Plano para o ensino da leitura e da escrita
da língua cabo-verdiana
1Dulce Pereira
Introdução
No desenho inicial do projecto da Turma Bilingue, ficou definido que a aprendizagem da leitura e da escrita se faria formalmente, no primeiro ano, apenas em Português. Simultaneamente, as crianças seriam expostas, de forma sistemática, mas informal, à escrita da língua cabo-verdiana, através do contacto com livros e com frases e palavras escritas no quadro ou em cartazes colocados nas paredes da sala.
Só no segundo ano se iniciaria o ensino formal da grafia cabo-verdiana.
Ao longo do primeiro ano (2008/2009), a professora de crioulo, em todas as aulas, aproveitou as actividades de desenho, conversação, leitura de contos, etc., para cumprir o plano inicial de exposição constante à escrita do cabo-verdiano.
Desde muito cedo, as crianças começaram a fazer transferências da aprendizagem da leitura em português para a leitura em crioulo e, a partir de meio do ano, começaram a manifestar desejo de escrever também nesta língua, fazendo-o, em muitos casos, com autonomia, nomeadamente, para comentarem os seus próprios desenhos.
1 Texto elaborado em Junho de 2009, para a introdução formal da leitura e da escrita em cabo-verdiano, no segundo ano de escolaridade.
Em finais de Abril, a professora de crioulo, aproveitando a apetência das crianças, passou a propor, periodicamente, a tarefa de escrever uma frase em português e uma frase em crioulo.
As frases escritas pelos alunos revelam que estes têm consciência de que estão perante duas línguas diferentes que exigem dois códigos de escrita também diferentes.
Tal como se esperava, a educação bilingue teve, como um dos seus efeitos, o desenvolvimento da capacidade de abstracção e de distanciação entre forma sonora e forma gráfica. Para as crianças, começa a ser muito claro, por exemplo, que o som [k] se representa graficamente <c> ou <qu>, em português, e <k> , em cabo-verdiano.
A aquisição de algumas regras de escrita do crioulo e a capacidade de reflexão metalinguística que a comparação entre as duas línguas implica surgiram de forma natural e espontânea, sem que houvesse uma orientação explícita por parte da professora.
No segundo ano lectivo (2009/2010), tal como previsto, aproveitando os saberes adquiridos, dar-se-á início ao ensino dirigido da escrita e da leitura em crioulo, a par da consolidação e do reforço do ensino da escrita em português.
Para tal, ter-se-á em conta o facto de o português e o cabo-verdiano serem línguas lexicalmente afins, o que torna mais difícil a distinção entre os dois sistemas, favorecendo interferências e, consequentemente, erros.
Nesse sentido, desenvolver-se-ão metodologias que, por um lado, favoreçam a transferência de saberes (numa primeira instância, do português para o crioulo) e, por outro, impeçam as interferências gráficas.
CCV kaza Port. casa
o aluno “aproveita” o conhecimento já adquirido dos valores de <a> e de <z>, em português, para descodificar (e escrever) a palavra crioula, mas tem de aprender o novo grafema <k> e, ao mesmo tempo, tem de compreender que os usos de <s> e de <z> são diferentes nas duas línguas.
Para a definição da progressão na introdução dos grafemas em crioulo, serão considerados:
• os resultados da análise das frases escritas, em crioulo e em português, no final do primeiro ano lectivo; ter-se-ão em conta, em particular, as características ortográficas próprias do crioulo que parecem ter sido intuitivamente apreendidas pelos alunos, de forma mais consistente, e que são:
o o uso de <u > para representar [u], mesmo em contextos em que o português usa <o> (mininu)
o o uso do <k> para representar [k]
o o uso de <i> para representar [i] e a semivogal [j], mesmo em contextos em que o português usa <e> (mininu, mãi, poi)2
• as áreas de interferência e de erro que as afinidades lexicais entre as duas línguas e as suas diferenças ortográficas permitem prever (como a do uso crioulo de <z> entre vogais, no exemplo acima).
2
Método de ensino
Para iniciar a aprendizagem sistemática da leitura e da escrita em crioulo, recorreremos a dois tipos de actividades:
• a construção colectiva (incluindo alunos e professora) de um texto sobre a história da turma (storia di nos turma);
• a construção (já iniciada) de dois tesouros de palavras (um em português e outro em cabo-verdiano).
A construção da história da turma permitirá à professora propor frases para leitura e escrita que conterão, em cada aula ou grupo de aulas programadas para o efeito, os aspectos gráficos a aprender, de acordo com a progressão definida.
As frases escolhidas, em cada aula, para introduzir um novo aspecto gráfico,
• devem conter, recursivamente, os aspectos gráficos tratados nas aulas anteriores;
• devem reduzir a incidência de aspectos gráficos que ainda não tenham sido trabalhados com os alunos.
Dessas frases retirar-se-ão algumas palavras exemplares que serão escritas em cartões e guardadas no Tesouro respectivo.
Para cada aspecto ou conjunto de aspectos gráficos a tratar, a professora preparará exercícios de consolidação e avaliação a realizar periodicamente.
Numa primeira instância, os alunos serão orientados na aprendizagem, de forma não explícita, pela exposição às frases seleccionadas e pela experimentação.
No entanto, não se exclui a possibilidade de ensino explícito, sempre que necessário e quando os alunos o solicitarem. A professora poderá (e deverá, em certas circunstâncias) recorrer ao contraste entre as duas línguas.
Dever-se-á proporcionar a prática da leitura (silenciosa e em voz alta) e da escrita, quer individual quer colectiva.
Nos momentos de escrita colectiva, deve-se incentivar a cooperação entre os alunos.
A leitura e a escrita devem ser acompanhadas de momentos de reflexão sobre as intenções comunicativas, o vocabulário escolhido, o significado das palavras e das frases, os problemas ou erros gráficos encontrados e a forma de os resolver.
A actividade de elaboração dos tesouros de palavras deve conduzir à reflexão (ao nível das crianças) sobre os modos diferentes ou semelhantes de representar lexicalmente o mundo, nas duas línguas.
A professora de crioulo deverá dar conta à professora de português das dificuldades de leitura e de escrita que se revelarem mais persistentes em cada aluno, por forma a avaliar se o “problema” diz respeito à língua cabo-verdiana ou é de carácter mais geral e desencadear, assim, as estratégias mais adequadas à sua resolução.
Propõe-se, a seguir, a progressão dos aspectos gráficos a aprender ao longo dos dois primeiros períodos (sendo o último período para consolidação).
Em primeiro lugar, enuncia-se o aspecto gráfico em foco e, em segundo lugar, dão-se exemplos de palavras crioulas que o contemplam (e ao mesmo tempo excluem aspectos de um nível de progressão superior).
Os elementos gráficos que não são focados (como <a>, <o>, <b>, <p>…) pressupõe-se que já estão adquiridos, uma vez que permitem transferência directa do português.
1. <k> : seku, toka, ka, riku, saku, faka, kolega, ku, kre 2. <u> : gatu, ovu, bunitu, amigu, altu, mininu, medu 3. <i>: pidi, grandi, tia, dia
4. <N> (pro. Pessoal suj, 1.ª p.s.)
5. <nh>: nha, nho, sunha
6. vogais nasais (an, en, in, on, un): kanta, labanta, tanbe, tenpu, pensa, pinta,
vinti, son, kunpra, un
7. ditongos : pai, mai, bai, kai, sai, poi, doi, boi, nau, kau
8. vogais orais e nasais que correspondem a ditongos nasais nas palavras cognatas em português: mo, pon, avion, bon, irmon, ten, ben, noti, dodu
9. palavras cujas correspondentes, em português, são iniciadas por h: omi, oji,
ora.
10.<x>; <tx>: dexa, xabi, xinta, katxor, txora, txoma, txuba 11.<j>; <dj>: oji, janela, djanta, dja, odja
13.<s> em início de palavra e antes de consoante: skese, skola, skrebi, skada 14.<s> em fim de palavra: minis, omis,
15.<s> em meio de palavra: kansa, pasa, kasa, resa, presu
16.<r> em início e meio de palavra: karu, kore, ratu, ramu, arma, turma. 17.<z>: prezu, kaza, roza, Zé, kuza, meza
18.<lh>: familha (explorar a relação com o português; v. port. pilha, cabov. pilia) 19.<g> antes de <a>, <o>, <u> : agu, gora, gatu
20.<g> antes de <e>, <i>: gera, gentis, Giné, gizadu 21.<ñ>: ñ̈gana, nñguli, ñgaba
ANEXO
Escrita (autónoma) de uma frase em crioulo e de uma frase em português (22/5/ 2009) Tema: Família Alunos Origem Port. Português CV
Catarina* A Familia é importante porque está senpre ao meu lado.
Nha Família é importanti, purqui ta konpra prenda e ta fazi um bebé
Daniela A minha família é bonita Nha mãi põi nha dono nu naviu
(copiou da Íris)
Eduardo A mihni avó duma qo sapato Nha dona da-m ku sapatu (com ajuda)
Hugo, O pai foi tere cm a mãe Pai bai te co mãe
Inês*
A miha família é muito emportante para mim
Nha família ta kumpra txeo chocolatis
Íris O pai no navio vio a mãe Nha mãi põi nha donu nu naviu
Ruben O pinociu é miterosu A famela é muitu sipáteca
O pinoce é mitirosu. Nha familicha é sipática Telma A minha tia deu uma camisola Nha Família gosta di mi. Telmo A minha Família gosta muito de
mim
Nha família gosta txeu di mi (com ajuda)
*A Catarina e a Inês escreveram frases da sua autoria. Os outros fizeram ditado. ** Copiou do quadro
Alunos Orig. Cabov..
Português CV.
Ailton A familila é bonita Nha failia é bonite
(com ajuda)9
Axel Eu gosto da minha família Mi gosta di nha familia Diogo Amiha família. ébonita Nha famíla é motu feu (?) Edna A minha mãi e o meu pai são
importantes
Nha mãe i nha pai é importanti (com a ajuda da Catarina)
Érica A minha mãe deu uma
camisola
nha pai sta na Merka
Fátima A minha família é bonita Na família é bon poci é bonito Janice A mãe é da amiga di Janice Mai é miga di Janice
Jessica --- ---
José Eu sou ermau da Janette Ami tani um rima
Massuira A Dulse mando madar uma frase
Dulse eu costo de ti
Dulsi mandu skrede un frazi Dulsi N costá dibo.
Miriam O meu mano é amigo Nha manu é Nha amigu (com ajuda)