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CORPOS MASCULINOS NA FESTA DE DONA POMBAGIRA

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CORPOS MASCULINOS NA FESTA DE DONA POMBAGIRA

Jean Souza dos Anjos1 RESUMO

O ensaio discorre sobre as observações preliminares sobre a travestilidade na festa de Dona Pombagira em terreiro de Umbanda em Fortaleza. São colocadas algumas questões para a pesquisa e os desafios enfrentados no trabalho de campo. Através da percepção e do registro audiovisual, o autor considera a pesquisa necessária para compreender questões de cultura, gênero e sexualidade dentro dos terreiros onde predominam a pluralidade e a diversidade das tradições afro-brasileiras. No terreiro de Pai Valdo, como em outros terreiros, homens se vestem como mulheres para incorporarem as entidades femininas. A festa é rica e os homens usam vestidos com muito brilho, charme e exuberância. Há um desfile de beleza nas festa destinadas para essas entidades cultuadas e reverenciadas na Umbanda. Augras (2009) nos indica que Pombagira é um Exu do sexo feminino e representa a subversão dos valores morais. As Pombagiras são figuras relacionadas ao imaginário popular como feiticeiras e demoníacas. Homens que incorporam essas entidades emprestam seus corpos masculinos à representação do feminino mais ousado e transgressor da Umbanda. O trabalho reflete sobre esse fenômeno percebendo o que representa essa travestilidade na festa de Dona Pombagira e contribui para os estudos do imaginário social brasileiro colocando as questões referentes ao gênero em pauta dentro da Antropologia e das Ciências Humanas.

PALAVRAS-CHAVE: Corpo . Gênero. Sexualidade. Travestilidade. Umbanda.

INTRODUÇÃO

Esse trabalho2 se refere às observações preliminares de questões ligadas ao corpo e ao gênero nos terreiros de Umbanda de Fortaleza. Aqui venho realizar um breve relato especificamente da festa de Dona Pombagira no Terreiro Cabana do Preto Velho da Mata Escura fundado em 10 de agosto de 1984 pelo Pai de Santo Valdo. Esse terreiro fica no bairro Bom Jardim, periferia da cidade de Fortaleza, Estado do Ceará.

Atravessado pelo olhar da Antropologia, situo a festa como um elemento de lugar paradoxal e a considero como rasgadora do tempo cotidiano como bem nos diz Perez (2012). Dessa forma, a festa religiosa da Umbanda, religião nascida no Brasil no começo do século XX, é um marco realizador entre a experiência religiosa e o fenômeno do transe e da possessão tão já estudados por Birman (1985, 1995). É nesse contexto que faço uma breve análise sobre a festa da moça3, ou seja, a festa de Dona

1 Graduando na Licenciatura em Ciências Sociais UFC/LAI

2 Um resumo expandido desse trabalho foi apresentado no Simpósio Temático do IV Seminário Internacional Gênero, Cultura e Mudança dentro da programação do Curta O Gênero 2015 em Fortaleza-CE.

3 Em Fortaleza é comum os umbandistas se referirem a Dona Pombagira como moça.

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Pombagira.

Na festa de Dona Pombagira no Terreiro de Pai Valdo, homens se vestem como mulheres para incorporarem as Pombagiras. A festa é rica e os homens usam vestidos com muito brilho, charme e exuberância. Há um desfile de beleza nas festas destinadas para essas entidades cultuadas e reverenciadas na Umbanda. Augras (2009) nos indica que Pombagira é um Exu do sexo feminino e representa a subversão dos valores morais.

Quero lembrar aqui do discurso medieval que coloca o corpo da mulher sobre o poder demoníaco e dito isso, me lembro de um discurso machista e misógino ainda nos nossos tempos contemporâneos. As Pombagiras são figuras relacionadas ao imaginário popular como feiticeiras e demônias. Homens que incorporam essas entidades emprestam seus corpos masculinos à representação do feminino mais ousado na Umbanda, para não dizer mais transgressor.

O objetivo desse artigo é refletir sobre esse fenômeno percebendo o que representa essa travestilidade na festa de Dona Pombagira e contribuir para os estudos do imaginário social brasileiro colocando as questões referentes ao gênero em pauta dentro da Antropologia e das Ciências Humanas. Como a pesquisa está em fase inicial, a ideia é apresentar aqui um apanhado de questões sobre as fronteiras do corpo masculino dentro das culturas de terreiros em suas festas religiosas.

METODOLOGIA

Para a realização da pesquisa é preciso criar uma intimidade com o Pai de Santo e a comunidade de terreiro, ou seja, o Povo de Santo. A observação participante, defendida por Silva (2006) é o meu principal método para esse trabalho. Há de se formar uma convivência íntima e prolongada com os informantes para que seja formada uma percepção no olhar do pesquisador. Essa percepção, defendida por Merleau-Ponty (2011), é a referência teórica que mais me aproximo para compreender a essência da existência humana, suas nuances e contradições.

Outrossim, uso uma câmera fotográfica para registrar, quando autorizado, as festas dos terreiros. No caso da Festa de Dona Pombagira, me foi autorizado fotografar e filmar. A imagem é cara à Antropologia e à observação participante. Lembro que o próprio Malinowisk fez uso das imagens em suas pesquisas nas Ilhas Trobriand.

Margaret Mead também fez uso da Antropologia Visual em seus trabalhos etnográficos.

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Dessa forma quero seguir esses teóricos que tanto contribuíram e contribuem para o fazer antropológico e etnográfico realizando uma pesquisa com os dois pés na observação participante e uma câmera fotográfica na mão.

Novaes (2009) lembra que os antropólogos se debruçam sobre mitos, máscaras e rituais procurando, mediante uma análise minuciosa, elementos que permitam a eles uma melhor compreensão da organização social de determinada sociedade, os valores que orientam padrões de comportamento, as categorias básicas de um pensamento tipicamente humano. As imagens fotográficas nos revelam tal como esses aspectos da organização social e outros elementos da cultura material, dados fundamentais sobre a nossa própria sociedade e sobre o nosso modo de pensar.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

No dia 14 de agosto de 2008, perto da meia noite, me encontrei com uma figura inusitada na beira da Praia do Futuro, em Fortaleza. Era Maria José, uma Pombagira que estava ali pra a Festa de Iemanjá. Mazé estava incorporada no Pai de Santo Antônio e estava rodeada de pessoas com quem conversava, ria alto e bebia cerveja. Eu não sabia quem era ela e fui apresentado à Pombagira por um amigo que frequentava o Terreiro do Pai Antônio. Mazé me fitou da cabeça aos pés e disse que eu era bonito. Eu agradeci, fiquei um pouco escutando as conversas daquela mulher e depois fui embora. Era o começo de um fascínio que eu iria dedicar às Pombagiras da Umbanda cearense.

No dia 15 de agosto daquele mesmo ano e naquela mesma praia, tive a oportunidade de conhecer Pai Antônio, um senhor casado e pai de família. Não posso negar a minha surpresa quando soube que Pai Antônio era casado com mulher, naquela época meus preconceitos me diziam que aquele homem deveria ser homossexual e naturalmente, se fosse casado, seria com um homem. Esse foi o primeiro vacilo do pesquisador de religiões afro-brasileiras que pouco entendia de gênero e sexualidade e ainda carregava em si uma centena de dúvidas e questões sobre o universo da Umbanda.

A Festa de Iemanjá na praia do futuro era ali um divisor de águas na minha vida.

Dali em diante a minha presença nos terreiros de Fortaleza foi marcada por anotações, fotografias, registros de falas e conversas ocasionais com pais e mães de santo, filhos e filhas de santo e com caboclos e caboclas incorporados. Evidentemente,

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observei e fui observado nas festas de caboclos, índios e pretos velhos. A pesquisa etnográfica é sempre feita em caminhos de mão dupla. Como o meu interesse principal dentro da esfera da religiosidade afro-brasileira é o culto à Iemanjá, meu interesse pelos outros Orixás e entidades da Umbanda sempre ficaram em segundo plano. Somente em 2013, quando fui à Festa da Moça no Bom Jardim despertei para a questão que permeia esse trabalho. Por que nas festas de Pombagira são sempre os homens que incorporam a entidades? Qual o sentido e o significado para esse fenômeno cultural e religioso?

Landes (1967) vem nos falar sobre o matriarcado cultural e a homossexualidade masculina e nos indica os papéis sociais daquela época dentro dos terreiros de Candomblés da Bahia. O papel da pesquisa de Landes é essencial para os estudos de gênero dentro dos terreiros porque coloca em xeque as instancias de poder que são relevantes dentro das instituições religiosas. Assim, a autora explica que homossexuais do submundo baiano são levados a uma reversão de status quando se tornam sacerdotes do Candomblé.

Os clássicos estudos de Mead (2011) sobre as sociedades tradicionais são caros a minha pesquisa. Sobre os inadaptados em Tchambuli, Mead conclui sobre homens desajustados e sujeitos a acessos maníacos, histéricos e neurastênicos. As condições culturais, levadas em primeiro plano nos estudos da antropóloga, mostram sociedades onde os dotes humanos desenvolvem comportamentos padrões e contrastantes reconhecidos não somente pela sexualidade biologizante, mas por traços e códigos éticos e simbolismos sociais. Eu completo o pensamento de Mead com uma ponte para o fenômeno religioso e as crenças desenvolvidas pelos adeptos da Umbanda.

E se a Umbanda bebe das tradições religiosas da África, Le Breton (2012) nos lembra que o homem e a mulher africana estão imersos no seio do cosmos, de sua comunidade e eles participam da linhagem de seus ancestrais e de seus universos ecológicos. Existe uma conexão mais que afetiva nas cosmologias africanas. As conexões das relações corpóreas com as ancestralidades são um princípio existencial da condição humana de africanos e africanas. Tudo isso para dizer que as religiosidades afro-brasileiras fogem da compreensão analítica de um pesquisador branco e de origem católica romana, como eu.

Os corpos, como indica Louro (2000), são significados pela cultura e são continuamente, por ela alterados. A sexualidade na festa da moça interpela para uma

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experiência da contravenção. Essa experiência vai envolver rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos e convenções. Se Foucault (1988) afirma que a sexualidade é um dispositivo histórico, a festa da moça é a rasgadura da história através da vivência do mito fundador pela ritualidade da experiência religiosa. O êxtase rompe a fronteira do comportamento, da sexualidade e da cultura.

Daqui em diante sigo dois caminhos. O primeiro é atravessado pelo próprio ritual da festa que que aponta para a ressignificação da cultura e da religiosidade brasileira em uma encruzilhada de sentidos e significações. O segundo caminho, mais ousado para mim, discutirá as relações de gênero dentro da celebração religiosa, ou seja, a prática da travestilidade como uma transgressão dentro do terreiro naquela festa de Pombagira. É desejo meu que esses caminhos de encontrem no avançar da pesquisa.

Assumo o caráter problemático nas questões da possessão que é indiscutivelmente tratada com desdém por alguns setores das Ciências Humanas ocidentais e abomino tratar a pesquisa com o olhar exótico daqueles que se colocam como superiores àquelas tradições culturais e religiosas.

A FESTA DE DONA POMBAGIRA E OS CORPOS MASCULINOS

A festa de Dona Pombagira começa semanas antes e termina uma semana depois do grande ritual. Participei de todo o processo mas não tive autorização do Pai de Santo para narrá-lo em um trabalho acadêmico. A narrativa que apresentarei aqui será apenas da festa pública que começou cerca de 19hs do sábado e só terminou no domingo de manhã. Cheguei no sábado por volta das 18:30hs e os últimos detalhes ainda estavam sendo terminados. Um jovem passava o pano molhado no piso do barracão, pessoas passavam para um lado e para outro com suas roupas de "trabalho", tudo sendo arrumado para a grande festa da moça. E flores vermelhas, muitas flores vermelhas na porta e dentro do barracão. Todo o terreiro tem a cor vermelha em ênfase e isso também se mostrará nas roupas dos umbandistas que participam da festa principal.

Dona Pombagira não é só Dona Pombagira. Existe hoje na Umbanda brasileira e em terras europeias4 para onde a religião já se expandiu uma legião de Pombagiras que atuam nos terreiros das grandes capitais, periferias e interiores. É complexa a produção e a representação desse imaginário, pois em cada localidade as Pombagiras,

4 Ver os trabalhos do Prof. Dr. Ismael Pordeus Jr. em Portugal.

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como as outras entidades da Umbanda, ganham características específicas de acordo com a cultura local. Por isso o trabalho etnográfico é tão importante. Peirano (2003) vai nos indicar que o conceito que o conceito de ritual deve ser etnográfico, ou seja, é preciso apreender os rituais das Pombagiras em campo para conceituá-los. A importância dessa concepção de Peirano se deve a própria realização desse trabalho que caminha para apontamentos de um ritual que ressignifica a cultura e a religiosidade brasileira em uma encruzilhada de sentidos e significações.

A porta do barracão é significativa nos estudos de Van Gennep (1873-1957).

Quando os adeptos entram no barracão eles realizam algum movimento onde é deixado claro que estão entrando em outro espaço, ou seja, o espaço sagrado. Então há água na entrada do terreiro onde se toca e se benze. As rosas vermelhas na porta indicam que aquela festa tem dona, marca o território da entidade e alinha a cor com a ordem do ritual. A festa é vermelha e preta, é festa de Exu, é festa de Dona Pombagira.

As pessoas vão entrando no barracão, homens de uma lado, mulheres de outro.

Diferente do Candomblé, a Umbanda não realiza seus cultos em círculos, mas forma geralmente duas linhas humanas uma de frente para a outra. Homens e mulheres ficam separados. Depois que todos e todas estão posicionados, o próprio Pai de Santo entra com um defumador para limpar o ambiente e sacralizá-lo. O defumador é passado nos quatro cantos do barracão e na frente de todos os adeptos que lançam as mãos por cima do defumador, fazem um giro em volta de si mesmo e passam as mãos pelo corpo realizando uma limpeza. Douglas (2010) torna evidente em seus estudos as observações entre as regras de limpeza e as conexões entre o sagrado e o profano. Depois do defumador, todos e todas recebem perfume nas mãos e repetem o ato de passar as mãos perfumadas por todo o corpo, partindo da cabeça até os membros inferiores, sempre em um movimento para fora do corpo. É um movimento de retirada da sujeira invisível. A sujeira espiritual.

Esse terreiro de Umbanda tem dois altares de tamanhos iguais com um panteão de imagens de caboclos, orixás, budas, santos e santas católicas e outras imagens de origem africana. O pai de santo se posiciona sentado em uma cadeira entre os dois altares e tem a sua volta pessoas que ele delega para várias funções, inclusive as que cuidam dele durante toda a festa, como passando uma toalha no rosto dele para enxugar o suor ou dando-lhe água. Para quem não está acostumado em uma festa de terreiro,

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parece um ritual caótico, mas depois de muitas inserções em campo percebemos todas as questões hierárquicas que competem naquele ambiente. E situado nessa hierarquia que percebemos que o primeiro a incorporar uma entidade é o próprio pai de santo que recebe o Preto Velho dono do terreiro.

O Preto Velho da Mata Escura começa a sua performance no terreiro, puxa os seus pontos, dança e roda no barracão. Aos poucos, outros adeptos começam a incorporar outras entidades e cada um, a seu momento, vai evoluindo dentro da festa.

Aqui quero ressaltar a importância dos tambozeiros que tocam na festa. São eles que determinam os pontos dos caboclos e caboclas que baixam no terreiro, são eles que dão o ritmo da festa, são eles os maestros das giras, ou seja, os tocadores dos atabaques são primordiais nos rituais de Umbanda, pois é no toque do tambor que as entidades incorporam.

Depois dos ritos iniciais, que são os ritos de segurança5 da festa, os adeptos e convidados começam a se aproximar das entidades incorporadas ou pode acontecer o contrário também. Aí começam as conversas ao pé de ouvido, conselhos, passes, limpezas e rodadas. Tudo isso é regado a muita música através dos atabaques, bebidas alcoólicas para algumas entidades, cigarro e charuto para outras, além de café, água e refrigerante. Todo caboclo ou cabocla tem a sua preferência alimentar e é dever dos adeptos saber e atender a contento os desejos das entidades.

Chegando perto de meia noite, o Preto Velho da Mata Escura se retira do barracão dançando e ficam as outras entidades evoluindo. Eu sinto um grande frisson nesse momento pois o barracão está lotado de pessoas tanto adeptos como convidados.

Como haviam me dito a boca miúda, a festa da moça do Bom Jardim é uma das maiores e mais disputadas de Fortaleza. As palmas começam a crescer, os tambores rugem e o ponto grita:

Boa noite pra quem é de longe Boa noite pra quem vem chegando Boa noite pra moça bonita Que é pra ela que estamos cantando6

Dona Pombagira entra no barracão toda de preto, na porta ganha de um adepto ou convidado uma ramalhete de rosas vermelhas. Entra no terreiro de forma

5 Os ritos de segurança são aqueles em que os caboclos que incorporam dão as bençãos para que o ritual possa seguir em frente.

6 Ponto de Pombagira na tradição da Umbanda

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suntuosa com um vestido preto, o cabelo solto e um cigarro na mão. Dança e gira com as rosas e depois as entrega a uma de suas cuidadoras, as mesmas que estavam a cuidar do Pai de Santo. A entrada da entidade é vibrante. As palmas soam muito mais alto e os atabaques dão a impressão que estão ressoando o som em todos os cantos do terreiro.

Algumas pessoas choram, outras tremem e ficam arrepiadas. Eu filmei toda a entrada da moça.

A festa chega ao seu ápice exatamente a meia noite, hora grande, hora da passagem de um dia para o outro, o grande portal do tempo e começo de tudo. Tudo se renova e Dona Pombagira está no comando da festa de agora em diante. Todos e todas se curvam diante da poderosa entidade que está em terra. Dona Pombagira é regida por uma ideia ambígua e pode representar uma imagem invertida da concepção que situa o espaço doméstico como o espaço feminino por excelência e onde os recursos femininos estão definidos complementarmente aos personagens masculinos. As pombagiras, ao contrário, são percebidas como uma ameaça a esse espaço doméstico e as relações aí legitimadas como bem diz Barros:

Sendo a imagem modelar da liberdade, da não padronização e costumes, posturas, atitudes e da livre realização do desejo, a Pombagira coloca-se como a “mascarada”, a “antiesposa”, a negação da “mãe de família” na medida em que a sua imagem é definida na forma não complementar aos homens. Sua sexualidade, por exemplo, não está a serviço da reprodução, uma vez que ela a utiliza em benefício próprio. Os poderes e os perigos de sua imagem estão certamente associados a essa liminaridade. Em outras palavras, a imagem da Pombagira seria a contraface de outra: aquela mulher associada à casa, à família, às esferas mais controladas socialmente. (Barros, 2012)

Muitas questões emergem a partir da figura de Dona Pombagira. Uma delas tem a ver com a questão da liminaridade e reversão de status tão trabalhada em Turner (2013) Nesse caso a entidade figura na marginalidade envolvida nos conflitos sociais que é tão caro aos estudos da Antropologia contemporânea. Estar nas margens implica perigo e poder, retomando Mary Douglas, e Dona Pombagira se insere num lugar de trânsito. Assinalo a questão como provocadora para os estudos do meu futuro mestrado retomando os estudos de Ruth Landes da década de 1930 em Salvador onde ela encontra a reversão de status quando o negro homossexual marginalizado assume a posição de Pai de Santo conferindo status social à sua pessoa. Aqui vejo uma oportunidade para refletir e questionar as formas alternativas de resistência social, étnicas e culturais das pessoas que vivem nas religiões afro-brasileiras.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para além do imaginário como capital antropológico, a festa de Dona Pombagira também nos faz reconhecer a eficácia simbólica7 da magia. São os desejos humanos que interagem naquele espaço sagrado e ali tudo é possível de ser conseguido.

Tudo que acontece dentro da festa já acontece na vida cotidiana, a questão são as ferramentas de análise que precisamos reconhecer para interpretar o mundo cotidiano a partir do ritual. Assim nos reapropriamos do que já existe e somos interpelados pela experiência que foge do cotidiano.

Esperar o resultado de uma pesquisa é um desafio diário para quem, como eu, se coloca de corpo no campo da observação e da análise. Para as realidades da travestilidade nos terreiros onde coloco as minhas percepções, me proponho a uma maior interação com aquela manifestação religiosa e cultural que é a Umbanda.

Praticamente todos os dias venho analisando entrevistas, fotografias e vídeos feitos ao longo desses anos. A sensação é que nasce todos os dias nas minhas anotações uma floresta de símbolos e rituais secretos. Sigo na tarefa de decifrá-los, ou ao menos, compreendê-los. Há muito chão pela frente para uma pesquisa efetivamente conclusiva.

A prática etnográfica a fim de desvelar os mistérios e as vivências humanas que se relacionam com suas crenças sagradas nos mostram uma verdadeira experiência corpórea e de alteridade com a pesquisa. A festa de Dona Pombagira é uma experiência humana da alteridade e do corpo, isso eu já posso dizer. É uma festa em que a relação é mantida através dos afetos e da caridade de quem se entrega de corpo para a vivência relacional na sua religião.

7 Utilizando o conceito de Lévi-Strauss

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REFERÊNCIAS

AUGRAS, Monique. Imaginário da magia: magia do imaginário. Petrópolis: Vozes;

Rio de Janeiro: Editora PUC, 2009.

BARROS, Sulivan Charles. As entidades “brasileiras” da Umbanda. In. ISAIA, Artur Cesar; MANOEL, Ivan Aparecido (orgs.). Espiritismo & religiões afro-brasileiras:

história e ciências sociais. São Paulo: Ed. UNESP, 2012.

BIRMAN, Patrícia. O que é umbanda. São Paulo: Brasiliense, 1985.

___, Fazer estilo criando gêneros: estudo sobre a construção religiosa da possessão e da diferença de gêneros em terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: EdUERJ, 1995.

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 2010.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro:

Edições Graal, 1988.

LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1967.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.

LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In. LOURO, Guacira Lopes.

(organizadora). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:

Autêntica, 2000.

MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva, 2011.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

NOVAES, Sylvia Caiuby. Imagem e ciências sociais: Trajetória de uma relação difícil.

In. BARBOSA, Andréa; CUNHA, Edgar Teodoro da; HIKIJI, Rose Satiko Gitirana (orgs). Imagem-Conhecimento: Antropologia, cinema e outros diálogos. Campinas,SP:

Papirus, 2009.

PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

PEREZ, Léa Freitas. Festa para além da festa. In. PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania. Orgs. Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.

SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico na pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

Referências

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