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Análise da presença do ideal de amor romântico nas letras de música do pagode romântico dos anos 1990

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Academic year: 2023

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ANÁLISE DA PRESENÇA DO IDEAL DE AMOR ROMÂNTICO NAS LETRAS DE MÚSICA DO PAGODE ROMÂNTICO DOS ANOS 19901

Maria Julia Resende Coitinho2 Tatiana Aparecida Moreira3

RESUMO

O artigo tem como objetivo analisar letras de músicas de pagode romântico dos anos 1990 com o intuito de observar a forma como o amor é apresentado nelas e o diálogo existente entre o discurso dessas músicas e o ideal de amor romântico, observando também o discurso machista que atravessa esse tipo de relação. Para fazer as análises das letras das músicas escolhidas, foram utilizados os conceitos de Bakhtin e seu Círculo [1997], como dialogismo, atitude responsivo-ativa e gêneros do discurso. Também será exposto o conceito do ideal de amor romântico, a partir de Barthes (1981); bell hooks (2020) e Toledo (2013); Ramos (2008); Pires e Lima (2021) e Trotta (2006) para expor o surgimento da vertente pagode romântico em 1990 e a sua temática amorosa. O corpus da pesquisa foi composto por duas músicas, “Me apaixonei pela pessoa errada'' e “Que se chama amor”, entre 1993 e 1998, de alguns dos grupos mais populares da época, respectivamente, Exaltasamba e Só Pra Contrariar (SPC). A análise das letras das músicas revelou que o discurso manifestado nelas ecoa traços de um discurso machista e de relacionamento abusivo, sendo o outro aquele que não tem voz ativa, já que o único que fala é o “eu” discursivo, presente nas letras de música. Espera-se que os resultados do presente trabalho possam ser capazes de desconstruir os discursos de amor atrelados ao sofrimento e aos discursos machistas, como os de possessividade em torno do outro.

Palavras-chave: Amor romântico. Letras de música. Pagode romântico.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho surgiu a partir da percepção de uma deficiência acerca de análises de músicas de pagode romântico. Em pesquisas no Google Acadêmico, percebemos que, ao buscar

1 Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em Letras Português, graduação do Instituto Federal do Espírito Santo - Campus Vitória.

2 Graduanda em Letras Português - IFES, Campus Vitória; maju.coitinho@gmail.com

3Professora Orientadora: Dra. em Linguística; professora do IFES - Campus Vitória; tatiana.moreira@ifes.edu.br

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trabalhos apenas com “amor romântico”, aparecem 76.300 resultados; ao pesquisar por

“pagode romântico 1990”, obtêm-se 2.450; e, ao unir ambas as pesquisas, “amor romântico” e

“pagode romântico”, 2.170. A proposta deste trabalho se justifica, já que pretendemos analisar como o amor é retratado nas letras de músicas do gênero pagode romântico da década de 1990, a fim de observar de que maneira o discurso dessas letras de música possui aspectos semelhantes ao ideal de amor romântico. Partimos desta problemática: de que forma as letras das músicas do gênero pagode romântico, dos anos 1990, auxiliam na perpetuação do ideal de amor romântico?

Para fundamentar teoricamente as análises feitas, foram utilizados os conceitos de dialogismo e atitude responsivo-ativa do Círculo de Bakhtin (1997), entendendo o discurso não apenas como um diálogo entre dois indivíduos, mas sim um diálogo entre dois discursos, assim como também o conceito de gênero do discurso sob a perspectiva de bakhtiniana (1997). Também foi realizada a contextualização bibliográfica acerca do ideal de amor romântico sob o ponto de vista de Rousseau, apresentado por Toledo (2013), e as ideias sobre o amor romântico, de bell hooks4 (2020).

Para tal análise, será apresentado o surgimento do gênero musical samba e uma de suas vertentes, o pagode romântico, com foco nos anos 1990, suas principais características e especificidades, com o apoio dos trabalhos de teses de doutorado, de Ramos (2008) e de Trotta (2006), nos quais ambos fazem uma cronologia do gênero musical samba, apresentando o precursor e as suas vertentes de forma a mostrar em quais pontos esses estilos musicais se diferenciam e quais são seus principais representantes. Já para a percepção do discurso romântico como tema recorrente e a sua forma de apresentação nas músicas brasileiras, será utilizado como suporte o artigo de Pires e Lima (2021), para compreender a relação entre o discurso das letras das músicas de pagode romântico e a demonstração do sentimento amoroso por meio delas, na forma como a voz do discurso se manifesta.

Além de analisar letras de músicas de pagode romântico e mostrar a presença de aspectos semelhantes ao ideal de amor romântico, pretende-se observar também possíveis discursos de possessividade em relação à pessoa amada e outros aspectos semelhantes, como a relação de dependência entre os indivíduos em uma relação.

4 Pseudônimo criado em homenagem à avó, é grafado em minúsculas seguindo a proposta da autora de diferenciar a estudiosa de sua avó e para dar ênfase no que tem a dizer e não em sua biografia. “[...] assina suas obras em minúsculo e requer suas referências tal e qual, com o argumento de que ela mesma não se reduz a um nome e seus textos não devem ser lidos em função deste nome.” PINTO, 2008, apud LINO, 2014, p. 104)

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A metodologia utilizada no desenvolvimento da pesquisa é revisão bibliográfica, a fim de compreender o surgimento da vertente pagode romântico por meio da leitura de teses e outros textos que abordam a temática do surgimento do pagode romântico, do ideal de amor romântico e a relação existente entre ambos, por entendermos, a partir de leituras de Gil (2002), que a pesquisa bibliográfica é vista como leitura, interpretação e análise de materiais impressos, independentemente de sua forma de impressão. A pesquisa também terá caráter analítico para auxiliar a compreender como o discurso das letras das músicas dialogam com os aspectos do amor romântico apresentado e, para tal, como mencionado, serão utilizados os conceitos de dialogismo e atitude responsivo-ativa do Círculo de Bakhtin [1997], além do conceito de gênero do discurso do estudioso. As músicas utilizadas para análise são “Me apaixonei pela pessoa errada”, do grupo Exaltasamba, e “Que se chama amor”, do grupo Só Pra Contrariar (SPC), por possuírem temas semelhantes referentes à problemática do relacionamento amoroso e suas idealizações. Além disso, de acordo com a pesquisa de Trotta (2017), são os grupos pioneiros na produção da nova vertente do samba, o pagode romântico, e por terem sido bem populares na época.

Dessa forma, a pesquisa é relevante por levar a reflexão sobre como as letras de pagode romântico possuem fortes traços do discurso ideal de amor romântico em suas letras, justificando a partir da proposta de analisar como o amor é retratado nas letras de músicas do gênero pagode romântico da década de 1990.

O presente trabalho está estruturado em seis seções, sendo a introdução a primeira delas, na qual também aborda, no decorrer dela, a metodologia utilizada no trabalho. A segunda seção aborda alguns conceitos teóricos propostos por Bakhtin [1997] que fundamentam a pesquisa.

Na terceira e na quarta seção são expostas, respectivamente, as ideias sobre o amor romântico e o surgimento da vertente do samba, o pagode romântico. Na seção posterior, são apresentadas as análises discursivas das duas letras de músicas de pagode romântico e, na sexta e última seção, serão apresentadas as considerações finais do trabalho.

2 CONCEITO DE DIALOGISMO, ATITUDE RESPONSIVO-ATIVA E GÊNEROS DO DISCURSO

A pesquisa tem como base os conceitos de dialogismo e atitude responsivo-ativa de Bakhtin e seu Círculo (1997), além de abordar a concepção bakhtiniana (1997) de gêneros discursivos.

Para Bakhtin [1997], a utilização da língua se realiza em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, e em diversos contextos da atividade humana, compostos por três

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elementos: conteúdo temático, estilo (recursos linguísticos) e estrutura composicional. Ainda segundo o estudioso, por existir uma variedade considerável de campos de atividade humana, cada campo desenvolve um tipo de enunciado relativamente estáveis, os gêneros do discurso, afirmando serem heterogêneos por se manifestarem, conforme o campo da atividade. Além disso, também se ampliam, classificando-os em primários (simples) e secundários (complexos).

Os gêneros do discurso primários, de acordo com Bakhtin (1997), são aqueles formados em uma circunstância de comunicação verbal espontânea, apresentam relação instantânea com a realidade, como o diálogo, a carta pessoal etc. Enquanto os gêneros secundários existem em circunstância de comunicação cultural, sendo ela mais complexa e mais evoluída, principalmente escrita como: contos, dissertação etc. Os gêneros secundários incorporaram os gêneros primários e os transformaram fazendo com que esses percam a relação com a espontaneidade do original e só existam e possam ser analisados e compreendidos dentro de uma determinada realidade a qual eles pertencem (obra literária, científico etc.), como parte da obra, como destaca o filósofo da linguagem.

Ainda sobre os gêneros secundários, Ramos (2013) mostra que o objeto de análise da presente pesquisa, letra de pagode romântico, pode ser classificado como gênero secundário, pois “[...]

as letras de músicas não são produzidas em situações de comunicação espontâneas e resultam de uma situação de comunicação mais complexa.” (2013, p. 64). Ademais, o teórico expõe que existem também os gêneros mais livres em sua forma e mais criativos da comunicação verbal oral, como gênero da reunião entre amigos, e que a maior parte desses gêneros realiza uma reestruturação criativa, o que não significa a recriação do gênero. Desse modo, e em relação ao pagode enquanto gênero discursivo, Ramos (2013) o caracteriza no campo criativo por ter um acabamento mínimo e possibilidade de dialogar com os interlocutores mais diversos que o consomem, atribuindo a esse gênero múltiplas possibilidades de compreensão e recepção do seu discurso. Pianzoli (2021) acrescenta que o conceito de dialogismo, de Bakhtin (1997), também, é perceptível nas letras de músicas, apesar de não ser uma interação face a face, por meio das vozes discursivas, nos discursos manifestados por elas (romântico, machista, posse).

Dessa forma, foi observado que as letras de pagode romântico dialogam com os discursos sobre o ideal de amor romântico e os aspectos semelhantes de relacionamentos que têm como base esses ideais.

Segundo Bakhtin (1997), o enunciado, oral e escrito, e os gêneros discursivos, primários e secundários, estão, seriamente, associados ao estilo o que pode refletir a individualidade daquele que fala ou escreve. Porém, de acordo com o teórico, nem todos estão aptos para o estudo da individualidade, por necessitarem de uma forma padronizada, como documento

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oficial e aponta os gêneros literários como mais aptos para tal, pois “o estilo individual faz parte do empreendimento enunciativo enquanto tal e constitui uma das suas linhas diretrizes”

(BAKHTIN, 1997, p. 283). Nesse sentido, segundo Bakhtin (1997) o estilo é tido como algo relacionado às unidades temáticas e composicionais, sendo elas um “tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o discurso do outro, etc.” (BAKHTIN, 1997, p. 284)

Bakhtin (1997) compreende que os parceiros de uma comunicação verbal, o locutor e o ouvinte, passam por processos ativos e processos passivos da fala. Ressalta que a recepção e a compreensão da significação linguística de um discurso, por parte do ouvinte, demandam uma atitude responsiva-ativa, tendo em vista que é esperada uma alternância entre locutor e ouvinte, pois

A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa [...]; toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se locutor. (BAKHTIN, 1997, p. 290)

Ainda segundo o teórico, a atitude responsiva-ativa do que é ouvido se efetiva no ato real da resposta fônica e pode ser realizada tanto diretamente como um ato de resposta imediata (execução de uma ordem), quanto ter um período de tempo sem resposta, a qual o autor nomeia como compreensão responsiva posterior e explica que grande parte dos gêneros secundários contam com esse tipo de “[...] compreensão responsiva de ação retardada: cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte.” (BAKHTIN, 1997, p. 291)

O enunciado, segundo Bakhtin (1997), é uma unidade real definida pelos sujeitos falantes do contexto em que o enunciado está inserido, possuindo um começo e um fim absoluto, em que essa alternância acontece ao passo que um indivíduo transfere a palavra ao outro. O estudioso expõe que a diferença entre oração e enunciado é a não alternância entre os sujeitos falantes existente na oração, por isso não causa uma reação de resposta, que, se houvesse, se transformaria em enunciado. A essa característica de gerar reação resposta do enunciado, Bakhtin (1997) diz ser determinada por três fatores interligados: 1) tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito, o querer-dizer do locutor; 3) as formas típicas de estruturação do gênero do acabamento.

O primeiro, de acordo com Bakhtin, tratamento exaustivo do objeto do sentido, varia conforme os contextos de comunicação verbal, sendo quase total nos gêneros discursivos que são

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padronizados ao máximo, como na vida militar e profissional, em que a criatividade é quase nula. Enquanto, nos contextos criativos, é relativo, dependendo do acabamento capaz de gerar uma atitude responsiva. Já o intuito discursivo, o querer-dizer do locutor,

determina a escolha, enquanto tal, do objeto, com suas fronteiras (nas circunstâncias precisas da comunicação verbal e necessariamente em relação aos enunciados anteriores) e o tratamento exaustivo do objeto do sentido que lhe é próprio. (BAKHTIN, 1997, p. 300)

Além de também definir a forma em que o enunciado será estruturado, ou seja, o gênero que será manifestado, o querer-dizer, para o estudioso, pode expressar a individualidade do locutor e determina o estilo e a estrutura composicional do enunciado. Segundo o autor, há a necessidade de expressividade do locutor diante do seu objeto como segunda fase do enunciado.

Bakhtin afirma que “um enunciado absolutamente neutro é impossível” (1997, p. 308), tendo em vista que o indivíduo ao escolher as palavras ao se expressar dá uma significação a elas de acordo com o contexto da comunicação em que está inserido e que, por isso, elas carregam as intenções do todo do enunciado. Então, o enunciado não é neutro por apresentar as intenções e as emoções do locutor e as palavras também “não são de ninguém e não comportam um juízo de valor. Estão a serviço de qualquer locutor e de qualquer juízo de valor [...]” (Bakhtin, 1997, p. 309). Com isso, afirma que o enunciado reflete outras vozes que já tiveram uma reação sobre a temática e causa uma reação nos ouvintes que seguirão, já que um discurso nunca é feito do zero, há sempre resquícios de um discurso anterior. Assim,

O objeto do discurso de um locutor, seja ele qual for, não é objeto do discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele. O objeto, por assim dizer, já foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de diversas maneiras, é o lugar onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista, visões de mundo, tendências. (BAKHTIN, 1997, p. 319)

Compreendendo que todo discurso passa por um outro discurso já dito, por não ser capaz de algo ser dito do zero, sem influências de outrem, na seção seguinte, será abordado o conceito de ideal de amor romântico, a partir de Toledo (2013) e hooks (2020), a fim de mostrar o dialogismo presente nas letras de músicas de pagode romântico com essas ideias.

3 SOBRE O AMOR ROMÂNTICO: ALGUNS OLHARES

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Nesta seção, será abordado o ideal de amor romântico, a partir do artigo “Uma discussão sobre o ideal de amor romântico na contemporaneidade”, de Toledo (2013), e do livro Tudo sobre o amor: novas perspectivas, de bell hooks (2020).

O amor tem sido tema recorrente em manifestações culturais como produções musicais, cinematográficas e literárias, relacionando-o a maior realização na vida do indivíduo, ao encontro da alma gêmea e à ideia de “felizes para sempre”, propagada, até os dias de hoje pelos, contos de fadas. Em pesquisas em livros, como em Por que amamos?, de Renato Nogueira (2020) e em artigos no Google Acadêmico, nota-se como é presente a exibição do ideal de amor romântico como uma problemática na construção das relações amorosas, pois, ao passo que os indivíduos não alcançam esse ideal de amor na relação, ocorre a frustração e a desilusão com novas possibilidades de relacionamentos.

Toledo (2013) apresenta o assunto expondo a diferença entre o Romantismo, abordado a partir da filosofia de Rousseau, e o ideal de amor romântico, frisando que o ideal de amor romântico, em muitos aspectos, se distingue da filosofia apresentada por Rousseau por ter valores distintos.

A autora apresenta a filosofia de Rousseau como uma crítica à forma como as relações amorosas eram feitas em relação ao quadro social da época e do sistema capitalista. Assim,

“Rousseau construiu o projeto para uma sociedade livre e igualitária, cuja base de sustentação seria o amor puro, que o homem é originalmente capaz de sentir.” (ROUSSEAU apud TOLEDO, 2013, p. 204).

A partir da apresentação de Toledo (2013), a filosofia proposta por Rousseau tem o amor como meio da felicidade, um amor que combina o companheirismo, a amizade e o desejo sexual exclusivo e recíproco que possibilita a constituição da família. Segundo a estudiosa, o filósofo tinha a família e o amor ponderado, sem exageros e recíproco, como a coluna da transformação social. Desse modo,

As famílias deveriam formar a base ideal de uma comunidade e constituiriam, cada uma, o espaço sagrado onde a perfeita educação seria ministrada. Os sujeitos cresceriam para o amor, para uma perfeita união conjugal na maturidade e, consequentemente, a harmonia social viria por acréscimo.

(ROUSSEAU apud TOLEDO, 2013, p. 206)

Esse pensamento contribuiu de forma considerável com a construção do ideal de amor romântico contemporâneo, por “[...] indicar o amor como instrumento principal para a realização pessoal e para a boa convivência social, e, mais ainda ao difundir um modelo de parceria amorosa calcado na complementaridade [...]” (TOLEDO, 2013, p. 207).

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Em seguida, a autora apresenta o ideal de amor romântico sob a perspectiva do amor-paixão, a exaltação do próprio sentimento, pela sensação de arrebatamento do encontro da paixão. Por haver essa excitação em torno do encontro amoroso que

[...] afasta ainda mais a possibilidade real desse encontro, já que a realidade nunca vai corresponder à totalidade das expectativas fantasiadas. O amor fica, assim, cada vez mais circunscrito numa atmosfera nostálgica, onde se busca uma referência amorosa que, na realidade, nunca foi experimentada.

(TOLEDO, 2013, p. 211)

De acordo com Toledo (2013), esse ideal de amor ainda segue alguns preceitos da filosofia de Rousseau, sendo considerado o ponto central da felicidade e o anseio de viver uma relação recíproca. Apesar de ainda haver esse retorno, o novo ideal de amor romântico tem, no amor, uma forte associação ao sofrimento, por essa expectativa criada em relação ao outro nunca ser alcançada, gerando conflitos e frustrações. Toledo (2013) discute a idealização amorosa com foco no eu e nas sensações que esse ideal de relação traz, enfatizando que

[...] o ideal de amor romântico não é apenas veiculado através dos meios de comunicação de massa, associado ao happy-end americano. Somos ensinados, desde a tenra idade, a amar romanticamente, a partir da valorização desse sentimento como um bem que se sobrepõe a qualquer outro e que requer, naturalmente, exclusividade e reciprocidade contínua. (TOLEDO, 2013, p.

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Sendo assim, para a autora, os indivíduos só serão capazes de se relacionarem de forma saudável, sem priorizar mais um ponto em detrimento de outro, quando repensarem a forma de se conectarem e o que entendem sobre o ato de amar.

No capítulo “Romance: o doce amor”, de seu livro Tudo sobre o amor: novas perspectivas, bell hooks (2020) discute sobre o significado do amor e em como existe um mistério por trás dessa palavra, que se fôssemos ensinados sobre o seu significado seria mais fácil de aprender o ato de amar, e todas as ações que englobam esse ato, e de entender, aos poucos, como a construção das relações acontecem.

Assim como Toledo (2013), hooks (2020) também faz críticas ao ideal de amor romântico, em como somos ensinados que de um jeito ou de outro iremos vivenciar o amor romântico e que, por nos apegarmos a essa ideia, vivenciamos relações destrutivas e ilusórias que nos levam a desacreditar do amor e da possibilidade de aprender a amar. Para hooks (2020), a narrativa romântica, construída a partir da ilusão de uma relação idealizada, do encontro da alma gêmea sem esforço, o ‘cair de amores’, auxilia na preservação da fantasia amorosa e na perpetuação

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do amor romântico. Segundo a estudiosa, o ‘cair de amores’ reproduz um discurso de que não temos direito de escolher um parceiro amoroso, de ter um encontro com a pessoa ideal sem esforço, pois quando encontramos a pessoa com quem sentimos uma conexão imediata ou acontece o clique, simplesmente não temos o que fazer, perdemos o controle sobre nós e sobre nossos sentimentos.

A estudiosa levanta a discussão do uso da expressão ‘cair de amores’5 de que podemos ter o clique ao conhecermos alguém e entender apenas como isso, assim como também podemos interpretar como sendo o começo para algo novo que poderá ou não levar ao amor. O uso das expressões habituais de um discurso do amor romântico está, para a autora, como uma das fontes principais pela qual os indivíduos entrem em relacionamentos fadados a repetição de padrões ruins e pela decepção no amor:

Nossa decepção é direcionada ao amor romântico. [...] É comum confundirmos uma paixão perfeita com um amor perfeito. Uma paixão perfeita acontece quando encontramos alguém que parece ter tudo o que queríamos ver em um parceiro. Digo “parece” porque a intensidade da conexão nos cega. (hooks, 2020, p. 208)

As expressões comumente utilizadas referidas a esse ideal romântico do encontro ao acaso da metade que faltava, da paixão perfeita e o mito do amor verdadeiro intensifica a fantasia criada em torno do parceiro perfeito, pois “[...] a fantasia romântica alimenta a crença de que dificuldades e momentos difíceis são uma indicação de falta de amor, em vez de parte do processo.” (hooks, 2020, p. 211). Ainda segundo a pesquisadora, a ideia de que as relações devem ser baseadas apenas no cuidado básico, na atração interminável e na vontade de estar perto faz com que ao perceberem mudanças acontecendo, como queda na atração ou a mínima dificuldade encontrada por ambas as pessoas, a relação tenha um fim por não coincidir com o discurso que crescemos ouvindo de que, quando encontramos um parceiro, o qual sentimos um amor inexplicável, a relação não terá fim.

Assim, hooks (2020) aponta o amor romântico e o discurso proferido por ele como o fator principal pela desilusão amorosa e desesperança de um dia encontrar o amor verdadeiro e aprender, na companhia do outro, a amar. Essa conclusão poderá ser observada nas análises das letras no decorrer da seção cinco, pois, na próxima seção, vamos expor um breve histórico

5Ao abordar a expressão, a autora cita ‘Love and Need”, de Thomas Merton, em que argumenta: “A expressão

‘cair de amores’ reflete uma atitude peculiar em relação ao amor e à própria vida – uma mistura de medo, espanto, fascinação e confusão. Ela implica suspeita, dúvida, hesitação na presença de algo inevitável, embora não de todo confiável.” (p. 201)

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do samba e do pagode e isso ajudará a compreender como esses estilos musicais apresentam o amor e as relações que se formam, a partir do encontro com o outro.

4 SOBRE SAMBA E PAGODE: BREVE HISTÓRICO

Cada vez mais conhecido e entrando na moda, o pagode vem (re)conquistando o seu espaço e cativando, cada vez mais, ouvintes por sua temática amorosa e festeira. Porém, o gênero musical como é conhecido, atualmente, é um subgênero, advindo do samba.

Declarado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, em 2005 pela Unesco, o samba surgiu no final do século XIX. Ramos (2008) expõe, em sua tese de doutorado, A música popular em foco: contribuição para a categorização do pagode como gênero discursivo, que

“a origem do samba se encontra nos batuques por escravos, ex-escravos e seus descendentes no decorrer dos séculos. [...] ‘Semba’ era como os escravos chamavam a sua dança [...]” (p.

42-43). Ainda segundo a pesquisadora, o samba marcava as cerimônias em que celebravam a vida, as suas raízes, com dança e música em formato de roda, no início improvisada pelo ritmo de palmas e batidas dos pés no chão, nomeado, posteriormente, de partido alto.

De acordo com Ramos (2008) e Pires e Lima (2021), a popularização do samba se deu, principalmente, a partir dos encontros na casa da Tia Ciata, após resistência diante da perseguição policial e preconceito social, racial e também religioso, do contexto histórico e social em que estava inserido.

Além de fazer uma apresentação sobre o surgimento do samba, seu contexto histórico-social e a aparição da vertente pagode romântico, Ramos, com embasamento nas concepções de Bakhtin, abordando, entre alguns, o conceito de gênero discursivo, também expõe análises de letras de samba e suas vertentes com a temática semelhante, sendo ela a amorosa, abordando a felicidade do relacionamento amoroso e também a temática samba.

Em complementação ao que foi sendo mostrado, Trotta (2006), em sua tese de doutorado, Samba e mercado de música nos anos 1990, explana que “Desde seu surgimento enquanto gênero de música popular urbana, o samba acompanha a trajetória de afirmação social das populações descendentes de escravos e sua luta por melhores condições de vida e trabalho na sociedade brasileira.” (p. 57). Com uma crescente popularização e aceitação por parte da elite, o sambafoi passando por uma evolução e transformações sócio-históricas que influenciaram diretamente nas mudanças que viriam a seguir, o que gerou ramificações do gênero, produzindo subgêneros, tais quais o pagode. Ainda segundo o estudioso, no começo, “samba” se referia a dança que acontecia nas festas, enquanto “pagode” era o nome dado à festa em si.

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Historicamente, ambos os termos são utilizados em referência ao encontro festivo, o evento da roda de samba, que acontecia.

Com início marcado como “encontros que ocorriam em fundos de quintais” (RAMOS, 2008, p. 57), o pagode vai ser manifestando nas classes populares de um jeito natural, por se tratar de encontros entre amigos para cantar e se divertir. Trotta (2006) expõe que “Aos poucos, o termo pagode passou a designar não apenas uma reunião informal, mas um jeito específico de fazer samba e, mais do que isso, a classificar um determinado grupo de sambistas no universo comercial.” (p. 101)

Segundo Trotta (2006), após passar por algumas mudanças, no começo dos anos 1990, desponta em São Paulo um novo tipo de pagode, com características diferentes, como a temática das letras e adição de instrumentos que afastam das raízes do samba, do pagode conhecido até então, o pagode romântico. Trotta (2006) afirma que “A categoria pagode então, é um artifício mercadológico cunhado como forma de sublinhar algumas distinções em relação ao samba até então praticado, ao invés de demarcar suas semelhanças com a estética e com o imaginário do samba.” (p. 103), assim, o pagode não se caracteriza como um novo gênero musical, mas como uma nuance do samba.

Assim, de acordo com a pesquisa de Trotta (2006), o pagode romântico surgiu com os grupos Raça Negra, Pique Novo, Os Morenos, Soweto, Só Pra Contrariar, Negritude Jr, Karametade, Exaltasamba, Katinguelê, entre outros, com a temática central em torno do amor, do encontro amoroso e dos sentimentos que o envolvem, como o ciúme, a solidão, a saudade, a realização, entre outros. A intensidade do sentimento amoroso é expressa pelo uso de uma linguagem direta e simples. Sobre isso, Trotta (2006) diz que “A intensidade dramática é na maioria das vezes atingida pela ideia de um amor não-realizado, impossível, secreto ou interrompido.” (p.

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A fim de mostrar como isso se materializa, nas letras de pagode, na próxima seção, vamos expor as análises que fizemos.

5 ANÁLISES DAS CANÇÕES

Nesta seção, será exposta a análise do corpus do trabalho com o objetivo de demonstrar a presença de discursos sobre o amor romântico nas letras das músicas escolhidas. Tendo como base os textos teóricos sobre o ideal de amor romântico e os conceitos da teoria bakhtiniana, serão analisadas duas letras de músicas: 1) “Me apaixonei pela pessoa errada”, do grupo Exaltasamba, e 2) “Que se chama amor”, do grupo Só Pra Contrariar (SPC).

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5.1 ME APAIXONEI PELA PESSOA ERRADA

A primeira letra a ser analisada é a da música “Me apaixonei pela pessoa errada'', escrita por Cleber Bittencourt, do grupo Exaltasamba, fundado em 1982, em São Bernardo do Campo, São Paulo. Presente no álbum Cartão Postal, gravado pela produtora EMI Música, de 1998.

A começar pelo título da música, é possível presumir que o tema a ser exposto será de uma desilusão amorosa, em que a voz que discursa não obtém reciprocidade de sentimento. O discurso presente na música é todo realizado na 1ª pessoa do singular em que se observa que apenas uma pessoa tem o poder de fala. A voz discursiva tende a crer que é uma voz masculina, visto pela marcação de masculino do adjetivo “errado”.

Em contrapartida, a voz a quem o discurso se refere não fica explícita, podendo ser tanto para um homem quanto para uma mulher pelo uso do substantivo “namorado”, não indicando se a relação à qual a voz discursiva se refere é heterossexual ou homossexual, deixando a interpretação em aberto. Os verbos estão na 1ª pessoa do singular no presente (vejo), no gerúndio (amando) e no infinitivo (ficar), demonstrando uma urgência, um apelo para que a outra pessoa, marcada pela 2ª pessoa do singular, entenda o que a voz do discurso sente e fique com ele, como nos versos “É mais do que desejo / É muito mais do que amor/ Eu te vejo nos meus sonhos”.

A primeira estrofe “Eu não tenho culpa de estar te amando / De ficar pensando em você toda hora / Não entendo porque deixei acontecer / E isso tudo me apavora”, é possível pressupor que o apaixonado está na presença daquele a quem refere o seu discurso com o objetivo de confessar o que está sentindo. O uso dos pronomes pessoais “eu” e “te”, no primeiro verso, do verbo “ficar” no infinitivo e o “você” marcando como pronome pessoal, evidencia a presença de um outro que não tem voz, tudo o que é dito é apenas pelo eu da voz discursiva, que fala sobre o sofrimento causado e declara ao outro seus sentimentos, mostrando que o sentimento passado pela declaração está em desenvolvimento e a outra pessoa não possui culpa por isso, marcado pelo uso dos verbos “amar” e “pensar” no gerúndio, vista em “Eu não tenho culpa de estar te amando / De ficar pensando em você toda hora”, primeira estrofe do verso. Em sequência, se mostra com medo por não entender o porquê de ter deixado que tal sentimento aflorasse e por sentir tudo que está sentindo. Nesse trecho, podemos perceber o amor associado ao sofrimento, como de acordo com Rousseau apud Toledo (2013), em que a figura amorosa idealizada e a realidade de uma não reciprocidade do outro leva ao sofrimento. Vale destacar que o dialogismo presente na letra da música em questão pode ser observado por meio dos

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discursos de idealização da relação e da pessoa amada existentes no decorrer da canção, pontos principais do ideal de amor romântico, retomando discursos já ditos.

Na segunda estrofe, “Você não tem culpa se eu estou sofrendo / Se fantasiei de verde essa história / Você tem namorado, posso até estar errado / Mas tenho que ganhar você”, a voz do discurso se dirige diretamente à pessoa amada retirando qualquer culpa pelo sofrimento que vem passando por fantasiar que esse romance daria certo e seria recíproco ao utilizar a expressão idiomática “fantasiar de verde”. Por outro lado, após afirmar que a pessoa amada teria um namorado, o uso da conjunção adversativa “mas”, no último verso, anula o discurso de vítima do sentimento que não é recíproco ao dar ênfase à ideia que realmente quer passar, o de que independente da pessoa amada ser comprometida, ela vai ser dela. A exposição dessa ideia de ter a pessoa apesar das circunstâncias mostra um lado possessivo que não havia sido posto antes, típico de relacionamentos abusivos.

Em seguida, nos versos “É mais do que desejo / É muito mais do que amor / Eu te vejo nos meus sonhos / E isso aumenta mais a minha dor”, o uso de advérbios de intensidade “mais” e

“muito” reforça o discurso feito até o momento desse sentimento avassalador que tomou conta da voz do discurso, da sensação de impotência de não poder ter a pessoa amada por ela já estar comprometida e não responder aos seus sentimentos.

No refrão, a voz discursiva demonstra não saber lidar com seus sentimentos e o sofrimento causado por eles.

Eu me apaixonei pela pessoa errada

Ninguém sabe o quanto que eu estou sofrendo Sempre que eu vejo ele do seu lado

Morro de ciúmes, tô enlouquecendo

Nos dois primeiros versos, há, mais uma vez, uma afirmação do sentimento o qual a voz discursiva havia dito no início da música como algo que estava em evolução, agora indicado no pretérito perfeito “apaixonei”, como algo que já ocorreu. O uso do adjetivo “errada” atribui à pessoa pela qual se apaixonou e a relação que tanto almejava o título de equívoco pelo fato desta já ser comprometida. No terceiro e quarto verso, há uma retomada no sentimento de posse aflorado pelos ciúmes que a voz discursiva sente da pessoa amada ao vê-la acompanhada de seu parceiro e como isso o enlouquece.

Na última estrofe, a voz do discurso faz pedidos diretos para a pessoa amada, no primeiro verso é o “Fica comigo”. Já no segundo verso, com “Me deixa ao menos te tocar”, nos leva a entender que a relação à qual a voz do discurso almejava, considerando todo o discurso já posto, o de

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não dar voz à pessoa amada e apresentar uma visão centrada no eu, não era de uma reciprocidade, mas sim de obsessão, de possessividade. Expressado, também, no último verso

“Entenda que ao meu lado é seu lugar”, em que, no enunciado apresentado, a voz do discurso se coloca como melhor escolha e em uma posição superior ao atual companheiro da pessoa amada para se estar junto e ter uma relação amorosa.

Após a repetição do refrão na música, há a estrofe “Fica comigo, vai / Eu morro de ciúmes quando vejo ele do seu lado / Assim não dá”, retomando o pedido que a voz discursiva faz à pessoa amada e explicando o porquê que esse pedido deve ser atendido nos primeiros versos, enquanto o último verso, “Assim não dá”, enfatiza o discurso posto antes da possessividade em relação à pessoa amada ao vê-la com seu companheiro.

Desse modo, ao analisarmos a letra em questão, pudemos observar que ela aborda a temática de um desengano amoroso. O enredo fala sobre uma pessoa declarando seu estado de apaixonado para aquela a quem direciona esse sentimento, por entendermos que “[...] há sempre no discurso sobre o amor uma pessoa a quem se dirige mesmo que essa pessoa tivesse passado ao estado de fantasma ou de criatura a vir. Ninguém tem vontade de falar de amor, se não for para alguém.” (BARTHES, 1981, p. 65), mas com um pesar por tanto sofrimento causado. Em vários momentos da música, a voz do discurso retira a culpa de si por tudo que está sentindo e também a culpa da pessoa amada por estar sofrendo por esse amor não correspondido, como foi mostrado nas referências a hooks (2020). A idealização da relação levou a voz discursiva a vivenciar, ainda que sozinho, uma relação destrutiva, pois ele tinha a esperança, o desejo de conseguir concretizar ao ter a pessoa amada para ele que é causada pelo apego à ideia de vivenciar o amor romântico.

Por fim, podemos perceber que a letra da música carrega um discurso em que é normal o sentimento de posse na relação e a fascinação em conseguir estar ao lado da pessoa amada, se colocando como superior e único capaz de desempenhar o papel de companheiro e obsessão pela mesma. Ainda é possível pensar em uma relação de dependência com a pessoa amada, pois todo o sofrimento é causado pelo fato dela estar comprometida e o fato de, ainda assim, ela querer estar junto dela, acreditando que só ao lado dessa pessoa em específico será feliz. E que, para além do dialogismo com o discurso do amor romântico, é presente também o discurso machista ao ver a pessoa como um objeto aflorado pelo sentimento de posse herdado da cultura patriarcal em que vivemos, presente em muitos, independentemente da orientação sexual.

Sobre isso, Cerqueira e Coelho apud. Moreira e Borcat dizem que “[...] a cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita ou sub-reptícia, coloca a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem [...]” (p. 5). Desse modo, o discurso dito na letra da música

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possui comportamentos que foram naturalizados, sendo, muitas vezes, visto como algo normal por interpretar como se fosse um sentimento bom e não como algo ruim.

5.2 QUE SE CHAMA AMOR

A última letra de música a ser analisada é a “Que se chama amor”, escrita por José Fernando, do grupo Só Pra Contrariar (SPC), formado em 1989, na cidade de Uberlândia, em Minas Gerais. Presente no álbum Que se chama amor, produzido pela gravadora BMG Ariola, em 1993. De forma breve, a letra da música aborda o sofrimento, a angústia que a voz discursiva está sentindo por causa de um sentimento, como pode ser visto pelo título da música.

O primeiro verso da primeira estrofe, “Como é que uma coisa assim machuca tanto / E toma conta de todo o meu ser”, se inicia com um questionamento retórico a fim de entender o porquê de sentir tanta dor e o angustiar tanto, mas sem mencionar o causador de tudo. Essa retórica é entendida como uma atitude responsiva retardada, por não haver a alternância entre os indivíduos, já que a voz discursiva fala apenas sobre si, e o espaço para compreensão e resposta do outro (o “você”), a quem ela se refere, fica em aberto. Na sequência, a voz do discurso começa a dar sinais do motivo desse sofrimento, expondo que “É uma saudade imensa que partiu meu coração / É a dor mais funda que a pessoa pode ter”, dando a entender que a razão dessa dor, dessa saudade, possa ser de um amor não correspondido, no qual toda a questão fica sob o aspecto da idealização da pessoa, por perceber a falta de reciprocidade do sentimento, fica essa saudade que parte o coração da voz discursiva por não concretizar o imaginado.

Como já visto em Toledo (2013) que por não existir uma realidade correspondente às expectativas o amor fica limitado a um ambiente saudoso, por isso, a letra da música em análise é uma resposta a esse discurso do amor romântico já expressado por outros, por permanecer com a visão de completude com a presença do outro, exposto, no decorrer do discurso, característico do amor romântico.

Na segunda estrofe, esse sentimento que ainda não foi nomeado diretamente no decorrer da letra da música, apenas em seu título, é comparado a um vírus “É um vírus que se pega com mil fantasias / Um simples toque de olhar”, mostrando a facilidade e, até uma certa fragilidade, de despertar esse sentimento e passar por todo o sofrimento acarretado. Nos dois últimos versos, “Me sinto tão carente, consequência desta dor / Que não tem dia e nem tem hora pra acabar”, a voz discursiva apresenta mais um resultado de toda essa dor, trabalhando na letra a relação de causa x consequência, respostas do eu discursivo a esse sentimento. Assim, a causa

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desse sentimento é não ser correspondido, subentendido em seu discurso, e a consequência adquirida é o sofrimento interminável, evidenciado no último verso da estrofe.

Em seguida, a voz discursiva faz um jogo com a palavra “afogar”, no primeiro verso em referência a beber muito, tanto para ver se por um momento esquece a situação pela qual está passando quanto para tentar encontrar uma solução para tal:

Aí eu me afogo num copo de cerveja Que nela esteja minha solução

Então eu chego em casa todo dia embriagado Vou enfrentar o quarto e dormir com a solidão

O uso do advérbio de tempo “então” marca o momento em que o jogo de palavras se concretiza e a voz discursiva revela que se embriagar não é coisa momentânea, tendendo a crer que isso ocorre desde que percebeu que esse problema pelo qual está passando não tem solução. A única possibilidade/resposta existente é se embebedar e ir dormir sozinho. Se vê presente o dialogismo na letra da música pelo novo, “Então eu chego em casa todo dia embriagado”, habitar no universo do já dito, da expressão utilizada com frequência “Beber para esquecer” ao se deparar com alguma situação em que não se vê uma resolução fácil.

É perceptível que, no decorrer da letra da música, os verbos estão na 1ª pessoa do singular, o que reflete a presença de um eu falando a todo momento sobre a sua subjetividade, sobre o que sente, como em “Me sinto tão carente, consequência desta dor”. A voz discursiva leva a crer ser uma voz masculina pela marcação de masculino dos adjetivos “embriagado”, presente no terceiro verso da estrofe anterior, e de “louco”, no segundo verso da segunda estrofe do refrão.

Na primeira estrofe do refrão, há a lamentação, que segundo hooks (2020), é desenvolvida pela fantasia romântica, por acreditar que o amor deve passar por essas etapas de dificuldade e sofrimento, um referenciar ao divino “Deus”, por não aguentar a dor que vem relatando durante a música e só no terceiro verso a voz discursiva expõe que essa dor é a dor do amor, que, de tão ardente e forte, toma conta da voz do discurso, que, assim, perde o controle sob si, há a presença do dialogismo também nessa estrofe, pelo primeiro verso, “Meu Deus, não”, existir no espaço do já dito, da expressão fazendo referência ao divino:

Meu Deus, não

Eu não posso enfrentar esta dor Que se chama amor (Ô-ô-ô) Tomou conta do meu ser (Ser)

Essa lamentação acerca da dor sentida é evidenciada na última estrofe do refrão em que se enfatiza que essa força sobrenatural do amor que tomou conta dele vai deixando-o louco a cada dia, como se a pessoa a quem ele dirige o seu discurso (o “você”) tivesse tanto a cura para a

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dor que ele sente e a saudade, em relação a esse amor não ser realizado, quanto também há atribuição de culpa ao outro (ao “você”) exposto na segunda estrofe do refrão:

Dia a dia, pouco a pouco Já estou ficando louco Só por causa de você (Você)

Assim, a partir da análise feita da letra em foco, foi possível observar que todo o enredo é sobre uma pessoa se questionando sobre as dores do sentimento amoroso, da saudade da pessoa amada, a quem só é dirigido esse discurso de fato a culpa por todo o sofrimento causado, no último verso do refrão “Só por causa de você”. Podemos notar que o discurso que a letra da música possui é de, assim como na análise anterior, um desengano amoroso que leva a voz do discurso à decadência, tanto pela dor insuportável que vem sentindo quanto pela necessidade de se embriagar para esquecer o causador da dor, o amor e a pessoa amada. E que, assim como já foi exposto, é um discurso de uma única voz, a discursiva, e aquela a quem ele culpa por todo o sofrimento não possui voz ativa, assim, entendemos a partir de Barthes (1981) que esse discurso amoroso ocupa “o lugar de alguém que fala de si mesmo, apaixonadamente, diante do outro (o objeto amado) que não fala.” (BARTHES, 1981, p. 9). A voz discursiva passa pelo êxtase passional, mas de forma negativa, por não conseguir fazer com que a relação seja recíproca. Além disso, é possível pensar também na relação de dependência existente com a pessoa a quem no final ele dirige seu discurso e culpa por tudo, retomando ao já dito, interpretada como a cura para todo o sofrimento com o encontro amoroso e como a única causadora de toda angústia. Esse discurso presente na letra da música, de dependência e desilusão amorosa, aparece como forma de declaração de afeto, deturpando o seu real sentido.

Nesse sentido, se encontra o dialogismo da música, por fazer referência a essas práticas recorrentes no discurso do amor romântico, da idealização acerca da relação e da pessoa amada, do sofrimento atrelado ao sentimento por ver nele a única forma de se sentir completo como indivíduo e, assim, depositando no outro, a pessoa amada, a responsabilidade da sua completude e felicidade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho de conclusão de curso teve como objetivo analisar de que maneira o discurso do ideal de amor romântico pode ser observado nas letras de pagode romântico dos anos 1990.

Como embasamento teórico no campo da linguagem, foram referenciados os conceitos de

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Bakhtin (1997) sobre gênero do discurso, dialogismo e atitude responsivo-ativa. Enquanto sobre o conceito de amor romântico, foram utilizadas as pesquisas de Toledo (2013), Barthes (1981) e bell hooks (2020). Ainda foram usadas publicações de Trotta (2006), Toledo (2013) e Pires e Lima (2021), acerca do surgimento do gênero musical samba e as suas vertentes, com foco no pagode romântico dos anos 1990. Vale ressaltar que Ramos (2008) e Pires e Lima (2021) também contribuíram para o estudo sobre o pagode romântico analisando aspectos do relacionamento amoroso.

Diante da teoria mostrada e das análises apresentadas, podemos concluir que as letras de pagode romântico dos anos 1990, aqui analisadas, possuem um discurso sobre amor romântico muito presente e combinado com o discurso machista de objetificação e posse, comumente da mulher, muito comum nesse tipo de discurso, por abordar a dependência expressa nesses discursos de exclusividade presente nas ideias do amor romântico. O novo, as músicas analisadas de pagode romântico, habitam no universo do já dito, o ideal de amor romântico, exposto a partir de Rousseau apud Toledo (2013) e hooks (2020). O dialogismo das letras das músicas também é visto nos discursos de possessividade e em alguns aspectos que remetem à relacionamentos abusivos, como a dependência do outro, só um eu que fala, ressoando o machismo, como destacado.

Diante do que foi analisado e apresentado, a expectativa dos resultados desta pesquisa é a de fazer com que as pessoas observem com um olhar mais atento as letras das músicas de pagode romântico e percebam as problemáticas por trás de um discurso que nos foi ensinado como declaração de afeto, o de amor entrelaçado ao sofrimento caso não fosse correspondido e o de sentimento de posse em relação ao outro, mesmo que não exista uma relação entre ambos, que sempre aparece de forma sutil, só sendo percebida com um olhar mais atento para o discurso.

Acredita-se que, a partir dessa atenção ao discurso, o ideal de amor romântico e os aspectos que o envolvem, a fantasia romântica e a intensidade do sentimento que leva ao discurso machista e de dependência, possam perder força ao não levarmos mais como normal e compreendermos as problemáticas, nas práticas amorosas, que esses discursos implicam.

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REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão; rev. trad. Marina Appenzeller. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. 2ª ed.

EXALTASAMBA - Me apaixonei pela pessoa errada (Vídeo Oficial). Intérprete: Chrigor.

Música: Me apaixonei pela pessoa errada. [S.I.], 1997. Youtube (3m21s), son., color.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ObRr7ipQqqA. Acesso em: 31 jan. 2022.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2002.

hooks, bell, 1952. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2020. 272 p.

LINO, Tayane Rogeria. O lócus enunciativo do sujeito subalterno: uma análise da produção científica de bell hooks e Gloria Anzaldúa. Universidade Federal de Minas Gerais, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/BUBD-AAXFWU.

MOREIRA, Rafael da Silva. BORCAT, Juliana Cristina. Patriarcado e objetificação da mulher sob a óptica da cultura do estupro: machimo na copa do mundo.

NOGUEIRA, Renato. Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor.

Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2020

PIANZOLI, Aline Aparecida. A representação da figura feminina em canções: um estudo acerca da objetificação da mulher em letras de músicas sertanejas brasileiras. 2021. 65 f.

Monografia (Graduação em Licenciatura em Letras com Habilitação em Português). Instituto Federal do Espírito Santo, Venda Nova do Imigrante, 2021. Disponível em:

<https://repositorio.ifes.edu.br/handle/123456789/1122. Acesso em: 20 jan. 2022.

PIRES. Nágila Macedo. LIMA, Prof. Me. Renato Cândido de. A ascensão do pagode romântico de 1990 e as implicações nas relações de afeto da negritude. Revista COMFILOTEC, ano 7, vol. 13, 2021.

RAMOS, Dilzete da Silva Mota. A música popular em foco: contribuição para a categorização do pagode como gênero discursivo. Campinas, São Paulo: [s.n.], 2008.

SÓ PRA CONTRARIAR. - Que se chama amor (Vídeo Oficial). Intérprete: Alexander Pires.

Música: Que se chama amor. [S.I.], 1997. Youtube (3m21s), son., color. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=ObRr7ipQqqA. Acesso em: 31 jan. 2022.

TOLEDO, M. T. (2013). Uma Discussão sobre o Ideal de Amor Romântico na Contemporaneidade – do Romantismo aos padrões da Cultura de Massa. Revista Mídia E Cotidiano, 2(2), 303-320. Disponível em: <https://doi.org/10.22409/ppgmc.v2i2.9687>.

Acesso em: 02 dez. 2021.

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TROTTA, Felipe da Costa. Samba e mercado de música nos anos 1990. Rio de Janeiro, 2006.

259 p

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ANEXO A - LETRA DA MÚSICA ME APAIXONEI PELA PESSOA ERRADA

Composição: Cleber Bittencourt Santos e Piter Baptista da Silva

Eu não tenho culpa de estar te amando De ficar pensando em você toda hora Não entendo por que deixei acontecer E isso tudo me apavora

Você não tem culpa se eu estou sofrendo Se fantasiei de verde essa história

Você tem namorado, posso até estar errado Mas tenho que ganhar você

É mais do que desejo É muito mais do que amor Eu te vejo nos meus sonhos E isso aumenta mais a minha dor

Eu me apaixonei pela pessoa errada

Ninguém sabe o quanto que eu estou sofrendo Sempre que eu vejo ele do seu lado

Morro de ciúmes, tô enlouquecendo

Eu me apaixonei pela pessoa errada

Ninguém sabe o quanto que eu estou sofrendo Sempre que eu vejo ele do seu lado

Morro de ciúmes, tô enlouquecendo

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Fica comigo

Me deixa ao menos te tocar

Entenda que ao meu lado é seu lugar

Eu me apaixonei pela pessoa errada

Ninguém sabe o quanto que eu estou sofrendo Sempre que eu vejo ele do seu lado

Morro de ciúmes, tô enlouquecendo

Eu me apaixonei pela pessoa errada

Ninguém sabe o quanto que eu estou sofrendo Sempre que eu vejo ele do seu lado

Morro de ciúmes, tô enlouquecendo

Fica comigo, vai

Eu morro de ciúmes quando eu vejo ele do seu lado Assim não dá

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ANEXO B - LETRA DA MÚSICA QUE SE CHAMA AMOR

Composição: Jose Fernando

Como é que uma coisa assim machuca tanto E toma conta de todo o meu ser

É uma saudade imensa que partiu meu coração É a dor mais funda que a pessoa pode ter

É um vírus que se pega com mil fantasias Um simples toque de olhar

Me sinto tão carente, consequência desta dor Que não tem dia e nem tem hora pra acabar

Aí eu me afogo num copo de cerveja Que nela esteja minha solução

Então eu chego em casa todo dia embriagado Vou enfrentar o quarto e dormir com a solidão

Meu Deus, não

Eu não posso enfrentar esta dor Que se chama amor (Ô-ô-ô)

Tomou conta do meu ser (Ser) Dia a dia, pouco a pouco Já estou ficando louco Só por causa de você (Você)

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ANÁLISE DA PRESENÇA DO IDEAL DE AMOR ROMÂNTICO NAS LETRAS DE MÚSICA DO PAGODE ROMÂNTICO DOS ANOS 1990

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Coordenadoria do Curso Superior de Licenciatura em Letras-Português como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Letras-Português.

Aprovado em 11 de março de 2022.

COMISSÃO EXAMINADORA

Profa. Dra. Tatiana Aparecida Moreira Instituto Federal do Espírito Santo

Orientadora

P/

Profa. Ma. Vivian Pinto Riolo Universidade Federal de Minas Gerais

Membro Externo

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Profa. Ma. Rosana de Castro Januário Murayama Instituto Federal do Espírito Santo

Membro Interno

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