suas funções na condição de sujeito.

Uma das estratégias iniciais de abordagem do NAF é o atendimento de famílias encaminhadas majoritariamente pelos profissionais da área médica. A partir da inserção do profissional de Serviço Social, de 1998 em diante, houve alteração significativa de intervenções junto às famílias, passando-se a utilizar um maior volume de modalidades de acesso e atendimento quanto aos responsáveis pelas crianças e adolescentes, tais como: visitas e atendimentos em domicílios, reunião em grupo no próprio equipamento, convites, telefonemas, telegramas, acolhimento para maior aproximação das suas demandas e potencialidades, fornecimento de cesta básica ou equivalente em dinheiro, e, também, de vales-transporte e ainda promoção de atividades de lazer conjuntas entre crianças, adolescentes, familiares e funcionários, uma ou mais vezes por ano. Até 2001, foram distribuídas cerca de quarenta cestas básicas por mês, com uma redução significativa a partir de então.

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indispensável para toda intervenção de maior alcance para a criança e o adolescente no processo de tratamento (quando se consegue uma parceria adequada com ela), o que se expressou, como já dito, pela criação desse núcleo específico, o NAF, que, até finais de 1998, contava com duas psicólogas, altura em que um assistente social e, logo mais tarde, educadores foram nele integrados.

Temos observado que tal espaço vem se consolidando, para alguns usuários, como referência para as famílias das crianças e adolescentes que freqüentam o Projeto Quixote. Também ocorre o mesmo junto às famílias cujos filhos estão em privação de liberdade na FEBEM, algo demonstrado pelo aumento constante dos encaminhamentos e pela diversificação das intervenções registrados nos relatórios anuais do Núcleo.

Todos os familiares de crianças e adolescentes que chegam ao Projeto Quixote são acolhidos, no dia da sua chegada, por um dos profissionais vinculados ao Núcleo. Após esse primeiro atendimento, as famílias podem continuar sendo acolhidas e, avaliada sua demanda por certo tempo, ser encaminhadas para acompanhamento de orientação, terapia familiar, atendimentos individuais, de grupo, com ou sem acréscimo de outras atividades, conforme a disponibilidade das partes.

O NAF, desde sua origem, tem com meta atender crianças e adolescentes em conjunto com a família, uma abordagem indispensável para alcançar os melhores resultados dos serviços prestados. Ao longo do tempo, adotou-se, entre outras estratégias, a oficina de pães, cujo intuito é possibilitar alternativa de aprendizado, renda e possível mobilização para criação de uma cooperativa.

É prática do NAF, sobretudo do Projeto como um todo, promover reflexão crítica sobre suas atividades e intervenções, seu alcance e impacto para assumir e enfrentar os desafios das demandas desses jovens e de suas famílias, discutindo, socializando as diversas experiências através das atividades de reuniões, ensino e estágio, criando oportunidades que propiciam o desenvolvimento de propostas de intervenção junto aos usuários.

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Justamente pela natureza do equipamento, onde a reflexão da prática é contínua, surgem-nos indagações sobre o grau de alcance efetivo dos objetivos preconizados, considerando sua atual infra-estrutura (instalações, número de profissionais, horas contratadas). Até que ponto, em tal contexto, são realmente respeitadas a escuta e a valorização das potencialidades das famílias, suas urgências, carências elementares e escolhas. Também levantam-se dúvidas sobre as verdadeiras possibilidades de diálogo entre a família e os profissionais, considerando especialmente as observações de SARTI (2003:21-35). Enfim, quais valores permeiam e orientam o diálogo entre profissionais e usuários?

As ações do Núcleo, de acordo com relatos de alguns atendidos, têm demonstrado contribuir positivamente para a eficácia da intervenção junto aos jovens, embora existam dificuldades em avaliar o alcance dessa intervenção e sua capacidade de realmente ajudar as famílias a conquistar autonomia. Por outro lado, por falta de articulação, complementação, ação conjunta e integrada com as diferentes políticas públicas nas áreas de educação, saúde, emprego, habitação, transporte, entre outras, os recursos materiais disponibilizados, quando existem, não dão conta da grande demanda das famílias para o atendimento de suas necessidades.

Apesar de uma das estratégias norteadoras do processo de assistência ser a crença de que é “[...] fundamental nos reportar ao contexto social a que estas crianças

pertencem. A família é o primeiro meio social a que a criança pertence 6, muitas vezes essa atenção aos cuidadores responsáveis, ou seja, às famílias de referência dos jovens atendidos, ocorre num momento posterior à entrada da criança e do adolescente no Quixote. Existem casos em que os familiares vêm antes, atendendo entretanto à demanda do juiz ou técnico de equipamento de privação de liberdade.

Supomos que isso se deva, de um lado, a esses familiares terem de lutar e organizar-se para garantir sua própria sobrevivência. Em alguns casos, a dificuldade de envolver-se, na verdade, pode estar ligada à intenção de evitar um possível sofrimento e a implicação em problemas que tendem a projetá-los para fora da dinâmica familiar.

6Continua o texto: Através da família a criança estabelecerá suas primeiras identificações que serão a

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