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A REVOGAÇÃO TÁCITA DOS ARTIGOS 30 E 31 DA LEI DO COLARINHO BRANCO EM RAZÃO DA ALTERAÇÃO LEGISLATIVA PROMOVIDA PELA LEI 12.403/11.
Ricardo Henrique Araújo Pinheiro
Recentemente publicamos um artigo no qual criticamos veementemente a falha legislativa advinda da publicação equivocada introduzida pela Lei nº. 12.403/11 no
parágrafo primeiro do artigo 313 do Código de Processo Penal1. Em síntese, afirmamos
no citado artigo que em decorrência das alterações em alguns dispositivos do CPP, a prisão preventiva só poderá ser decretada nas seguintes hipóteses – e caso haja o descumprimento injustificado de eventual obrigação cautelar imposta diferente da prisão (caráter secundário): a) crimes dolosos; b) pena máxima do delito igual ou superior a cinco anos; c) juridicamente reincidente. A nosso juízo as demais possibilidades elencadas na citada Lei, quando aplicadas de forma primária, são ilegais.
Com isso, acreditamos que a prisão preventiva só poderá ser decretada quando descumprida injustificadamente a eventual obrigação cautelar diversa da prisão anteriormente deferida. Para que a discussão não se estenda, ficaremos atrelados ao
objeto deste estudo – que são os artigos 302 e 313 da Lei nº. 7492/86, também conhecida
como Lei do Colarinho Branco.
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“Mais uma falha legislativa na tentativa desesperada de retificar o Código de Processo Penal. Análise feita à luz da Lei nº. 12.403/11” (disponível em www.araujopinheiro.com.br)
2 Art. 30. Sem prejuízo do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, aprovado pelo
Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, a prisão preventiva do acusado da prática de crime previsto nesta lei poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada (VETADO).
3 Art. 31. Nos crimes previstos nesta lei e punidos com pena de reclusão, o réu não poderá prestar
fiança, nem apelar antes de ser recolhido à prisão, ainda que primário e de bons antecedentes, se estiver
2 Não há dúvidas de que a cláusula “sem prejuízo do disposto no Código de Processo Penal” (art. 30 da Lei nº. 7492/86) leva o intérprete a analisar o contexto da forma como melhor lhe favoreça, de modo que a referida expressão poderá ser interpretada conforme a oportunidade e a conveniência do julgador, para que a “magnitude da lesão causada” possa fundamentar a eventual decretação da prisão preventiva, e agirá como razão autônoma para a prisão preventiva, o que estará fundamentada como um dos requisitos do artigo 312 do CPP (garantia da ordem pública).
No presente estudo a expressão “magnitude da lesão” seguirá a interpretação da evolução jurisprudencial atinente à Lei nº. 7492/86. Não nos vincularemos à “magnitude da lesão” interpretada em outras espécies de delitos, dentre os quais os delitos contra a ordem tributária que também não admite a privação da liberdade com base na magnitude da infração, sem que outros elementos concretos e atuais possam
fundamentar a privação da liberdade4.
Evolução jurisprudencial
No dia 13 de junho de 2001 ocorreu o emblemático julgamento do HC 80717, cuja relatoria para Acórdão foi conferida à Ministra GRACIE. Por maioria de votos, o Pleno do Supremo Tribunal Federal acompanhou o voto divergente da Ministra GRACIE para, no mérito, indeferir a revogação da prisão preventiva do agente envolvido em suposta fraude praticada no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Ressaltou-se, no voto vencedor, que apesar de a “magnitude da lesão” não ser considerada razão autônoma para a decretação da preventiva, deve ser considerada, quando presentes os
4 No julgamento do HC 86620, Relator Ministro Eros Grau, foi deferida a ordem de habeas corpus para
que fosse revogada a prisão preventiva do agente acusado de crime contra a ordem tributária, decretada com base na magnitude da infração.
3 pressupostos que a autorizam, interpretando-se a garantia da ordem pública como
magnitude da lesão patrimonial5.
Apesar de ter sido apertado o placar do referido julgamento para que fosse indeferida a
ordem6, muitas interpretações favoráveis ao decreto de prisão preventiva, com respaldo
exclusivo no artigo 30 da Lei nº. 7.492/86 foram disseminadas pelo País.
No dia 17 de dezembro de 2002, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o HC 24798, cuja Relatoria foi conferida ao Ministro FISCHER, manteve a ordem de prisão cautelar de agente acusado de obter fraudulentamente empréstimo junto ao Banco do Brasil. Prevaleceu à interpretação assentada no julgamento do HC 80717/STF, cuja fundamentação dada pelo Ministro FISCHER seguiu o mesmo entendimento da Ministra GRACIE, ressaltando-se que: “E, noutra oportunidade, o Pleno da Corte Excelsa entendeu legítima a prisão cautelar de autor de crime contra o sistema
financeiro, ainda que fundamentada unicamente na magnitude da lesão7”
Conforme afirmamos anteriormente, foi apertado o placar no julgamento do HC 80717. Aliás, o voto vencido exarado pelo, à época, Ministro PERTENCE é, a nosso juízo, o que mais se compatibiliza com as características da prisão cautelar. Afirmou-se que não se pode presumir violação a ordem pública pela análise da magnitude da lesão
5 “Esta me parece ser a leitura adequada da cláusula “sem prejuízo do disposto no art. 312 do CPP”
inserida naquele dispositivo. Isso significa que a magnitude da lesão não é razão autônoma para decretação da preventiva, mas que essa dimensão deve ser considerada, quando presentes os pressupostos que a autorizam.”
6 “Decisão: O Tribunal, por maioria, indeferiu a ordem quanto à nulidade do julgamento procedido por
força do habeas corpus impetrado perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo), vencidos os Senhores Ministros Sepúlveda Pertence (Relator), Ilmar Galvão, Celso de Mello e o Presidente. E, por maioria, indeferiu o habeas corpus, relativamente à prisão preventiva, vencidos os
Senhores Ministros Sepúlveda Pertence (Relator), Ilmar Galvão, Celso de Mello e o Presidente, que
também ficou vencido quanto à concessão de habeas corpus de ofício, pelo excesso de prazo. Presidiu o julgamento o Senhor Ministro Marco Aurélio. Redigirá o acórdão a Senhora Ministra Ellen Gracie. Plenário, 13.6.2001.”
7 No julgamento do HC 24798, Relator Ministro Felix Fischer, 5ª Turma do STJ, declarou-se legítima a
prisão cautelar do agente que supostamente havia cometido crime contra o sistema financeiro nacional, unicamente, em razão da magnitude da lesão.
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patrimonial, sob pena de tornar inconstitucional a norma8. Disse ainda que a presunção
de culpa pela lesão fere o normativo constitucional de que ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória9. E arrematou a sua
brilhante exposição argüindo que a “magnitude da lesão” não pode constituir razão autônoma para justificar o decreto de prisão preventiva, pois haverá inserção de norma
não prevista no Código de Processo Penal10.
Com a chegada do Ministro MENDES à Corte Constitucional (20/06/2002) muitos paradigmas foram superados, de modo que interpretações vencidas no julgamento do HC 80717/STF ressurgiram como forma enigmática e, para muitos, contrárias ao povo brasileiro. Surge a nova era da aplicação dos direitos e garantias individuais. A técnica na interpretação da norma que trata sobre privação de liberdade começa a ganhar espaço entre aqueles que criticavam o garantismo penal.
A máxima de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória - brilhantemente interpretada pelo à época Ministro PERTENCE naquele emblemático julgamento - pôde, enfim, ser ratificada pelo Ministro MENDES no dia 13 de dezembro de 2005, quando do julgamento do HC 85615. Concedeu-se a ordem de habeas corpus ao agente acusado de gerir fraudulentamente instituição financeira (art. 4º da Lei nº. 7.492/86), reafirmando-se que a magnitude da lesão provocada não pode ser sucedâneo autônomo para embasar o
8 “se se cuida de estabelecer uma presunção absoluta de abalo da ordem pública pela só magnitude da
lesão patrimonial alegadamente resultante do crime, a sua inconstitucionalidade é chapada”
9 Uma tal presunção teria por pressuposto lógico a afirmação de responsabilidade do acusado pela lesão
acarretada, o que obviamente é repelido pela consagração constitucional da garantia de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 5º, LVII)”
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“A cláusula “sem prejuízo do disposto no art. 312 do C.Pr. Pen., se pode emprestar, no contexto, o significado de que a magnitude da lesão passa a constituir uma razão autônoma para a prisão preventiva, além das previstas no preceito referido no Código – hipótese em que a terá revogado a constituição, por inconstitucionalidade superveniente.”
5 decreto prisional, rechaçando-se o decreto de prisão preventiva motivada com base na
garantia da ordem econômica11.
Entrelinhas, o que foi decidido no HC 85615/STF foi tão forte e positivo para a quebra de paradigmas, que o próprio Ministro FISCHER, em 12 de setembro de 2006, alterou o seu posicionamento para “declarar inconstitucional” a razão autônoma do artigo 30 da Lei nº. 7.492/86, de modo que passou a exigir a concomitância dos requisitos do artigo 312 do CPP para que a prisão preventiva fosse decretada como garantia da ordem pública ou econômica: “A três, porque o art. 30 da Lei nº 7.492/86, ao mencionar a magnitude da lesão supostamente causada pela prática, em tese, criminosa, não dispensa, para a imposição da custódia cautelar, os requisitos do art. 312 do Código de
Processo Penal12”. Aliás, Sua Excelência Ministro FISCHER fundamentou a alteração
de seu posicionamento com base no HC 85615/STF.
A evolução história da interpretação do artigo 30 da Lei nº. 7492/86 demonstra uma manifesta quebra de paradigmas. Se quando do julgamento do HC 80717/STF havia uma corrente com formação ideológica para a interpretação da norma constitucional com vista a exigir a prisão como forma de resposta imediata à sociedade, hoje não há. Aos que criticam o posicionamento hermenêutico e garantista inicialmente sustentado pelo então Ministro PERTENCE, e agora confirmado por grandes julgadores, chegou o momento de refletir sobre a falência do instituto da condenação antecipada.
Apesar de criticarmos o texto legislativo insculpido na Lei nº. 12403/11, não há dúvidas de que o legislador tem se preocupado em racionalizar o instituto da prisão, de modo a resguardar a satisfação final do processo. Evoluir significa quebrar paradigmas e
11 “Com relação à garantia da ordem econômica, observa-se que, diferentemente do entendimento firmado
por este Tribunal no precedente referido (HC nº. 80.717-SP), a magnitude da lesão provocada foi invocada no decreto prisional como elemento autônomo para a custódia cautelar. Assim, de igual modo, não vislumbro fundamentação idônea da decretação da prisão preventiva com base na garantia da ordem econômica”
12 Recurso Especial 772504/PR, Relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma do Superior Tribunal de
6 aprimorar normas. Nesse passo, as novidades introduzidas pela citada Lei 12403/11 reforçaram a tese daquele voto vencido proferido pelo então Ministro PERTENCE (HC 80717) ao exigir fundamentação idônea e dogmática, ou seja, com respaldo na letra da referida Lei, que exige: a) o descumprimento injustificado de obrigação cautelar anteriormente decretada pelo juiz (caráter secundário); b) que a pena máxima do delito seja igual ou superior a cinco anos; c) que o agente seja juridicamente reincidente.
Portanto, se desde o julgamento do HC 85615/STF ratificou-se a quebra de paradigma inicialmente argüida pelo voto vencido do Ministro PERTENCE no julgamento do HC 80717, proibindo-se a decretação da prisão preventiva com respaldo na razão autônoma da “magnitude da lesão” (art. 30 da Lei nº. 7492/86), com o advento da Lei nº. 12403/11 - que transformou a prisão processual em caráter subsidiário, e passou a exigir o descumprimento injustificado de norma cautelar anteriormente decretada para que o julgador pudesse motivar o decreto de prisão preventiva – acreditamos que o citado artigo 30 da Lei nº. 7.492/86, além de apresentar manifesta inconstitucionalidade superveniente, está tacitamente revogado.
Se de um lado a “magnitude da lesão” não pode ser interpretada como razão autônoma para a prisão preventiva, de outro, a evolução jurisprudencial demonstra que o referido artigo 30 é norma “morta”, na medida em que deverá ser interpretado em conformidade com o artigo 312 do CPP – que até o advento da Lei nº. 12403/11 era visto como norma autônoma e que impossibilitava o julgador de aplicar medida diversa da prisão (ou decretava a prisão preventiva ou não). Aliás, se antes da publicação da Lei nº. 12403/11 já se questionava a constitucionalidade do artigo 30 da Lei nº. 7.492/86, agora não há dúvidas de que o referido artigo 30 não tem aplicação prática, porquanto deverá ser interpretado em conformidade com o disposto na Lei nº. 12403/11, de modo que a “magnitude da lesão” não será fundamento idôneo para a decretação da prisão preventiva.
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Aliás, se antes da publicação da Lei nº. 12403/11 o artigo 3113 da Lei nº. 7.492/86 era
“letra morta”, pois o próprio artigo 324, IV do Código de Processo Penal14 impedia a
concessão de fiança quando presentes os requisitos que autorizavam a prisão preventiva, com o advento daquela Lei, à concessão de fiança passou a ser tratada como “obrigação” do julgador, tornando inaplicável a letra do artigo 31 da Lei nº. 7.492/86, pois, agora, a prisão preventiva é tratada como meio secundário na instrução, de modo
que a concessão de fiança - por ser medida diversa da prisão (art. 319, VIII do CPP15) -
deverá ser utilizada como meio de cautela inaugural pelo julgador, ou seja, deverá ser arbitrada antes da eventual decretação da prisão preventiva, nos termos do artigo 282, § 6º do CPP: “A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).”
Igualmente, é despiciendo anotar (mas não menos importante) a incompatibilidade da cláusula prevista no mesmo artigo 31 da Lei nº. 7.492/86 “nem apelar antes de recolhido à prisão”. Primeiro, porque se o agente permaneceu solto durante a instrução criminal, não estão presentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva. Segundo, porque a apelação de sentença condenatória terá efeito suspensivo (art. 597 do
CPP16). Portanto, o fato de se tratar de crime contra o Sistema Financeiro não é requisito
automático para que o encarceramento do agente que permaneceu solto durante a instrução criminal, porquanto ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII do CF).
13 Art. 31. Nos crimes previstos nesta lei e punidos com pena de reclusão, o réu não poderá prestar
fiança, nem apelar antes de ser recolhido à prisão, ainda que primário e de bons antecedentes, se estiver
configurada situação que autoriza a prisão preventiva.
14 Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança:
IV – quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).
15 Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
VIII – fiança, nas infrações que admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial.
16 Art. 597. A apelação de sentença condenatória terá efeito suspensivo, salvo o disposto no art. 393, a
aplicação provisória de interdição de direitos e de medidas de segurança (arts. 374 e 378), e o caso de suspensão condicional da pena.
8 As considerações que fizemos – longe de serem as melhores e as mais corretas – podem levar ao leitor informações preciosas a respeito da evolução jurisprudencial e dogmática que aconteceram na última década. Não temos dúvidas de que o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da aplicabilidade e manutenção do instituto da prisão processual mudou e continuará mudando. Apenas três Ministros (GRACIE, MARCO AURÉLIO E MELLO) que participaram daquele julgamento emblemático que reiteradamente nos referimos neste artigo (HC 80717) continuam na Corte Constitucional. Uma coisa é certa: o instituto da prisão processual nunca será o mesmo (para o bem ou para o mal) após a publicação da Lei nº. 12.403/11.