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OVÍDIO E O TRÁGICO MÁRCIA REGINA DE FARIA DA SILVA (FFP-UERJ E UERJ)

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OVÍDIO E O TRÁGICO

MÁRCIA REGINA DE FARIA DA SILVA

(FFP-UERJ E UERJ)

RESUMO:

Ovídio, poeta latino do século I a.C., compôs muitas obras das quais a grande maioria era em versos elegíacos. Apesar de escrever elegias, consideradas entre as composições poéticas do gênero lírico, ele deu uma conotação trágica muito acentuada a pelo menos uma de suas obras: as “Heroides”, cartas de heroínas do mito ou da história a seus amados ausentes. Como as cartas tratam da perda amorosa, podemos delinear, por trás dos versos elegíacos a trajetória trágica das personagens.

Desde a Antigüidade há uma preocupação em caracterizar as obras literárias de acordo com um gênero específico.

Aristóteles, na Poética, parte da imitação, que para ele é o princípio unificador de todos os textos poéticos e estabelece a diferenciação dos meios pelos quais a imitação acontece, os obje-tos imitados e os modos de imitação. Segundo os meios de imita-ção há poemas que utilizam o ritmo, o canto e o verso ao mesmo tempo como os ditirambos e os nomos; há poemas em que esses

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recursos são usados só parcialmente como a comédia e a tragédia; e há poemas em que apenas um dos elementos é utilizado como a epopéia. De acordo com os objetos imitados – os homens em ação – poderemos ter a imitação dos homens como são (as tragédias de Cleofonte), melhores do que são (a epopéia e as tragédias), ou piores do que são (as comédias). O modo de imitar também difere como vemos nas palavras do próprio Aristóteles1:

Existe uma terceira diferença, segundo a maneira de imitar cada um dos modelos. Com efeito é possível imitar os mes-mos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa, ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou insi-nuando-se a própria pessoa sem que intervenha outra perso-nagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de per-sonagens que vemos agirem e executarem elas próprias.

Em Roma, Horácio, na “Epistola ad Pisones ou Ars poeti-ca”, utiliza toda a tradição anterior e acrescenta a ela a importân-cia da unidade de tom que vincula os textos literários a um único gênero, devendo o autor ter cuidado em não misturá-los.

Como percebemos pela classificação dos autores mencio-nados, a poesia lírica nos moldes hodiernos não se enquadra em nenhuma delas.

Somente no Renascimento houve uma ampliação da con-cepção mimética da arte, adquirindo esta a possibilidade de imita-ção não só de ações mas também de conceitos, sendo incluído,

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portanto, o lírico como um dos três gêneros literários: épico, lírico e dramático.

Prevaleceu até o classicismo francês a regra da unidade de tom, determinando que uma obra não poderia mesclar gêneros. Com o maneirismo e o barroco, contudo, começa o questionamento do assunto e aceitando-se os gêneros híbridos ou mistos, que vai gerar a querela entre antigos e modernos, contenda entre os defensores do gênero puro e os simpatizantes do hibridismo, ligado à historicidade do gênero literário, que variaria de acordo com os valores do homem e de sua época.

A discussão estendeu-se por séculos, e muitos autores pro-nunciaram-se a favor ou contra a mistura de gêneros. Mas com o advento do evolucionismo e da preocupação com a historicidade, admitiu-se inequivocamente não só a mistura de gêneros mas também a subdivisão e a existência novos gêneros.

Muitos teorizaram a respeito da mistura de gêneros nas o-bras, mas dois autores, em especial, interessam ao nosso estudo: Emil Staiger, em Conceitos fundamentais da poética, e Northop Frye, em Anatomia da crítica. Staiger aborda as classificações fechadas e substantivas de gêneros que pretendem sempre classi-ficar as obras dentro da lírica, da épica ou do drama. Ele propõe que existe uma noção adjetiva e, dessa forma, as obras seriam classificadas através da predominância de traços estilísticos líri-cos, épicos ou dramáticos e, ainda, segundo suas próprias pala-vras:

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(...) apenas chamo a atenção para um ponto: uma obra ex-clusivamente lírica, exex-clusivamente épica ou exclusivamen-te dramática é absolutamenexclusivamen-te inconcebível: toda obra poéti-ca participa em maior ou menor espoéti-cala de todos os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor participação, de-signamo-la lírica, épica ou dramática2.

Frye também compartilha da idéia de que uma obra pode possuir aspectos líricos, sem ser necessariamente lírica ou trági-cos sem ser precisamente uma tragédia. Em suas palavras: “... podemos acrescentar o corolário de que a tragédia é algo maior do que uma fase do drama grego. Podemos também achar a tragédia em obras literárias que não são dramas.”3

Como já dissemos na introdução, abordaremos as “Heroi-des” em seus aspectos trágicos. Mas iniciamos com essa noção de gêneros para observarmos como seria difícil classificar essa obra de Ovídio dentro dos conceitos fechados de gênero literário.

Apesar de termos visto que a poesia lírica na concepção moderna não figurava entre os gêneros literários da Antigüidade, notamos que a elegia está atrelada à concepção antiga de lírico.

A poesia lírica, inicialmente, designava todo poema que não era para ser recitado, mas cantado ao som da lira.

Na Grécia, era considerado lírico todo poema cantado a-companhado de um instrumento musical de corda ou sopro. Em

2 Cf. Staiger, E., 1974, p. 190. 3 Cf. FRYE, N., 1957, p. 98.

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Roma, acontece a separação entre música e poesia. Com isso, acrescem-se aos versos traços musicais como o ritmo, a alitera-ção, entre outros que acentuam a sonoridade.

Na Grécia, há dois momentos distintos na lírica: a lírica ar-caica (séc. VII a V a.C.) e a lírica alexandrina (séc. III e II a.C.).

A lírica arcaica surge no momento em que, com as coloni-zações, a economia volta-se para o comércio e as navegações, crescendo, desse modo, o individualismo. Ela está ligada a uma longa tradição de caráter religioso como os cantos a Himeneu, deus do casamento, e profano, ligado a atividades cotidianas e cantigas populares, que evidenciam o sentimento.

O poema lírico mostra os sentimentos e as emoções e tam-bém a vida da pólis. Nas composições, o poeta exorta, recorda preceitos morais, louva os que demonstram qualidades etc. Para cada tema havia uma estrutura métrica diferente. As principais formas líricas arcaicas, de acordo com o metro e o dialeto, foram: a elegia, o iambo e a mélica ou ode.

No século III a.C., na Grécia, houve uma forte tendência ao individualismo. Outros centros culturais do helenismo, especial-mente, Alexandria, no Egito, onde se reuniam sábios e escritores, também vivenciavam essas tendências em suas poesias. Esse pe-ríodo chamar-se-á alexandrino e os principais poetas são Calíma-co, Apolônio de Rodes e Teócrito entre outros. A época apresen-ta-se carregada por um sentimento de renúncia, de desilusão e de desconfiança por tudo que indicava grandeza. Daí a rejeição da

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epopéia e do drama e a busca por formas poéticas pequenas: a elegia, de conteúdo amoroso e mitológico; o poema erótico; os epílios, nos quais os episódios mitológicos davam lugar a cenas cotidianas, e, especialmente, ao amor; o idílio e a poesia bucólica, ambos criados nesse período.

A lírica alexandrina é caracterizada pelo culto à forma, pela busca da expressão rara e pelo distanciamento da linguagem co-loquial, proporcionados pelos anseios de erudição.

O período alexandrino inspirou os poetas romanos do sécu-lo I a.C., descontentes com os modesécu-los de Homero e dos trágicos, imitados por Névio e Ênio, sacudidos por guerras externas e in-ternas, ansiosos por uma poesia que falasse do individualismo do poeta, de seus amores, amizades e inimizades, que privilegiasse o

otium em detrimento do negotium. Era o momento do lirismo em

Roma. Surgem, assim, os denominados pejorativamente, por Cí-cero, νεωτεροι ou poetae noui, que contavam com Publio Valério Catão, Licínio Calvo, Hélvio Cina, Fúrio Bibáculo e Catulo, o maior desses poetas.

A elegia, em sua origem, era uma poesia composta dos chamados dísticos elegíacos, ou seja, um hexâmetro e um pentâ-metro. Segundo Spalding a elegia era “.... transição do ritmo uni-forme da epopéia para a variedade quase infinita dos sistemas líricos; era, portanto, a mediadora entre epopéia e poesia lírica”4.

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Distancia-se da épica, entretanto, pelo subjetivismo e espontanei-dade.

Na Grécia, desenvolve-se como forma poética já no século VII a.C., sendo usado o dístico elegíaco em inscrições ou em po-emas cantados ao som da flauta. Quanto aos tpo-emas tratados eram muito variados: celebrações religiosas, feitos militares, dedicató-rias, epitáfios, etc., não podendo, pois, ser classificada como ele-gia, através somente desse prisma. Nesta época, vemos como adeptos dessa poesia Calino, Tirteu e Mimnerno, porém o tema amoroso não era o principal, só tendo sido tratado pelo terceiro poeta. Mas não se pode esquecer que René Martin e Jacques Gail-lard5 nos dizem que, na Grécia Antiga, a elegia não foi

propria-mente um gênero literário, pois os poemas em dísticos elegíacos não tinham unidade de tema nem de tom e, por isso, poderiam ser considerados como sátiras, epigramas, poesia didática, mas não verdadeiramente elegias.

Foi no período alexandrino que a elegia se tornou popular, através de autores como Calímaco e Fílitas. Nessas poesias, a preocupação com a forma é fundamental, entrando em tensão com a matéria, gerando o problema entre inspiração e artificialismo. Para os poetas, a temática amorosa era muito ligada a heróis e heroínas mitológicos. Foram justamente esses elegíacos que in-fluenciaram a elegia romana.

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Em Roma, o primeiro a se destacar nesse estilo foi Catulo em meados do século I a.C., que escreveu entre seus poemas mui-tos dedicados a Lésbia, nome que ele deu à mulher amada, inau-gurando esse tipo de poesia dedicada a uma mulher específica, que influenciará grandemente a geração de elegíacos posterior.

O século I a.C. foi um período conturbado em Roma. Épo-ca de guerras civis que, porém, após a vitória de Augusto, foi também um período de paz, portanto propício à poesia subjetiva e, especialmente, amorosa.

Com o término das guerras civis, Roma tornou-se o centro do mundo e os romanos puderam se dedicar ao otium contempla-tivo e desenvolver a verdadeira poesia latina, pois já não havia mais preocupações com a guerra e podiam se voltar para o interi-or, para seus sentimentos e sua visão de mundo, para seus amores. Isso levará a uma geração de poetas que expõe sua subjetividade e seus sentimentos. Como diz Mlle A. Guillemin “poesia de paz,

poesia de amor...”6. E, assim, desenvolveu-se a poesia elegíaca romana.

Segundo Pierre Grimal7, foi a chegada de Partênio de Nice

a Roma que precipitou o desenvolvimento da elegia, pois transmi-tiu aos romanos, inclusive a Catulo, seus conhecimentos sobre Calímaco, além de escrever para Cornélio Galo, o primeiro

6 Cf. GUILLEMIN, A., 1939, p. 288. (“Poésie de la paix, poésie de

l’amour...”)

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aco da época de Augusto, cuja obra se perdeu, uma obra em prosa intitulada “As paixões de amor”, com muitas histórias de amor, pouco conhecidas, tiradas de autores gregos. Talvez isso explique o fato de muitas das referências mitológicas feitas pelos poetas elegíacos romanos serem quase desconhecidas.

No período augustano, especialmente, com Tibulo, Propér-cio e Ovídio, a elegia ganha caráter de um gênero elevado que quer a imortalidade. Esses poetas escrevem livros inteiros de ele-gias, normalmente dedicados a uma mulher, como Délia, em Ti-bulo e Cíntia, em Propércio, sendo que esses pseudônimos não deixam transparecer a identidade de suas amadas.

Ovídio inicia a composição do primeiro período de sua o-bra, intitulado, por Ettore Paratore8, de ciclo erótico, todo escrito

em dísticos elegíacos. Primeiramente, escreveu os “Amores” que são poemas nos quais o poeta canta sua paixão por Corina, perso-nagem representativa de todas as mulheres que ele amou. Essa obra possuía, inicialmente, cinco livros, sendo resumida a três pelo poeta. Sua obra seguinte foi as “Heroides”, cartas imaginá-rias enviadas por heroínas gregas e romanas a seus amantes, pro-cedente de diversas fontes, que será o objeto de nossa tese; teve influência da retórica e logrou bastante sucesso na época. A “Ars Amandi” ou “Ars Amatoria”, em três livros, explica a arte de amar, poema profundamente licencioso e, por isso, acredita-se que tenha contribuído para o exílio do poeta, devido a moral

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posta por Augusto. Foi uma das grandes obras de Ovídio, na qual mostra seu engenho e arte com bom-senso e elegância. O “Reme-dium Amoris” fala sobre os meios de se combater o amor, tem, porém, menos méritos que a “Arte de Amar”. O “Medicamina Faciei” é um livro no qual o poeta versa sobre cosméticos femini-nos.

Após as composições destas obras, Ovídio passa a sua se-gunda fase, escrevendo “As Metamorfoses”, em 15 livros. Foi a obra mais grandiosa de Ovídio, na qual ele narra as mutações mitológicas desde a origem do mundo até a apoteose de César. Depois começou a escrever os “Fastos”, que deveriam ter 12 li-vros, porém só 6 ficaram prontos, pois foi desterrado; essa obra é uma explicação em versos elegíacos do calendário romano. Inici-am-se aqui as composições do desterro, onde escreveu “Ibis”, durante a viagem, poema imitado de Calímaco; “Tristia”, em 5 livros, elegias lastimando o desterro e pedindo perdão; “Epistulae ex Ponto”, em 4 livros, tendo a mesma temática anterior, porém possuindo o nome do destinatário. Escreveu ainda, após observar os costumes em Tomos, a “Halieutica”, obra didática sobre os peixes do Mar Negro.

Pela observação de suas obras, pode-se notar que Ovídio ampliou os temas elegíacos romanos. Iniciou com as elegias amo-rosas para uma determinada mulher, em Amores; depois abordou o amor de personagens míticas, nas “Heroides”; transferiu o eixo do amor para a conquista amorosa, em “Ars Amandi”; e,

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final-mente, inaugurou uma elegia intimista sem ligação com a temáti-ca amorosa, em “Tristia e Pontitemáti-ca”.

Como observamos, Catulo, Tibulo e Propércio inspiraram-se em sua vida pessoal, em inspiraram-seus próprios amores. Ovídio não. Usou amores inventados. E segundo Grimal9:

No entanto exatamente por isso Ovídio é testemunha de sua época. Seus predecessores haviam sido em larga medida tes-temunhas de si mesmos. Ovídio, ao contrário, representa fi-elmente a opinião de seus contemporâneos sobre o amor, a idéia que faziam de seu papel na vida das criaturas, da parte que convinha lhe atribuir, dos objetivos que ele perseguia.

Em Roma, como vimos, a elegia surge como gênero poéti-co dedicado ao amor, passando de uma poesia que exaltava a paixão vivida pelo poeta a uma poesia que teoriza os sofrimentos amorosos “universais”. Na verdade, ainda citando Grimal10,

“coube a Ovídio fazer uma espécie de balanço de um meio século de amores do qual Roma saía transformada, após uma crise moral que destruíra velhas concepções de sete séculos.”

Para Ovídio amar é o mesmo que desejar, mantendo a pró-pria etimologia latina em que o verbo amare remete a ser amante. Com isso, Ovídio canta os amores ilícitos e não as uniões legíti-mas. Mesmo nas “Heroides”, quando remete cartas de mulheres a esposos ausentes, observamos que o modo de amar e a

9 Cf. GRIMAL, P., 1991, p. 155. 10 Ibidem, p. 156.

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de com que o amor consome as protagonistas míticas as torna semelhantes aos amores das cortesãs. É ainda Grimal quem nos diz que “Penélope, Ariadne, Laodâmia pensam e sentem como cortesãs – mas porque o amor das cortesãs é o que melhor permite chegar à plenitude e à verdade da paixão.”11

O drama da época elegíaca romana está centrado justamen-te na oposição amare (amor carnal) X bene uelle (justamen-ternura de cora-ção). Os homens e também os poetas iniciavam na ternura e não podiam realizar o prazer com a esposa, enquanto com a cortesã começavam pelo prazer, mas dificilmente chegavam ao bem que-rer. De certa forma, as “Heroides” sintetizam os dois anseios.

Ovídio, através das “Heroides”, consoante Armando Salvatore12, traz para a elegia uma nova característica, que

distingue esse autor em relação aos demais elegíacos, a capacidade de aprofundar e mostrar os sentimentos das mulheres. Catulo, Tibulo e Propércio e, nos “Amores”, o próprio Ovídio, fazem em alguns poemas análise dos sentimentos da mulher, mas nas “Heroides” há um aprofundamento dos sentimentos, especialmente, das dores e aflições sentidas com as separações ou abandonos amorosos. Não podemos deixar de citar a análise que Paul Veyne, no livro “A elegia erótica romana”, faz dos poemas elegíacos e de seus autores. Segundo ele

11 Ibidem, p. 163.

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(...) Propércio, Tibulo e, na geração seguinte, Ovídio, decidi-ram-se a cantar na primeira pessoa, com seu verdadeiro nome, episódios amorosos e a relacionar esses diversos episódios a uma só e mesma heroína, designada por um nome mitológico; (...)

Isso nós já havíamos dito de certa forma, porém o que faz com que Veyne mostre uma visão diferenciada é o fato de tentar demonstrar que não há relação entre o eu, que ele chama de Ego, e a vida real do poeta. Normalmente, imaginava-se o poeta e a sua amada como figuras reais e que o poeta de fato se sentia apaixo-nado por essa mulher real e cantava efetivamente seus amores reais. Mas, de acordo com Veyne, a elegia é, na verdade, um jogo irônico para divertir o público da época. Ele justifica essa idéia através do desenvolvimento de dois pontos: o fato de o Ego en-contrar-se em uma situação de submissão total ou escravidão em relação à amada e o fato de sua entrega total à paixão.

Tanto um fato como outro não seriam aceitos pela socieda-de romana, pois a paixão era tida como algo socieda-destrutivo, uma ver-dadeira doença, conforme nos ensina Lucrécio. E a sujeição total de um homem também não era aceita na sociedade, ainda mais com o agravante de ser a uma mulher de vida irregular, uma cor-tesã ou uma liberta.

Com esses argumentos, Veyne busca demonstrar que as e-legias só foram apreciadas na época porque na verdade elas usa-vam de ironia em relação a essas relações amorosas. Seria,

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segun-do ele, efetivamente um pastiche da realidade, uma representação teatral.

Ela (a elegia) não descreve nada em absoluto e não impõe a seus leitores que pensem na sociedade real; ela se passa num mundo de ficção onde as heroínas são também mulheres levianas, onde a realidade só é evocada por flashes, e por flashes pouco coerentes; de uma página a outra, Delia, Cíntia poderiam ser cor-tesãs, esposas adúlteras, mulheres livres; o mais freqüentemente, não se sabe o que elas são e não se está preocupado com isso; são mulheres de vida irregular, é tudo. Não seria preciso mais do que isso para se estabelecer entre o Ego, a heroína e o narratário esses jogos de espelhos, de olhares de esguelha e de falso natural de que falávamos. Esta irregularidade não é uma parte da vida de nossos poetas e de sua suposta amante, mas uma peça de um sis-tema; ela representa a lei do gênero, desempenha um papel que chamaremos de semiótico.13

Se por um lado, sua visão é discutível em relação a Propér-cio e Tibulo, por outro, em relação a Ovídio, notamos que já é de praxe não se conseguir fazer uma associação de sua Corina, nos

Amores, com uma mulher real.

Nas “Heroides”, essa visão de uma representação teatral amorosa é perfeitamente adequada, pois ele não mais se utiliza de um Ego que tenha uma contraponto na realidade, o próprio Ego é

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uma personagem ficcional, pois ou é mítica ou já não vive, como Safo, a única tirada da realidade.

Na obra, notamos o desenvolvimento do sofrimento amoro-so em uma esfera mítica, portanto aceitável do ponto de vista social, já que não aborda pessoas da sociedade, mas personagens. Além disso a ficcionalidade que conduz à teatralidade conduz, como veremos, ao trágico.

O trágico se revela, segundo a definição dada por Staiger:

Quando se destrói a razão de uma existência humana, quando uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico. Dito de outro modo, há no trágico a explosão do mundo de um homem, de um povo, ou de uma classe14.

É exatamente isso que acontece com Dido: ela construía um novo reino, que representava, perante seu irmão e os povos vizinhos, sua “volta por cima” em relação à morte de seu marido e à fuga de Tiro.

Nec noua Carthago, nec te crescentia tangunt Moenia nec sceptro tradita summa tuo? ... Quando erit ut condas instar Carthaginis urbem

Et uideas populos altus ab arce tuos? (Her., VII, 13-14; 21-22)15

Nem a nova Cartago, nem as muralhas que crescem

14 Cf. STAIGER, E., 1974, p. 147.

15 Todos os fragmentos em latim são retirados de OVIDE. Héroïdes.

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nem o lugar mais elevado dado a teu cetro te impressionam? ... Quando será que fundas uma cidade à semelhança de Cartago e altivo vejas da fortaleza teus povos?

Cartago é apresentada como uma cidade em pleno desen-volvimento (noua Carthago). E não é uma cidadezinha qualquer, mas uma grande cidade. Pode-se notar isso através da palavra

moenia. Ora, as muralhas representam uma cidade que deverá vir

a ser uma fortaleza e isso é percebido claramente nas “Heroides”, pois Dido duvida que Enéias possa um dia fundar uma cidade tão importante quanto Cartago. Vemos isso através do emprego do advérbio interrogativo com a nítida idéia de tempo juntamente com o verbo sum no futuro imperfeito do indicativo (quando erit), introduzindo uma oração com a conjunção ut acompanhada do verbo condo de 3.a conjugação no presente do subjuntivo

(con-das). E, ainda, confirma a idéia da grandeza do reino de Dido a

palavra arce, usada para indicar que, se Enéias permanecesse junto da rainha, ele teria um lugar de onde pudesse ver essa forta-leza que seria, obviamente, também sua.

Mas Dido apaixona-se e aí começa a explosão de seu mun-do. Howard Jacobson16 diz que se pode suspeitar do fato de a cidade estar crescentia em Ovídio, devendo ser apenas um eco da

Eneida, pois no verso seguinte é utilizada a palavra facta que dá

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idéia de que a cidade já está pronta (Facta fugis, facienda petis: (...) (Her., VII, 15 – Evitas as obras feitas, desejas as que devem ser feitas...). Segundo o citado autor, isso é explicado como um argumento retórico, usado na tentativa de mostrar a Enéias as vantagens de ficar ao lado da rainha. Utilizando esta idéia, nota-mos que realmente parece que a retórica é que fundamenta essas interrogações iniciais (v. 9-24) de Dido, especialmente as aqui analisadas, já que ela está completamente apaixonada e preparan-do-se para o seu trágico fim, como se vê no início da carta, já apresentado no capítulo anterior:

[Accipe, Dardanide, moriturae carmen Elissae;

Quae legis, a nobis ultima uerba legis.] (Her., VII, 1-2) Ouve, Enéias, o canto de Elissa que vai morrer;

o que lês são minhas últimas palavras.]

Tendo em vista este estado de espírito, ela não deveria estar preocupada com as obras para o crescimento da cidade, a menos que a menção a esses fatos fossem apenas para tentar convencer Enéias a ficar.

Ao longo do poema, vemos Dido completamente dominada pela situação amorosa em que se encontra. Situação esta que cul-minará na explosão de seu mundo pessoal, através de sua morte, e, conseqüentemente, na derrocada da cidade em que reinava. Percebemos essa sujeição através da disposição de Dido para estar de qualquer jeito ao lado de Enéias.

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Si pudet uxoris, non nupta, sed hospita dicar;

Dum tua sit, Dido quodlibet esse feret. (Her., VII,167-168)

(Se te envergonhas da esposa, não casada, mas que eu seja chamada forasteira;

conquanto que seja tua, Dido suportará ser qualquer coisa.)

Dido está pronta a aceitar qualquer coisa para ficar ao lado de seu amado. Vemos, com isso, que ela é apresentada como uma simples mulher, frágil e humana ao extremo, que vive o seu amor não como uma heroína, mas sim como um ser humano que sofre e se rebaixa no intuito de conseguir realizar seus desejos amorosos. Essa sujeição já marca a derrocada da rainha, que fora pre-nunciada, no momento em que ela menciona o acontecimento na gruta.

Illa dies nocuit, qua nos decliue sub antrum Caeruleus subitis cumpulit imber aquis. Audieram uocem; nymphas ululasse putaui;

Eumenides fatis signa dedere meis. (Her., VII, 93-96)

(Funesto foi aquele dia, no qual uma tempestade cerúlea com as águas repentinas nos impeliu para a caverna inclinada. Eu tinha ouvido uma voz; pensei que as ninfas tivessem cha-mado; as Eumênides deram presságios aos meus destinos.)

Esta passagem é muito significativa como prenúncio do desfecho trágico da rainha, já que utiliza a antítese entre nymphas e Eumenides unidas ao verbo putaui mostrando nitidamente o

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juízo errôneo que Dido tinha feito naquele dia (illa dies) em que estava cega de amor (nocuit).

As ninfas, segundo Pierre Grimal, “são ‘jovens mulheres’ que povoam o campo, os bosques e as águas. São os espíritos dos campos e da natureza em geral, de que personificam a fecundida-de e a graça. (...) Habitam grutas onfecundida-de passam a vida a fiar e a cantar.”17 Percebe-se, nitidamente, que elas são designadas como

a personificação da fecundidade. O fato de suas vozes serem ou-vidas em uma união designava um bom presságio. Mas Dido ape-nas tinha julgado (putaui) que as ouvira, talvez iludida pelo lugar onde estava que se constitui a habitação de ninfas (antrum). A realidade mostrou a antítese. Não houve nem fecundidade, nem graça em sua união com Enéias, por isso Dido percebe o engano: na verdade eram as Eumênides que se faziam presentes naquele momento. As Eumênides (as Benevolentes) que originalmente eram designadas como Erínias, receberam esse nome, segundo Pierre Grimal18, para que se sentissem lisonjeadas e, com isso, fosse aplacada a sua terrível cólera. Junito Brandão relata que esse nome foi dado às Erínias por Palas Atena, quando os deuses absolvem Orestes do crime de matricídio, indo contra a vontade dessas deusas infernais, que, devido a isso, ameaçavam a cidade de Atenas com a infertilidade da terra. Expõe Junito Brandão:

17 Cf. GRIMAL, P. (1997) p. 331. 18 Ibidem, p. 146-147

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Eis aí o motivo por que a sábia deusa Atená procura a todo custo apaziguar as Erínias, entregando-lhes, até mesmo, como honraria suprema, a proteção de sua cidade, Atenas. Irremedi-avelmente derrotadas, mas ávidas de homenagens e de gló-rias, como se expressam elas própgló-rias, as Erínias, agora Eu-mênides, as Benevolentes, tornar-se-ão a bênção e a dádiva suprema da cidade de Palas Atená.19

É muito interessante Dido chamá-las de Eumênides, não de Erínias, pois também ela demonstra ter a esperança de apaziguar a cólera das deusas e receber delas a proteção.

Através desses apontamentos percebemos, nas “Heroides”, o trágico como foi definido por Staiger, no início deste capítulo.

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