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XIRÊ, TOQUES E TAMBORES SAGRADOS: O CORPO NA MÚSICA 1

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Academic year: 2021

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XIRÊ, TOQUES E TAMBORES SAGRADOS: O CORPO NA MÚSICA1

Heloisa Lima de Carvalho2

Resumo: Este artigo tem como objetivo fazer a interface entre o corpo, música e dança na performance do Candomblé. Vislumbrando as tradições orais dos negros africanose mostrando que o corpo exerce um papel fundamental no mundo da vida se expressando através do cantar, do tocar e do dançar nos terreiros das religiões afro-brasileiras nas suas complexidades éticas e estéticas. Enfatizar a importânciada música em todos os rituais despertando os Orixás através das cantigas e dos toques dos tambores sagrados dos terreiros do Candomblé.

Palavras-chave: Corpo. Música. Candomblé.

1 Introdução

Pretendemos neste artigo fazer a reflexão acerca do corpo e seu envolvimento com a música nos terreiros do Candomblé, mostrando que este é a afirmação da existência do ser. É como corpos, como sujeitos encarnados que nos atamos ao mundo, que nele vivemos, que nele nos situamos, que conhecemos. É no mundo que nos movimentamos e ao qual atribuímos sentidos. Essa projeção do corpo no mundo. Esse corpo que conhece e que é condição de existência não cria hierarquias entre o pensar e o sentir, não os dicotomiza.

Nessa perspectiva a música está associada ao corpo humano, conforme Godinho (2006) é inevitável nessa associaçãoo fato da produção musical ser dependente da atividade física, seja nas cordas vocais, dos batimentos corporais, como também de todos os movimentos que se fazem necessários para a execução musical. O corpo está totalmente envolvido, não temos como dissociar, conformeMerleau-Ponty (1999) “ eu sou meu corpo”, portanto inseparável de todas as ações.

1Trabalho da disciplina “Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas I:Pensamento Musical” do

Programa do de Pós-Graduação dos Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, ministrada pelo Professora Doutora Tais Helena Palhares.

2Mestranda do Programa de Pós-Graduação dos Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade

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Abordaremos a contribuição dos negros africanos que aqui chegaram embarcados nos navios negreiros, na maioria banto3, “os africanos chegam despojados de tudo, de toda e qualquer possibilidade, e mesmo despojados de sua língua. Porque o ventre do navio negreiro é o lugar e o momento em que as línguas africanas desaparecem” (GLISSANT,2001, p.18). Assim, pessoas que falavam as mesmas línguas não ficavam juntas, seja no navio negreiro, seja nas plantações, enfim nas suas atividades cotidianas foram despojados de toda espécie de elementos, mas sobretudo de sua língua, mas a memória ancestral foi preservada, permitindo que recriassem seus hábitos nas terras brasileiras.

Para Glissant (2001) os africanos se recompõem através de “rastros/resíduos” uma língua e manifestações artísticas válidas para todos. A memória musical dos cantos entoados em vários eventos, como: funerais, casamentos, batismos, que expressam vários sentimentos, dores, alegrias vindas dos seus países de origem, criando e recriando o imprevisível.

Dentre as múltiplas contribuições daremos destaque para o Candomblé, religião de matriz africana, recriada no chão das senzalas, trazida na bagagem da memória dos africanos escravizados nas terras brasileiras, por isso chamada de religião afro-brasileira, daremos ênfase a música como elemento mais importante em todos os ritos do Candomblé e para a etnomusicóloga Ângela Luhning “a música é o coração do Candomblé”.(LUHNING, 1990, p.124).

Faremos a interface entre música, o envolvimento do corpo e performance musical dando foco aos instrumentos, com destaque para os tambores, porque não dizer, os tambores falantes sagrados que trazem toda vibração aos cultos, onde os corpos dos seus tocadores estão em constante sintonia possibilitando a vinda dos Orixás4 nos corpos dos filhos e filhas dos santos, com seu som vibrante impulsionam a dança como um meio de representação do Orixá.

O corpo exerce fundamental importância nas danças rituais do Candomblé, considerado templo sagrado, guardião das divindades e é através dele que a entidade se manifesta.Todo o rito das religiões de matriz africana tem início com o xirê5. Qualquer que seja a festa, independente do orixá para o qual está sendo realizada há uma ordem

3 É um termo utilizado para se referir a um tronco linguístico africano que deu origem a diversas línguas. 4Divindade, em termo africanizado, significa "ori" = cabeça, "xá" = iluminação, então, temos "cabeça

iluminada" ou "espirito iluminado".

55Palavra em Ioruba que significa roda ou dança para evocar os Orixás; Sequência de toques e cantigas

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de saudação, iniciando por Exu, saudado entes da festa, e terminando por Oxalá. Todos os orixás são saudados como veremos no decorrer do trabalho.

Corpo que toca, canta e dança

O corpo é elemento fundamental para a compreensão musical na forma como a sentimos, como também fazemos a representação na mente. Assim o som é associado a forma de produção e ao corpo que lhe dá vida. SegundoGodinho (2006) a música é acordada por corpos, da mesma forma que os corpos são acordados pela música. Assim, o corpo o é indissociável do conhecimento e compreensão musical, onde a mente musical é um corpo que ouve e que vê, que canta e que toca nas interações com o mundo.

Maurice Merleau-Ponty na obra FenomenologiadaPercepção diz que o corpo não é coisa, nem um obstáculo, mas é parte integrante da totalidade do ser humano. É afirmação da existência do ser e afirma

meu corpo não é alguma coisa que eu tenho...eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo[...] Não contemplamos apenas as relações entre os segmentos de nosso corpo e as correlações entre o corpo visual e o corpo tátil: nós mesmos somos aquele que mantém em conjunto esses braços e essas pernas, aquele que ao mesmo tempo os vê e os toca. (MERLEAU-PONTY,1999, p. 207,208)

Dessa maneira, sintetizando o encontro entre o sujeito e o corpo, o ser humano define-se pelo corpo, significando que a subjetividade caminha paralelamente com os processos corporais. O primeiro instrumento do músico é o corpo. O instrumento torna-se extensão do corpo. O corpo não é reduzido a uma realidade fisiológica, mas a singularidade de ser no mundo, como veículo das intenções. O corpo se enraíza no espaço, como experiência vivida, dinâmica e significativa. Há um entrelaçamento nas relações entre interior e exterior, subjetividade e objetividade.

A experiência corporal dos fieis ingressantes do Candomblé passam por uma desestruturação e posterior reestruturação, sendo necessário um processo de aprendizagem corporal, ressaltando que nas religiões afro-brasileiras, a pessoa não é entendida como totalidade, mas como plural singular, ou seja, o corpo é uma das partes que unifica a todas. A percepção do corpo é flutuante, com possibilidades de sentir, cantar, dançar, dinamizando as experiências de sua própria existência.

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O corpo é um templo sagrado, por excelência, uma vez que recebe os Orixás, atuando no espaço e no tempo,

da cabeça aos pés o corpo é percebido como altar no qual se derrama o sangue do sacrifício. Cada parte do corpo está relacionada a um Orixá, as fundamentais são a cabeça (sede da individualidade e lugar preparado para a individualidade do Orixá); os seios (que dão alimentos); a barriga (lugar da transformação para a excelência: a geração); e os pés (que se movimentam em harmonia com a cabeça. (BARBARA, 2002, p. 66)

Assim, o corpo é considerado o lugar da sabedoria, quanto maior o nível de concentração, maior a possibilidade de escutar o próprio corpo e suas mensagens. Existe uma sacralidade envolvendo o corpo que se presentifica em cada sessão, em cada ritual nas religiões afro-brasileiras.

A música sempre esteve associada ao corpo, seja no manuseio dos instrumentos, nos cânticos rituais, nas danças, de forma mais abrangente, “o movimento corporal com que o corpo se entrega às pulsões da música, seja por meio de coreografias elaboradas, seja por meio do bater do pé ao som da música. ” (GODINHO,2006, p.354). Reconhecer o corpo enquanto elemento essencial, tanto para compreender a música, como corpo central no conhecimento de nós e do mundo e de nós e da música.

Raízes africanas e música

As contribuições dos negrosadvindos da África foram significativas para a música, não somente dos ritos ditos sagrados, como também os profanos. A escravatura negra foi o alicerce da prosperidade econômica nos primeiros núcleos de colonização portuguesa, sobretudo em Pernambuco e Bahia, tendouma repercussão cultural decisiva em várias capitanias. Kiefer (1982) diz que eram descarregados nas costas brasileiras uma média anual de cinco mil escravos.Houve a contribuição direta e indireta do negro escravo, a indireta se referindo a expansão da economia com o florescimento dos canaviais e a multiplicação dos engenhos, principalmente no nordeste brasileiro. De forma direta o autor ressalta a música “com valores próprios, sumamente importante na formação da música brasileira [...] a participação do negro escravo em funções musicais eruditas ou semieruditas, de caráter evidentemente europeu. ” (KIEFER, 1982, p.14).

A contribuição citada por Kiefer (1982) se refere ao “negro-escravo-músico-erudito” ou semierudito e ressalta que “Músico” significa o executante da música

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europeia, seja importada ou criada aqui no chão brasileiro. Conforme relatos levantados por Kiefer (1982) foi presenciado na Bahia, em 1610, “uma banda de música de trinta figuras, todas negros escravos, cujo regente era um francês provençal. ” (KIEFER, 1982, p. 14). Segundo o musicólogo Jaime Diniz, citado por Kiefer, o mesmo fez um estudo da vida musical em Pernambuco, no século XVIII, relatando que as festas de Nossa Senhora do Rosário eram abrilhantadas pelos conjuntos instrumentais dos “charamelleyros”, como também na coroação dos reis e rainhas angolas ou crioulos.

Ressaltando que o termo “charamelleyros não somente abrangia os tocadores de charamela, instrumento de palheta dupla, de som estridente, de onde descende o oboé e o fagote, eram usados também outros instrumentos de sopro.

De acordo com Nettl (1996), na América latina a música negra está presente tanto no contexto religioso quanto no profano. Nos cultos do candomblé a música assume um papel fundamental para evocar os orixás, voduns, santos...). Os africanos trouxeram na sua bagagem cultural e aqui recriaram suas crenças. Salientando que as quantidades de orixás cultuados na África eram bem maiores em relação aos cultuados aqui no Brasil. Outro fator importante é que “entre as comunidades afro americanas da América Latina um culto implica no reconhecimento das divindades africanas em um sistema de crenças fundamentalmente africana”(NETTL:1996:p.237). O autor ressalta que o sincretismo6 foi imposto em quase todas as partes, as maiorias apresentamcaracterísticas dos cultos do cristianismo e o reconhecimento dos santos cristãos, uma questão sócia histórica, onde em cada santo católico foi assimilada a personalidade de uma divindade africana e essa equivalência entre santos e divindades foi uma forma de mascarar suas crenças nos orixás e cultos não aceitos pelos senhores de engenho.

Ainda com Nettl (1996), no Brasil os cultos recebem diversos nomes: Candomblé na Bahia, Xangô em Pernambuco, Tambor de Mina no Maranhão e Macumba nos demais estados. Os grupos da Bahia compreendem o Ketu e Jescha (Ioruba), o Gegê (Dahomey) e o Congo (Angola), os caboclos derivados de crenças ameríndias combinadas com outros cultos.Salientando que os cultos recebem vários nomes, por conta das diversas nações, diversos grupos étnicos e linguísticos que se configuram no modo como são conhecidos atualmente no Brasil.

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O etnomusicólogo Gerard Béhague (1999) fez vários estudos da música nos terreiros de Salvador, dentre eles, dos cultos africanos especialmente entre os Iorubas e os Fons de Daomé e da Nigéria praticados pelos afro-baianos e ressalta que apesar da herança da estilística africana na música, houve uma elaboração local, sendo, portanto, a música de Candomblé inventada ou reinventada por interpretação própria dos baianos. Ressaltando que o fenômeno musical não pode ser tratado isoladamente do seu contexto sócio cultural.

Para esse autor o repertório musical e religioso envolve vários grupos ou nações de Candomblé que são múltiplos para explicar a verdadeira natureza das religiões afro brasileiras. “Nas casas de Candomblé ortodoxas de Salvador ouvem-se cantigas de Ketu, Ijexá e Gege com sequências mais ou menos regulares para uma só cerimônia” (BEHAGUE,1999, p.131) como exemplo, no batismo dos atabaques. Já nos cultos da Umbanda7 as cantigas têm sequencias diferenciadas. O Candomblé de Angola e de Caboclo por serem menos ortodoxos, são mais propensos a inovações. Behague(1999) destaca que em todas as cerimônias, pública ou privada dessas religiões são movidas pela música, sendo essa de caráter fundamental, como veremos nos desdobramentos desse texto.

Candomblé: religião musical e dançante

É forte o elo entre África e Candomblé, existe um resgate forte dessas raízes, não somente nos espaços dos terreiros, mas também nas músicas, cores, danças, instrumentos, arte culinária dentre outros. Nessa mistura de culturas advindas de váriasnações africanas:Nagô, Ketu, Jeje, Angola, dentre outras, nasceu o Candomblé, culto de raízes africana, porém recriada no Brasil pelos negros que vieram na condição de escravizados,houve a junção dos cultos trazidos na sua memória, a música, a dança, se proliferando através das tradições orais.

De acordo com Sloboda (2008) numa sociedade completamente oral o ganho do conhecimento não pode estar separado das interações humanas fundamentais para a comunidade. O conhecimento é preservado pelos próprios costumes e rituais que unem a sociedade. Assim as tradições orais têm sua importância, facilitando com que

7Umbanda – religião afro-brasileira religião nascida no Rio de Janeiro, entre o fim do XIX e o início do

XX, que originalmente congeminava elementos espíritas e bantos, estes já plasmados sobre elementos jeje-iorubas, e hoje apresenta-se segmentada em variados cultos caracterizados por influências muito diversas: espíritas, catolicistas, indigenistas, catolicistas, esotéricas.

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houvesse as contribuições afro não somente na música, mas nas danças, culinária, religião.

Um dos componentes mais importantes do saber religioso no candomblé consiste no conhecimento e domínio do seu vastíssimo repertório musical. Poderíamos dizer que para cada gesto há no candomblé uma cantiga correspondente. Para tudo se canta. Conforme Pradi (2005) para acordar, para dormir, para tomar banho, para comer. Canta-se para colher as folhas sagradas no mato, folhas tão esCanta-senciais para a manipulação do axé8, a força sagrada da vida, e para cada folha uma cantiga específica. Há o canto para benzer os doentes e nos trabalhos de limpeza ritual do corpo e da alma. Para invocar os benfazejos ancestrais e para afastar os maus espíritos. Para realizar os sacrifícios, para oferecer as comidas.

Conforme nos informa Behague (1999) não existe cerimônia de Candomblé sem música e dança, seja ela ortodoxa ou não, essa é imprescindível em todos os ritos. É através da música que as divindades se transfiguram, a dança permite que os corpos se manifestem. Essa manifestação se produz esteticamente nos corpos, são os corpos que se movimentam. É com os corpos que os tocadores impõem os ritmos para os cânticos específicos de cada Orixá e conforme afirma Merleau-Ponty (1999) essa dualidade corpo/alma uma visão englobante, tornando estas duas dimensões uma unidade significante. O corpo é o elo entre o adepto e sua entidade espiritual, se configura como a “morada dos orixás” fazendo a conexão entre o mundo natural e sobrenatural.

Luhning (1990, p. 116) afirma que “a música na sua maior parte está direta e inseparavelmente ligada com a dança, seja a dança das filhas de santo ou dos Orixás manifestados nelas. ” Desse modo música e dança expressam o caráter do Orixá, de acordo com cada divindade há uma música diferente. Assim, nas letras das cantigas [...] e também nas lendas que se contam à parte, fala-se sobre os acontecimentos míticos e históricos, qualidades, virtudes e falhas dos orixás que servem de exemplo para os homens. ”(LUHNING, 1990, p. 117). Essa autora ressalta que nas festas públicas a primeira parte da festa é chamada xirê,em círculo, os/as filhos(as) de santo cantam e dançam homenageando o Orixá dono da festa, e cantam para cada Orixá três cantigas ao som dos tambores vibrantes. É através das letras das músicas que acontecem o transporte do conteúdo histórico transmitido pela tradição oral. Ressaltando que

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qualquer que seja a festa e independente do orixá para a qual está sendo realizada, o momento inicial é destinado a saudação e reverencia aos orixás.

Para Sloboda (2008) há diferenças significativas entre as músicas do norte e do sul da África. O norte sofreu grande influência muçulmana “a voz é soberana [...] há relativamente pouca música instrumental, e os instrumentos são comumente usados para prover acompanhamento grave ou rítmico para uma linha vocal”(SLOBODA, 2008, p. 319 Essa música estar inserida nas cerimônias e festivais religiosos. Já no Sul da África a música raramente é solistica, envolvendo grupos de pessoas. “Uma forma fundamental é o canto responsorial, no qual um solista canta uma frase curta à qual se segue uma resposta cantada por um coro” (SLOBODA, 2008, p.319), a música é polifônica e os instrumentos, principalmente os tambores, exercem grande importância.

Dentro do contexto cultural da música, Sloboda (2008) enfatiza como prioridade compreender a relação entre música e cultura, onde “os sons musicais de uma cultura são classificados de acordo com os instrumentos utilizados, como também as escalas e o sistema de geração dos meios dentro do contexto musical onde ocorre a música” (SLOBODA, 2008, p. 319). Assim, segundo esse autor existe a possibilidade de elaborar um “mapa mundi” agrupando todas as culturas.

Segundo Sloboda (2008, p. 322) “os indivíduos que são plenamente letrados podem, ao mesmo tempo, ter áreas de atividade significativas que são essencialmente orais”, portanto esse autor ressalta que a distinção letrado/oral não é tão clara culturalmente falando, e acrescenta, “na cultura oral, o conhecimento e a memória presentes são os únicos guias”. Dessa forma os repertórios dos cultos afro-brasileiros são realizados a partir dessas memórias dos antepassados, que é passada de pais para filhos de geração a geração.

Sloboda salienta que numa sociedade eminentemente oral, o ganho de conhecimento não pode estar separado das interações humanas fundamentais daquela sociedade, onde

O conhecimento é preservado pelos próprios costumes e rituais que unem a sociedade. Desde que o grupo social seja estável, o conhecimento que transmite tende a ser estabilizador, confiável e suficiente para a vida. Há pequenas possibilidades de uma pessoa tornar-se contrária às regras da sociedade por desconhecer algo importante. A limitação do conhecimento àquilo que é importante o suficiente para tornar-se parte do tesouro das tradições orais garante que cada indivíduo saiba tudo aquilo do que precisa. (SLOBODA, 2008, p.323).

Assim, a transmissão oral é de suma importância, para a preservação da memória cultural embutidas em todos os rituais do Candomblé, cada um com suas

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especificidades, por conta das misturas sofridas desde o “convés dos navios negreiros”, como nos informa Glissant (1996) a respeito das línguas variadas das nações africanas.

Ainda com Sloboda (2008, p. 324), “nas culturas orais, a música é passada de pessoa para pessoa sem uso da notação e, portanto, como conhecimento verbal, estar sujeita a mudanças no decorrer do tempo”, não tendo como constatar se uma determinada performance musical é a mesma apresentada anteriormente. Para esse autor há indício de que as culturas orais guardem por muito tempo recordações musicais exatas, nota a nota, seguindo um modelo, mastambém poderá sofrer modificações, ou seja, a “música é recriada ex-voto” a cada performance.

Um fato comum nos grupos de cultos o uso predominante de padrões de chamada e resposta, onde o solista pode ser um homem ou uma mulher, apesar do coro em geral ser feminino. Segundo Nettl (1996) o coro canta de forma monódica, são raras a heterofonia entre os grupos mais aculturados. As vezes solista e coro se imbricam, as escalas são pentatônicas, sem semitons, apesar de em muitas canções se encontrarem escalas diatônicas, o tempo varia dentro de um culto para outro, em função de um ciclo particular de canção, é frequente a aceleração gradual de muitas canções na música para tambor, porque tem a função ritual. Isso varia de um culto para o outro, nos cultos Gege da Bahia tem canções de âmbito amplo, a maioria com mais de uma oitava, fé e culto Jeje9 menos de uma oitava. Na série de músicas à Exu no culto Ketu da Bahia os intervalos melódicos são grandes sempre que há uma alternância entre o solista e coro, as frases melódicas tendem a ser curtas.

Nessa alternância entre solista e coro estar frequentemente baseada na repetição de uma única frase com algumas variações no sentido ornamental. A maioria das canções têm forma estrófica. Convém salientar que tambémhádiferenças no movimento corporal dos adeptos, para Barbara (2002), a postura corporal como o movimento dos ombros e a expressão facial, fazem diferença nas danças dos orixás. Essa postura corporal do filho de santo tende a variar conforme a divindade. Nos orixás guerreiros, como. Xangô, Ogum, Oxaguiã e Iansã, assumem postura mais ereta olhando para cima, jáorixás mais velhos, Nana e Oxalufã assumem postura mais curvada, olhando para o chão.

O mesmo se pode afirmar das melodias nos terreiros do Candomblé não são uniformes, os cultos Gege da Bahia as cantigas são de âmbito amplo, já na série de

9 Jeje ou Gege – e o candomblé que cultua os voduns do reino de Damomé levados para o Brasil pelos

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cantigas para Exu no culto Ketu os intervalos melódicos são com frequência bastante grande, vai depender do Orixá e das nações de seus antepassados.

Assim, os estilos de canto na maioria dos cultos afro-brasileiros se assemelham a forma de cantar relaxada e aberta, muito comum na África: as vozes femininas são duras e metálicas. É frequente que tanto o solista e corocantam em falsete, o repertório é constituído por uma multiplicidade de canções dedicadas a uma determinada divindade. Os ciclos das canções são interpretados em ordem ritual conforme a tradição estabelecida. As letras aparecem em diversas línguas, desde o Ioruba (Nagô) e os mais diversos dialetos do Congo.

Instrumentos rituais: tambores sagrados

O elemento ritual e musical mais importante nos cultos do Candomblé são os tambores, sendo os mesmos considerados sagrados. “Os tambores são indispensáveis para esse tipo de ritual completo, pois se acredita que somente eles têm poder para comunicar-se com as divindades” (NETTL, 1996, p. 242). Em todos os cultos os percussionistas tocam três tambores, variando os tamanhos de acordo com cada culto ou nação.

Lühning (1996, p.115) salienta que “a música no Candomblé em várias nações, como nagô-ketu, Geje, Angola e de Caboclo, se constitui no toque de três atabaques com o agogô e um imenso repertório de cantigas.

Convém salientar que na estrutura social dos cultos afro-brasileiros, as mulheres ocupam uma posição particularmente importantes, conforme Ruth Landes no livro “Cidade dasmulheres” onde a mesma relata sua pesquisa etnográfica nos terreiros da Bahia na década de 30. Nesse matriarcado a maioria das dirigentes as “yalorixás” ou “mães-de-santo” são mulheres, representando autoridade máxima espiritual e temporal nos terreiros, portanto, encarregadas de transmitir os conhecimentos do vasto repertório dos cânticos dos orixás e supervisionar o ensinamento da música junto aos tocadores.Sloboda (2008 ) enfatiza a importância da transmissão oral como garantia de preservação do conhecimento do antepassado para as novas gerações como forma de preservar as tradições culturais.

No que diz respeito aos instrumentos, Sloboda (2008) dar relevância aos tambores como instrumentos de extrema importância nos rituais, por darem vitalidade aos músicos e força rítmica por conta da repetição de padrões rítmicos curtos, “altamente complexos e em diversos patamares, produzidos por percussionistas

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diferentes que tocam, simultaneamente seus instrumentos rítmicos”(SLOBODA, 2008, p. 320). Isso acontece nas cerimônias do Candomblé, eles são responsáveis pela introdução dos cânticos e de fazer as mudanças dos tons de acordo com cada Orixá, por isso, os toques são contínuos.

Os tocadores dos tambores exercem uma posição elevada, segundo Nettl (1996, p. 245), “os tocadores são músicos por excelência”, quem toca o tambor maior é respeitado, o toque permite que o ritmo flua dos seus dedos ágeis e seguros. Ele é quem produz o transe mediante sua manipulação, os tocadores não entram em transe10, são responsáveis pelo xirê dos orixás. Antes de entrar nas cerimônias rituais, os tocadores passam por uma cerimônia de “confirmação” como veremos a seguir.

Os instrumentos são tocados pelos alabês11, que são escolhidos para essa função, recebendo o nome de ogãs12, não recebem os Orixás, como foi dito anteriormente, não se manifestam, sãoresponsáveis pelo toque dos tambores e cânticos. Conforme Barbara (2002) os ogãs passam por rituais onde ouvem todas as cantigas e deve ficar constatado que nenhuma produz efeito de transe sobre eles. “O alabê deve conhecer todos os repertórios dos toques e dos cantos e ficar atento aos seus colegas”(BARBARA, 2002, p.124). A perda do tempo por qualquer um dos tocadores prejudica a estrutura musical.

No capítulo “Ouvir música” Sloboda (2008) mostra a construção das formas como os ouvintes representam e memorizam as sequências musicais. Ele inicia o texto afirmando que a audição musical, em muitas situações, é uma tarefa passiva onde o produto principal da atividade auditiva é uma série de imagens mentais, sensações, memórias, podendo ser adicionada à audição várias atividades comportamentais, como: dançar, bater as mãos, bater os pés em resposta à música.

Esse “ouvir” é de grande importância para os ritos do Candomblé, o som é o condutor do axé, os ritmos correspondem aos movimentos “no qual cada parte do corpo está trabalhando: os pés seguem a base rítmica musical, os ombros e os braços contam as histórias, enquanto o corpo inteiro executa as variações de direção” (BARBARA, 2002, P. 122). O corpo estádividido em partes, mas se harmoniza holisticamente numa única sinfonia. O corpo na visão do Candomblé transcende o estético e o principal elo entre o homem e o sagrado através do transe dos orixás nos espaços sagrados.

10É um estado alterado de consciência.

11 chefe dos tocadores de atabaques, recebe o nome de Ogã. 12Responsável pelos toques rituais e repertório dos cultos.

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A música de candomblé, basicamente africana adaptada no Brasil, é puro ritmo. Ritmos intensos produzidos por tambores que há muito invadem os terreiros santos, como também saem as ruas e avenidas da cidade no carnaval e fora dele. Através da música e da dançao ritmo ilumina o espírito.

Nos terreiros de candomblé de tradição ioruba, fon e banta, toda a música se conduz por meio de três atabaques, tambores de uma só pele e de três tamanhos, chamados na maioria dos terreiros por sua designação em língua fon: rum (tambor), rumpi (segundo tambor) e lé (pequeno).(BARBARA, 2002, p.125)

Segundo essa autora, os tambores são considerados sagrados, o rum, no toque de transe faz as variações no xirê, só não realizando no início da festa, momento em que as filhas e filhos de santo ainda estão conscientes. Por isso no Candomblé o rum “toma conta da cabeça”, uma vez que essa tem o domínio sobre o corpo, direcionando os pés através da coluna vertebral. O rum é tocado, normalmente, com as mãos, mas vai depender do toque e da nação, podendo também ser tocado fazendo uso da baqueta e mão, é ele que dá o caráter sagrado ao ritmo. O rumpi e o lê ficam com a base rítmica que comanda os pés. Os sons mais evidenciados conduzem os movimentos corporais dos Orixás dançantes.

Ressaltando que cada atabaque no candomblé é considerado uma divindade e possui um nome secreto. Barbara (2002, p. 126) diz que “os atabaques são enfeitados com grandes laços coloridos seguindo a cor dos orixás para os quais serão tocados no dia da festa”.

A "orquestra" do candomblé se completa com o agogô, campainha metálica dupla, e o xequerê, chocalho formado de uma teia de contas cobrindo uma cabaça. Os ritmos tocados nas cerimônias chegam a vinte modalidades, cada um dedicado a uma divindade ou a uma situação ritual específica. Para se invocarem os deuses e os agradar é preciso, antes de mais nada, conhecer seus ritmos próprios.

A música também faz parte da identidade de cada Orixá, além das cores, comidas, colares de contas, ferramentas e outros objetos. O ritmo da música de Iansã, deusa dos ventos, só pode ser o espalhafato da tempestade que se aproxima, o de Xangô nos dá a ideia da fúria dos trovões, o ritmo de Iemanjá, a senhora do mar, traduz o vai-e-vem ininterrupto das ondas do mar, o de Ogum, orixá da guerra,deve reproduzir o mesmo arrepio provocado pelo avançar dos exércitos, o de Oxum, divindade da beleza,

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do amor e da vaidade, só pode transmitir sensualidade e as sensações da sedução, e assim por diante. Cada deus, uma dimensão da vida; cada deus, um ritmo.

Considerações finais

Como vimos no decorrer deste estudo, tudo começou com os navios negreiros, que cruzando as águas do atlântico, trouxeram os africanos, na situação de escravizados, vítimas do tráfico para as Américas, transportando consigo seus deuses, seus costumes, suas linguagens.Concluimos quea contribuição do povo negro africano exerce fundamental importânciapara a música no chão brasileiro.muitos músicos negros cultivaram as músicas eruditas e semieruditas com padrões europeus, como os charamelleyros, que tocavam nos eventos, como também nas festas religiosasDos batuques, ao som dos tambores, contribuindo para a criação do samba e muitos outros ritmos genuinamente brasileiros

O desenvolvimento deste estudo possibilitouenfatizar as tradições orais garantindo preservaçao da memória dos antepassados se fazendo presente através dos cultos e cerimônias religiosas, como também o envolvimento coletivo nas festas e nas atividades do cotidiano.Os negros referendados nesse artigo vieram de várias nações africanas, por conta disso são múltiplas as maneiras de cultuar os orixás nos terreiros, como também os ritos recebem vários nomes, portanto há especificidades de uma casa de Candomblé para outra no que diz respeito ao repertório dos cânticos e nas varias formas de cultuar suas diivindades.

Por fim, o objetivo central deste estudo demonstrou que o corpoéo elemento fundamental daexistência do Ser, fazendo a interface com o mundo, somos nosso corpo. Nos rituais afro-brasileiros o corpo é sacralizado, considerado morada dosorixás e está entrelaçado com amúsica e a dança nos terreiros do candomblé. Destacando os tambores sagrados, como elemento primordial, imprescindível pela vibração dos rituais, onde a dança se entrelaça ao som da música. Entre as cantigas, toques dos instrumentos e as danças rituais, nada seria possível se não existisse a ação do corpo. Afinal é o corpo que toca, canta e dança.O corpo é a energia vital para a transmissao de axé Sem o corpo, nãohádança, sem a música, nãohá axé.

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Referências Bibliográfica

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