• Nenhum resultado encontrado

Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade"

Copied!
10
0
0

Texto

(1)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 1

Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia

brasileira e modernidade

Entre a História e a Etnologia: a escrita da história em O Brazil e a Oceania de Antônio Gonçalves Dias

Iuri Bauler Pereira∗ Este artigo é em realidade a proposta de trabalho apresentada para a disciplina de Técnica de Pesquisa Histórica no curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Portanto ele não apresenta resultados, mas sim alguns apontamentos do que será desenvolvido nos próximos meses.

Gonçalves Dias (1823 – 1864), famoso poeta do Romantismo brasileiro, identificado com a temática “indianista”, era também membro ativo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, bacharel em Direito por Coimbra, professor de Latim e História do Brasil no Colégio Pedro II, redator e fundador da revista Guanabara, funcionário da Secretaria dos Negócios Estrangeiros (pela qual foi designado para pesquisar nos arquivos do Brasil e Europa), membro de comissões etnográficas e de avaliação do sistema educacional.

Foi autor de uma considerável obra histórica e etnográfica, incluindo artigos e pareceres na Revista do IHGB, além de seus trabalhos mais conhecidos, republicados nas suas Obras Póstumas (1909): O Brasil e a Oceania (1853/1867); História Pátria: reflexões

sobre os anais históricos do Maranhão (1849); A Lenda das Amazonas(1855); e um

dicionário compilado da língua geral, intitulado Dicionário da língua Tupi (1857).

Escreveu poemas sobre o “selvagem”, a “conquista” e a “história” - inclusive deixando inacabado um poema épico chamado Os Timbiras, cujos quatro primeiros cantos foram publicados em 1857 – que influiram na sua caracterização como “indianista”. Seus poemas indianistas são comumente interpretados como esforços para emancipar a literatura

(2)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 2

brasileira da matriz portuguesa e forjar, à partir do selvagem, a idéia de um “passado nacional” que seria fundamental para a formação identitária da nação brasileira1.

Concomitantemente, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como lugar de produção intelectual do Império, tem seu “projeto” voltado também para esta definição do passado nacional.2 Dias encontra-se, portanto, imbricado neste contexto, como um “indianista” dentro do IHGB, produzindo simultaneamente um discurso poético e outro científico sobre a história, a partir do mesmo objeto: o “selvagem”.

A proposta deste trabalho consiste na análise de uma obra do poeta e historiador, O

Brasil e a Oceania, lida no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1853 e publicada

postumamente na Revista do Instituto em 1867, centrando-se na análise da operação de “escrita da história” efetuada neste livro, no sentido de abordar como Gonçalves Dias elabora esse discurso sobre o outro, e a prática de, a partir de fontes diversas, relatar um passado e conceder sentido a tal ausência.3

A tese em questão foi escrita pelo autor entre 1849 e 1853, a partir de um programa sugerido pelo Imperador Pedro II, que consistia em estudar “os caracteres físicos, morais e intelectuais dos indígenas, do Brasil e da Oceania, na época da conquista, e aferir qual dos povos estava mais apto a receber a empresa da civilização”4. Para tanto, o autor utilizou-se de relatos de viajantes do século XVI, crônicas e histórias da América e da Oceania, tratados de naturalistas e etnógrafos, além do método comparativo explícito na questão. Assim, escreveu uma memória de caráter histórico e etnográfico sobre os “selvagens”.

Não entra no escopo da proposta analisar as relações desta com o restante da produção literária do autor - ou a relação entre História e Literatura neste caso específico - nem aprofundar pormenorizadamente as questões referentes ao lugar e contexto social de enunciação desta escrita, mas analisar como esses aspectos se apresentam no interior do texto.

1 RICUPERO, Bernardo. O Romantismo e a Idéia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins

Fontes, 2004. pp.155-159. & TREECE, David H. Victims, Allies, Rebels: towards a new history of nineteenth-century Indianism in Brazil. Portuguese Studies, n.2, 1986. pp.61-64.

2

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos históricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988. pp.6-7.

3 DE CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. pp.13-18. 4 DIAS, Gonçalves. O Brazil e a Oceania [Obras póstumas de Gonçalves Dias]. Paris/Rio de Janeiro:

(3)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 3

É importante ressaltar que O Brasil e a Oceania é pouco conhecida e, em geral, ignorada pelos historiadores; ela é citada, sobretudo, em histórias da Literatura e biografias do poeta, mas sempre de modo muito superficial. É escassa também uma bibliografia analítica sobre ela. Como exceções, encontramos um artigo de Lúcio Menezes Ferreira5, um capítulo da tese de doutorado de Kaori Kodama6, e um artigo de David T. Haberly7, todas focando o aspecto etnográfico/etnológico da obra, ou relacionando ela, de modo secundário, com a poesia do autor.

A indefinição de seu gênero – história, etnografia, etnologia – foi pouco problematizada, e frequentemente ignorada em prol de uma simplificação: seria um texto etnográfico. Mesmo assim, não figura na grande maioria das relações de história da historiografia ou da etnografia no Brasil pesquisadas para o projeto. Por ser de pouco interesse para os historiadores da literatura, normalmente focados na obra poética de Gonçalves Dias, também teve pouco espaço nos livros desta temática. Não foi reeditada, ficando restrita à última edição das Obras Póstumas de 1909.

Entre os autores que a citaram, contudo, encontram-se: Silvio Romero, Euclides da Cunha, Edgar Roquette Pinto e Candido de Mello Leitão. O “polemista” Silvio Romero, de importante atuação na área da crítica literária e científica no fim do século XIX8, qualifica a obra como “interessantíssima” apesar de considerar seu intuito “um pouco frívolo”. Segundo ele, Dias teve “perfeita intuição do problema etnográfico do Brasil”, se mostrou “um homem sabedor de assuntos de história e etnografia”, qualificando ainda a parte referente aos índios do Brasil como válida, “apesar dos bons progressos realizados nesta área” no espaço entre a memória (1853) e a época de escrita da História da Literatura

Brasileira de Romero (1888)9.

Já para o autor de Os Sertões (1902), a influência do autor na ciência e etnografia do Brasil é negativa. Segundo ele, os “etnógrafos” do Império “arquitetam fantasias que caem ao mais breve choque da crítica; devaneios a que nem faltam a metrificação e as rimas,

5 FERREIRA, Lúcio Menezes. Gonçalves Dias: arqueólogo e etnógrafo. In: LOPES, Marco Antônio. Grandes nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto, 2003. pp.456-465.

6 KODAMA, Kaori. Os filhos das brenhas e o Império do Brasil: a etnografia no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1840-1860). Tese de Doutorado, Puc-RJ, 2005. pp.143-165.

7 HABERLY, David T. Three sad races. Racial identity and national consciousness in brazilian literature. Cambridge : University Press, 1983. pp.18-31.

8 VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. São Paulo : Companhia das Letras, 1991. pp.32-33.

(4)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 4

porque invadem a ciência na vibração rítmica dos versos de Gonçalves Dias”10. Para Euclides, não há distinção entre o “poeta” e o “etnógrafo” Gonçalves Dias, pois ambos criam fantasias sobre o Brasil.

Para Edgar Roquette Pinto, famoso etnólogo brasleiro, Dias foi o “precursor de tais estudos, hoje em franco desenvolvimento” considerando seus estudos como “da mais alta categoria do gênero [...] constantemente fiel à ciência do seu tempo”, embora admita a presença de idealizações românticas, mas que ele define como “licença etnográfica”11.

A passagem referente ao “poeta-etnógrafo” na História das expedições científicas

no Brasil, de Candido de Mello Leitão, pode servir como uma amostra exemplar desta

associação que é feita entre poesia e ciência no caso de Gonçalves Dias:

“seu alto renome como poeta, [...] fez com que esquecessem injustamente o lugar que toca ao etnógrafo. Se seu índio tem muito de romântico, êmulo do pele vermelha de Fenimore Cooper, é isto uma criação do poeta, mas, mesmo nessas fantasias, se vê oconhecimento de nossa gente, adquirido mais que na velha literatura dos cronistas, à sua disposição, no contato com o nosso homem.”12

A produção etnográfica do autor, a partir de Euclides da Cunha, é frequentemente associada a sua poesia pelos críticos. Desta forma, ela é vista como parte de sua produção literária, interpretada como um esforço para fundamentar cientificamente seus poemas, ou simplesmente como uma outra faceta deste mesmo fazer poético.

Além dessas asserções dos “primeiros” comentadores, é importante ressaltar a já referida contribuição contemporânea à análise da obra. Lúcio Ferreira, em seu artigo, define a memória como uma “discussão arqueológica e etnográfica com fins claramente políticos” – que seriam uma discussão sobre as políticas indigenistas do Império – elaborada a partir de uma etnografia que se baseava na leitura dos cronistas e na “observação, in loco, das sociedades indígenas”. Assim, Dias efetuaria uma “hermenêutica filológico-textual”, que teria uma relação direta com a “carpintaria literária” do poeta. Sua abordagem, embora

10

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p.69.

11 PINTO, Edgar Roquette. Gonçalves Dias e os índios. In: Gonçalves Dias. Conferências na ABL. Rio de

Janeiro: ABL, 1948. p.87.

12 LEITÃO, Candido de Mello. História das expedições científicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora

(5)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 5

restrita, levanta questões importantes para a análise do método utilizado na tese, como a relação com a filologia e a função política do discurso sobre o indígena.13

A interpretação de Ferreira, contudo, esbarra em uma questão “cronológica”, que pode ser verificada na tese de Kodama: as expedições etnográficas de Gonçalves Dias só acontecem depois da escrita de O Brasil e a Oceania, sendo o trabalho efetuado “em gabinete”, ou seja, apenas a partir de leituras. Segundo a autora, a tese de Dias encontra-se num período de formação da etnografia no IHGB, onde a pesquisa de campo ainda não estava definida como método fundamental da etnografia, e as fronteiras entre etnológico de Dias, não se detendo no aspecto “históriográfico” do texto, apesar de apontar algumas características deste.

Por fim, a análise de Haberly centra-se nas aproximações possíveis entre a etnografia e a poesia do maranhense, traçando comparações entre trechos, buscando nelas algum eco da condição de mestiço do autor. Embora possíveis, essas relações com a literatura ou a mestiçagem fugiriam do escopo do projeto proposto. O que proponho, tendo em vista a bibliografia arrolada, é uma abordagem por outro viés que não o da etnografia ou da literatura. Uma abordagem “historiográfica”, que revele procedimentos de escrita do texto com relação às fontes utilizadas e ao passado “narrado”, contribuindo para esta desessencialização da obra de Gonçalves Dias, que vem sendo operada por esses autores contemporâneos.

Definida por muitos autores como uma obra de cunho histórico e etnológico – visto que tem como objetivos tanto uma reconstrução dos “caracteres físicos, morais e intelectuais” dos selvagens (uma etnologia), quanto de descrever eles num momento histórico específico, “a época da conquista” (uma história) – figura como um exemplo das fronteiras pouco delimitadas entre estas disciplinas no século XIX14.

A partir dessa observação, me proponho a analisar a “escrita da história” na obra – não isolando esta da etnologia, mas ressaltando as tensões e distanciamentos presentes entre estas duas práticas, que posteriormente buscaram por uma diferenciação mais clara15 - levando em conta como o autor define um método e escreve uma história dos índios antes

13 FERREIRA, Op. Cit, pp.457-458. 14 KODAMA, Op. Cit, pp.148.

15 LÉVI-STRAUSS, Claude. História e Etnologia. In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo

(6)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 6

da conquista (e que se estende até o século XVI), baseado em relatos de viajantes do século XVI; “vestígios” arqueológicos, lingüísticos e míticos; obras de historiadores e relatos de naturalistas contemporâneos. Em suma, como é efetuada esta “operação historiográfica”, partindo das noções elaboradas por Michel de Certeau, na sua obra A Escrita da História16.

A operação historiográfica, segundo Michel de Certeau, pode ser compreendida como uma combinação entre um lugar social, uma prática e uma escrita:

“Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreende-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura).”17

Gonçalves Dias era sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; foi em sessões do Instituto que ele divulgou sua memória (1853); é na revista deste que ela foi publicada (1867); e, sobretudo, foi em uma de suas sessões no ano de 1849 que ele recebe o programa que resulta na obra, por sugestão do Imperador Pedro II. Partindo da idéia de que “toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural” 18, utilizarei para definir este lugar institucional os trabalhos de Manoel Luís Salgado Guimarães19 , Temístocles Cezar20, e para o caso específico da etnografia, Kaori Kodama21.

Pretendo analisar a prática, na escrita de O Brasil e a Oceania, partindo da constatação de que o autor se baseou em relatos de viagem, e outros “vestígios do passado” numa clara elaboração a partir de fontes, como explicita na Introdução: “ Pela minha parte,

contentei-me de colligir, de confrontar e de combinar no que pude o que a tal respeito achei escripto.”22 ; elaboração esta que está relacionada com as definições da operação

historiográfica de Certeau:

16 DE CERTEAU, Op. Cit. Pp.65-106. 17 Id., Ibid., p.66.

18 Id., Ibid., p.66.

19 GUIMARÃES, Op. Cit. p.5. 20

CEZAR, Temístocles. Presentismo, memória e poesia. Noções de escrita da História no Brasil oitocentista. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Escrita, linguagem, objetos: leituras de história cultural. Bauru: Edusc, 2004. pp.45-46.

21 KODAMA, Op. Cit. pp.1-6.

(7)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 7

“em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto.”23

Essa “redistribuição do espaço” relaciona-se também com outros aspectos da operação historiográfica: a articulação natureza-cultura, a prática do desvio e a instauração de um sentido, a partir da diferença; noções que instrumentalizam uma análise do texto de Gonçalves Dias.

O postulado de que “A história moderna ocidental começa efetivamente com a diferenciação entre o presente e o passado”24 me permite questionar de que forma Dias articula essas duas dimensões temporais, passado e presente, com um terceiro termo que está implícito: o futuro. Para esse aspecto, sirvo-me do trabalho de Reinhardt Koselleck, e dos conceitos de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”:

“experiência e expectativa são duas categorias

adequadas para nos ocuparmos do tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro. São adequadas também para se tentar descobrir o tempo histórico, pois, enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações concretas no movimento social e político”25

Desta forma, além de abordar como o autor “organiza o tempo histórico” em seu texto, torna-se possível analisar como ele elabora uma proposta “civilizatória” para os indígenas do Império a partir da “experiência” histórica. Esta relação permite, por fim, relacionar o livro ao processo de transformação do conceito de História26 - ligado à noção de progresso – que acontece também no Brasil oitocentista.

A importância da escrita e da narrativa para a história do século XIX, é incontornável. Seguimos neste “tópico” com os conceitos elaborados por Certeau, como constituintes de uma “escrita histórica”: a inversão escriturária, a cronologia e a construção desdobrada; a partir desses conceitos é possível pensar as modalidades de legitimação e

23 DE CERTEAU, Op. Cit., p.81. 24 Id., Ibid., p.14.

25 KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p.308. 26 KOSELLECK, Reinhardt. historia/Historia. Madrid: Minima Trotta, 2004. p.27.

(8)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 8

estruturação do texto pretensamente “científico” do autor, e as articulações que este mantém com a prática e o lugar; sem deixar de lado, porém, sua dimensão poética27, fundamental para a historiografia do século XIX, como ressaltado por François Hartog28 .

Partindo da afirmação de Certeau de que a história é também uma forma de “encenação do outro” (o que a aproxima da etnologia novamente), no sentido de instaurar uma alteridade, buscarei analisar este aspecto – que assume uma dupla importância, visto que Gonçalves Dias trata do passado frente ao presente e do selvagem frente ao civilizado – a partir do conceito de “retórica da alteridade” de François Hartog, com o intuito de entender a partir de que categorias e de que forma o autor elabora essa diferença. Segundo Hartog, “uma retórica da alteridade é, no fundo, uma operação de tradução: visa transportar o outro ao mesmo – constituindo portanto uma espécie de transportador da diferença”29 . Um conceito, pois, que nos permite analisar como Gonçalves Dias efetua essa tradução, essa “encenação do outro”, e de que forma tal operação se relaciona com as práticas utilizadas, com a escrita da história (que constitui) e com o lugar que a recebe.

Assim, a análise do método empregado pelo autor na tese, além de contribuir para uma visão mais completa das questões epistemológicas presentes no campo da história no Brasil oitocentista - bem como das relações desta com a etnologia e a literatura - pode auxiliar na apreensão do significado que certas metodologias e teorias em formação assumiam no período, por exemplo: comparativismo, craniometria, filologia, arqueologia, etnologia comparada e a etnografia moderna.

Levando em conta o contexto em que o autor escreve, analisar um texto científico tendo como tema os indígenas e suas relações com a “civilização” torna possível revelar parte das disputas que envolvem as concepções de “selvagem” presentes no Brasil Império, e que estão intimamente ligadas com as discussões sobre identidade nacional, raça e política indigenista30. Desse modo, a análise historiográfica nos permite acessar os conflitos

27 CEZAR, Temístocles. “Une poétique de l’histoire: le romantisme à l’IHGB”. In: L’écriture de l’histoire au Brésil au XIXe siècle. Essai sur une rhétorique de la nationalité. Le cas Varnhagen. Paris: EHESS, 2

vol, 2002. pp.101-182.

28 HARTOG, François. O século XIX e a história. O caso Fustel de Coulanges.Rio de Janeiro: UFRJ,

2003.

29 HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Belo Horizonte: UFMG, 1999. pp.251-252.

30

Ver: PUNTONI, Pedro. O Sr. Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira. In: História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992; CUNHA, Manuela Carneiro da. Política Indigenista no século XIX. In: História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia

(9)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 9

e debates presentes em seu lugar de produção e as questões sociais implícitas na elaboração do conhecimento histórico.

Referências Bibliográficas

BANDEIRA, Manuel. Gonçalves Dias. Esboço biográfico. Rio de Janeiro : Pongetti, 1952.

CEZAR, Temístocles. “Une poétique de l’histoire: le romantisme à l’IHGB”. In: L’écriture de l’histoire au Brésil au XIXe siècle. Essai sur une rhétorique de la nationalité. Le cas Varnhagen. Paris: EHESS, 2 vol, 2002.

_________________. Presentismo, memória e poesia. Noções de escrita da História no Brasil oitocentista. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Escrita, linguagem, objetos: leituras de história cultural. Bauru: Edusc, 2004.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Política Indigenista no século XIX. In: História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992

DE CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

DIAS, Antônio Gonçalves. O Brazil e a Oceania. Paris/Rio de Janeiro: Garnier, 1909. FERREIRA, Lúcio Menezes. Gonçalves Dias: arqueólogo e etnógrafo. In: LOPES, Marco Antônio. Grandes nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto, 2003.

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos históricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988.

HABERLY, David T. Three sad races. Racial identity and national consciousness in brazilian literature. Cambridge : University Press, 1983.

HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

________________. O século XIX e a história. O caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

das Letras, 1992; & MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de história indígena e indigenismo. Tese de Livre Docência. Campinas: UNICAMP, 2001.

(10)

Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:

EDUFOP, 2007. 10

KODAMA, Kaori. Os filhos das brenhas e o Império do Brasil: a etnografia no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1840-1860). Tese de Doutorado, Puc-RJ, 2005.

KOSELLECK, Reinhardt. historia/Historia. Madrid: Minima Trotta, 2004. ____________________. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

LEITÃO, Candido de Mello. História das expedições científicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nacional, 1941.

LÉVI-STRAUSS, Claude. História e Etnologia. In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991

MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de história indígena e indigenismo. Tese de Livre Docência. Campinas: UNICAMP, 2001.

PINTO, Edgar Roquette. Gonçalves Dias e os índios. In: Gonçalves Dias. Conferências na ABL. Rio de Janeiro: ABL, 1948.

PUNTONI, Pedro. O Sr. Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira. In: História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

RICUPERO, Bernardo. O Romantismo e a Idéia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004.

ROMERO, Silvio.História da Literatura Brasileira. v.3. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960

TREECE, David H. Victims, Allies, Rebels: towards a new history of nineteenth-century Indianism in Brazil. Portuguese Studies, n.2, 1986.

Referências

Documentos relacionados

ACESSÓRIOS 15 CABEÇOTE DE CORTE 11 CAIXA DE VENTILAÇÃO 10 CARBURADOR 8 CARTER 6 CILINDRO 7 PARTIDA RETRÁTIL 5.. SISTEMA DE IGNIÇÃO E

No código abaixo, foi atribuída a string “power” à variável do tipo string my_probe, que será usada como sonda para busca na string atribuída à variável my_string.. O

Para analisar as Componentes de Gestão foram utilizadas questões referentes à forma como o visitante considera as condições da ilha no momento da realização do

libras ou pedagogia com especialização e proficiência em libras 40h 3 Imediato 0821FLET03 FLET Curso de Letras - Língua e Literatura Portuguesa. Estudos literários

Os resultados deste trabalho mostram que o tempo médio de jejum realizado é superior ao prescrito, sendo aqueles que realizam a operação no período da tarde foram submetidos a

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

nesse contexto, principalmente em relação às escolas estaduais selecionadas na pesquisa quanto ao uso dos recursos tecnológicos como instrumento de ensino e

Considerando a contabilidade como centro de gestão da informação, os autores defendem o aprimoramento de uma visão sistêmica ao profissional, como também uma maior compreensão