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SER É SER PERCEBIDO Um exame de duas interpretações da justificação do esse est percipi na filosofia de George Berkeley Filosofia

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SER É SER PERCEBIDO

Um exame de duas interpretações da justificação do

esse est percipi

na

filosofia de George Berkeley

Filosofia

PUC/SP

(2)

JEAN RODRIGUES SIQUEIRA

SER É SER PERCEBIDO

Um exame de duas interpretações da justificação do

esse est percipi

na

filosofia de George Berkeley

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Filosofia, sob orientação do Prof. Doutor Mario Ariel Gonzalez Porta.

Filosofia

PUC/SP

(3)

__________________________________

__________________________________

(4)

Agradecimentos

Ao professor Mario Porta, pela amizade e pela oportunidade de desenvolver este trabalho.

Aos professores Edélcio Gonçalves e André Fuhrmann, por terem se disponibilizado a participar de minhas bancas de qualificação e defesa.

Ao CNPq, pelo suporte financeiro. A meus familiares.

A meus amigos da PUC/SP – Eduardo, Miriam, Ana Teresa, Juliana, Anderson, Silvio, José e Gisele – que, se não tiveram influência direta sobre a criação deste texto, certamente contribuíram com sua amizade e companhia para estimular meu trabalho.

A Pedro Monticelli e Ernesto Giusti, por uma ou outra conversa – sempre proveitosas – a respeito de temas afins. A eles também deixo manifesta minha admiração.

A Patrícia Mesquita, pela amizade e por me ajudar a revisar a tradução de alguns textos em inglês.

A Aline Ramos, pela amizade e por me socorrer nos momentos de dúvida a respeito do correto uso da nossa língua portuguesa.

A todos que participaram comigo dos grupos de estudos sobre Frege e Husserl, cujas discussões sempre acrescentaram algo à minha formação como estudante de filosofia.

(5)

Resumo

O objetivo desta dissertação é examinar duas interpretações diferentes acerca da justificação da necessidade do esse est percipi na filosofia de Berkeley. Segundo uma delas,

a interpretação da identificação, o que assegura essa justificação é a negação que o filósofo faz de qualquer diferença entre o ato e o objeto da percepção. Os defensores dessa linha de raciocínio – como Grave e Pitcher – dizem que, como para Berkeley há uma identidade entre o ato e o objeto da percepção, este necessariamente tem que ser pensando como estando “na mente”, tal como o ato está. Segundo a outra, a então chamada interpretação da inerência, o que legitima a afirmação de Berkeley de que a percepção é uma condição necessária para o ser das coisas sensíveis é sua aceitação do lema de que as qualidades devem inerir nas substâncias (o princípio da inerência). Para os proponentes dessa leitura – Allaire e Cummins, por exemplo – a negação da substância material por Berkeley e seu comprometimento com o princípio da inerência deixam ao filósofo a necessidade de encontrar um suporte ontológico para as qualidades sensíveis; como a única substância disponível em sua ontologia é a mente, então as qualidades devem existir “na mente”, ou seja, seu esse é percipi. Quanto à primeira interpretação, será mostrado que Berkeley nunca

diz que a distinção ente o ato e o objeto da percepção é falsa, ou que o ato e o objeto da percepção são idênticos; ele diz apenas que o objeto da percepção não pode ser dissociado do ato ao qual está referido, nem pensado como uma entidade extra-mental. Quanto à segunda interpretação, será mostrado que, ainda que Berkeley acredite que as qualidades dependam das substâncias para existir, ele não concebe essa relação de dependência em termos de inerência. Ao mostrar que nenhuma dessas explicações tradicionais a respeito da necessidade interna do esse est percipi na filosofia de Berkeley é leal ao espírito e a letra de

(6)

Abstract

The aim of this dissertation is to examine two different interpretations concerning the justification of the necessity of the esse est percipi thesis in the philosophy of George

Berkeley. According to one of them, the identification interpretation, what secures this justification is the philosopher’s denial of any difference between the act and the object of perception. The defenders of this line of reasoning – like Grave and Pitcher – says that, as for Berkeley there is an identity between the act and the object of perception, the latter necessarily has to be thought to be “in the mind”, just like the act is. According to the other, the so-called inherence interpretation, what legitimates Berkeley’s claim that perception is a necessary condition of the being of sensible things is his acceptance of the dictum that qualities must inhere in substances (the inherence principle). To the champions of this reading – Allaire and Cummins, for example – Berkeley’s denial of material substance and his commitment to the inherence principle leaves the philosopher with the need to find an ontological support to the sensible qualities; as the only substance available in his ontology is the mind, then the qualities must exist “in the mind”, that is, their esse is percipi. As to

the first interpretation, it will be shown that Berkeley never says that the distinction between the act and the object of perception is a bogus one, or that the act and the object of perception are identical; he only says that the object of perception cannot be dissociated from the act to which he is referred, nor thought to be a extra-mental entity. As to the second interpretation, it will be shown that while Berkeley believes that qualities depend on substances to exist, he doesn’t conceives this dependence in terms of inherence. By showing that neither of these traditional explications of the internal necessity of the esse est

percipi in Berkeley’s philosophy is loyal to the spirit and the letter of his writings, this

(7)

Indice

Introdução 9

CAPÍTULO I – A INTERPRETAÇÃO DA IDENTIFICAÇÃO

15

I. Apresentação da interpretação da identificação 15

1. Grave e o conflito do princípio da distinção com o princípio da identificação 15

2. A solução de Pitcher 19

3. As raízes da interpretação da identificação 22

II. A interpretação da identificação desafiada 26

1. A distinção ato/objeto em Berkeley 26

2. Objeções e respostas à interpretação proposta 31

III. Análise do suporte textual da interpretação da identificação 36

1. Os textos publicados . 37

O princípio da identificação nos Principles 37

O princípio da identificação nos Dialogues 55

2. Os textos não publicados: Philosophical Commentaries 64

CAPÍTULO II – A INTERPRETAÇÃO DA INERÊNCIA

78

I. Apresentação da interpretação da inerência 68

1. O contexto teórico-conceitual da interpretação da inerência 68

A concepção cartesiana da relação substância/qualidade 69

(8)

Semelhanças entre as concepções lockeana e cartesiana da relação

substância/qualidade 80

O esse est percipi e a relação substância/qualidade em Descartes e Locke 81

2. Allaire, Cummins, e o princípio da inerência 82

II. Obstáculos à interpretação da inerência 91

III. Análise do suporte textual da interpretação da inerência 95

Conclusão 101

(9)

Introdução

Muitos estudantes de filosofia e a maioria dos curiosos por essa disciplina costumam relacionar o nome dos grandes filósofos a certos motes, expressões ou conceitos que, acredita-se, representam e resumem o essencial de seu pensamento. Assim, o nome de Descartes, por exemplo, remete imediatamente ao famoso “penso, logo existo”, ao passo que Kant geralmente é lembrado por sua revolução copernicana, e Nietzsche, quando não equivocadamente acusado de nazismo, é associado à frase “Deus está morto”. Com o bispo e filósofo irlandês George Berkeley, ainda que bem menos citado nas mesas dos cafés e bem menos conhecido que esses três filósofos, a situação não é diferente. Nas vezes em que seu nome não suscita apenas uma expressão de interrogação, é comum a vinculação de seu pensamento à expressão latina esse est percipi – ou seja, ser é ser percebido. É preciso

reconhecer que a teoria abarcada pelo esse est percipi está, de fato, no núcleo da filosofia

de Berkeley. Mas o que significa dizer que o ser é ser percebido? Qual o alcance filosófico dessa afirmação?

No A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge (apenas Principles

daqui por diante)1 Berkeley introduz o esse est percipi como uma tese acerca da natureza de

determinados dados do conhecimento chamados por ele de idéias dos sentidos2: é o ser

dessas idéias ou de algum conjunto delas – tais como luzes, cores, solidez, maciez, calor frio, movimento, resistência, odores, sabores, sons – que depende de sua percepção pela mente:

“Todos concordarão que nem nossos pensamentos, nem as paixões, nem as idéias formadas pela imaginação existem sem a mente. E a mim não parece menos evidente que as várias sensações ou idéias impressas nos

1 As edições de obras de Berkeley aqui utilizadas são a de LUCE, A. A., JESSOP, T. E. The works of George

Berkeley, Bishop of Cloyne. London: Nelson, 1957 (9 vols.) e a de FRASER, A. Campbell. The works of George Berkeley. Oxford: Clarendon Press, 1902 (4 vols.). Todas as referências aos textos de Berkeley serão dadas logo após as citações. No caso dos Principles, será indicado o número do parágrafo correspondente logo após a letra P; no caso dos Three Dialogues between Hylas and Philonous (apenas Dialogues daqui por diante), após a letra D será fornecido o número do diálogo e em seguida o número de pagina da edição Luce/Jessop e o da edição de Fraser, respectivamente. Quanto às citações dos Philosophical Commentaries (PC), primeiramente será seguida a numeração e ordenação proposta por Luce/Jessop; na seqüência, teremos o número de pagina da edição de Fraser. Para o texto A defense o free-thinking in mathematics, abreviado por DM, será indicado o número do parágrafo.

(10)

sentidos, não importa como misturadas e combinadas conjuntamente (isto é, sejam quais forem os objetos que compõe), não podem existir de outra maneira que não em uma mente que as percebe.” (P 3)3

No entanto, se ao enunciar o esse est percipi Berkeley quisesse apenas chamar a

atenção para a impossibilidade de uma idéia ou conjunto delas existir independentemente de sua percepção pela mente, seu famoso princípio jamais teria sido considerado “seu aporte original, sua contribuição pessoal à filosofia”, como o caracteriza T. E. Jessop4. Isso porque muitos filósofos modernos já estavam convencidos de que ter uma idéia é o mesmo que perceber uma idéia e que, portanto, não há idéias não percebidas na mente – ou, em outras palavras, que não há pensamentos na mente que não sejam acompanhados por sua consciência5. Para Locke, por exemplo,

“(...) estar no entendimento e não ser entendido; estar na mente e nunca ser percebido; tudo isso é o mesmo que dizer que algo está e não está na mente ou entendimento.” (I, i, 5)6

A novidade e o impacto filosófico do esse est percipi na filosofia moderna não residem,

portanto, na mera afirmação de que as idéias existem apenas como entes atualmente percebidos. O que é característico na posição de Berkeley acerca das idéias é que para ele essas entidades esgotam os constituintes ontológicos daquilo que comumente chamamos de coisas sensíveis ou objetos físicos. Coisas sensíveis são apenas conjuntos ou feixes de idéias dados à mente e identificados por um nome qualquer:

3 “That neither our thoughts, nor passions, nor ideas formed by the imagination, exist without the mind, is

what everybody will allow. And to me it seems no less evident that the various sensations or ideas imprinted on the sense, however blended or combined together (that is, whatever objects they compose), cannot exist otherwise than in a mind perceiving them.” Exceto quando indicado o contrário, todas as traduções que constam no corpo desta dissertação são de minha responsabilidade. Para facilitar a conferência, os textos correspondentes em inglês sempre serão citados em notas de rodapé; as citações que constam nas notas permanecerão em seu idioma original.

4 “(...) son apport original, sa contribution personnelle à la philosophie.” JESSOP, T. E. L’esse est percipi de

Berkeley. Revue philosophique de la France et de l’etranger, 950 (1953), p. 153.

5 Entre os autores modernos uma exceção é Leibniz. Para Leibniz, é possível distinguir entre a percepção e a

apercepção. As apercepções sempre remetem a um processo consciente, ao qual a atenção está dirigida. No caso das percepções, nem sempre há consciência de sua ocorrência. Nem toda percepção é uma apercepção, mas toda apercepção é uma percepção. Cf. livro II, capítulo 9 in LEIBNIZ, W. V. Novos ensaios acerca do entendimento humano. Trad. Luiz João Baraúna. 7a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1999.

6 “(...) to be in the understanding, and not to be understood; to be in the mind and never to be perceived, is all

(11)

“Pela vista tenho idéias de luz e cores, com seus diversos graus e variações. Pelo tato, percebo o duro e o macio, calor e frio, movimento e resistência; e de todos essas, mais ou menos quanto à quantidade ou grau. O olfato me fornece os odores; o paladar, os sabores; e a audição leva os sons até a mente com toda sua variedde de tom e composição. E como muitas delas são observadas acompanhando outras, elas vêm a ser marcadas por um nome e assim são tidas como uma coisa.” (P 1)7

“Digo que uma cereja nada mais é que um conjunto de impressões sensíveis ou idéias percebidas pelos vários sentidos; idéias que são unidas como uma coisa (ou têm um nome dado a elas) pela mente, por serem observadas umas ligadas às outras. Assim, quando o paladar é afetado com um sabor particular, a visão é afetada com uma cor vermelha, o tato com a redondez, maciez, etc. – assim, quando eu vejo, sinto, saboreio em tal variedade de maneiras, estou certo de que a cereja existe ou é real.” (D III, 249/469)8

Ora, essa concepção da natureza das coisas sensíveis, quando unida ao esse est

percipi, faz com que este deixe de ser a trivial afirmação de que o ser das idéias consiste no

seu serem percebidas pela mente para se converter na polêmica afirmação de que é o ser das coisas sensíveis que consiste no seu serem percebidas pela mente.

Não é difícil constatar o quão dissidente e controverso é o princípio de Berkeley quando visto sob essa luz. Do ponto de vista do senso comum, sua veracidade bem poderia ser questionada mediante o apelo ao fato de que há inúmeras coisas que reconhecemos como existentes e que, não obstante, não são atualmente percebidas por ninguém. O que dizer, por exemplo, dos chamados peixes abissais, das mais distantes estrelas que compõe o universo ou, simplesmente, do sapato que está fechado em sua caixa e guardado dentro do armário? Como o esse dessas coisas poderia ser percipi se todas elas, assim acreditamos,

estão lá em seus lugares e não há ninguém para percebê-las? A esse tipo de objeção Berkeley responderia de duas maneiras: em primeiro lugar, o esse est percipi não diz que as

coisas sensíveis existem apenas quando atualmente percebidas, mas sim que elas existem

7 “By sight I have the ideas of light and colours, with their several degrees and variations. By touch I perceive

hard and soft, heat and cold, motion and resistance; and of all theses more and less either as to quantity or degree. Smelling furnishes me with odours; the palate with tastes; and hearing conveys sounds to the mind in all their variety of tone and composition. And as several of these are observed to accompany each other, they come to be marked by one name, and so to be reputed as one thing.” A menos quando explicitamente informado, todos os itálicos são do autor.

8 “A cherry, I say, is nothing but a congeries of sensible impressions, or ideas perceived by various senses:

(12)

também quando podem ser percebidas desde que se cumpram certas condições passíveis de serem descritas em termos de sensações. Assim, bastaria alguma mente estar em condições adequadas para perceber tais objetos que ela naturalmente os perceberia:

“Digo que a mesa em que escrevo existe; ou seja, eu a vejo e a sinto. E se saísse de meu gabinete diria que ela existe, significando com isso que se eu lá estivesse poderia percebê-la.” (P 3)9

Em segundo lugar, dizer que o ser das coisas sensíveis consiste no seu serem percebidas pela mente não implica dizer “pela minha mente” ou “pela mente de A” senão

que devemos entender a expressão “pela mente” como “por qualquer mente”, sejam as

mentes finitas humanas10 ou a mente infinita de Deus. Nas palavras de Berkeley:

“Pois, embora de fato afirmemos que os objetos do sentido nada mais são que idéias que não podem existir impercebidas, daí não podemos concluir que elas só têm existência quando são percebidas por nós, uma vez que pode existir algum outro espírito que as perceba ainda que nós não o façamos. Sempre que for dito que os corpos não têm existência sem a mente, eu não quero dizer por esta ou aquela mente em particular, mas por qualquer mente.” (P 48)11

“A questão entre os materialistas e eu não é se as coisas tem uma existência real fora da mente dessa ou daquela pessoa, mas se elas têm uma existência absoluta, distinta de seu serem percebidas por Deus e exterior a todas as mentes.” (D III, 235/452)12

9 “The table I write on I say exists; that is, I see and feel it: and if I were out of my study I should say it

existed; meaning thereby that if I was in my study I might perceive it.”

10 Berkeley não parece ter se posicionado explicitamente quanto à possibilidade ou não dos animais possuírem

mentes. Uma passagem dos Dialogues, no entanto, sugere que ele tenha considerado os animais também como um mero conjunto de idéias:

“Hyl. (…) Moses tells us of a creation: a creation of what? Of ideas? No, certainly, but of things, of real things, solid corporeal substances (…)

Phil. Moses mentions the sun, moon, and stars, earth and sea, plants and animals. That all these do really exist, and were in the beginning created by God, I make no question. If by ideas you mean fictions and fancies of the mind, then these are no ideas. If by ideas you mean immediate objects of the understanding, or sensible things, which cannot exist unperceived, or out of a mind, then these things are ideas.” (D III, 250-1/471)

11 “For, though we hold indeed the objects of sense to be nothing else but ideas which cannot exist

unperceived; yet we may not hence conclude they have no existence except only while they are perceived by us, since there may be some other spirit that perceives them though we do not. Wherever bodies are said to have no existence without the mind, I would not be understood to mean this or that particular mind, but all minds whatsoever.”

12 “The question between the materialists and me is not, whether things have a real existence out of the mind

(13)

Do ponto de vista das teorias filosóficas então vigentes em sua época, o princípio metafísico proposto por Berkeley não poderia ser mais polêmico. Examinaremos mais a fundo esse contexto no segundo capítulo desta dissertação.

Outro ponto importante a se destacar a respeito do esse est percipi é o fato de

Berkeley tê-lo concebido como uma verdade necessária, passível de ser provada a priori.

Por essa razão, Berkeley acredita que a negação do esse est percipi imediatamente produz

uma impossibilidade, uma contradição:

“Seu esse [isto é, o ser das coisas sensíveis] é percipi, nem é possível que elas tivessem qualquer existência fora das mentes ou coisas pensantes que as percebem.” (P 3; os itálicos em “nem é possível” são meus)13

“De fato, é uma opinião que estranhamente prevalece entre os homens que as casas, montanhas, rios, enfim, todos os objetos sensíveis, possuem uma existência natural ou real, distinta de seu serem percebidas pelo entendimento. Mas por maior que seja a confiança e aquiescência que esse princípio tenha recebido no mundo, quem procurar em seu coração colocá-lo em questão perceberá, se não me engano, que ele envolve uma manifesta contradição.” (P 4; itálicos meus)14

Ao longo dos anos, em particular do início do século XX para cá, muitos intérpretes procuraram encontrar e explicitar as razões que pudessem justificar a adoção de um princípio tão peculiar e inovador por parte de Berkeley. O que levou Berkeley a admitir o

esseestpercipi como uma verdade necessária, ou seja, como uma tese cuja negação implica

uma impossibilidade, uma contradição? O que fundamenta sua tese de que a percepção sensível é condição necessária para a existência das coisas sensíveis? Porque é impossível que montanhas, rios, cadeiras, etc., existam independentemente de sua percepção por alguma mente?

Nesta dissertação duas respostas comumente dadas a essas questões pelos intérpretes de Berkeley serão apresentadas e examinadas. Segundo uma delas, chamada aqui de interpretação da identificação, o que legitima e assegura a necessidade do esse est

13 “Their esse is percipi, nor is it possible they should have any existence out of the minds or thinking things

which perceive them.”

14 “It is indeed an opinion strangely prevailing amongst men, that houses, mountains, rivers, and in a word all

(14)

percipi é a negação de qualquer distinção entre as operações ou atos da mente e seus

respectivos objetos. Como para Berkeley há uma relação de identidade entre o perceber e o objeto percebido, as coisas sensíveis tornam-se irremediavelmente unidas à mente que as percebe. A interpretação da identificação foi proposta por autores como George E. Moore, Bertrand Russell e mais recentemente por S. A. Grave e George Pitcher, entre outros. Segundo a outra resposta, comumente chamada na literatura sobre Berkeley de

interpretação da inerência (inherence interpretation), o que assegura a necessidade

sistemática do esse est percipi é o comprometimento de Berkeley com a tese de que a

relação entre uma substância e seus modos é uma relação de inerência e, portanto, de qualificação. Como para Berkeley só existe a substância mental ou espiritual, as qualidades sensíveis ou idéias só podem inerir na mente, isto é, existir nela. Edwin Allaire e Phillip Cummins são os comentadores mais representativos dessa linha de interpretação.

Conforme poderemos constatar ao final desta dissertação, tanto a interpretação da identificação quanto a interpretação da inerência são insatisfatórias como justificativas para a necessidade sistemática do esse est percipi. Para tanto, será mostrado que nenhuma delas

repousa sobre sólida evidência textual. Da primeira nos ocuparemos no capítulo I; da segunda, no capítulo II. O texto que segue, portanto, é uma argumentação negativa, cuja finalidade principal é chamar a atenção para a urgência de uma leitura que dê conta da necessidade do esse est percipi,mas que o faça sem forçar ou deturpar o espírito e a letra

(15)

Capítulo I

A INTERPRETAÇÃO DA IDENTIFICAÇÃO

A interpretação da identificação, conforme constataremos ao longo da primeira seção deste capítulo, é praticamente um lugar-comum na literatura acerca da metafísica de Berkeley. Graças a seu apelo explanatório, em particular à sua capacidade de trazer à luz uma razão sistemática para a admissão do esse est percipi e embasá-la textualmente, há

décadas essa leitura tem gozado de grande receptividade entre os estudiosos da filosofia moderna em geral. Comentadores recentes, entretanto, ao utilizarem-na como chave de leitura para a compreensão da metafísica de Berkeley, têm destacado a presença de importantes dificuldades teóricas no coração do sistema filosófico proposto pelo pensador irlandês. Dois desses comentários serão apresentados logo no início dessa primeira seção, ocasião que teremos para explicar melhor em que consiste tal interpretação e onde e como ela se ancora nos principais textos de Berkeley. Na seção seguinte, porém, veremos que há bons motivos – tanto textuais quanto sistemáticos – para desafiarmos a pertinência dessa leitura tão tradicional e, conseqüentemente, para ignorarmos as eventuais dificuldades que dela decorrem. Por fim, na terceira seção, examinaremos em pormenor todas as passagens textuais que poderiam servir de fundamento para a interpretação da identificação, mostrando assim que sua suposta base textual não passa da sedimentação de sucessivos equívocos hermenêuticos raramente questionados.

I. Apresentação da interpretação da identificação

1. Grave e o conflito do princípio da distinção com o princípio da identificação

Em um artigo originalmente publicado em 196415, S. A. Grave se propõe a abordar o que considera serem problemas de interpretação referentes ao que Berkeley diz sobre a relação das mentes com suas idéias. De maneira geral, o objetivo de seu artigo é mostrar

15 GRAVE, S. A. The mind and its ideas: some problems in the interpretation of Berkeley. Australasian

(16)

que há contradições aparentemente irreconciliáveis envolvendo as afirmações que Berkeley faz a respeito da natureza das mentes e da relação entre elas e as idéias. Segundo Grave, a filosofia de Berkeley cai em dificuldades insuperáveis ao defender dois princípios metafísicos completamente incompatíveis entre si. Um deles, o então chamado princípio da distinção, rezaria que as mentes e as idéias que constituem as coisas sensíveis são entes completamente distintos. Como evidência do comprometimento de Berkeley com tal princípio, Grave remete seu leitor às seguintes passagens dos Principles:

“Esse ser que percebe, ativo, é o que chamo de mente, espírito, alma, ou eu. Por essas palavras não denoto alguma de minhas idéias, mas uma coisa completamente distintas delas, na qual elas existem, ou, o que é a mesma coisa, pela qual são percebidas.” (P 2)16

“De todos os nomes, coisa ou ser são os mais gerais, compreendendo duas espécies inteiramente distintas e heterogêneas, a saber, espíritos e idéias, que nada têm em comum além do nome.” (P 89)17

“É necessário, portanto, a fim de evitar equívocos e confundir naturezas completamente discordantes e diferentes, que distingamos espírito e idéia.” (P 139)18

Nessas passagens, Berkeley é realmente bastante enfático em dizer que sua ontologia comporta fundamentalmente apenas dois tipos de ser e que estes são “completamente distint[os]”, “inteiramente distint[os] e heterogêne[os]”, “completamente discordantes e diferentes”: as mentes19 e as idéias. Como suporte adicional à atribuição do princípio da distinção a Berkeley, poderíamos ainda apontar outras passagens, não mencionadas por Grave, mas tão inequívocas quanto as anteriores:

“But it has been made evident that bodies, of what frame or texture soever, are barely passive ideas in the mind, which is more distant and heterogeneous from them than light is from darkness.” (P 141)

16 “This perceiving, active being is what I call mind, spirit, soul, or myself. By which words I do not denote

any one of my ideas, but a thing entirely distinct from them, wherein they exist, or, which is the same thing, whereby they are perceived.”

17 “Thing or Being is the most general name of all; it comprehends under it two kinds entirely distinct and

heterogeneous, and which have nothing common but the name. viz. spirits and ideas.”

18 “It is therefore necessary, in order to prevent equivocation and confounding natures perfectly disagreeing

and unlike, that we distinguish between spirit and idea.”

19 No que segue, farei uso exclusivamente do termo “mente” para se referir ao ser ativo, deixando de lado seus

(17)

“Espíritos e idéias são coisas tão diferentes que quando dizemos que existem, que são conhecidas, ou coisas semelhantes, as palavras não devem ser tomadas como significando algo comum às duas naturezas. Não há nada semelhante ou comum entre elas.” (P 142)20

“Idéias são coisas inativas e percebidas; espíritos são um tipo de ser completamente diferente delas.” (D III, 231/448)21

É perfeitamente claro que em todos esses fragmentos de texto Berkeley chama a atenção para uma forte oposição entre o ser das mentes e o ser das idéias. Mas em quê, exatamente, consiste essa diferença tão radical? Conforme pode ser depreendido de algumas dessas citações, a característica que Berkeley considera exclusiva e essencial às mentes é o fato destas serem uma espécie de ser ativo, um ser que percebe. As idéias, por outro lado, são seres fundamentalmente inativos e inertes. Assim, à passividade das mentes é contrastada a passividade das idéias. É inegável, portanto, que o chamado princípio da distinção tenha sido efetivamente endossado por Berkeley.

O outro princípio, nomeado de princípio da identificação, afirmaria, por sua vez, que não há diferença alguma entre o ato ou operação de perceber uma idéia e a idéia percebida – ou, em termos mais condizentes com a própria denominação do princípio, que perceber e percebido são idênticos entre si. Grave cita como uma genuína formulação do princípio da identificação este pequeno trecho do parágrafo 5 dos Principles:

“Luz e cores, calor e frio, extensão e figuras, numa palavra, as coisas que vemos e sentimos, o que são além de várias sensações, noções, idéias ou impressões dos sentidos; e é possível separar, mesmo em pensamento, alguma dessas da percepção? A mim parece mais fácil dividir uma coisa de si mesma.” (P 5)22

Além dessa passagem, em nota de rodapé Grave chama a atenção para outros dois fragmentos de texto: a um apontamento dos juvenis cadernos de estudos de Berkeley – os

20 “Spirits and ideas are things so wholly different, that when we say ‘they exist’, ‘they are known’, or the

like, these words must not be thought to signify anything common to both natures. There is nothing alike or common in them.”

21 “Ideas are things inactive, and perceived. And Spirits a sort of beings altogether different from them.” 22 “Light and colours, heat and cold, extension and figures - in a word the things we see and feel - what are

(18)

hoje chamados PhilosophicalCommentaries23–, onde o filósofo irlandês se pergunta qual é

a diferença que há entre o ato e o objeto da percepção sensível, e também a um momento do primeiro dos Dialogues, ocasião em que a distinção entre a sensação e o objeto da

sensação traçada pelo interlocutor do porta-voz de Berkeley no diálogo é prontamente rechaçada24.

A tese abarcada pelo que Grave chama de princípio da identificação é uma das metades daquilo que estamos chamando aqui de interpretação da identificação. A outra metade é precisamente a afirmação de que o suposto comprometimento de Berkeley com tal princípio é o que confere ao esse est percipi seu caráter de verdade necessária. E essa

afirmação também se encontra no exposta no artigo de Grave, já que para ele a plausibilidade da caracterização do princípio da identificação como um princípio berkeleyano extrapola o âmbito do meramente textual, revelando-se uma exigência sistemática.

Segundo o intérprete, dos dois princípios, é o princípio da identificação o mais importante para a construção da filosofia de Berkeley. A importância crucial desse princípio para o projeto filosófico de Berkeley residiria justamente no fato da fundamentação da tese segundo a qual o ser de qualquer idéia ou conjunto de idéias necessariamente consiste no seu serem percebidas pela mente depender diretamente de sua verdade:

“(...) a identidade da idéia com sua percepção une as idéias aos indivíduos que percebem.”25

O principio da distinção, por outro lado, teria meramente a função auxiliar de defender o edifício filosófico de Berkeley de virtuais ataques provindos do senso comum, não desempenhando nenhum papel argumentativo positivo no processo de seu estabelecimento26. Daí a conclusão de Grave:

23 Os Philosophical Commentaries, título dado pelos editores A. A. Luce e T. Jessop, constituem uma série de

notas de estudo de Berkeley. Foram encontrados e publicados pela primeira vez por A. C. Fraser, que na ocasião os chamou de Commonplace Notebooks.

24 Essa passagem será citada integralmente mais adiante, ocasião em que a submeteremos a um exame

pormenorizado.

(19)

“(...) a preocupação com o senso comum ditou a Berkeley o princípio de distinção; seu empreendimento metafísico exigiu o princípio de identificação.”27

Caracterizados e documentados o princípio da distinção e o princípio da identificação, podemos agora nos perguntar qual a grande a contradição que, segundo o comentador, impossibilitaria Berkeley de abraçar sistematicamente esses dois princípios. A dificuldade apontada por Grave é a seguinte: sendo o perceber uma parte da mente, ou mais precisamente, um estado mental, como é que a mente pode ser algo completamente distinto das idéias se entre o perceber e a idéia percebida não há diferença alguma, mas sim uma relação de identidade? Ou, de modo mais simples, como as idéias podem ser distintas da mente e ao mesmo tempo idênticas a ela? Esse obstáculo interpretativo, lamenta Grave, não pode ser superado: a descrição que Berkeley faz a respeito da relação entre a mente e as idéias é flagrantemente contraditória. Contudo, a desesperança refletida em sua leitura não chegou a impedi-lo de incentivar outros comentadores a tentar encontrar um meio de acomodar o princípio da distinção ao princípio da identificação e ambos à filosofia de Berkeley:

“Nada seria mais valioso ao comentário sobre Berkeley do que a reconciliação daquilo que estou chamando de ‘princípio da distinção’ e ‘princípio da identificação’, uma interpretação das palavras de Berkeley a respeito da completa distinção entre mentes e idéias que mostrasse um significado consistente com o que ele diz sobre a identidade da idéia com sua percepção. Eu lamento não ter sugestões a oferecer. As duas posições me parecem totalmente irreconciliáveis.”28

E uma das primeiras tentativas nesse sentido viria a público mais de dez anos depois, com o não menos influente Berkeley, de George Pitcher29.

2. A solução de Pitcher

27 “(…) a concern for common sense dictated to Berkeley the distinction-principle. His metaphysical

enterprise required the identity-principle.” Op. cit., p. 238.

28 “Nothing could be more valuable in berkeleyan commentary than a reconciliation of what I am calling the

‘distinction’ and ‘identity’ principles, an interpretation of Berkeley’s words about the entire distinction of minds and ideas, which would show that he had a meaning for them consistent with what he says about the identity of an idea and its perception. I regret having no suggestions to offer. The positions seem to me quite irreconcilable.” Op. cit., loc. cit.

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A posição que Pitcher assume em seu livro ao tratar da relação entre as mentes e as idéias na filosofia de Berkeley é, em seu aspecto mais geral, basicamente a mesma que encontramos no artigo de Grave: tanto para um como para outro, as descrições que Berkeley apresenta para explicar a relação metafísica que o esse est pecipi estabelece entre

as mentes e as idéias são problemáticas e contraditórias. Segundo Pitcher, o princípio da distinção30 compromete Berkeley como uma análise da percepção sensível em termos de ato e objeto, ao passo que o princípio da identificação conduz o filósofo a uma análise adverbial da percepção. Como essas abordagens são excludentes entre si, Berkeley novamente é acusado de incoerência. Diante das dificuldades, Pitcher entende que o melhor a fazer para contornar o problema interpretativo levantado por Grave é ver o princípio da distinção e a análise da percepção nele implicada como uma anomalia textual, e aceitar a análise adverbial como a verdadeira concepção de Berkeley acerca da relação das mentes com as idéias, já que para ele apenas esta pode dar conta da necessidade sistemática do esse

est percipi. Em suas palavras:

“Minha sugestão, então, é que permitamos que Berkeley abandone a proposição (K) com sua análise ato-objeto da percepção das idéias, e o façamos adotar em seu lugar a análise adverbial implícita na proposição (L). Esse movimento tem a grande vantagem de permitir que ele retenha a necessária não-existência das idéias impercebidas como parte de seu sistema.”31

Segundo uma análise adverbial, o conteúdo de uma percepção qualquer – da visão de uma certa cor, por exemplo – não remete à existência de um objeto distinto do ato de perceber, mas apenas à própria natureza desse ato. Não há propriamente um objeto do sentir ou do perceber, apenas o sentir ou perceber de um certo modo, dessa ou daquela maneira. Assim, quando vejo uma cadeira, a cadeira que vejo não é algo distinto do meu ver a cadeira (não é um algo visto), mas apenas uma modificação do meu ver (gramaticalmente, em seu aspecto mais geral, um advérbio nada mais é que um modificador do verbo). Daí o nome de “adverbial” a esse tipo de análise, pois a relação envolvida na percepção pode ser

30 Os termos “princípio da distinção” e “princípio da identificação” não são utilizados por Pitcher. Em seu

lugar, o intérprete emprega as letras “K” e “L”, respectivamente. Cf. op cit., p. 189.

31 “My suggestion then, is that we allow Berkeley to abandon the proposition (K) with its act-object analysis

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exprimida adverbialmente, como em “X percebe vermelhamente” (substantivamente, tal relação seria “X percebe o vermelho”), uma vez que substantivos e adjetivos podem ser convertidos em advérbios sem que seu conteúdo descritivo seja alterado ou perdido. Ter uma experiência perceptiva resume-se, portanto, a um perceber de certa maneira – o que, em última instância, dispensa qualquer distinção entre o ato de perceber e aquilo que é percebido.

À primeira vista, a sugestão de Pitcher de privilegiar o princípio da identificação em detrimento do princípio da distinção não parece muito razoável. Como ignorar as incisivas formulações do princípio da distinção que abundam nos escritos de Berkeley e, simplesmente, “abandoná-lo”? Esse impasse, não obstante, é reconhecido pelo próprio Pitcher. Para superá-lo o comentador propõe, então, que diferenciemos duas maneiras de se dizer que uma coisa é distinta da outra: x pode ser fracamente distinto (weakly distinct) de y

ou x pode ser fortemente distinto (strongly distinct) de y32. A fim de esclarecer em que

consiste essa diferença, Pitcher lança mão da seguinte analogia: quando Bill chuta uma árvore, Bill e a árvore claramente são entes distintos; mas a diferença que há entre Bill e a árvore obviamente difere em grau da diferença que há entre Bill e a ação de chutar a árvore levada a cabo por Bill. No primeiro caso, diz Pitcher, teríamos uma distinção forte; no segundo, apenas uma distinção fraca. Se assumimos que as mentes e as idéias são fortemente distintas umas das outras, prossegue sua argumentação, então a contradição apontada por Grave se produz e torna-se impossível reconciliar o princípio da distinção com o princípio da identificação. No entanto, se em vez de uma distinção forte entendemos o princípio da distinção como afirmando apenas uma distinção fraca, essa contradição não se produz. Ora, raciocina Pitcher, perceber idéias é uma operação da mente; entre a mente e suas operações não pode haver uma distinção forte já que, mentes e operações da mente são, obviamente, instâncias mentais. Por outro lado, como o princípio da identificação afirma que o ato ou operação de perceber e o objeto percebido são idênticos entre si, decorre que também o objeto percebido – que nada mais é que um conglomerado de idéias – é fracamente distinto da mente. Portanto, conclui o comentador, desde que não levemos ao pé da letra as passagens onde Berkeley enuncia o princípio da distinção – ou, como foi dito acima, que as consideremos uma anomalia, um deslize textual – e entendamos a

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distinção em pauta em seu sentido fraco, é perfeitamente possível sustentá-la em conjunto com a afirmação da identidade entre o ato de perceber e o objeto percebido sem cair em contradições. Mentes e idéias podem, assim, ser realmente concebidas como entes distintos dentro do esquema metafísico elaborado por Berkeley, mas essa diferença é bem mais sutil do que sugerem as expressões “completamente distintas”, “completamente discordantes e diferentes”, “mais distantes e heterogêneas do que a luz é da escuridão” e outras similares cunhadas pelo filósofo.

Ao atribuir um sentido mais brando para o princípio da distinção, Pitcher acredita, então, ser possível reconciliá-lo com o princípio da distinção e, dessa maneira, propiciar a tão valiosa contribuição aos comentários sobre Berkeley requerida por Grave. Cabe notar, entretanto, que a argumentação desenvolvida por Pitcher parece mais preocupada em harmonizar as posições que ele tem a respeito da metafísica de Berkeley do que em realmente expor aquilo que o filósofo se propôs a defender.

3. As raízes da interpretação da identificação

Acabamos de constatar que Grave e Pitcher são genuínos proponentes daquilo que no início desta dissertação foi chamado de interpretação da identificação, ou seja, a linha de leitura que vê na negação da tradicional distinção entre ato e objeto da percepção o fundamento último do esse est percipi. Vimos também que ambos entendem que essa

negação, apesar de vital para o projeto filosófico de Berkeley, gera problemas interpretativos quando confrontada com outras afirmações que o pensador irlandês faz ao longo de suas principais obras. Mas como os dois comentadores acreditam que o princípio da identificação desempenha um papel fundamental e insubstituível na filosofia de Berkeley, nenhum dos dois ousa suspeitar que talvez esses problemas interpretativos possam simplesmente ser a conseqüência de uma pressuposição infundada. Essa confiança, porém, é perfeitamente desculpável, conforme veremos a seguir.

A afirmação da existência do estreito liame entre o princípio da identificação e o esse est percipi não é uma novidade na história da interpretação da filosofia de Berkeley. À

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desde o início do século XX. Trata-se da leitura de Berkeley historicamente fixada na tradição interpretativa da filosofia anglo-saxônica contemporânea – da qual Grave e Pitcher são herdeiros – por George E. Moore e Bertrand Russell.

Segundo Moore e Russell, qualquer explicação plausível a respeito da natureza do conhecimento deve pressupor a distinção entre os atos da mente e os objetos aos quais esses atos se dirigem. Nas palavras de Russell:

“A questão acerca da distinção ente ato e objeto em nossa apreensão das coisas é vitalmente importante, uma vez que todo nosso poder de adquirir conhecimento a ela está ligado.”33

Assim, como para eles a análise berkeleyana da percepção sensível identifica perceber e percebido, isto é, não diferencia entre os atos e os objetos da mente, sua filosofia mostra-se, então, deficiente em sua análise do conhecimento e, por conseguinte, em sua concepção da estrutura constitutiva do mundo. Não é à toa, portanto, que ambos acreditam que é justamente a confusão entre o ato de perceber e o objeto percebido o que habilita Berkeley a afirmar que a existência das coisas sensíveis necessariamente depende de sua relação perceptiva com a mente. Moore, por exemplo, em seu clássico artigo The refutation of

idealism, publicado em 1903, já aponta o princípio da identificação como a única

justificativa possível para o esse est percipi na filosofia de Berkeley:

“Chegado a este ponto, não tenho agora a necessidade de ocultar minha opinião de que (...) os mais importantes resultados, quer do Idealismo quer do Agnosticismo, se têm obtido mercê da identificação do azul com a sensação do azul; que se afirma que esse é percipi apenas por se afirmar que aquilo que é experenciado é idêntico à sua experiência.”34

Em um outro clássico da literatura filosófica contemporânea, The problems of

philosophy, de 1912, Russell também critica Berkeley severamente por ter englobado sob o

equívoco conceito de idéia coisas tão distintas quanto o ato e o objeto da percepção. E, assim como Moore, vê nesse lapso a única justificação filosófica que o filósofo irlandês

33 “The question of the distinction between act and object in our apprehending of things is vitally important,

since our whole power of acquiring knowledge is bound up with it.” RUSSELL, Bertrand. The problems of philosophy. Chicago: The University of Chicago, p. 254-5. (Great Books of Western World – 20th Century

Philosophy and Religion, v. 55).

34 MOORE, G. E. “A refutação do idealismo” in Estudos Filosóficos. Trad. Maria E. Ródo. Coimbra:

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poderia apresentar para a tese de que o ser das idéias consiste no seu serem percebidas pela mente:

“A plausibilidade da concepção de Berkeley de que a cor obviamente deve existir na mente parece depender de uma confusão entre a coisa apreendida e o ato de apreensão. Ambos poderiam ser chamados de ‘idéia’; provavelmente, ambos foram chamados assim por Berkeley. O ato, indubitavelmente, está na mente; assim, quando pensamos no ato prontamente admitimos que as idéias devem estar na mente. Então, esquecendo-se que isso é verdade apenas quando as idéias são tomadas como atos de apreensão, nós transferimos a proposição ‘idéias estão na mente’ para as idéias no outro sentido, isto é, para as coisas apreendidas por nossos atos de apreensão. Assim, por um equivoco inconsciente chegamos à conclusão de que tudo que apreendemos deve estar em nossa mente. Essa parece ser a verdadeira análise do argumento de Berkeley, e a falácia fundamental sobre a qual ele repousa.”35

Outro autor da tradição analítica que endossou e ajudou a consolidar a perspectiva exposta por Moore e Russell foi Arthur Pap, que em seu Elements of analytic philosophy,

de 1949, também chama a atenção para o estreito vínculo existente entre o princípio da identificação e o esse est percipi. Segundo Pap, Berkeley foi levado ao erro de identificar as

idéias percebidas (as qualidades sensíveis) com a percepção das idéias (as sensações) em virtude da ambigüidade semântica presente em termos como “sensação”, “percepção”, etc, que podem se referir significativamente tanto ao ato de sentir, de perceber, quanto àquilo que é sentido ou percebido, isto é, o objeto36. Tal confusão lingüística teria, então, levado o filósofo irlandês a afirmar a impossibilidade das coisas sensíveis existirem fora ou sem a mente, ou seja, ao esse est percipi:

“Certamente seria pertinente perguntar a um filósofo o que ele exatamente significa dizer que uma qualidade dada – o verde, digamos – ‘existe somente na mente’. (...) Quanto a Berkeley, ele evidentemente aquis dizer

35 “Berkeley’s view, that obviously the colour must be in the mind, seems to depend upon confusing the thing

apprehended with the act of apprehension. Either of these might be called an idea’; probably either would have been called an idea by Berkeley. The act is undoubtedly in the mind; hence when we are thinking of the act, we readly assent to the view that ideas must be in the mind. Then, forgetting that this was only true when ideas were taken as acts of apprehension, we transfer the proposition that ‘ideas are in the mind’ to ideas in the other sense, i. e., to the things apprehended by our acts of apprehension. Thus, by an unconscious equivocation, we arrive at the conclusion that whatever we can apprehend must be in our minds. This seems to be the true analysis of Berkeley’s argument, and the ultimate fallacy upon which it rests.” Op. cit., p. 254.

36 A expressão “Minha percepção foi confusa”, por exemplo, poderia sugerir tanto que meu estado

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que tais qualidades são sensações. O que é o calor, ele pergunta, além de uma sensação dolorosa sentida na pele? Mas a identificação de qualidades com sensações é insustentável em bases puramente semânticas: uma sensação não é, pelas regras de nossa linguagem, um objeto da sensação. (...) Essa confusão da qualidade sentida e o ato de sentir foi o pecado capital do bispo.”37

Do que foi exposto, podemos concluir que a vinculação do princípio da identificação com a tese berkeleyana de que o ser das idéias consiste no seu serem percebidas por alguma mente está amplamente presente na literatura acerca da filosofia de Berkeley. Quanto aos autores aqui nomeados, cabe ressaltar, no entanto, que Moore e Russell, diferentemente de Grave e Pitcher, não mencionam o conflito ou contradição resultante da identificação entre perceber e percebido com a afirmação da completa distinção entre as mentes e as idéias. Suas críticas incidem apenas sobre a negação ou confusão da distinção ato/objeto. Grave e Pitcher, por sua vez, não têm nenhuma queixa a fazer contra a admissão do princípio da identificação perse; para eles a dificuldade reside

principalmente na impossibilidade de se defender esse princípio e ao mesmo tempo asserir uma distinção radical entre as mentes e a idéias.

O objetivo na seqüência deste capítulo não é tentar uma reconciliação do princípio da distinção com o princípio da identificação. Conforme será mostrado, não há nada a ser reconciliado. O que realmente é preciso fazer é colocar em questão o suposto princípio da identificação, procurando mostrar que, diferentemente do princípio da distinção, ele não é um princípio que possa ser qualificado como berkeleyano. Não há, em Berkeley, algo como o princípio da identificação caracterizado por Moore, Russell, Grave e Pitcher, e, conseqüentemente, ele não pode ser o fundamento da necessidade sistemática do esse est

percipi. Nesse sentido, será argumentado que há evidências textuais suficientemente

persuasivas para nos convencer de que, no que se refere à percepção sensível, Berkeley distinguiu claramente entre o ato de perceber e o objeto percebido, sendo que por “distinguir claramente” pretendo apenas significar que Berkeley atribuiu certas propriedades a um e certas propriedades, diferentes das atribuídas ao primeiro, ao outro,

37 “It would certainly be pertinent to ask a philosopher what exactly he means by saying of a given quality,

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isto é, que caracterizou ou descreveu os atos de maneira diferente da que caracterizou ou descreveu os objetos. Além disso, será mostrado que os textos que servem de base para a atribuição do princípio da identificação a Berkeley, além de escassos, na verdade não afirmam a identidade entre o perceber e o percebido, mas apenas que perceber e percebido constituem uma unidade complexa que, como tal, não pode ser dissociada. Se a perspectiva que acaba de ser apresentada estiver correta, trata-se aqui de desfazer um equívoco que ao longo de várias décadas se solidificou como a correta interpretação de um certo capítulo da história da filosofia.

II. A interpretação da identificação desafiada

1. A distinção ato/objeto em Berkeley

Na seção anterior, pudemos observar que as leituras tradicionais da filosofia de Berkeley costumam afirmar que, em sua descrição da relação metafísica implicada pelo

esse est percipi, o autor distinguiu apenas dois elementos, as mentes e seus atos, sendo que

aquilo que ele chamou de idéias e contrapôs às mentes, nada mais era que a constituição desses próprios atos. Esse tipo de leitura, além de sugerida por aquelas passagens tomadas como formulações do princípio da identificação, traz também o inegável atrativo de explicar a necessidade do esse est percipi na filosofia de Berkeley. No entanto, caso fosse

possível mostrar que as passagens textuais que servem de base para a atribuição do princípio da identificação não comprometem Berkeley com um modelo da análise da percepção sensível apenas em termos de mentes e atos/idéias, e fosse possível também mostrar que em outras passagens é possível extrair um outro modelo composto de três elementos fundamentais (mente/ato/objeto), haveria menos razões para darmos crédito a essa interpretação. Nesse sentido, nesta seção tomaremos conhecimento de algumas passagens dos dois principais textos de Berkeley, os Principles e os Dialogues, onde o

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afirmam o princípio da identificação são demasiadamente frágeis para sustentar a negação ou a confusão da distinção entre o ato e objeto da percepção por Berkeley.

Comecemos por considerar o já mencionado princípio da distinção. Já observamos que Berkeley é bastante enfático em dizer que para ele há uma diferença essencial entre as mentes e as idéias: as mentes são seres ativos e as idéias, seres completamente passivos. Essa caracterização de modo algum impediria que concebêssemos as idéias como objetos mentais. Isso em nada violaria o princípio da distinção, uma vez que o que esse princípio pretende destacar é principalmente a dicotomia ativo/passivo e não alguma dicotomia do tipo mental/não mental. Mas outro aspecto importante do princípio da distinção é que todos os itens que compõe a ontologia de Berkeley – e estes são apenas dois, as mentes e as idéias – estão nele elencados. No mundo que a cabeça filosófica de Berkeley concebe, só há espaço para as mentes – a infinita e as finitas – e para as coisas sensíveis, isto é, conjuntos de idéias. Não há nenhum outro tipo de entes além desses. Logo, atos ou operações da mente obviamente não podem ser algum tipo específico de ser, mas apenas uma alteração, um estado, uma disposição do ser da mente. Portanto, ao propormos o esquema mente/ato/objeto para explicar a maneira como Berkeley concebe a relação entre a mente e o mundo sensível, também não estamos entrando em conflito com o princípio da distinção.

Algo bem diferente ocorre com aqueles que pretendem explicar essa mesma relação recorrendo ao esquema mente/ato, como a análise adverbial proposta por Pitcher. Vimos que para dar conta da necessidade do esse est percipi, Pitcher e outros apontam o princípio

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ato ou operação absolutamente destituído de qualquer atividade? Poderíamos, talvez, pensar que atos não devessem ser equacionados com operações, mas sim pensados como atualizações. Mas onde podemos encontrar em Berkeley tal concepção? Infelizmente – para Pitcher – em lugar nenhum. Mais adiante, inclusive, veremos que Berkeley fala claramente de atos como atividades da mente.

Temos, portanto, que a interpretação aqui proposta está em harmonia com o princípio da distinção, algo que não acontece com a interpretação da identificação. Isso, não obstante, não basta para afirmar que Berkeley realmente distinguiu os atos da mentes de seus objetos, as idéias. Para tanto, é preciso ainda coletar mais evidências da importância dessa distinção em sua filosofia. E isso pode ser conseguido ao examinarmos algumas teses de sua epistemologia.

Segundo Berkeley, todo conhecimento possível pode ser reduzido a duas grandes esferas, a do conhecimento das idéias e a do conhecimento das mentes38. Entretanto, em diversas passagens dos Principles e dos Dialogues, Berkeley ressalta que não é possível ter

idéias das mentes ou espíritos39. Sendo entes essencialmente passivos, as idéias não podem,

entende Berkeley, representar ou servir de imagem para a concepção do ser ativo que é a mente:

“(...) quaisquer idéias, sendo passivas e inertes (ver seç. 25), não podem representar para nós, por meio de imagem ou semelhança, aquilo que age.” (P 27)40

Essa concepção de que só é possível uma relação de representação entre entes semelhantes ou, como prefere Berkeley, de que uma idéia só pode ser como uma idéia41, é, portanto, o que, em última instância, sustenta a limitação que o filósofo estabelece quanto à possibilidade de conhecimento das mentes por meio das idéias42.

38 Cf. P 86.

39 Cf. P 27, 139, 141, 142; D III, 231/447-8.

40 “(…) all ideas whatever, being passive and inert (vid. sect. 25), they cannot represent unto us, by way of

image or likeness, that which acts.”

41 No parágrafo 8, Berkeley diz que “(...) an idea can be like nothing but an idea; a colour or figure can be

nothing like but another colour or figure. If we look but never so little into our thoughts, we shall find it impossible for us to conceive likeness except between our ideas.”

42 É preciso reconhecer que a afirmação de Berkeley de que só é possível estabelecer uma relação de

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E não é apenas a mente que não pode ser conhecida da mesma maneira que as coisas sensíveis, senão que tampouco é possível ter idéias de qualquer outro tipo de atividade:

“Se algum homem duvidar da verdade do que é dito aqui [a saber, que é impossível ter uma idéia da mente], que ele apenas reflita e tente formar a idéia de qualquer poder ou ser ativo.” (P 27)43

Porém, da impossibilidade de apreensão dos seres ativos por meio das idéias não decorre, insiste Berkeley, a impossibilidade de conhecimento e de discurso inteligível acerca desses seres. A experiência humana, base de todo conhecimento possível, não se reduz, acredita o filósofo, ao âmbito das idéias, pois, apesar de não podermos experenciar os poderes ou seres ativos por meio das idéias, deles ainda podemos ter algum tipo de experiência e, dessa forma, conhecê-los:

“(...) nós temos alguma noção da alma, espírito, e das operações da mente, tais como perceber, desejar, amar, odiar.” (P 27)44

“Pode-se dizer que temos algum conhecimento ou noção de nossas próprias mentes, dos espíritos e seres ativos, dos quais, em sentido estrito, não temos idéias.” (P 89)45

“Dito estritamente, creio que não podemos dizer que temos uma idéia de um ser ativo, ou de uma ação, embora possamos dizer que temos uma noção deles. Eu tenho algum conhecimento ou noção da minha mente e seus atos acerca das idéias.” (P 142)46

“(…) eu tenho uma noção de Espírito, embora não tenha, falando estritamente, uma idéia dele.” (D III, 233/450)47

Essas passagens, além de ilustrar a concepção berkeleyana de que o conhecimento não se limita à experiência proporcionada pela apreensão das idéias, permitem identificar e

palavra falada, por exemplo, pode perfeitamente representar uma palavra escrita, ainda que um som praticamente não tenha semelhança alguma com uma seqüência de símbolos.

43 “If any man shall doubt of the truth of what is here delivered, let him but reflect and try if he can frame the

idea of any power or active being.”

44 “(…) we have some notion of soul, spirit, and the operations of the mind, such as willing, loving, hating.” 45 “We may be said to have some knowledge or notion of our own minds, of spirits and active beings, whereof

in a strict sense we have not ideas.”

46 “We may not, I think, strictly be said to have an idea of an active being, or of an action, although we may

be said to have a notion of them. I have some knowledge or notion of my mind, and its acts about ideas.”

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enquadrar sob a classe de “poderes” ou “seres ativos” – segundo os termos do recém citado parágrafo 27 – não apenas as mentes, mas também suas operações. As mentes e seus atos ou operações são elementos distintos um do outro: as mentes são princípios ativos (“aquilo

que age”, também segundo a citação do parágrafo 27)48, ao passo que seus atos são instanciações desse princípio ativo. Assim, ao afirmar que das mentes e suas operações podemos ter noções, ainda que delas não tenhamos idéias, Berkeley está claramente pressupondo uma diferença essencial entre as operações da mente (os atos) e as idéias às quais esses atos se referem (os objetos), já que está atribuindo àqueles a atividade como propriedade exclusiva e a estes a passividade. As mentes e suas operações são seres ativos, ao passo que as coisas sensíveis, sendo conjuntos de idéias, são seres passivos. Nada poderia ser mais distinto que isso. Logo, não há porque afirmar que Berkeley não tenha distinguido ato e objeto, haja vista essa clara incomensurabilidade que há entre a passividade das idéias e a atividade das operações da mente. Essa incomensurabilidade vai diretamente de encontro ao que Moore, por exemplo, diz a respeito da ligação entre o esse

est percipi e o princípio da identificação nesta passagem:

“Suponho que o idealista defende que sujeito e objeto estão necessariamente relacionados sobretudo porque não vê que eles são distintos, que são dois. Quando pensa em ‘amarelo’ e na ‘sensação de amarelo’ não vê que há na última alguma coisa que o primeiro não tem.”49

Ora, isso não se aplica às descrições que Berkeley faz da relação entre as mentes e as idéias. O “amarelo”, diria Berkeley, é uma idéia e, como tal, algo completamente passivo; a “sensação do amarelo”, por outro lado, é algo ativo (ainda que não completamente ativo, conforme veremos mais adiante, na última seção deste capítulo), uma operação da mente. É obvio, então, que também para Berkeley há algo no “amarelo” que não há na “sensação do amarelo” e que, conseqüentemente, ambos são claramente distintos. Aliás, é justamente em virtude dessa diferença radical que do primeiro só podemos ter idéias e do segundo, apenas noções.

48 No parágrafo 138 dos Principles, Berkeley reitera essa distinção entre a mente e seus atos ou operações; a

mente é aquilo que opera acerca das idéias, ao passo que seus atos são precisamente esse poder de operar com as idéias: “For, by the word spirit we mean only that which thinks, wills, and perceives; this, and this alone, constitutes the signification of that term (…) it is impossible that any degree of those powers should be represented in an idea.”

(31)

Podemos concluir, em definitivo agora, que as idéias não podem ser atos da mente, pois estes se encontram sob o domínio do campo epistemológico circunscrito pela teoria das noções, não guardando, pois, qualquer semelhança estrutural com aquelas. Logo, as idéias devem ser objetos, entidades às quais os atos ou operações da mente se dirigem no processo perceptivo. Temos, pois, na filosofia de Berkeley, uma clara distinção entre a mente, seus atos ou operações, e os objetos desses atos (as idéias).

2. Objeções e respostas à interpretação proposta

A atribuição da distinção ato/objeto a Berkeley aqui defendida poderia, contudo, ser colocada em xeque mediante a observação de que as passagens há pouco citadas a favor de sua elaboração – as que introduzem o conhecimento nocional – só passaram a fazer parte do texto dos Principles a partir de 1734, ano de publicação da segunda edição dessa obra e

também da terceira edição dos Dialogues. Alguns intérpretes, inclusive, viram nesses

acréscimos às edições posteriores dos Principles e dos Dialogues um mero recurso ad hoc

utilizado por Berkeley para dar conta de algumas dificuldades decorrentes de seus princípios filosóficos50. Faz-se necessário, portanto, mostrar agora que esses adendos às reimpressões dos Principles e dos Dialogues, apesar de introduzirem o termo “noção”

como parte do vocabulário técnico de Berkeley, não introduzem uma nova teoria, isto é, não se limitam apenas a dizer que é possível falar de maneira significativa acerca de outras coisas que não as idéias.

Em primeiro lugar, é interessante notar que se é verdade que o termo noção, em seu sentido técnico51, só veio a aparecer publicamente a partir de 1734, não é menos verdade que no manuscrito do texto dos Principles ele ocorre pelo menos uma vez nesse mesmo

50 Em FURLONG, E. J. “Berkeley on relations, spirits and notions” in CREERY, Walter E. (ed.) Berkeley:

critical assessments (vol. III). London: Routledge & Kegan Paul, 1991, p. 370, podemos encontrar a citação do seguinte comentário por parte de um certo “professor Blanchard”: “In the first edition of the Principles [Berkeley] did not recognise [notional] knowledge at all. It made its embarrassed appearance only in the second edition. The appearance is embarrassed because in the meantime Berkeley had come to see that with his earlier simple empiricism he had no right even to speak of God, of whose existence the whole treatise was supposed to be a proof. But clearly the [God] was not meaningless; we plainly have thoughts that do not derive from the senses; we must have ‘notional’ knowledge.”

51 Mais adiante veremos que nas primeiras edições dos Principles e dos Dialogues o termo “noção” ocorre

(32)

sentido, em uma passagem onde o que está em questão é justamente o conhecimento das mentes. A passagem publicada na primeira edição é a seguinte:

“De fato, em um sentido amplo, podemos dizer que temos uma idéia do espírito.” (P 140)52

Na segunda edição, Berkeley acrescentou a essa frase a expressão “ou melhor, uma noção53, intercalando-a entre as palavras “idéia” e “do espírito”. No manuscrito dos

Principles, por sua vez, Berkeley havia escrito que “pode-se dizer que temos uma idéia ou

noção do espírito” (itálicos meus)54. O termo noção, contudo, foi riscado no texto

manuscrito e ficou de fora da primeira edição dos Principles55. Certamente, isso não prova

que a teoria das noções já estivesse elaborada antes de 1710, mas sugere que Berkeley já estava pensando na possibilidade de conhecimento dos seres ativos e reconhecendo que este não poderia ser obtido da mesma maneira que o conhecimento das coisas sensíveis.

Muito mais importante que essa curiosidade acerca do processo de redação dos

Principles é o fato de que, já em 1710, Berkeley não emprega o termo “idéias” em conexão

com o conhecimento que temos, por exemplo, das operações da mente – conhecimento nocional, de acordo com os acréscimos de 1734. Como evidência desse ponto, examinemos o parágrafo de abertura dos Principles.

“É evidente a quem investiga o objeto do conhecimento humano haver idéias atualmente impressas nos sentidos, ou percebidas considerando as paixões e operações do espírito, ou finalmente formadas com auxílio da memória e da imaginação, compondo, dividindo ou simplesmente representando as originariamente apreendidas pelo modo acima referido.” (P 1)56

Uma maneira bastante natural de se interpretar essa passagem seria dizer que nela Berkeley está afirmando que os únicos objetos do conhecimento humano são as idéias, e que estas poderiam ser subdivididas em três grupos distintos: (1) as idéias atualmente

52 “In a large sense indeed, we may be said to have an idea of spirit.” 53 “(...) or rather a notion.”

54 “(...)we may be said to have an idea or notion of spirit.”

55 Essa informação encontra-se no vol. II, p. 105, da edição de Luce e Jessop.

56 “It is evident to any one who takes a survey of the objects of human knowledge, that they are either ideas

(33)

impressas nos sentidos, (2) as idéias formadas a partir da observação das operações da mente, (3) as idéias formadas pela memória ou pela imaginação. Assim, um objetor da interpretação aqui proposta se sentiria bem a vontade para perguntar: como Berkeley poderia afirmar que temos noções das operações da mente se aqui essas operações são classificadas como um tipo de idéias que constitui os objetos que podem ser conhecidos pela mente humana? Porém, numa leitura mais cuidadosa e atenta, talvez não assumíssemos tão prontamente essa interpretação aparentemente tão natural. Para isso bastaria notar que ao falar dos objetos do conhecimento humano, Berkeley só emprega o termo “idéias” para se referir às idéias dos sentidos e às idéias da imaginação e da memória57. Ele não diz, pelo menos não explicitamente, que a observação das “paixões e operações da mente” proporciona à mente algum tipo específico de idéias. No idioma original, os objetos do conhecimento obtidos mediante a percepção das operações da mente são introduzidos por meio da seguinte expressão: “or else such as are perceived by attending to the passions and operations of the mind”. É no mínimo curioso que à palavra “such” não segue nenhum substantivo específico. Para o professor português Antônio Sérgio, autor da tradução do trecho citado logo acima, esse substantivo tem que ser “idéias”, já que sua opção ao traduzir essa frase é empregar a expressão “ou percebidas”, que pede um substantivo feminino como complemento. Entretanto, seria de se esperar que caso Berkeley também quisesse chamar de idéias esse grupo de objetos e evitar qualquer possibilidade de dificultar a interpretação do seu leitor ele provavelmente teria escrito “or else such ideas”, mas isso

não acontece. Se levarmos em conta que em algumas outras passagens dos textos de Berkeley – como as que foram citadas no primeiro tópico desta seção – podemos encontrar a afirmação de que as operações da mente não podem ser experenciadas por meio das idéias, facilmente nos persuadiremos que “idéias” não é o melhor candidato para ocupar essa vaga. Qual seria então? Parece, então, absolutamente plausível afirmar que o substantivo que melhor se encaixa na lacuna deixada pela expressão “or else such” é “objects” e não “ideas” e isso simplesmente porque é primordialmente dos objetos do conhecimento humano que Berkeley está falando, não das idéias; as idéias são um tipo de objetos do conhecimento. Além disso, esse procedimento de não revelar explicitamente que sua taxonomia dos objetos do conhecimento humano inclui outros tipos de objetos que não

Referências

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