"O
património
é
importante,
mas
não
é
mais
importante
do
que
as
pessoas"
Ainda
é
cedo
para
avaliar
o
que
um
ano
de
guerra
fez
a cidades
como
Tombuctu
ou
Gao.
Assim
como
é
ainda muito
cedo
para dizer
que
a
guerra
acabou
Mali
Agora que as tropas francesas e os
soldados malianos tomaram
Tom-buctu, Gao eKidal, praticamente
sem que houvesse resistência das forças rebeldes, chegou aaltura das
autoridades fazerem as contas aos
prejuízos na área do património,
sobretudo nas duas primeiras cida-des, inscritas na lista do património da humanidade (Tombuctu desde 1988, oTúmulo de Askia, em Gao, desde 2004).
Durante
meses sucederam-senotícias de mesquitas destruídas e
bibliotecas saqueadas. No início da semana, chegou mesmo a temer-se que grande parte daimportante
co-lecção de livros edocumentos do Instituto Ahmed Baba, com dezenas de milhares de manuscritos, talvez
os mais importantes do século
XII
eoutros até pré-islâmicos, tivesse de-saparecido num incêndio. Ospiores receios não seconfirmaram, mas há muito a fazer noterreno.
A guerra começou em Janeiro do ano passado e,quase em simultâneo, surgiram relatos de que osrebeldes, muitos de grupos extremistas com li-gações àAl-Qaeda, estavam aarrasar túmulos com centenas de anos que consideravam idólatras, mesmo que consagrados a santos muçulmanos. Tombuctu éconhecida como a
"cida-dedos 333 santos", masosislamistas
que serevoltaram contra oGoverno
doMali querem impor asharia (lei
is-lâmica) em todo oterritório e elanão
permite que sevenerem santos. A cidade do Norte, que tem otítulo
de"jóia africana" por tersido um
im-portante pólo de desenvolvimento económico - era paragem obrigató-ria para osnegociantes desal,ouro e
gado -eprotagonista de uma época de ouro na promoção da religião e
cultura islâmicas no continente
(so-bretudo nos séculos XVeXVI), foi a
mais afectada pelas acções contra o
património, embora Gao, amais po-pulosa da região (60mil habitantes), também tenha visto muitos dos seus
túmulos profanados.
Oconflito armado ameaçava de tal forma Tombuctu que, no Verão,
aUNESCO - Organização dasNações Unidas para aEducação, Ciência e
Cultura decidiu declará-la "em ris-co". Os especialistas malianos e
in-ternacionais
-
em particular osfran-ceses esul-africanos
-
temiam que,além dos edifícios únicos construídos em adobe (lama, palha emadeira),
verdadeiras jóias da arquitectura em
terra que valeram aGao eTombuctu
oselo de património da humanida-de, osislamistas dirigissem os seus
ataques aos fundos documentais.
Manuscritos
salvos
Opresidente daCâmara de
Tombuc-tu, Hallé Ousmane Cissé, chegou a
dizer que as forças rebeldes tinham
queimado praticamente todos os
documentos históricos da cidade,
naquilo que classificava como um "verdadeiro crime cultural". Mas, afinal, osislamistas destruíram ape-nas um dos dois edifícios do Institu-to Ahmed Baba -oinaugurado em 2010, pago pela África do Sul, cuja Universidade daCidade do Cabo é
das organizações que mais têm in-vestido na preservação dos docu-mentos de Tombuctu. Nele só
esta-vam guardadas cópias digitalizadas dos velhos manuscritos e originais menos relevantes.
"Uma grande maioria foi salva.
Penso que mais de 90%", disse àAFP Shamil Jeppie, professor da Universi-dade do Cabo que dirige oprojecto de catalogação econservação dos
manuscritos. "É claro que alguns sofreram desgaste, outros foram
destruídos ou roubados, mas uma
parcela muito mais pequena do que julgávamos àpartida", admitiu,
ex-plicando que odano não foi maior
porque, receando os ataques ao
ins-tituto, arquivistas econservadores transferiram oslivros edocumentos mais importantes para Bamaco e
pa-ra outros lugares seguros nos primei-ros meses da insurreição islamista.
Nos "cofres" do instituto há verda-deiras preciosidades em pergaminho pele de carneiro eaté em omoplata de camelo. São livros, tratados e
tex-tos variados sobre astronomia,
músi-ca, história, política, direito e mate-mática. Entre os mais importantes, diz Jeppie, citado pelo diário francês Le Monde, hámuita poesia.
"Até hábem pouco tempo, dizia-se
erradamente nos círculos ocidentais que atradição cultural africana era em grande parte, oupor completo,
oral", disse ao diário
norte-ameri-cano Los Angeles Times o especia-lista em manuscritos árabes Amidu
Sanni. Osmanuscritos deTombuctu contradizem essa visão.
Para Adel Sidarus, professor de Estudos Árabes eIslâmicos da
Uni-versidade de Évora, os manuscritos dacidade dos 333 santos são o refle-xo do papel que este centro teve na
África Ocidental durante centenas de anos, como pólo detrocas eco-nómicas ecivilizacionais. "À falta de uma palavra melhor podemos dizer que Tombuctu tinha uma espécie de burguesia letrada. Havia tertúlias,
era um centro de cultura e de
co-nhecimento", diz ao PÚBLICO este académico cristão copta egípcio que
evive em Portugal há 35 anos. Para Sidarus, que diz que os ma-nuscritos precisam de ser mais co-nhecidos eestudados, ébem
possí-vel que os arquivos deTombuctu, muito dispersos até pelas casas de particulares, guardem até surpresas sobre oAl-Andalus (que abrange a
Península Ibérica).
"Esta nebulosa político-religiosa que hoje se vive no Mali não tem
raízes nenhumas na sua história",
explica. "Tombuctu, por exemplo,
sempre foi uma cidade degrande tolerância religiosa, que a dada al-tura chegou ater uma importantís-sima comunidade dejudeus, uns berberes, outros fugidos da Penín-sula Ibérica. Era também um
cen-tro para os sufis, místicos do Islão." A destruição dos mausoléus sufis
-as fontes ouvidas pelas agências
falam por vezes em dezenas de tú-mulos arrasados, outras vezes em
sete ou nove
-
éprecisamente umdos grandes objectivos dos rebeldes, acrescenta o professor de Évora. "O
fundamentalismo a que assistimos hoje no Norte do Mali faz uma
in-terpretação retrógrada do Corão e édo tipo tribal, como no tempo do profeta Maomé."
Os primeiros relatos ocidentais sobre a cidade só foram feitos no século
XIX,
quando um francês ar-riscou avida ao entrar disfarçado em Tombuctu (a visita era proibidaa estrangeiros), lembrou aoPÚBLICO
oarqueólogo Santiago Macias,
Macias tem acompanhado com
preocupação odesenvolvimento da situação no Mali, enão está nada op-timista. Acredita que orecuo dos re-beldes étemporário eque tudo farão
para destruírem o que o Ocidente valoriza, como aconteceu com os
budas de Bamiyan, no Afeganistão.
"Oproblema na região é,como todos
sabemos, económico esocial. Oque tem ganho apopulação de Tombuc-tu com tanto património da
humani-dade? Vive menos miseravelmente?
Epor que estão láosfranceses? Por causa do património ou por causa
das minas de urânio?"
Macias diz que éainda muito
ce-do para perceber oque seperdeu
em termos patrimoniais, apesar de serem "graves" os relatos que fo-ram chegando dos ataques às três grandes mesquitas de Djingareyber,
Sankoré eSidi Yahia, eaos mausoléus
de Gao, cuja necrópole foi intensa-mente escavada pelos japoneses nos
anos 1970. "O inventário de muito
deste património é,seguramente,
frágil. Muita coisa se perdeu ao lon-go dos séculos - não apenas agora.
Seformos comparar a cidade de
ho-je
com aquela que os documentos árabes descrevem nos séculos XIVeXV,com cúpulas douradas por toda a
parte, vamos pensar que os autores de há
500
anos estavam adelirar."Em declarações aojornal Le
Mon-de, Bruce Hall, professor da Universi-dade de Duke, nos EUA, foi também bastante crítico em relação à inter-venção governamental nas cidades
património do Mali e falou em cor-rupção. "Foram gastos milhões de dólares na digitalização e conserva-ção de manuscritos nos últimos dez anos, pela UNESCO epor fundações americanas. Quase nada foi feito. O
dinheiro desapareceu no Mali, mas
também nas mão de
pseudo-espe-cialistas ocidentais que discutiram
muito mas fizeram pouco."
Obalanço do que seperdeu nos últimos meses em termos
patrimo-niais pode muito bem nunca
vir
aficar completo, acrescenta Santiago Macias. "Adestruição vai continuar e oconflito não deve ficar por aqui. No
Mali, como em todo o lado, o patri-mónio émuito importante, mas não
émais importante do que aspessoas.
Enquanto apressão sobre as
popu-lações for enorme, não éde esperar
que os extremistas deixem de ter no Mali terreno fértil."
Um dos manuscritos queimados do
Instituto Ahmed
Baba"O
que tem
ganho
a
população
de
Tombuctu
com
tanto
património
da
humanidade?
Vive
menos
miseravelmente?"
Santiago Macias
''Tombuctu
tinha
uma
espécie
de
burguesia
letrada. Havia tertúlias, era
um centro de
cultura
e
de
conhecimento"
AdelSidarus
A França vai ficar no
Mali
"o
tempo
que
for
necessário"
Foi aoritmo
de batuques,bani-dos
durante
os meses deterror
islamista, que Tombuctu recebeu
ontem o Presidente francês,
Fran-çois Hollande, que foi aoMali para
apoiar aforça expedicionária que em três semanas reconquistou para
o Governo central o controlo das três cidades do Norte edelinear o
futuro da missão.
Amesquita de
Djingareyber,
em TombuctuO
Presidente francês foi recebido
em clima defesta
em TombuctuTombuctu, agradecemos-te
infinita-mente", garantia Fanta Diarra Tou-ré, uma antiga recepcionista de 53
anos entre apequena multidão que recebeu oPresidente francês na pra-çaprincipal dacidade que durante
séculos foio principal centro de
cul-tura eensino do Islão em África e é
hoje Património da Humanidade.
"Viva aFrança, Viva Hollande", gri-taram, quando oPresidente francês deu amão ao homólogo maliano, Dioncounda Traoré, erguendo-as ao céu em sinal devitória.
Perante aaproximação das tropas
francesas emalianas as forças do Ansar Dine (grupo tuaregue islamis-ta) eda Al-Qaeda na Magrebe Islâ-mica (AQMI, grupo terrorista com origem na Argélia) abandonaram a
cidade no início desta semana.
Co-mo herança deixaram em ruínas
mausoléus de santos muçulmanos,
declarando idolatria aveneração
dos habitantes, eem cinzas entre
dois atrês mil dos manuscritos cen-tenários guardados na cidade.
Em nome da mesma
interpreta-ção radical da sharia (lei islâmica)
amputaram mãos apessoas
acusa-das de roubo, chicotearam suspeitos
de adultério, obrigaram asmulheres acobrirem o rosto e
proibiram
ofutebol, adança eamúsica...
Apesar das fortes medidas de
se-gurança
-
com blindados apatru-lhar ruas esoldados de 100em 100 metros, conta oenviado da AFP -o
ambiente era de festa. "Estamos
alegres por receber Hollande, ele
é onosso libertador, porque nos
li-bertou destes bandidos armados,
sem o Exército francês seria a
ca-tástrofe", disse àagência Hassèye Boussama Djitteye, um comerciante
junto
àmesquita de Djingareyber,que Hollande visitou.
Osislamistas partiram, maso me-do ainda não desapareceu. "Temos medo que os islamistas se tenham escondido no deserto",
admitia
Diarra Touré, dirigindo um apelo para que o Exército francês fique na cidade "pelo menos cinco mesespara os ir procurar".
Já nacapital, Bamaco, Hollande
disse em conferência de imprensa
que oterrorismo tinha sido "expul-so" e "afastado", mas "ainda não
foi vencido". "Os terroristas estão enfraquecidos mas ainda não
desa-pareceram", disse ao lado do Pre-sidente Traoré, reafirmando que as
forças francesas vão ficar noMali "o
tempo que for necessário". Hollan-de expressou ainda aurgência para que aforça africana, mandatada pe-la ONU, esteja completa e operacio-nal omais rapidamente possível.