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POR UMA EUGENIA LATINO-AMERICANA: VICTOR DELFINO E RENATO KEHL

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Programa de Pós Graduação em História e Culturas Políticas

João Ítalo de Oliveira e Silva

POR UMA EUGENIA LATINO-AMERICANA: VICTOR DELFINO E RENATO KEHL

Belo Horizonte 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Programa de Pós Graduação em História e Culturas Políticas

POR UMA EUGENIA LATINO-AMERICANA: VICTOR DELFINO E RENATO KEHL

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Política/Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para a obtenção do Grau de Mestre.

Orientadora: Regina Horta Duarte

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RESUMO

Esta dissertação trata da formação dos movimentos eugênicos brasileiro e argentino dentro de um projeto de cooperação científica entre os estudiosos da América Latina. Evidencia, portanto, os laços de amizade estabelecidos entre o médico brasileiro Renato Kehl e seu colega argentino Victor Delfino. Revela o intenso intercâmbio intelectual realizado por esses pensadores latino-americanos que pensaram em conjunto políticas públicas que promovessem o aprimoramento das respectivas populações nacionais. Compara esses dois movimentos eugênicos – argentino e brasileiro -, que se assemelharam nas duas primeiras décadas do século XX, porém tomaram caminhos diferentes sob os regimes autoritários dos anos 1930.

ABSTRACT

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AGRADECIMENTOS

Um trabalho de mestrado não se faz sem a contribuição de muitas pessoas. Nos últimos anos contei com o auxílio de várias que gostaria de mencionar como forma de agradecimento.

Primeiramente queria agradecer a minha orientadora Prof. Regina Horta Duarte, que com atenção e inteligência guiou esta pesquisa. Obrigado pelas correções e pelo rigor com que leu as diferentes versões deste trabalho, acrescentando observações teórico-metodológicas e corrigindo falhas de redação.

Aos professores e alunos do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, pelo crescimento intelectual obtido na sala de aula, como Kátia Gerab Baggio e Eliana Freitas Dutra. Agradeço ao professor Eduardo França Paiva pela orientação na época da graduação e pelos primeiros ensinamentos na pesquisa histórica.

Agradeço aos professores Kátia Gerab Baggio e Bernardo Jefferson de Oliveira, membro da banca de qualificação, pelas contribuições e questionamentos levantados naquele momento.

Aos colegas de mestrado, com os quais terei lembranças de bons momentos, Ana Maria, Cíntia, Sílvia, Breno, Daniel, Mateus e Valéria. Agradeço a todos pelos embates intelectuais e pela motivação que tanto me ajudou nesses anos.

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Gostaria de agradecer a minha família, especialmente a minha mãe, Águeda, que sempre incentivou o meu crescimento e possibilitou que esse sonho se realizasse. A meu irmão Pablo pela torcida silenciosa e ao meu pai pela paciência nos dez primeiros anos de minha vida, imprescindíveis para a formação do meu caráter.

A meus amigos Isabela, Joanna, Tiago, Gustavo e Svetlana pelo apoio necessário para superar questionamentos surgidos ao longo do caminho. A Cleiber pelos importantes livros trazidos dos Estados Unidos.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS 4

INTRODUÇÃO 7

CAPÍTULO I – ORGANIZAÇÂO DA EUGENIA LATINO - AMERICANA 1- Eugenia e seu alcance mundial 15

2- Brasil: o país que ainda “tem jeito” 24

3- Imigrantes: como abrigá-los, controlá-los e torná-los argentinos 32

4- O intercâmbio científico entre Brasil e Argentina 42

5- Eugenia como ponto de união latino-americana 53

CAPÍTULO II – PROPOSTAS EUGÊNICAS PARA A NAÇÃO 1- Estratégias de divulgação da eugenia 64

2- Certificado de casamentos 81

3- Educação e higiene 92

4- Imigração – Raça, Eugenia e Nação 101

5- Esterilização e eugenia negativa 113

CAPÍTULO III – MOVIMENTO EUGÊNICO NOS ANOS 1930 1- Eugenia nos anos 1930 na Argentina 120

2- Perda de espaço da eugenia no Brasil 131

3- Victor Delfino e o “novo” movimento eugênico argentino 142

4- Eugenia para leigos: Renato Kehl 151

CONCLUSÃO 161

BIBLIOGRAFIA 1- Referências bibliográficas 166

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INTORODUÇÃO

O intercâmbio médico entre os países sul-americanos ocorreu em grande freqüência no século XX. Os médicos dos diversos países se corresponderam, trocaram experiências e propostas de um caminho que suas nações deveriam seguir para ingressar no rol de nações “civilizadas”, no qual figuravam países europeus e da América do Norte.

No caso da medicina a circulação de médicos e periódicos foi bastante intensa.1 O

trânsito de médicos e cientistas estabeleceu “redes de contato” que se expandiam pelo

continente chegando até mesmo a Europa2. Este trabalho procurará entender o percurso adotado por Renato Kehl e Victor Delfino na introdução e divulgação da eugenia no Brasil e Argentina. O período analisado iniciou em 1918 com a fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo e foi até 1934 na aprovação da Assembléia Constituinte. Analisamos ainda alguns artigos publicados por Kehl na Argentina entre 1938 e 1942.

Buscaremos perceber os pontos em que seus pensamentos se encontraram e os enfoques de seus trabalhos de acordo com as realidades em que estavam inseridos. Analisaremos os periódicos argentinos La Semana Médica e La Medicina Argentina, Hijo Mío e Viva Cien Años e os brasileiros Brazil-Médico e A Folha Médica. Consultaremos também o Fundo Pessoal Renato Kehl que se encontra em organização no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. Focaremos na utilização de

1 A tese de Marta Almeida relatou os inúmeros congressos ocorridos na América Latina que serviram como uma forma de integração da medicina no continente. ALMEIDA, Marta. Das Cordilheiras dos à Isla de Cuba, passado pelo Brasil: Os Congressos Médicos Latino-Americanos e Brasileiros (1888-1929). Tese de doutoramento USP: São Paulo,2003.

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artigos ao invés de livros nas análises dos dois autores. Apesar do enfoque também consideraremos os livros de Renato Kehl Melhoremos e Prolonguemos, Bíblia da Saúde

e o volume 1 das “Atas e Trabalhos” do Primeiro congresso Brasileiro de Eugenia.

Renato Kehl foi o principal difusor da eugenia no Brasil, tendo divulgado essa ciência entre os anos 1917 e 1937. Formou-se em farmácia em 1905 pela Faculdade de Farmácia de São Paulo e em medicina em 1915 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.3 Em 1918, idealizou a Sociedade Eugênica de São Paulo, a primeira instituição do gênero na América Latina. No ano seguinte mudou de São Paulo para o Rio de Janeiro onde fez grande parte de sua carreira. Renato Kehl publicou artigos sobre eugenia e temas correlatos em diversos jornais médicos e outros periódicos de grande circulação como a Gazeta de Notícias. Ele participou de muitas associações médicas no Brasil e em outros países do mundo. A Liga Brasileira de Higiene Mental foi uma dessas agremiações e onde a eugenia encontrou abrigo institucional ao longo dos anos 1920. Em 1929, Kehl participou do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, além de fundar o Boletim de Eugenia, periódico financiado por recursos do próprio autor. A atuação na eugenia fez

com que seu nome fosse ligado na historiografia brasileira “a uma tendência autoritária e

racista do pensamento social brasileiro” junto a nomes como Oliveira Vianna e Azevedo Amaral.4

Victor Delfino foi o principal propagandista da eugenia na Argentina nas décadas de 1910 e 1920. Estudou Ciências Naturais, Física e Matemática no Observatorio de la Universidad de la Plata antes de se interessar por Medicina Social, Higiene Pública e

3 SOUZA, Vanderlei. A política biológica como projeto: a “eugenia negativa” e a construção da nacionalidade na trajetória de Renato Kehl (1917-1932). 2006. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde/ FIOCRUZ, Rio de Janeiro, p 68.

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Eugenia5. Publicou artigos sobre antropologia, biologia, botânica, criminologia, eugenia, física, fisiologia, hidrologia, higiene, neuropatologia, psicologia e química. Participou do Comitê Executivo do jornal La Semana Médica entre 1912 e 1926, quando assumiu a direção de outra revista médica La Medicina Argentina. Delfino participou de várias organizações internacionais que abordavam os muitos campos de interesse. O autor cultivou os contatos com os cientistas de vários países que o identificaram como o principal nome da eugenia na Argentina nos anos 1920. Foi vice-presidente do Segundo Congresso de Eugenia realizado em 1921 e membro da Comissão Permanente de Eugenia com sede em Bruxelas. A historiografia argentina creditou um papel secundário à obra de Victor Delfino. O autor foi mencionado brevemente em alguns textos, sendo que não encontramos nenhum livro, tese ou artigo sobre o seu trabalho. A maioria dos trabalhos sobre eugenia na Argentina abordou o movimento nos anos 1930. Um dos pontos válidos do nosso trabalho será retomar esse autor pouco trabalhado e mostrar os seus esforços para a divulgação da eugenia na década de 1920, que seria um importante alicerce para o desenvolvimento do movimento nos anos 1930.

A história comparativa entre Brasil e Argentina com foco nos dois autores nos possibilitou perceber algumas particularidades. O estudo comparativo entre países latino-americanos nos ajuda a notar não só as influências intercontinentais, mas a elaboração de soluções e teorias próprias. Nancy Stepan refutou a idéia de uma América Latina que simplesmente seguiria as idéias vindas de além mar e que não contribuiria ao cenário científico mundial. Segundo a autora, a história da ciência na América Latina é muitas vezes percebida, por europeus e americanos, como uma tentativa de imitar ou reproduzir

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as teorias européias6. Stepan mostrou que esses cientistas elaboravam modelos mais adequados à suas realidades e em alguns casos chegavam a construir teorias ímpares. Alguns trabalhos mostraram a influência exercida por pensadores latino-americanos em seus colegas do continente.7

A abordagem comparativa nos possibilita conhecermos melhor as semelhanças e as diferenças entre os países estudados e a identificar as peculiaridades de cada sociedade. Buscaremos perceber a atuação de Victor Delfino e Renato Kehl frente às teorias européias, as limitações e contornos colocados pelas sociedades a essas teorias e como os cientistas usufruíram do contato com o país vizinho para a elaboração de seus projetos e políticas. Um dos pontos mais interessantes da abordagem comparativa foi perceber as diferentes propostas e ações dos nossos autores para introduzir a eugenia nas diferentes sociedades em que estavam inseridos. Eles adotaram posturas que julgaram mais apropriadas para a divulgação dessa nova ciência e evitaram temas que criariam um estigma às suas propostas.

A eugenia foi uma ciência em que as nações latino-americanas debateram em conjunto, procuraram influenciar outros países e estabelecer um pensamento científico continental. Victor Delfino, Renato Kehl e Carlos Enrique Paz Soldán tentaram estabelecer uma união continental em torno dessa nova ciência. A Sociedade Eugênica de São Paulo, idealizada por Renato Kehl, contava com a participação de Delfino e Paz Soldán. Delfino privilegiou autores brasileiros nos jornais médicos que editou. Esses cientistas buscaram criar uma eugenia latino-americana, que só seria possível a partir do

6 STEPAN, Nancy. The hour of eugenics. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1996, p 3.

7 O trabalho de Aline Helg mostrou o influência exercida por autores argentinos como Sarmiento, Bunge e

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momento em que as demais nações do continente também participassem do processo. Eles procuraram convencer cientistas de outros países a participarem do movimento.8

A eugenia foi idealizada na segunda metade do século XIX, por Francis Galton, e amplamente divulgada nas primeiras décadas do século XX, e tinha como objetivo o aperfeiçoamento das qualidades humanas. Este objetivo poderia ser alcançado através do controle sobre a reprodução, imigração e casamentos. O conceito de eugenia teve uma flexibilidade muito grande e foi concebido de diferentes maneiras em diversos países nos quais médicos e cientistas se reuniram e formaram sociedades e organizações para a sua divulgação e debate. A fundamentação teórica possibilitou uma diferente concepção da eugenia. Os eugenistas seguiram, em sua maioria, duas vertentes, a neo- lamarckista e a mendelista.

Apesar da repercussão mundial atingida a partir dos anos 1910, a eugenia foi

interpretada por muitos historiadores e intelectuais como uma “pseudociência”. Nancy

Stepan destacou que a História da Ciência tem a tendência de desqualificar idéias que posteriormente foram superadas e taxá-las de “pseudociência”. A eugenia, em especial,

sofreu esse pré-conceito devido a sua utilização pelo regime nazista. O desmerecimento da eugenia foi uma conveniente maneira de diminuir a importância da participação de renomados cientistas no seu estudo e de ignorar a natureza política das ciências humanas e biológicas9.

8 Os três médicos trocaram correspondências e buscaram estabelecer um movimento eugênico latino-americano. Eles buscaram encontrar nomes que pudessem começar um movimento semelhante na Venezuela, Chile, Uruguai e Paraguai.

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Nesse trabalho conjugaremos de uma visão semelhante à de Hector Palma10, a partir do momento em que percebemos a eugenia como uma ciência “histórica” coerente

às idéias das primeiras décadas do século XX. Apesar de não concordarmos com as propostas elaboradas e com as atitudes tomadas, entendemos a sua pertinência para aqueles homens no final do século XIX e início do XX. Concordamos com a afirmação de que tais propostas muitas vezes ressoavam como medidas afins a determinados grupos políticos, mas consideramos isto como algo natural, pois compreendemos a ciência como uma instância ligada à sociedade. Ela foi influenciada pela comunidade na qual esteve inserida a partir do momento em que seus cientistas foram parte dessa sociedade e responderam a seus anseios e interesses. A ciência nunca é isenta dos valores dos homens que a escrevem.

Algumas vezes esses cientistas tomaram posições políticas e incutiram suas visões pessoais aos seus projetos de cunho científico. Essa influência entre sociedade e ciência ocorre em um grau de reciprocidade, pois a ciência define novos padrões que modificam o pensamento de uma sociedade e esta influencia a ciência que segue caminhos com o intuito de responder a determinados questionamentos. Percebemos essa necessidade no trabalho dos nossos autores que escreveram textos abordando temas como o movimento operário e imigração como uma forma de responder os questionamentos apresentados pela sociedade. Victor Delfino e Renato Kehl adotaram caminhos diferentes para introduzirem e divulgarem a eugenia de acordo com a sociedade em que estavam

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inseridos. A eugenia foi uma ciência muitas vezes aplicada em movimentos políticos e sociais e que em determinados momentos e lugares se confundiu com esses movimentos.

Esta dissertação é composta por três capítulos. No primeiro, introduzo a ascensão da eugenia nas primeiras décadas do século XX e as duas vertentes baseadas em uma orientação teórica neo-lamarckiana e mendeliana. Descrevo os momentos históricos que configuraram a introdução dessa nova ciência no Brasil e na Argentina no final da década de 1910 e procuramos compreender como Renato Kehl e Victor Delfino buscaram retratar a eugenia como uma solução para seus países. Intento mostrar como a eugenia foi pensada dentro de uma coletividade latino-americana na qual esses autores propuseram um órgão continental. Busco mostrar que esse contato entre cientistas e médicos latino-americanos não esteve restrito a eugenia, mas esteve mais presente devido a um esforço de Renato Kehl, Victor Delfino e Carlos Enrique Paz Soldán.

No segundo capítulo trabalho com as estratégias de divulgação adotadas por Renato Kehl e Victor Delfino para difundir a eugenia no Brasil e na Argentina. Percebemos as adaptações feitas pelos dois autores que, além de escreverem textos e proporem medidas, assumiram cargos públicos que lhes possibilitavam colocar em prática as suas idéias. Neste capítulo analisaremos ainda as principais medidas abordadas por Renato Kehl e Victor Delfino que seriam certificado de casamentos, educação, imigração e esterilização. Procuramos compreender como esses temas compunham um projeto de nação desses autores e como eles estiveram presentes nas discussões em voga naquele período.

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CAPÍTULO I – ORGANIZAÇÃO DA EUGENIA LATINO - AMERICANA

1- Eugenia e seu alcance mundial

O interesse pela eugenia aumentou em todo o mundo nas primeiras décadas do século XX dando origem a fundação de sociedades destinadas ao estudo dessa nova ciência. Alguns países como Inglaterra, Estados Unidos e Rússia fundaram centros de pesquisas voltados exclusivamente ao seu estudo buscando expandir as

recém-descobertas “teorias de Mendel” para os seres humanos11. Nos Estados Unidos, Charles Davenport distribuiu questionários familiares a fim de reunir informações a respeito da

hereditariedade de “anormalidades” como albinismo e polidactilia, ou de doenças como a

insanidade e epilepsia12. Na Inglaterra, Karl Pearson reuniu, entre médicos e trabalhadores liberais, um grande número de voluntários que coletaram dados em hospitais, escolas e residências. Essas informações serviram para analisar a hereditariedade de doenças e da aptidão científica e comercial13.

11 Nas primeiras décadas do século XX as teorias de Mendel eram a grande novidade do meio científico, pois apesar de elaboradas na segunda metade do século XIX só foram redescobertas no início dos anos 1900. KEVLES, Daniel. In the Name of Eugenics; genetics and the uses of human heredity. Cambridge, USA and London: Harvard University Press, 1995, p 43

12 Charles Davenport foi o principal nome da eugenia nos Estados Unidos e um dos mais importantes eugenistas do mundo. Ele dirigia um centro de estudo da eugenia em Cold Spring Harbour no estado de Nova York. Neste centro de estudos realizou inúmeros estudos que procuravam aplicar as teorias de Mendel nos seres humanos. Ele influenciou e formou uma geração de eugenistas nos Estados Unidos. Davenport foi responsável por organizar o segundo e o terceiro congresso internacional de eugenia em Nova York . KEVLES, Daniel. In the Name of Eugenics, p 45.

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Os resultados obtidos nesses estudos foram utilizados para desenvolver políticas públicas. As medidas propostas para a “melhoria” das populações foram divididas em “positivas” e “negativas”. A eugenia positiva procurou promover a reprodução dos indivíduos considerados mais “eugenisados”, normalmente considerados aqueles que possuíam um maior status social. Alguns desses cientistas acreditavam que as gerações futuras poderiam ser mais produtivas e saudáveis caso os indivíduos mais brilhantes, resistentes e trabalhadores se unissem e procriassem. A eugenia positiva deveria ser atingida através da educação higiênica, que instruiria os futuros cônjuges a escolherem

parceiros adequados e a aplicarem medidas “eugênicas” para preservar sua prole. A propaganda de importantes princípios e medidas como certificados de casamentos e saneamento das habitações foram algumas das medidas tomadas em países da América Latina. A eugenia negativa encorajava os indivíduos menos eugênicos a reproduzirem em menor quantidade ou, até mesmo, a não se reproduzirem. Estas medidas envolviam a regulamentação de casamentos, segregação e esterilização destes indivíduos14.

Algumas medidas da eugenia negativa causaram uma enorme polêmica nos meios científicos e nas demais esferas da sociedade. Os métodos contraceptivos, por exemplo, haviam sido, a princípio, bem recebidos pelos cientistas ingleses, pois limitavam a

reprodução das classes menos “eugenisadas”. Contudo o objetivo não foi atingido porque as mulheres que utilizavam tais métodos eram aquelas mais educadas, exatamente o grupo que, segundo os eugenistas, deveria ter sua reprodução incentivada15. Alguns cientistas recomendaram que todos os noivos fossem obrigados a realizar testes específicos que certificassem a inexistência de qualquer doença física ou venérea. Na

14 MOTA, André. Quem é bom já nasce feito; sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003, p 44.

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década de 1920, foram criados centros de aconselhamento matrimonial na Alemanha, nos quais certificados de saúde poderiam ser obtidos pelos casais. Estes centros não foram bem sucedidos e poucos foram os casais que os freqüentaram antes de contraírem o matrimônio.16 A esterilização foi a medida mais polêmica e rejeitada, aplicada em poucos países, foi popular nos Estados Unidos e conseguiu defensores de diferentes esferas da sociedade incluindo o presidente Theodore Roosevelt. Alguns americanos a defenderam como uma decisão opcional e voluntária. Na Inglaterra tal consenso não foi atingido entre os eugenistas, apesar de importantes nomes como Francis Galton terem sido favoráveis à medida17. Galton faleceu em 1911 e seu sucessor, Karl Pearson, foi contrário a tal medida. Os médicos britânicos foram relutantes quanto a realizar a operação mesmo em voluntários, ou qualquer pessoa portadora de “incompetência mental”, incapaz de tomar uma decisão voluntária.18

As interpretações da eugenia foram diversas e não houve consenso entre os cientistas sobre as medidas mais eficientes para atingir o “aprimoramento” das

populações nacionais. A maleabilidade da eugenia foi possível devido a duas vertentes de interpretação. A primeira delas foi a “neo-lamarckista”, que se tornou popular principalmente nos países “latinos” como França, Itália, Brasil e Argentina. Esta interpretação percebia a eugenia através das leis de Lamarck, naturalista francês do início do século XIX, defensoras da influência do ambiente nos seres vivos. A idéia de

hereditariedade de Lamarck pode ser definida por dois princípios: “uso e desuso” e

“herança de caractéres adquiridos”. O primeiro defendia que novos hábitos levariam a

16 ADAMS, Mark B. The Wellborn Science; Eugenics in Germany, France, Brazil and Russia. New York: Oxford University Press, p 36.

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novas estruturas. O ambiente mudaria lentamente e os animais estariam expostos a novas condições climáticas e ambientais que os levariam a modificação de seus hábitos que ocasionaria na mudança de algumas estruturas físicas. Dessa forma, as espécies desenvolveriam um pelo mais longo para resistir a um frio mais intenso ou uma

mandíbula mais resistente para mastigar sementes e nozes mais duras. Essa “adaptação”

levaria ao aprimoramento ou atrofiamento de determinadas partes do corpo. As modificações ocorreriam de acordo com as necessidades apresentadas pelo ambiente

levando ao “uso e desuso” de algum órgão desses animais. Tais modificações foram definidas como “caracteres adquiridos”, pois os indivíduos não apresentariam tal característica ao nascer e elas teriam sido adquiridas ao longo da vida. O segundo princípio propunha que estes caracteres adquiridos ao longo da vida de um organismo seriam transmitidos à prole19.

As teorias neo-lamarckianas foram interpretações posteriores às teorias de Lamarck. Segundo Mayr, houve muitas teorias sob o título de neo-lamarckismo, porém esses vários grupos de pensamento compartilharam apenas dois conceitos com a teoria de Lamarck. O primeiro deles seria a verticalidade da evolução, que consistiria num constante aprimoramento da adaptação produzindo seres “melhores” e mais bem

adaptados que seus ancestrais. O segundo conceito consistia na hereditariedade dos caracteres adquiridos e modificados ao longo da vida pelas próximas gerações. Mayr

destacou que o “neo-lamarckismo” incorporou um amplo e heterogêneo grupo de idéias, que engoblavam até teorias refutadas pelo próprio Lamarck. A crença na herança dos

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caracteres adquiridos era provavelmente o único ponto comum às teorias tanto de Lamarck quanto dos neo-lamarckistas20.

A outra vertente de interpretação da eugenia foi a mendeliana, que se difundiu principalmente em países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Noruega e Suécia nas primeiras décadas do século XX. As leis de Mendel foram elaboradas em 1865 por Gregor Mendel, um monge austríaco. As experiências envolveram cruzamentos entre diferentes variedades de ervilhas, que resultaram na variação de características. Num cruzamento entre ervilhas amarelas e verdes as primeiras prevaleciam sobre as segundas produzindo ervilhas amarelas ao invés de um híbrido verde-amarelado. Mendel deduziu que as ervilhas amarelas seriam dominantes e as verdes recessivas, não excluindo que o fruto desse cruzamento não tivesse características da ervilha verde. O resultado desse cruzamento era um heterozigoto que possuía característica das duas ervilhas apesar de aparentemente ser uma ervilha amarela comum. Esta ervilha teria uma grande chance de produzir semelhantes verdes caso cruzasse com uma outra ervilha heterozigota ou com uma ervilha verde (homozigota). A revolucionária teoria de Mendel fez com que os cientistas repensassem suas crenças sobre a hereditariedade e projetassem possibilidades de recessividade e dominância de várias características dos seres humanos, entre elas inúmeras doenças.

As pesquisas de Mendel foram comprovadas apenas entre vegetais e sua veracidade entre seres humanos não tinha sido aferida ainda. Os eugenistas mendelistas enxergaram na nova teoria um importante campo de conhecimento que deveria esclarecer algumas dúvidas e fornecer bases científicas para o “aprimoramento” das populações

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humanas. Por esta razão, muitos cientistas buscaram aplicá-la aos seres humanos como uma forma de definir os cruzamentos que deveriam ser condenados, os indivíduos que precisavam ser esterelizados e as medidas públicas a serem tomadas. A eugenia mendeliana foi mais radical porque as características dos indivíduos já estavam contidas em suas gametas e nenhuma modificação ao longo da vida poderia alterá-la. Dessa forma, o indivíduo já era condenado ao nascer, e mesmo aqueles que aparentemente não demonstravam características “deletérias” as possuíam de alguma forma em sua gameta e, por isso, não deveriam reproduzir.21.

A vertente neo-lamarckista abria mais possibilidades de interpretação da eugenia, pois mudanças feitas no ambiente beneficiaram os indivíduos e, conseqüentemente, a sua prole. A melhora das condições sanitárias das residências ajudaria a melhorar a saúde de seus moradores e esses avanços seriam transmitidos para as próximas gerações. Alguns autores entenderam que o saneamento das habitações e a profusão da educação seriam boas medidas rumo a uma população mais “eugênica”. Estas medidas aprimorariam a população e evitariam a sua “degeneração”.

A vertente neo-lamarckista foi bem recebida por alguns intelectuais

latino-americanos pela possibilidade de “aprimoramento” da população. A vertente mendelista oferecia um campo de manobra mais limitado a partir do momento em que desconsiderava a influência do ambiente nos seres vivos. As características dos indivíduos já estariam contidas nos gametas e não poderiam ser alteradas. Sendo assim, seres “degenerados” tinham maior probabilidade de gerar uma descendência de semelhante “degeneração” e esta equação não mudaria com educação ou saneamento

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urbano. Por esta razão, a vertente mendelista foi mais difundida nos países em que os componentes raciais eram considerados “eugênicos” pela ciência da época.

A eugenia teve repercussão mundial e esteve sujeita a diferentes condições científicas, culturais, institucionais e políticas, sendo moldada de acordo com a realidade local. Em alguns casos, uma forte tradição católica dificultava a defesa de posições mais radicais como a esterilização e o aborto. A maioria dos cientistas de países como Brasil, Argentina e França, ainda que defendendo posições mais radicais, não o faziam de uma forma tão aberta devido à resistência de uma sociedade católica. Em outros casos, como no México, o anticlericalismo foi uma das razões pelas quais foi proposta a prática da esterilização de indivíduos considerados degenerados. Nancy Stepan destacou que a eugenia serviu como um instrumento da Revolução Mexicana, a partir do momento em que medidas como controle de casamentos e esterilização foram utilizadas para desafiar a Igreja Católica. O anticlericalismo foi uma das bandeiras dos líderes da Revolução Mexicana e as propostas eugênicas mais radicais serviram como um ato político, na medida em que afirmavam o direito de um Estado laico adotar medidas contrárias às crenças católicas22. Outro exemplo de utilização da eugenia como forma de afirmar o estado laico foi na Rússia comunista onde essa ciência foi apropriada pelo ideal pós-revolucionário, que enfatizou a ciência como uma forma de diminuir a influência da religião e melhorar a condição humana23.

Em países imperialistas, a eugenia serviu como um discurso que respaldava a dominação de suas colônias. Países como Estados Unidos e Inglaterra utilizaram a eugenia como argumento para dominarem e governarem povos considerados

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“racialmente inferiores” e desorganizados. Essas nações foram representadas como

crianças que precisavam de um povo “maduro” e eugênico para estabelecer as bases do

que era correto e errado. A utilização imperialista da eugenia não se limitou a uma política de dominação sobre as colônias, mas também como uma maneira de ampliar as áreas de influência no mundo através da ciência. As associações internacionais como a

“Associação Pan-Americana de Eugenia e Hominicultura” e a “Federação Internacional Latina de Sociedades de Eugenia” tiveram como objetivo aumentar a influência dos Estados Unidos, no caso da primeira, e da França e Itália, no caso da segunda, entre os países latino-americanos.24 A eugenia não foi apropriada apenas por nações, mas também por classes sociais num mesmo país. A África do Sul foi um bom exemplo de tal política,

pois uma minoria branca se baseou em argumentos “científicos” para a manutenção de

sua situação privilegiada no poder do país. Saul Dubow percebeu o movimento eugênico sul-africano como uma tentativa de estabelecer barreiras de identidades étnicas e raciais e ao mesmo tempo um delineador de camadas hierárquicas.25

A maioria dos eugenistas se utilizou da respeitabilidade científica para convencer dirigentes de diversos países a encamparem suas propostas como políticas de estado, revestindo-se de um caráter autoritário. As propostas em sua maioria penetravam o universo privado dos indivíduos ao definir com quem eles deveriam se casar e se poderiam ou não ter filhos. Por esta razão a eugenia serviu, em alguns casos, como um argumento utilizado pelo Estado para adentrar na vida privada de seus cidadãos, e assim melhor controlá-los. O exemplo mais claro disso foi a Alemanha onde a eugenia foi

24 Nancy Stepan mostra, no sexto capítulo de seu livro, a atuação dessas associações e como alguns cientistas latino-americanos agiram nesses congressos internacionais. STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics, pp 171-195.

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utilizada pelo regime totalitário nazista. As leis de esterilização obrigatória foram aprovadas para os portadores de algumas doenças genéticas como esquizofrenia, epilepsia, cegueira e surdez. Houve leis de casamento que proibiram a união civil entre judeus e arianos26.

Intelectuais de outros países além da Alemanha utilizaram a eugenia e sua

“respeitabilidade científica” para fundamentarem discursos políticos e econômicos.

Exemplificamos anteriormente as apropriações feitas por cientistas mexicanos, sul-africanos, americanos, ingleses e de outras nações que se apropriaram do discurso eugênico para viabilizarem projetos políticos. Por essa razão, muitos pensadores contemporâneos classificaram a eugenia como um movimento meramente social e político. É certo que, no decorrer do caminho de sua formação como campo científico a eugenia foi utilizada em formas extremas quase estereotipadas com objetivos outros que não científicos. Entretanto, argumento que seria um imenso simplismo apresentá-la ou defini-la como uma pseudo-ciência. Todo saber científico certamente se constrói e é utilizado em condições históricas. As práticas de sua constituição são, entretanto, específicas em relação a outras formas de saber, e isso tem que ser considerado pelo historiador. A eugenia esteve presente em importantes universidades e centros de pesquisas. Cientistas respeitados e até mesmo ganhadores de Prêmio Nobel defenderam a sua aplicação. Logo, entendemos a eugenia como uma ciência do início do século XX que foi apropriada por movimentos políticos e sociais, e utilizada de acordo com as demandas locais. Esta maleabilidade é que a torna um objeto de estudo tão interessante.

26 As leis de esterilização aprovadas no regime nazista já haviam sido discutidas em anos anteriores sem

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A eugenia prestou-se a muitas práticas e foi utilizada com intenções diversas. Cabe ao historiador da ciência, entretanto, saber que ela não se reduz a isso.

2- Brasil um país que ainda “tem jeito”

As primeiras décadas do século XX foram permeadas por relatos que demonstravam o grau de desorganização e extrema pobreza do Brasil. O Estado não estava presente no interior do país e as populações eram assoladas por doenças causadas por péssimas condições sanitárias. As principais cidades do país também sofriam com o crescimento de suas populações fruto de fluxos imigratórios. Esses novos habitantes não contavam com moradias apropriadas, o que causava doenças e mortes. Um dos primeiros relatos a mostrarem o descaso com que grande parte da população brasileira vivia foi o de Euclides da Cunha que desceveu em suas viagens a miséria do interior do país.27 As elites cariocas começaram a perceber um segundo Brasil diferente da sofisticação da Rua do Ouvidor. O abandono das populações do interior brasileiro descrito pelo jornalista em missão no sertão nordestino também seria posteriormente relatado por Rondon em suas viagens pelo atual Centro-Oeste e pelos relatórios das expedições do Instituto Oswaldo Cruz.

Esses textos destacaram outros problemas do Brasil além da herança ibérica e da composição étnica da população. Os dois tópicos permaneceram em discussão entre os políticos e intelectuais brasileiros, mas outros pontos como a organização e o descaso do estado assumiram uma grande importância. O país não conhecia seu interior, algo que

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Rondon tentou mudar ao ser designado pelo Exército brasileiro para construir linhas de telegrafo com objetivo de conectar Cuiabá, Corumbá e cidades da fronteira do país ao

restante da nação. Nesse período qualquer expedição técnica se tornava uma “missão”

estratégica com pretensões nacionais. Rondon não se limitou à instalação de postes de telégrafo, mas também realizou expedições e confeccionou mapas. No intuito de levar aos rincões do país um projeto de nação conectada por uma identidade nacional.28

As doenças ganharam destaque nesse debate, a partir do momento em que foram percebidas como um sério obstáculo ao desenvolvimento da nação. A malária foi apontada como uma grande vilã e, segundo estimativas, atingiu 80 a 90% dos trabalhadores da região Amazônica, sendo responsável pela morte de 30 a 40% dos seringueiros e pela incapacitação de 25% dos homens que trabalharam na Comissão Rondon29. As doenças abatiam os trabalhadores e impediam a construção das ferrovias e

o avanço do “progresso” rumo o sertão. As doenças contaminavam as populações sertanejas que, além de estarem debilitadas para o trabalho, também se encontravam inaptas ao serviço militar, comprometendo a segurança nacional30.

O problema nacional foi parcialmente deslocado da questão racial para questões de saúde e sanitarismo. A composição da população foi um ponto discutido pelos intelectuais ao longo de toda a história do Brasil e não poderia ter sido diferente nos anos 1920. Algumas questões como quais imigrantes deveriam ingressar no país, a capacidade

intelectual e organizacional das “raças” e a condenação da mestiçagem continuaram entre os tópicos de debate do pensamento social brasileiro. As teorias de Gobineau, Renan,

28 DIACON, Todd A. Stringing Together a Nation. Durham and London: Duke University Press, 2004. 29 DIACON, Todd A. StringingTogether a Nation, p 63.

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Agassiz e Le Bon redundaram em estereótipos e afirmações reutilizados em livros e artigos. O começo do século XX assistiu o crescente predomínio de um discurso praticamente predominante que refutava a inferioridade étnica brasileira e apresentava

uma “saída” através da higiene das populações e do combate às enfermidades.

A obra de Monteiro Lobato é um bom exemplo da mudança de perspectiva trazida pelo movimento sanitarista. O autor de contos infantis retratou desolado o brasileiro que habitava o interior do Brasil. O Jeca Tatu, antes retratado como “indolente,

imprevidente e parasita”, foi regenerado por Lobato após o contato com o debate sanitarista. Convencido das melhoras que o sanitarismo poderia gerar, o autor reinterpretou a condição do “sertanejo” e redimiu sua personagem. Jeca Tatu se tornou

“um próspero fazendeiro, competindo com seu vizinho italiano, ultrapassando-o”, pois “modernizou sua propriedade, introduziu novas lavouras e tecnologia e aprendeu a falar

inglês.”31 O pobre Jeca antes condenado, ridicularizado e “degenerado”, mostrava o seu valor e representava uma grande parcela da população brasileira que não conseguia desenvolver suas potencialidades devido às enfermidades. O caipira não estava somente amolecido pelo calor dos trópicos, mas debilitado pelas doenças e, quando curado seria capaz de aprender, produzir e de superar o imigrante.

A regeneração de Jeca Tatu representava o sopro de esperança vindo da higiene e do movimento sanitarista nas primeiras décadas do século XX. A nação anteriormente vista como condenada pela sua herança de miscigenação racial e desorganização estatal começou a vislumbrar uma solução viável através da ciência. A situação de precariedade apresentada pelo relatório de Arthur Neiva e Belisário Penna sobre a expedição médico-científica realizada pelo Instituto Oswaldo Cruz em 1912 teve um enorme impacto na

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intelectualidade brasileira. O relatório mostrava uma população “desconhecida, atrasada,

doente, improdutiva e abandonada, e sem nenhuma identificação com a pátria.”32 Nísia Trindade e Gilberto Hochman destacaram a publicação do relatório como um dos eventos fundadores do movimento sanitarista. Os outros eventos seriam os artigos publicados no jornal Correio da Manhã por Belisário Penna entre 1916 e 1917, mais tarde reunidos no livro O Saneamento do Brasil, o discurso de Miguel Pereira em 1916 que comparava o país a um grande hospital e a atuação da Liga Pró-Saneamento33.

As críticas do movimento sanitarista destacavam o sertão abandonado, isolado, doente e primitivo. O relatório de Arthur Neiva e Belisário Penna continha detalhes sobre o clima, flora e fauna, além de relatar minuciosamente as várias doenças que assolavam aquelas populações e apresentava soluções às autoridades responsáveis. Esses relatos causaram uma mobilização da sociedade que não somente debateu o tema, como tomou decisões através de políticas públicas. Os anos 1920 foram marcados pela interiorização dos serviços de saúde financiados em grande parte pelo Estado. Essas incursões tiveram o objetivo de aumentar a presença do Estado brasileiro nos mais distantes pontos do país. Foram aprovados Códigos de Saúde Rural, expedições para o sertão e postos de pesquisas avançadas no interior que também combateriam doenças. O sanitarismo foi discutido tanto nos periódicos de publicação diária, quanto em revistas destinadas a um grupo mais intelectualizado, como a Revista do Brasil.

A idéia de que o país era um grande hospital apresentava um problema mais palpável e que poderia ser resolvido com organização e trabalho. A doença era algo possível de ser tratada, pois ela não era um problema localizado na raiz de nossa

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sociedade. Os problemas raciais, em contrapartida, sempre haviam se mostrado de solução mais complexa, pois a origem africana de parte da população criava uma aquarela diferente das nações européias e, logo, inviável. A solução não estava mais em identificar sinais físicos dos criminosos ou pesar crânios.34 O movimento sanitarista não eliminou a questão racial do fórum de debate nacional, mas mostrou que os problemas do país não se limitavam à composição do seu povo.

A influência desse movimento também repercutiu na eugenia, uma ciência que

tinha como objetivo o “aperfeiçoamento” do povo brasileiro. Os primeiros textos e debates sobre a eugenia coincidiram com o momento auge da discussão em torno do sanitarismo. Em 1917, o estado de São Paulo aprovou o código de saúde rural, após dois anos de batalhas no Congresso, e estendeu para o interior do estado os serviços sanitários35. Em 1918, a Liga Pró-Saneamento foi fundada com o objetivo de alertar a nação quanto ao estado calamitoso do saneamento no país. Nesse mesmo ano a gripe espanhola chegou ao Brasil fazendo inúmeras vítimas e mostrando a importância de órgãos que controlassem epidemias e cuidassem da saúde da nação.

Em meio a tais acontecimentos foi fundada no Brasil a primeira organização voltada ao debate da eugenia, a Sociedade Eugênica de São Paulo. Idealizada por Renato Kehl,36 a sociedade teve como patrono Arnaldo Vieira de Carvalho37, diretor da Santa

34 Ao longo do século XIX e XX várias teorias raciais foram formuladas na Europa e aceitas com maior ou menor freqüência no Brasil. Entre elas estão a Antropologia Criminal que percebia a criminalidade como um fenômeno físico e hereditário e a craniologia, que defendia a inferioridade física e mental através da análise do crânio.

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Casa de Misericórdia de São Paulo, e contou com cerca de 140 membros associados. Vários nomes conhecidos da época como Fernando Azevedo, Rubião Meira, Arthur Neiva, Vital Brasil e Clemente Ferreira foram membros. A sociedade não era composta apenas por médicos, mas também por profissionais da área biológica, advogados e por qualquer pessoa que tivesse interesse no assunto38. Muitos de seus membros também estiveram associados à Liga Pró-Saneamento. A Sociedade pretendia publicar trabalhos

sobre o tema no periódico “Annaes de Eugenia”, manter um bureau de informação para

distribuição de folhetos e posteriormente organizar uma biblioteca e um laboratório de pesquisa eugênica.39

A sociedade teve vida curta e perdeu importância com a morte de Arnaldo Vieira de Carvalho e a mudança de Renato Kehl para o Rio de Janeiro. Apesar do desmantelamento da associação, o movimento eugênico continuou a existir com a publicação de textos, propostas e congressos. Os principais temas debatidos foram os casamentos consangüíneos, educação física, esterilização, alcoolismo, higiene, educação, exames pré-nupciais, higiene mental e imigração. Outros autores importantes no meio intelectual como Afrânio Peixoto, Clemente Ferreira, Gustavo Reidel e Roquette Pinto escreveram sobre a eugenia. O movimento envolveu a intelectualidade da época e repercutiu em periódicos regulares e revistas voltadas para um público mais engajado como a Revista do Brasil. Esta publicação contou com os nomes mais representativos da época e teve uma longevidade rara para as publicações do tipo. A eugenia esteve presente trajetória de Renato Kehl. Dissertação de Mestrado - Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ. Rio de Janeiro: 2006, pp 67-72.

37 Arnaldo Vieira de Carvalho formou-se em medicina pela Faculdade Medicina do Rio de Janeiro em 1889. Foi um dos fundadores da Faculdade de Medicina de São Paulo em 1913 e a dirigiu até sua morte em 1920. SOUZA, Vanderlei. A política biológica como projeto, p 32.

38 KEHL, Renato. A Eugenia no Brasil: esboço histórico e bibliográfico. Primeiro Congresso de Eugenia. Rio de Janeiro, 1929, vol 1, pp 45-62

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em alguns artigos e nas discussões a respeito da formação da “raça brasileira” ou na

necessidade de “sanear” o país.40

A correlação quase que automática entre eugenia e sanitarismo no final dos anos 1920 fez com que, num primeiro momento, a primeira agisse como um desdobramento do segundo. As duas áreas compartilhavam, aparentemente, “uma mesma linguagem, parecendo derivar de um mesmo conhecimento científico.”41 Kehl chegou a afirmar que

“sanear equivale a praticar a eugenia preventiva, cujos fins são a defesa da raça contra os

fatores de degeneração (tuberculose, sífilis, paludismo, verminoses).”42 Kehl se correspondeu com importantes membros do movimento sanitário como Belisário Penna e

Monteiro Lobato, estabelecendo com eles uma amizade. Essas “redes de contato”

serviram para abrir as portas das principais instituições e periódicos para a eugenia. Segundo Vanderlei Souza, o movimento foi celebrado pelos principais jornais paulistanos e cariocas que conclamaram a fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo através de anúncios, comentários e notas.43

O espaço conseguido pela eugenia na imprensa atraiu adeptos das mais variadas áreas de pensamento como sanitarismo, psiquiatria, medicina legal, antropologia, biólogia, veterinária entre outras. Como afirmou Souza, a eugenia poderia ser definida

como uma ciência “polimorfa”, a partir do momento em que outros campos de

conhecimento a constituíram. Dessa forma, a eugenia teria se confundido com o próprio

40 LUCA, Tânia Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para (N)ação. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

41 SOUZA, Vanderlei. A política biológica como projeto, p 43.

42KEHL, Renato. Los problemas de La degeneración de las razas. In: Buenos Aires: La Semana Médica 14 out 1920, p 530.

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pensamento social, moral e político brasileiro.44 Dentro desse movimento polimorfo, Renato Kehl procurou estabelecer-se como o principal expoente da ciência no país.

Entre as muitas áreas em que transitou, a higiene mental foi a que melhor acolheu a eugenia através das publicações, das conferências e reuniões da Liga Brasileira de Higiene Mental. Essa instituição era “composta por psiquiatras, aparentemente

progressistas, que se propunham a realizar um programa preventivo de saúde mental, investigando os problemas sociais e se imiscuindo no cotidiano da população.”45 A eugenia figurou como tema desde a fundação da Liga em 1922, e conquistou mais espaço com a entrada de Renato Kehl em 1925. Um dentre os objetivos de seus fundadores era tratar de maneira mais humanizada os pacientes dos manicômios e implantar medidas

preventivas para evitar o aumento do número de “doentes mentais”. O combate ao alcoolismo esteve entre as medidas preventivas.

O apoio da Liga Brasileira de Higiene Mental ao movimento eugênico foi muito importante e possibilitou a divulgação da eugenia principalmente no final dos anos 1920 e primeiros anos da década de 1930. Esse suporte foi crucial para a viabilização de alguns projetos de Renato Kehl que encontrava cada vez mais oposição para a realização de uma agenda eugênica mais radical. Segundo Vanderlei de Souza, a viagem à Alemanha realizada por Kehl em 1928 foi crucial para a modificação de seu conceito de eugenia, que se tornou mais radical e restrito alinhado aos pensadores europeus. Kehl criou o Boletim de Eugenia, primeira publicação do gênero no Brasil, que circulou entre os anos 1929 e 1931 com recursos próprios e doações de defensores da causa. Este periódico era composto por “pequenos artigos científicos, resenhas, notas e indicações de livros sobre

44 SOUZA, Vanderlei. A política biológica como projeto, p 82.

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eugenia, avisos e orientações sobre o movimento eugênico no Brasil e no mundo”.46 A linguagem dos textos era bem clara e acessível a um grande número de leitores. De acordo com Souza, a posição mais radical de Kehl pode ser percebida nas páginas do Boletim, no seu discurso no Primeiro Congresso de Eugenia e nos demais artigos veiculados na imprensa. O mesmo grupo de médicos e intelectuais liderados por Renato Kehl fundou a Comissão Central Brasileira de Eugenia em 1931.

3 – Imigrantes: como abrigá-los, controlá-los e torná-los argentinos

A Argentina passou por uma difícil consolidação de seu Estado nacional durante boa parte do século XIX. Os intelectuais da geração de 1880 formataram um projeto de nação que incluía a atração de imigrantes, o combate ao analfabetismo, a conquista das áreas mais remotas do país e exportação de carne, trigo e outros produtos agrícolas para a Europa. Os anos de prosperidade econômica iniciados em 1880 se estenderam ao longo das primeiras décadas do século XX. A Argentina se configurava como a grande potência latino-americana com uma economia agro-exportadora. Em 1914, o país era responsável pela metade da capacidade econômica e pela terça parte do comércio externo de toda a América Latina47. Em 1909, o comércio exterior per capita era seis vezes maior do que o do Brasil e superior a qualquer outro país da América Latina. A riqueza trazida pelas exportações também se refletiu nos índices sociais. A taxa de analfabetismo despencou de 50% da população em 1900 para 25% em 1930, contra 60% no Brasil em 1930. A

46 SOUZA, Vanderlei. A política biológica como projeto, p 131.

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expectativa de vida ao nascer era de 39 anos em 1900, 53 anos em 1930, enquanto que no Brasil em 1930 era de 34 anos. O PIB per capita da Argentina se comparava ao da Alemanha e dos Países Baixos, estando à frente de outros países europeus como Espanha, Itália, Suíça e Suécia.48

O PIB argentino apresentou um crescimento anual médio de pelo menos 5% no período de 1860 a 1914. O sucesso econômico só foi possível graças ao grande número de imigrantes que chegaram ao país ao longo dos séculos XIX e XX. A população cresceu de 1,7 milhões de habitantes em 1869 para 7,9 milhões de habitantes em 191449. Em 1914, a população argentina era composta por 30% de estrangeiros, o dobro dos Estados Unidos, e em cidades do litoral essa proporção subia para 60 ou até mesmo 70%50. Buenos Aires concentrou grande parte desses imigrantes crescendo de 660.000 habitantes em 1895 para 1.570.000 habitantes em 1914, apresentando uma taxa de crescimento demográfico de 5,8% ao ano no período entre 1904 e 1909, a segunda maior do mundo ocidental, atrás apenas de Hamburgo51.

As rápidas transformações econômicas, populacionais e sociais trouxeram novos desafios para a Argentina. A imigração em massa, urbanização e industrialização que transformaram o país fizeram da “questão social” um tema recorrente na virada do século XX. Surgiram problemas nas áreas “de habitação, sanitarismo, saúde pública, aumento da

criminalidade urbana, protesto operário e o surgimento de novas correntes ideológicas

48 FAUSTO, Boris & DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada. São Paulo: Ed 34, pp 152-153.

49 SKIDMORE, Thomas & SMITH, Peter. Modern latin-america, New York: Oxford University Press, 1997, p 73.

50 DEVOTO, Fernando. Imigração européia e identidade nacional nas imagens das elites argentinas (1850-1924). In: FAUSTO, Boris. Fazer a América. São Paulo: EDUSP, 2000, p 33.

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que desafiavam a validez das instituições políticas e econômicas vigentes.”52 Os dirigentes queriam saber como acomodar milhões de imigrantes ou melhor como manter as condições sanitárias e a segurança numa cidade que cresceu 2,5 vezes o seu tamanho em 30 anos.

A higiene e o sanitarismo se tornaram temas importantes nas primeiras décadas do século XX, como uma forma da Argentina desenvolver as suas potencialidades como nação e se equiparar às “suas irmãs européias”. As condições sanitárias haviam apresentado melhoras consideráveis. A taxa de mortalidade para cada mil pessoas caiu de 22.98 na década de 1889-1898 para 15.2 em 1908, taxa comparável às principais cidades do mundo: Berlim, 14.8; Londres, 15.1; Nova York 18.6, Paris 18.6. A taxa de mortalidade por enfermidades infecciosas caiu para um quarto, de 1869 a 1908.”53 O governo continuou a investir na construção de hospitais, hospícios e na criação da Asistencia Pública de Buenos Aires. Esta instituição tinha como objetivo combater as

enfermidades “pestilentas” presentes nos centros urbanos em desenvolvimento e que poderiam comprometer os projetos políticos dessas elites54. Esses bons índices serviram como propaganda do governo, dentro e fora do país, para a atração de imigrantes.

O sanitarismo teve uma grande repercussão na Argentina e não ficou restrito aos médicos e higienistas. Os movimentos operários, anarquistas e socialistas também discutiram o tema. Esses movimentos viam a higiene como um assunto importante, mas não como o principal alvo de suas reivindicações. Os socialistas argentinos reivindicaram a melhora das condições da higiene do proletariado a partir da obtenção da salubridade da

52 ZIMMERMAN, Eduardo. Los liberales reformistas, p 12. 53 ZIMMERMAN, Eduardo. Los liberales reformistas, p 102

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moradia. Esses movimentos contavam com muitos membros médicos que defendiam em seus textos a saúde do trabalhador, a higiene e profilaxia sexual, o combate ao alcoolismo, promoção da higiene infantil, controle da prostituição e saneamento das moradias.55 Alguns anarquistas destacavam a tuberculose como conseqüência do desenvolvimento do capitalismo. Ela seria a “negação de um direito natural a saúde e a

uma existência plena (...) a evidência de uma infidelidade à harmonia natural das coisas e a vida em sociedade.” A tuberculose serviu para eles como uma metáfora do capitalismo e sua cura seria a “revolução social”.56

Podemos perceber a importância que condições higiênicas das moradias assumiram nos discursos de políticos, médicos, intelectuais e líderes sindicais. As cidades cresciam em ritmo impressionante, o que causou problemas de habitação, principalmente em Buenos Aires. O recém-chegado imigrante normalmente morava em conventillos, alojamento precário e barato geralmente perto do centro, em conjunto com outras famílias. No final dos anos 1910, o trabalhador argentino gastava em média 35% do seu salário em aluguéis dos conventillos, o que representava mais que o dobro do que um trabalhador pagava em Hamburgo e Liverpool. Esse tipo de moradia preocupou não só os líderes sindicais, mas também os dirigentes do país e a Igreja Católica. Acreditava-se que os conventillos causavam a “degradação” física e moral devido às péssimas condições higiênicas e a proximidade das famílias. Em 1917, foi criada a Comissão Nacional de Casas Baratas, que tinha como objetivo elaborar em políticas de moradias57.

55 BARRANCOS, Dora. Socialismo, higiene y profilaxis sexual, 1900-1930. In: LOBATO, Maria Zaida. Política, médicos y enfermedades, p 120.

56 ARMUS, Diego. Salud y Anarquismo. In: LOBATO, Mirta Zaida. Políticos, médicos y enfermedades, p 96

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A imigração trouxe muito mais do que força de trabalho à Argentina, com ela vieram idéias e teorias debatidas na Europa. Vários anarquistas e socialistas desembarcaram nos portos argentinos entre os milhares de italianos, espanhóis, franceses, alemães e outros tantos grupos étnicos que migraram para o país. Esses imigrantes com novas idéias ajudaram a formar organizações sindicais importantes como a Federación Obrera Regional Argentina (FORA), de orientação anarquista, e a Federación Obrera Marítima (FOM). O movimento dos trabalhadores teve um grau de organização maior na argentina do que no Brasil. A capacidade de mobilização na Argentina criou eventos sem paralelo no Brasil como a greve de inquilinos (1907), na qual eles se recusaram a pagar os aluguéis como uma forma de protestar contra os aumentos. O movimento organizado por socialistas e anarquistas teve âmbito nacional ao mobilizar não só os inquilinos de Buenos Aires, mas os de Rosário e Bahía Blanca.58

As greves ocorreram com certa freqüência na Argentina, mas poucas tiveram a repercussão da greve dos metalúrgicos da indústria portenha de Vasena. No dia 7 de janeiro de 1919, grevistas acompanhados de seus familiares tentavam convencer os trabalhadores a paralisarem suas atividades. Revoltados pela inutilidade de seus apelos, o grupo começou a apedrejar os carros que transportavam os trabalhadores não grevistas. A polícia respondeu ao ataque com tiros que mataram quatro pessoas e feriram trinta, dos quais alguns morreriam depois de um tempo. A FORA organizou uma greve geral para o dia 9, que produziu choques armados com policiais. O pior deles foi a repressão com tiros que atingiu o cortejo que acompanhava os corpos das vítimas do dia 7. Esses dois eventos geraram choques que duraram quase uma semana. A Semana Trágica, como ficou

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conhecida, foi um dos episódios mais sangrentos da história argentina e assustou as elites, que temiam o poder de uma massa de trabalhadores organizados59.

A parte mais à direita da elite se mobilizou e criou a Liga Patriótica, que teve uma atuação importante no fechamento dos protestos através da força. Ela organizou as

guardias cívicas” que durante a “Semana Trágica” perseguiram anarquistas e judeus,

diminuindo o poder de organização desses movimentos. A Liga saiu fortalecida do evento e adquiriu um papel mais complexo como uma tropa de choque e uma força de pressão política das elites que não acreditavam na capacidade do governo radical, recém

empossado, de combater as massas. A Liga assumiu o discurso de “movimento

patriótico” defensor da sociedade civil ante o “perigo vermelho”.60

As críticas ao governo e ao projeto da Geração de 188061 ficaram cada vez mais evidentes ao longo das primeiras décadas do século XX. A Liga Patriótica questionava a liberdade de protesto dos movimentos operários em sua maioria liderados por imigrantes. O barulho promovido por esses novos membros da nação argentina fez com que alguns intelectuais revissem as matrizes identitárias da nação argentina. As críticas ao projeto de nação desenhado pela Geração de 1880 foram parciais e limitadas a partir do momento em que não questionavam o modelo agroexportador e nem forneciam alternativas estruturais. A aproximação do primeiro centenário da independência argentina forneceu um espaço intelectual para a divulgação dessas idéias. Os anos 1920 foram tomados por um fenômeno de renovação intelectual no campo filosófico, político e cultural. Ricardo

59 FALCÓN, Ricardo & MONSERRAT, Alejandra. Estado, empresas, trabajadores y sindicatos. In: FALCON, Ricardo. Democracia, conflicto social y renovación de ideas, pp 166-167.

60 FALCÓN, Ricardo & MONSERRAT, Alejandra. Democracia, conflicto social y renovación de ideas, p 169.

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Falcón destacou os debates de relevância que circularam nos círculos intelectuais do país nos anos posteriores ao Centenário62.

Um deles ocorreu por uma “reação antipositivista” que foi tomada por várias

tendências ideológicas. Esta “reação” era composta por um grupo heterogêneo de idéias

cujo único ponto comum era a crítica ao positivismo. Alguns grupos viam na crítica ao positivismo ou ao liberalismo argentino como uma forma de alargar a democracia e diminuir a desigualdade. Ao mesmo tempo havia aqueles que percebiam nessa crítica a possibilidade de questionar os aspectos progressistas como a sanção da lei Sáenz Peña que decretava o sufrágio universal masculino.63

Entre os diversos grupos de idéias destacaremos o “nacionalismo tradicionalista telúrico” composto por aristocratas de províncias periféricas que ficaram a parte do sucesso econômico argentino. As três principais figuras foram Ricardo Rojas, Manuel Galvéz e Leopoldo Lugones. Eles escreveram uma literatura que descrevia as paisagens e os costumes locais como oposição ao mercantilismo e à perda dos princípios éticos de Buenos Aires. Esses autores procuravam encontrar o “espírito do povo” que havia sido diluído pelos erros da “Geração de 80”. Galvéz encontrou essa essência no “hispanismo”

e Rojas no indianismo. Essa valorização da cultura interna não ocorreu apenas na Argentina mas em outros países da América Latina por movimentos que valorizavam as características nacionais. No Uruguai, José Enrique Rodó foi o precursor desse movimento de revalorização do hispano desde o século XIX. No Brasil, o movimento

62 FALCÓN, Ricardo. Militantes, intelectuales e idéias políticas. In: FALCÓN, Ricardo. Democracia, conflicto social y renovación de ideas (1916-1930), p 325.

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antropofágico também propunha uma valorização do que era produzido dentro do país que deveria enxergar o que vinha “de fora”, digeri-lo e depois aplicar à nossa realidade.

A valorização das “raízes argentinas” significava repensar o papel que os imigrantes teriam na nação. Rojas não se opunha à entrada de imigrantes, mas acreditava na necessidade de integrá-los a uma cultura nacional que seria forjada via educação, História e Língua. Galvéz destacou o valor da “alma argentina”, hispânica e católica, que residiria nas províncias e não na capital “afrancesada, artificial, retórica, aristocrática e

civilizada”. Lugones consagrou o gaúcho como o verdadeiro arquétipo nacional, um tipo

de trabalhador rural já extinto, mas que forneceria um modelo de vida moral e social às massas urbanas que desfrutavam de características culturais diferentes. Os três autores forneceram novos pilares para o nacionalismo argentino, um movimento que valorizava a

herança hispânica, o catolicismo, o índio, enfim, os valores “originais” das antigas

colônias rurais que se contrapunham à nação urbana. 64

A eugenia começou a ser discutida na Argentina no momento em que o país valorizava suas “raízes” e repensava o imigrante e sua assimilação. Outros problemas do período também estiveram presentes nos textos do movimento eugênico argentino. Victor Delfino, um dos principais nomes do movimento no país, escreveu seu primeiro texto sobre higiene e proletariado em abril de 1919, três meses depois da “Semana Trágica”. Ele propunha um programa de higiene que abrangesse o proletariado e que criasse um trabalhador saudável e consciente das leis de higiene. Esse programa compreenderia a

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higiene individual e das moradias dos trabalhadores.65 Essa era uma forma da ciência

controlar o trabalhador na sua vida pública e privada, garantindo a “tranqüilidade”.

Victor Delfino foi o principal defensor e propagandista da eugenia na Argentina ao longo dos anos 1910 e 1920. Ele nasceu em Buenos Aires em 1883 e morreu na mesma cidade em 1941. Estudou Ciências Naturais, Física e Matemática no Observatorio de la Universidad de la Plata antes de se interessar por Medicina Social, Higiene Pública e Eugenia66. O seu primeiro livro publicado foi Las rutas del infinito e mostrava algumas observações sobre astronomia. Delfino demonstrou interesse por diversos temas e publicou artigos sobre antropologia, biologia, botânica, criminologia, eugenia, física, fisiologia, hidrologia, higiene, neuropatologia, psicologia e química. A maior parte desses artigos foi publicadas no periódico La Semana Médica, no qual participou do Comitê Executivo entre 1912 e 1926, quando assumiu a direção de outra revista médica, La Medicina Argentina. Delfino participou de várias organizações internacionais que abordavam os muitos campos de interesse. Foi vice-presidente do Segundo Congresso de Eugenia realizado em 1921 e membro da Comissão Permanente de Eugenia com sede em Bruxelas. Em 1920, Delfino se tornou diretor do Instituto Tutelar de Menores e secretário da Comisión Asesora de Hospitales y Asilos em 1926.

Victor Delfino participou do Primeiro Congresso de Eugenia em 1912 e escreveu um dos primeiros textos sobre o tema ao retornar à Argentina67. Ele idealizou e fundou a Sociedad Eugénica Argentina em 1918, com o objetivo de “melhorar a raça argentina”

65DELFINO, Victor. Higiene y proletariado. In: Buenos Aires: La Semana Médica. Buenos Aires. 17/4/1919, pp 407-409.

66 MIRANDA, Marisa & VALLEJO, Gustavo. La idea de “la buena raza” em la Argentina. In: Todo es História, número 425, p 61.

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