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LIBERDADE RELIGIOSA NA HISTÓRIA E NAS CONSTITUIÇÕES DO BRASIL* Eliézer Cardoso de Oliveira**

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Academic year: 2021

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Eliézer Cardoso de Oliveira**

REIMER, Haroldo. Liberdade religiosa na história e nas constituições do Brasil. São Leopoldo: Oikos, 2013.

O livro Liberdade Religiosa na História e nas Constituições do Brasil, do professor Haroldo Reimer, originou-se de um trabalho de conclusão de curso em Di-reito na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Contudo, essa vinculação ao estágio inicial da pesquisa acadêmica não deve ser motivo para subestimar a importância da obra, pois o seu autor já era um pesquisador experiente, com duas graduações (Teologia e Filosofia) e um doutorado (em Teologia) no currí-culo. Nesse sentido, na confecção do livro valeu-se de uma sólida experiência nas áreas de Teologia, Filosofia, Direito e História para a reflexão de um tema de urgente atualidade para o mundo moderno: a regulamentação da liberdade religiosa pelo Estado. A questão agora não é mais lutar pela liberdade religio-sa – um direito amplamente assegurado, ao menos no Ocidente –, mas garantir que a liberdade de um não obstaculize o direito de outro. O problema maior de nossa época, portanto, é manter o pressuposto da “liberdade de consciência” como matriz da nossa legislação, sem, contudo, dividir a nação em guetos cul-turais dispostos a se enfrentar numa verdadeira guerra civil ideológica.

No primeiro capítulo do livro “Constituição e liberdade religiosa: aproxima-ções históricas e conceituais”, o autor procura definir conceitualmente

“cons-–––––––––––––––––

* Recebido em: 28.09.2015. Aprovado em: 22.10.2015.

** Doutor em Sociologia pela UnB. Professor do Curso de História e da Pós-Graduação na Universidade Estadual de Goiás - Câmpus de Anápolis. Em estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Ciências da Religião da PUC-Goiás. E-mail: ezi@uol. com.br.

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LIBERDADE RELIGIOSA NA HISTÓRIA E NAS CONSTITUIÇÕES DO BRASIL*

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tituição” e “liberdade religiosa”, por meio de uma contextualização histórica, permeada de reflexões de cunho filosófico e jurídico.

Embora reconheça a existência de algumas experiências pontuais de “ensaio do cons-titucionalismo” nas sociedades da Antiguidade (Grécia, Roma, Judéia) e da Idade Média (A Magna Carta inglesa de 1215 e a organização política do Sa-cro Império Romano-Germânico), o constitucionalismo é considerado um ele-mento específico da modernidade. Desse modo, vincula-se a duas importantes matrizes ideológicas ocidentais: a primeira, vinculada à reforma protestante luterana, culminaria na Constituição dos Estados Unidos de 1787; a segunda, vinculada ao racionalismo iluminista, culminaria na Declaração do Homem e do Cidadão, no contexto da Revolução Francesa. O constitucionalismo foi mais do que a expressão do liberalismo, como acredita o ministro Carlos Ayres Brito (p. 21). Para o seu advento foi necessária uma gama de transformações sociais (advento da burguesia), econômica (economia de mercado), religiosas (Reforma Protestante), intelectuais (Iluminismo), psicológicas (individualis-mo) e políticas (liberalis(individualis-mo).

A evolução da liberdade religiosa até se transformar num dos direitos inalienáveis do indivíduo seguiu, em linhas gerais, o mesmo caminho do constitucionalismo. O autor aponta um primeiro esforço de teorização do termo na obra Apologia, do jurista cristão Tertuliano, no século II (p. 30), que culminaria na tolerância de culto com Constantino em 325 até se tornar a religião oficial do Império com Teodósio I, em 381. A partir daí, o Cristianismo deixa de ser o impulsio-nador da tolerância religiosa, assumindo um perfil claramente retrógado, ainda nos tempos de Agostinho que lançou “mão das antigas leis contra os hereges para perseguir os cristãos donatistas, mobilizando para isso forças imperiais” (p. 32). Na Idade Média, as tropas de reis cristãos continuaram mobilizadas para lutar, em nome da religião, nas cruzadas contra os muçulmanos. Uma mudança significativa adveio com a Reforma Protestante, auxiliada por um contexto favorável de fortes mudanças de mentalidade que foi o Renascimento Cultural. O grande destaque é Martinho Lutero que preconizou as bases teo-lógicas para legitimar a liberdade de consciência individual: “para ele, a fé é o marco da liberdade, porque ela geraria um espaço de autonomia do sujeito que não deveria ser invadido por nenhum tipo de poder” (p. 34). Nesse sentido, várias conquistas políticas significativas referentes à liberdade religiosa foram inspiradas na teologia luterana, como a Dieta (1530) e Acordo (1555) de Au-gsburgo, o Édito de Nantes (1598) e a Paz da Westfália (1648). Após episódios sangrentos como a Noite de São Bartolomeu e a Guerra dos Trinta Anos, per-meados por alguns lampejos de tolerância na Holanda e suas colônias, o direito à liberdade religiosa é firmado juridicamente na Constituição dos Estados Unidos e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O constitucionalismo e

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liberdade religiosa tiveram origem e percurso diferenciado, mas desemboca-ram no mesmo lugar.

No capítulo 2, a proposta é analisar a “Liberdade religiosa na história e nas consti-tuições do Brasil”. O que confere singularidade filosófica e histórica ao caso brasileiro é uma ausência da matriz protestante como impulsionadora da li-berdade individual, uma vez que, devido à herança portuguesa, o Brasil esteve “sob o domínio exclusivo e absoluto da fé católica” (p. 44). Na época colo-nial, essa herança foi responsável por uma legislação retrógada (Ordenações Manuelinas e Filipinas) e pela extensão dos tentáculos da Inquisição em solo brasileiro. Com a independência política, a questão da liberdade religiosa e a livre expressão da consciência individual passaram por uma sensível evolução. Na Constituição de 1824, manteve-se o Catolicismo com religião oficial e financiada

pelo Estado por meio do dispositivo jurídico do padroado. No entanto, a Cons-tituição permitia a liberdade de outros cultos, desde que fossem executados discretamente no âmbito do ambiente doméstico. Após mais de cem anos das conquistas francesas e americanas, na Constituição Republicana de 1891, o Brasil finalmente tornou-se um estado laico, permitindo a livre manifestação pública da fé religiosa. Na breve Constituição de 1934, foi mantida a liberdade de consciência e de crença, embora sob a ressalva de não provocar distúrbios na ordem pública ou contrariar os “bons costumes”, o que dava margens ao Estado reprimir os cultos afro-brasileiros. Essa ressalva foi mantida na Cons-tituição de 1937 que, no contexto autoritário do Estado Novo de luta contra o comunismo, atendeu a reivindicação católica do retorno do Ensino Religioso. A Constituição de 1946, uma das mais avançadas da época, retornou o princí-pio de liberdade de crença e de consciência, sem censura prévia, que haviam sido retirados da constituição anterior, mas manteve o ensino religioso nas escolas brasileiras de nível básico. Na Constituição de 1964 e na Emenda Constitucional de 1969, o princípio de liberdade de crença foi mantido, mas não de modo atrelado ao princípio da liberdade de consciência, ressalvando os casos de perturbação da ordem pública e dos bons costumes.

O capítulo 3 aborda “A semântica da liberdade religiosa na Constituição de 1988”, ten-do como hipótese subsumida de que da diferença qualitativa dessa constitui-ção em relaconstitui-ção às anteriores, principalmente no tocante à dignidade humana e aos direitos fundamentais. No entanto, o seu preâmbulo como todas as outras – com exceção das de 1891 e 1937 – manteve explícita que a Constituição foi elaborada “sob a proteção de Deus”, inegavelmente uma concessão do estado laico à herança religiosa da nação.

Embora em linhas gerais a Constituição de 1988 mantenha os princípios anteriores de liberdade de culto e de consciência, a sua semântica inovou-se em evitar ambiguidades terminológicas que poderiam ser usadas para restringir direitos.

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Um dos mais evidentes foi retirar a ressalva dos “bons costumes” como pos-sibilidade de o Estado interferir na liberdade de culto. Deixou claro também que o Estado não deve “embaraçar” o funcionamento dos “cultos religiosos ou igrejas”, indicando uma obrigação negativa do Estado que “não deve intro-meter em questões internas das religiões” (p. 81). Outra inovação semântica importante foi assegurar “a proteção aos locais de culto”, que ampliou a prote-ção não somente aos “templos”, mas a qualquer outro local de culto religioso, como os utilizados nas religiões de matriz afro-brasileira. Nesse caso especí-fico, o Estado terá que “assumir obrigações positivas no sentido de garantir a liberdade religiosa de titularidade individual e coletiva, inclusive com o uso do poder de polícia para a efetiva realização dessa garantia constitucional” (p. 90). Também foi inegável o avanço na garantia da liberdade de crença na previsão de “escusa de consciência” para a realização de deveres, inclusive o serviço militar obrigatório, com a prerrogativa de realização de serviços alter-nativos. O aspecto mais polêmico foi a previsão do ensino religioso, de matrí-cula facultativa, nos horários normais das escolas brasileiras de nível básico, o que, apesar da proibição de proselitismo religioso, abriu brechas para o ensino confessional nas escolas brasileiras.

Portanto, como o próprio autor reconhece na conclusão do livro, existem ainda im-portantes questões abertas sobre a temática. O historiador alemão Reinhard Koselleck, por exemplo, demonstrou que a pioneira desobediência civil, por Lutero, legitimada a partir da primazia da consciência individual sobre o Es-tado e a Igreja, provocou uma convulsão social e uma crise moral na Europa. Rompeu-se a antiga unidade cristã europeia que foi fundamental para resistir ao poderio muçulmano; agora família, cidades, principados, reinos estavam divididos e dispostos a levar os ditames da liberdade de consciência às últimas consequências. O resultado foi a guerra civil religiosa, cujo momento mais tenebroso foi a Guerra dos Trinta Anos, a mais mortífera das guerras euro-peias antes das duas guerras mundiais. A solução veio com um pacto social que colocou o Absolutismo como catalisador da paz social. Para garantir a estabilidade, o monarca sufocou a livre manifestação pública da consciência individual. A razão do Estado era mais importante do que a livre consciência. O rei deveria governar acima dos interesses dos partidos e das igrejas em luta. Segundo Koselleck (1999, p. 30), evocando Hobbes, o mais sagaz dos teóricos do Absolutismo, “o monarca está acima do direito e é a sua fonte; ele decide o que é justo ou injusto; é, ao mesmo tempo, legislador e juiz”.

O Absolutismo foi capaz de inibir as guerras religiosas até que, no Iluminismo, o prin-cípio da livre manifestação da consciência voltou com força total. Novamente adveio a guerra civil, agora com a roupagem de revolução social. A Europa e o mundo se dividiram em disputas, polarizadas entre aristocracia e burguesia,

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comunistas e capitalistas, liberais e conservadores, trabalhadores e patrões, negros e brancos, homens e mulheres cada um dos segmentos acreditando na legitimidade de sua causa. O constitucionalismo moderno veio para resolver esses impasses, mas as ambiguidades semânticas das legislações demonstram o quanto isso é complicado. O dilema maior do mundo contemporâneo é como permitir a liberdade de consciência e, ao mesmo tempo, evitar a violência da guerra civil ideológica?

No caso brasileiro, a tarefa é ainda mais complicada, pois o país não participou di-retamente das duas matrizes da liberdade civil: o protestantismo e a revolu-ção social. Só agora, a sociedade brasileira está enfrentando uma polarizarevolu-ção ideológica consistente, seja entre católicos e protestantes, seja entre projetos políticos de direita e de esquerda, além das mobilizações das minorias. Por outro lado, o país construiu uma identidade baseada na convivência demo-crática com os diferentes (FREYRE, 1987) e na convicção de que os laços de amizades são mais importantes do que as diferenças políticas (HOLANDA, 1984). Embora essas representações identitárias estejam sendo questionadas por muitos, talvez possam amenizar os efeitos dos embates ideológicos, cada vez mais acirrados.

De qualquer forma, o Estado autoritário não é a solução para resolver esses dilemas. Uma das mensagens implícitas do livro Liberdade religiosa... é que o cons-titucionalismo democrático é a melhor das saídas. Não foi por acaso, a de-morada e sistematizada análise dos aspectos semânticos da Constituição de 1988, explicitamente elogiada pelo autor como uma “constituição cidadã”, o que indica que é possível avançar por meio do diálogo e da tolerância com os diferentes.

Referências

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987. REIMER, Haroldo. Liberdade Religiosa na História e nas Constituições do Brasil. São Leo-poldo: Oikos, 2013.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1984. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: Eduerj: Contraponto, 1999.

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