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O corpo político na arte brasileira anos 60 e 70 (texto para apresentação no III Congresso Cuerpo Descifrado)

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Academic year: 2021

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“O corpo político na arte brasileira – anos 60 e 70” (texto para apresentação no III Congresso Cuerpo Descifrado)

No contexto brasileiro dos anos 60, marcado pelo Golpe Militar de 1964 e pelo Ato Institucional nº 5, emergiu uma arte experimental e comprometida politicamente. Do Tropicalismo, passando pelos projetos teatrais mais ousados, à movimentação do Cinema Novo, os artistas posicionaram-se criticamente àquele momento histórico através de suas pesquisas artísticas. As artes visuais, inseridas nesta ordem de preocupações da época, aliaram seu comprometimento histórico à experimentação mais radical da linguagem. Dentre estas experimentações, a presença do corpo ganhou papel fundamental na poética de alguns artistas e encaminhou algumas das proposições mais radicais da arte de final dos anos 60 e dos anos 70.

Pode-se mesmo afirmar que a presença do corpo na arte brasileira constitui-se como uma das discussões mais amplas dos processos culturais do país desde inícios do séc. XX. Dos projetos de construção de uma identidade nacional, dados nas operações modernistas dos anos 20, ou antes, na pintura de costumes do séc. XIX, um olhar específico calcado na representação do corpo social do país, conduziu muitas questões sobre a vida nacional. No contexto desenvolvimentista de final dos anos 50, um outro pensamento sobre o corpo esteve presente nas pesquisas de viés construtivo, notadamente o neoconcretismo; tratava-se do corpo fenomenológico da experiência estética da obra. Posteriormente o corpo proposto pelas experimentações construtivas nacionais, o corpo sensível da leitura estética e o corpo como “motor da obra”, ganhou um caráter também crítico, através de uma série de proposições estéticas e é sobre este outro estatuto que serão ensaiadas algumas abordagens.

Primeiramente faz-se necessário definir com qual conceito artístico de corpo se estará operando neste ensaio. Não será o conceito da representação do corpo na pintura, pois, mesmo que importante para reflexões sobre identidade cultural nos projetos locais de modernidade, não é o que se ajustaria às análises de obras que tem o próprio corpo como suporte e matéria. E, da mesma forma que

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a discussão que se quer apresentar seja atravessada pelos conceitos de corpo previstos na performance, no ‘happening’ ou na ‘body art’, não será a partir deles que se traçará a genealogia das especificidades do conceito de corpo na arte brasileira dos anos 60 e 70. Embora esclarecido por uma série de pressupostos da performance, do ‘happening’ e da ‘body art’, o corpo aqui circunscrito advém das experiências neoconcretas de final dos anos 50 e esteve presente, em nova configuração, no contexto nos anos 70. Como afirmou a pesquisadora Cristina Freire, diferentemente dos artistas da body art europeus ou norte-americanos, como Chris Burden, Vito Aconcci, Gina Pane, que dilaceraram, morderam, feriram ou, até mesmo, mutilaram o próprio corpo, no Brasil é, sobretudo, no tecido social, no contexto político que os artistas operaram naquele momento (FREIRE, 2006, p.150).

Foi na crítica à movimentação do concretismo de São Paulo que os artistas do Rio de Janeiro, membros da vertente concretista reunidos no Grupo Frente, apresentaram um novo estatuto de obra de arte. Este novo pensar sobre a constituição da obra e de sua relação com o espectador abriu a primeira base de conceituação para refletir sobre corporalidade na arte brasileira. Entre outros fundamentos, eles propuseram que a experiência estética justapusesse a leitura semântica e intelectiva da obra à experiência sensível e perceptiva do espectador. Não apenas a visão do espectador seria requerida para a compreensão da obra, mas todo seu corpo. A apreensão estética de cunho participativo, buscada na fenomenologia de Merleau-Ponty, questionava os padrões da mera contemplação distanciada da obra de arte. A obra configurava-se ontologicamente junto à vivência sensorial e o corpo do espectador era ativado e dele era pedido uma participação efetiva no jogo estético, pois, de outro modo, a obra de arte, agora denominada não-objeto (GULLAR, 2004, p.237), mantinha-se “muda”.

No início dos anos 60 as pesquisas de Hélio Oiticica, artista que participou intensamente da movimentação neoconcreta, trouxeram novos parâmetros para se pensar o corpo participativo do espectador e o do artista, em suas proposições estéticas. Em texto de 1960, “Cor, tempo, estrutura” (OITICICA, 1992, p.34), Oiticica invocou não a mais representação do tempo, como o cubismo tão

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profundamente já tinha estudado na dimensão planar, mas sua vivência real no espaço do mundo. Ao trazer a dimensão real do tempo, a obra de arte potencializava a relação direta do espectador e abria a possibilidade de ação do artista no espaço real, mais acertadamente no espaço-tempo real. Ao agregar-se o tempo real na obra integrou-se, posteriormente, o tempo histórico.

Outra pesquisa de Oiticica, fundamental ao se construir um conceito de corpo para os anos 60 e 70, deu-se em sua pesquisa dos parangolés, apresentados pela primeira vez em 1965. Mastros, panos costurados, texturas, textos poéticos, entre outros elementos, eram arranjados, dentro de uma lógica construtivo-geométrica em objetos que eram vestidos pelo espectador. Pensados nas modalidades denominadas de tendas, capas e estandartes, entre outras, os parangolés eram incorporados pelos espectadores que efetuavam evoluções corporais. A relação estética afirmava-se na percepção total do espectador, que tornava-se um participador da proposta, do movimento, tempo-espaço, cor e geometria.

A pesquisa dos parangolés, composta de estruturas poéticas dadas pelo tempo, ambiente, ação e cor, segundo proposição do artista (Oiticica, 1992, p.93), não foi investigada somente na construção das capas, estandartes ou tendas, mas também em estruturas no mundo real. A experiência do espectador e atuação do artista, conduzidas na vivência dos objetos parangolé, abria-se também para situações no espaço real. Ao descolar-se da idéia única de objeto/obra, o Parangolé agregava elementos da paisagem social. Operando num modo de apropriação previsto pela arte Pop e, anteriormente por Marcel Duchamp, dos elementos do mundo real, não apenas do mundo da arte, o artista anteviu o que ele denominou de situações e elementos parangolé na paisagem.

A apropriação do artista identificava-se com o caráter estrutural organizado, herança do olhar construtivo, em arquiteturas populares e no caráter da reunião social de sujeitos em situações de festas, reuniões e ritos.Neste raciocínio, eram exemplificados como elementos Parangolé, a arquitetura da favela, construções precárias, também feiras, casas de mendigos, decoração popular de festas juninas, religiosas, carnaval (OITICICA, 1992, p.87). O conceito mais amplo de

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parangolé em seus vetores de ação do sujeito, dimensão temporal e ambiente social, eixos da experiência da cor em Oiticica, foi fundamental para a concreção do corpo na proposição artística.

A pesquisa e proposição artística do “Caminhando” (1964) de Lygia Clark, artista ligada ao neoconcretismo carioca, deu-se quase simultaneamente à pesquisa de Oiticica com o Parangolé. Ambos objetivavam a deflagração da ação do sujeito no espaço-tempo real. O procedimento de “Caminhando” consistia em se cortar uma fita de Moebius em papel, indefinidamente, na qual era creditada uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante (CLARK, 1980, p.25). A ação do sujeito encaminhava a proposição de corte na fita de Moebius, relacionada a um espaço contínuo, dado na fita, e a um tempo sem limite (CLARK, 1980, p.26), de acordo com sua decisão e desejo. O tempo real como ordem estética e a ação do sujeito na participação da proposta colocavam esta situação perto da definição de performance para Roselee Goldberg no que ela verificou, em outro contexto, de “time-based art” (GOLDBERG, 2004, p.12).

Uma outra forma de apropriação artística do espaço foi elaborada no projeto dos Espaços Imantados (1968) de Lygia Pape, outra artista ligada à movimentação carioca neoconcreta. A artista operava com uma apropriação sutil e ao mesmo tempo densa do espaço urbano e social e de seus atores. As linhas de força de imantação eram buscadas, por exemplo, nos jogos sociais do camelô ou numa roda de capoeira nos lugares da cidade. Uma reunião de pessoas frente a uma situação inesperada e temporária configurava espaços de significação, ou espaços imantados, em meio ao caos urbano. A artista também detectava espaços imantados em áreas específicas da cidade do Rio de Janeiro, como as da Baixada Fluminense ou da Alfândega. Comunidades com singularidades sociais e geográficas eram elencadas em suas forças magnéticas próprias. Da Baixada, por exemplo, o sismógrafo estético da artista indicava um espaço agressivo, terrível, furioso, desesperador e belo (Pape, 1983, p.47).

Apontadas algumas investigações do neoconcretismo e de três artistas comprometidos em suas indicações de ordem estética, possibilita-se construir certos parâmetros para definir um conceito de corpo para a arte brasileira dos

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anos 60 e 70. Distinguem-se três etapas para a definição de uma idéia de corpo no neoconcretismo e nas poéticas de Oiticica, Pape e Clark. Primeiramente há um corpo participante na experiência estética, estabelece-se a incorporação da dimensão temporal real e, por último e complementar, realiza-se a ativação de espaços. Configura-se então, a partir deles, o que se poderia afirmar de um acontecimento da experiência sensível corpórea no tempo e espaço reais. Note-se também que a apropriação, nos parâmetros dados pelas situações parangolé de Oiticica ou nos Espaços Imantados de Pape, traz para a arte a dimensão de um tempo-espaço histórico, pois que inclui as forças sociais de sua dinâmica.

A partir das experiências neoconcretas, de seus artistas e especificamente da obra poética e teórica de Hélio Oiticica, foi concebido pelo crítico Frederico Morais um conceito de corpo político na arte. Autor do texto-manifesto “Contra a arte afluente – o corpo é o motor da ‘obra’”, publicado em 1970, Morais construiu uma intrincada rede de conceitos que se tornou fundamental para acompanhar algumas das pesquisas artísticas dos anos 70. Dois meses depois de sua publicação, Frederico Morais organizou a manifestação “Do Corpo à Terra”, na cidade de Belo Horizonte, e que teve nas poéticas de Cildo Meireles, Artur Barrio e Dilton Araújo, entre outros, uma asseveração daquele conceito.

O texto-manifesto “Contra a arte afluente – o corpo é o motor da ‘obra’” estabeleceu um diálogo produtivo com as reflexões de Hélio Oiticica. Seu diálogo mais abrangente deu-se com o texto “Esquema geral da nova objetividade” (1967), proposição de seis itens para o projeto de uma vanguarda nacional comprometida e experimental. Um segundo diálogo colocou-se com o conceito de situação pelo qual Morais afirmou um modo de proposição artística dada na crise da noção de obra e numa idéia de objeto que se ampliava em acontecimentos, proposições, vivências e experimentações artísticas dadas não somente no circuito de artes, mas em qualquer espaço. Outro diálogo estabeleceu-se com o texto de Oiticica “Anotações sobre o parangolé” e foi construído no sentido de revisitar as reflexões sobre o espectador ativo na proposição artística.

O título do texto de Morais, “o corpo é o motor da obra”, fazia referência direta ao texto “Anotações sobre o parangolé”. Mas o autor propunha algo além de

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seus diálogos iniciais. O corpo referido por Morais em seu texto-manifesto e presente na arte brasileira desde as movimentações neoconcretas e a experiência fenomenológica da obra, agregava uma significação fundamentalmente crítica.

Com uma discussão baseada na concepção do poeta concretista Décio Pignatari da ação artística como um modo de guerrilha, Morais, que já previra a atuação do artista inserida num contexto de experimentação com a abertura do espaço poética da obra, trouxe seu argumento mais efetivo para construir um conceito de corpo político. Apoiado na reflexão do poeta concretista e sintonizado com algumas reflexões da época que aproximavam o fazer artístico à resistência política, Morais também previu também a atuação do artista num contexto político no qual tudo podia transformar-se (...) em arma ou instrumento de guerra (MORAIS, 1970, p.51). O conceito de corpo abordado no texto aproximava-se, além de ‘motor da obra’, a um ‘motor da crítica política’. Tornado palco da vida social, pois era aquele que fazia resistência política nas passeatas, no embate físico com a repressão, nas fugas, no exílio ou na guerrilha, o corpo também era o da experimentação, vivência e percepção sensíveis. E ambos uniam-se pelo fato artístico.

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Bibliografia

BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo – vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1985.

CLARK, Lygia in Lygia Clark – Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Funarte, 1980.

FREIRE, Cristina. O presente-ausente da arte dos anos 70. in Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras e Itaú Cultural, 2006.

GOLDBERG, RoseLee. Performance – live art since the 60’s. Nova York: Thames and Hudson, 2004.

GULLAR, Ferreira. Teoria do não-objeto. In Cocchiarale, Fernando e Geiger, Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal – a vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte, 2004.

MORAIS, Frederico. Contra a arte afluente – o corpo é o motor da obra in Revista de Cultura Vozes. Vanguarda brasileira: caminhos e situações. Petrópolis, jan-fev. 1970.

OITICICA, Hélio in Hélio Oiticica (catálogo). Paris: Galerie Nationale du Jeu de Paume, 1992.

PAPE, Lygia in Lygia Pape – Arte Contemporânea Brasileira. Rio de janeiro: Funarte, 1983.

REIS, Paulo. Arte de vanguarda no Brasil: os anos 60. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

Referências

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