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NACIONAL: O Bolsa-Família e a questão social em 30/04/2004

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NACIONAL: O Bolsa-Família e a questão social em 30/04/2004

O programa tem pelo menos quatro características que devem ser ressaltadas: ter como objeto de intervenção a família em seu conjunto; entender que programas de transferência de renda isoladamente não são suficientes para garantir aumento da possibilidade de geração autônoma de renda; buscar uma parceria com estados e municípios; e ter como eixo a preocupação com a dimensão republicana

Amélia Cohn e Ana Fonseca*

O debate sobre a questão social no Brasil vem sendo pautado por duas matrizes principais: uma privilegiando o ângulo da pobreza, com maior ou menor ênfase na desigualdade e na justiça sociais; outra privilegiando o ângulo da superação da pobreza, com ênfase na dimensão da cidadania e do fortalecimento da esfera pública.

A primeira, ao privilegiar a questão da pobreza em si, tende a enfatizar as políticas públicas na sua dimensão política – no geral restrita à racionalidade custoo–efetividade –, em detrimento da sua dimensão pública propriamente dita, derivando daí visões maniqueístas entre focalização/universalização; econômico/social;

centralização/descentralização, Estado/mercado. A segunda articula a pobreza à perspectiva da satisfação das necessidades básicas dos indivíduos enquanto direitos sociais, com ênfase na dimensão da construção de sujeitos autônomos, portanto da ótica da esfera pública. Se ambas não raramente são vistas como antagônicas, isoladas não são capazes de dar conta da questão social do país, dadas a magnitude e a complexidade de sua configuração.

No entanto, há consenso entre os estudiosos da pobreza e da exclusão social sobre sua principal causa no país – o acentuado grau histórico de desigualdade da apropriação da riqueza e do capital social acumulado, conformando um processo de crescimento e desenvolvimento na desigualdade de renda. É também apontado em vários textos2, com o respaldo de mestres como Caio Prado Júnior e Celso Furtado, que enfrentar essas

“questões tão antigas e contemporâneass” envolvidas na pobreza e na desigualdade social “significa enfrentar e eliminar velhas práticas políticas e implementar ações sociais que resgatem a cidadania da população excluída, dando-lhe condições para sua emancipaçãoo”. Eis o desafio central para as políticas públicas hoje: resgatar a cidadania da população excluída, dando-lhe condições para sua emancipação.

Compondo o quebra-cabeça

Quando se formula o Bolsa-Família, não se trata de reinventar a roda desconhecendo-se os traços atuais do modelo de proteção social brasileiro. Trata-se, sim, de, ao resgatá-lo, procurar avançar na conformação de uma rede de proteção social que tenha como horizonte sua universalização.

O modelo de proteção social brasileiro, dadas suas marcas estruturais, é composto de duas matrizes – direitos contributivos vinculados à condição dos indivíduos (os

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trabalhadores) no mercado formal de trabalho e transferências de renda não- contributivas vinculadas à assistência social –, configurando-se uma dualidade. O grande marco para a sua superação é a Constituição de 1988, mas herda-se um modelo de proteção social que vai de encontro a um sistema de seguridade social, incluídas a previdência social (constituída nos moldes de seguro social), a assistência social (entendida como direito, e não como filantropia) e a saúde.

Embora o marco de referência institucional desse novo sistema de proteção social esteja ainda calcado nos fundamentos de uma sociedade do trabalho, tal como ocorreu em suas origens, busca-se agora articular todos os benefícios contributivos e não-contributivos sob a égide dos direitos sociais, e não mais da assistência e/ou da filantropia, como anteriormente.

Este constitui o desafio contemporâneo: contrapondo-se às tendências mundiais de reconfiguração dos sistemas de Welfare State, sem nunca termos constituído um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social – para lembrar, Francisco de Oliveira (não o

“outroo”3, o saudoso Chico Previdência) refere-se ao Brasil como um caso de Estado de Mal-Estar Social –, compor um conjunto de políticas setoriais virtuosas entre si, que historicamente foram sendo instituídas como paralelas e concorrentes, regido pela matriz da justiça social, da eqüidade e dos direitos sociais.

Isso não implica desconhecer experiências passadas, tampouco negá-las. Implica, sim, resgatá-las sempre que for o caso, enfrentando essas heranças históricas e a elas somar e articular outras políticas e programas pautados pelo princípio da justiça social e da eqüidade, alçando os segmentos pobres à condição de cidadãos. E não constitui tarefa de uma única política setorial, muito menos o é de um único programa; é na comunhão dos princípios e diretrizes que regem cada uma dessas ações que irá sendo moldado esse sistema de proteção social capaz de traduzir na agenda pública um novo projeto para a sociedade.

Fundamentos e diretrizes

A originalidade e a inovação do Bolsa-Família não residem na negação dos programas de transferência de renda já existentes (Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Auxílio-Gás e Cartão-Alimentação) nem se restringem a sua unificação nos marcos estreitos de buscar maior grau de racionalidade administrativa do governo. Ele parte do diagnóstico de que esses programas representaram um avanço no campo das políticas públicas, porém não superaram características marcantes da tradição brasileira das políticas sociais:

pulverização dos recursos, elevado custo administrativo, superposições de públicos- alvo, competição entre as instituições, ausência de coordenação e perspectiva

intersetorial, impossibilitando uma ação articulada para o enfrentamento da pobreza e da desigualdade social. Acresce-se a isso o fato de operarem com um sistema de cotas de atendimento, reduzido valor dos benefícios, voltados para somente um dos membros do grupo familiar, e solene ignorância da existência de programas similares conduzidos por estados e/ou municípios. O Bolsa-Família elege a família como a unidade do programa, o que significa ter todos os seus membros como público-alvo, e não mais cada um isoladamente, a partir da constatação óbvia, mas raramente incorporada às políticas sociais de âmbito nacional, de que a pobreza num país com a magnitude e a diversidade do Brasil apresenta várias formas de manifestação – que não se reduzem à renda dos indivíduos pobres, tampouco às precárias condições de vida a que estão condenados –,

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associada ao objetivo de que se trata de, além de satisfazer de forma digna suas necessidades básicas, alçá-los à condição de cidadãos.

Ao optar pela família, três premissas estavam presentes. A primeira, de que programas de transferência de renda não constituem um fim em si mesmo, porque de per si não são um instrumento de superação da pobreza, em que pese sua importância enquanto

mecanismo de alívio imediato da pobreza e da condição de privação a que estão condenados largos segmentos da população. A segunda, de que devem estar

necessariamente associados a políticas complementares que criem possibilidades para que essas famílias, ao se desvincularem do programa, estejam numa situação distinta daquela que motivou seu ingresso; vale dizer, a necessidade de estabelecer uma estreita associação entre programas de transferência de renda e políticas de inserção social. A terceira, de que a transferência de renda deve estar associada à garantia do acesso das famílias pobres (e por definição também das não-pobres) aos serviços universais, como saúde e educação.

Frente a essas premissas, construídas num trabalho conjunto dos distintos ministérios da área social e econômica, sob a coordenação da Casa Civil e da assessoria da Presidência da República, num exercício até então inédito de busca de articulação intersetorial no âmbito do governo federal, formulou-se o Programa Bolsa-Família, oficialmente

lançado em 20 de outubro de 2003. Do ponto de vista organizacional, optou-se por uma Secretaria Executiva vinculada à Presidência da República e um Comitê Gestor

Interministerial, composto dos ministros da Educação, Saúde, Assistência Social, Segurança Alimentar, Trabalho, Fazenda, Planejamento e Casa Civil, criando-se espaços para o exercício da necessária intersetorialidade para que o Bolsa-Família de fato ganhasse o contorno de uma política estratégica na conformação de um novo perfil do sistema de proteção social no país.

Tratava-se então de unificar os cadastros dos distintos programas vigentes no Cadastro Único, instituído em outubro de 2001, verificar duplicidades e inconsistências de dados, e ao mesmo tempo cumprir a meta estipulada pelo presidente da República: atingir 3,6 milhões de famílias em dezembro de 2003. O Cadúnico passa a ser entendido como uma ferramenta fundamental para o planejamento das políticas públicas no âmbito dos territórios, em que pesem suas limitações oriundas principalmente do fato de haver sido constituído quando prevalecia, ao contrário do que propõe o Bolsa-Família, o sistema de cotas diferenciadas dos programas no âmbito municipal e no estadual.

Uma vez que cabe aos municípios a implementação do Bolsa-Família, os entes federados são concebidos efetivamente como parceiros. Em conseqüência, o processo de descentralização ganha uma especificidade, na medida em que municípios e estados são chamados a pactuar com a esfera nacional sua integração ao programa, contando ou não com programas próprios de transferência de renda, configurando-se assim um processo de descentralização mais horizontal do que nos casos da saúde, da educação e da assistência social, em que o poder central assume de forma mais acentuada o

comando desse processo. No Bolsa-Família a descentralização é pactuada com estados e municípios, podendo existir vários tipos de parceria – contrapartida com recursos

próprios ou com políticas complementares para o público-alvo do programa –, já que seu desenho demanda um processo de descentralização com um grau maior de

horizontalidade, sem que a esfera federal perca sua capacidade de gerir essa política de transferência de renda de forma redistributiva.

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Exatamente porque traz em sua concepção a preocupação com a superação da pobreza, o Bolsa-Família exige a articulação com outros programas de caráter universalista e de caráter estrutural para que essas famílias efetivamente encontrem “portas de saídaa”

para superar sua vulnerabilidade social.

Resgatando temas polêmicos

O debate em torno das políticas sociais do atual governo vem sendo pautado, entre outros temas, pelo que se poderia denominar de “competiçãoo” quando se comparam os dois últimos governos ao atual, traduzida numa verdadeira “gincana de númeross”. O que está em jogo aqui não é “quanto se gasta a mais ou a menoss” – apesar de com o Bolsa-Família o valor do benefício ter em média triplicado em relação ao valor dos programas anteriores. O que verdadeiramente conta é a lógica que a concepção do próprio programa imprime a sua implementação: a de ser um programa que pretende chegar ao objetivo de cobrir até 2006 todas as famílias pobres do país4. O critério de inserção no Bolsa-Família é o valor de corte de R$ 50 per capita familiar para o valor básico do benefício de R$ 50 mais o valor variável de R$ 15 para as famílias com filhos até 15 anos, até o limite de três filhos; para famílias com renda mensal per capita superior a R$ 50 até R$ 100, o valor do benefício é variável: R$ 15 por filho até 15 anos, até o limite de três benefícios.

A recorrência dessa síndrome da “gincana de númeross” acaba se traduzindo num círculo vicioso, pois em geral aqueles que afirmam que “no Brasil se gasta muito com a área social, mas se gasta mall” são os mesmos que advogam uma racionalização dos gastos sociais – o que, lido de outra forma, significa dizer que o que importa é

exatamente como se alocam os recursos, e não quanto se aloca5. A proposta do Bolsa- Família, nesse sentido, significa montar uma estratégia de intervenção na área social que seja marcada ao mesmo tempo pela eficiência no gasto público e pela eficácia social, buscando ações intersetoriais, parcerias com as distintas esferas de governo e com a sociedade, controle e regras públicas de sua gestão e políticas matriciais que permitam sejam construídas “portas de saídaa” para que as famílias encontrem caminhos para conquistar autonomia no que diz respeito à renda e à cidadania.

Outro tema que tem pautado o debate é o Cadastro Único, que vem sendo travado em torno de pelo menos duas vertentes. A primeira questiona a qualidade do Cadúnico como instrumento de gestão eficaz para focalizar o programa nos grupos efetivamente mais pobres da população; enfim, enquanto instrumento eficiente para “ordenar todas as pessoas em uma dada população de acordo com o grau de carência de cada umaa”, o que possibilitaria ao governo “obter uma fila, em que as primeiras posições são ocupadas por aqueles com maior nível de carênciaa”6. Só é possível que o cadastro efetivamente funcione como um instrumento tão preciso quando se concebe a pobreza como um fenômeno absolutamente linear e palpável, em que pese todos concordarmos com sua complexidade e o fato de ela ser multifacetada. A alternativa seria substituí-lo por um censo, ou refazê-lo, implicando um aumento considerável dos gastos em funções-meio em detrimento da função-fim – os benefícios chegarem lá na ponta.

Significa, ademais, desconhecer que “vazamentoss” na prestação de benefícios a

famílias que a rigor não estariam na posição correta da “filaa”, por receber pouco a mais do que os valores estipulados como critério, em nada mudam substancialmente sua situação de pobreza, e, quanto aos demais casos aberrantes, trata-se de desmandos da

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gestão pública.

A outra vertente diz respeito ao fato de este ser um cadastro das famílias pobres que atribui a cada um de seus membros um número de identificação (o NIS – número de identificação social), o que vem sendo desqualificado como “registro de identidade de pobree”. Isso nada mais reproduz do que a velha e boa concepção de nossas elites de que os pobres não podem ser identificados porque isso os estaria estigmatizando, dado que o público-alvo das políticas sociais são exclusivamente os segmentos pobres da população. Daí porque as concebem como setorializadas e segmentadas, numa divisão explícita entre Estado para os pobres e Mercado para os não-pobres (aliás, como se este, sobretudo na área social, fosse capaz de sobreviver somente com a capacidade de consumo dos não-pobres, estando aí a experiência do setor supletivo da saúde para mostrar que não é assim).

Vejamos agora de outra perspectiva: a questão do cadastro único não se confunde com identificar e monitorar de maneira punitiva as famílias pobres, mas sim num valioso instrumento de gestão das políticas públicas, uma vez que, identificados esses

segmentos da população, pode-se fazer confluir de forma articulada aquelas políticas de modo a torná-las virtuosas entre si – ao contrário de nossa tradição, que não só as vem segmentando como travando uma disputa entre elas para saber “de quem é o pobree”.

Ademais, com o adequado controle público da gestão dessas políticas, o que inclui o próprio cadastro, ele se traduz num oportuno instrumento de combate ao clientelismo, outro traço marcante da trajetória das políticas sociais no país. Daí sua importância como instrumento de gestão e do salto que se deu a partir do Bolsa-Família, ao viabilizar seu acesso a municípios e estados, o que não ocorria – nem estava previsto ocorrer pela regulamentação quando de sua criação, em 2001.

Por outro lado, se, como alegam alguns, não é necessário ter esse “RG dos pobress”

porque “nos rincões brasileiros todos são pobress”, isso é insuficiente na medida em que o Bolsa-Família não se propõe a ser um fim em si mesmo, mas um meio a mais para tirar essas famílias da situação de pobreza extrema, o que exige que se conheçam a configuração e a natureza específicas da pobreza em que se encontram para que se possa fazer confluir para esse público-alvo uma série de programas que possibilitem a

construção de “portas de saídaa”.

Um terceiro tema é o das condicionalidades vinculadas ao benefício: manter os filhos na escola, estar em dia com o calendário das vacinações, as gestantes fazerem pré-natal e ser vedado o trabalho infantil. Seu objetivo é associar o complemento de renda

assegurado pelo programa ao acesso das crianças e adolescentes à educação básica, à sua permanência na escola, à inserção dos grupos familiares na rede de saúde, com especial ênfase nas crianças, gestantes e nutrizes, e na rede de proteção social, além de à garantia de que as crianças não serão expostas ao trabalho infantil.

Tais condicionalidades vêm sendo entendidas por uns como uma forma de disciplinar os pobres, impondo-lhes sanções (desligamento do programa) quando não cumpridas7. Por outros, são vistas como uma forma de monitoramento dessas famílias, implicando um excessivo grau de normatização por parte do Estado da esfera da vida privada dos indivíduos. Ambos os riscos de fato existem, porém o eixo central que orienta a formulação do programa – e a maneira pela qual vem sendo implementado – são as condicionalidades concebidas como um contrato entre as partes, para que as famílias

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invistam naquilo que permitirá o desenvolvimento de suas capacidades para que

possam, com a presença de políticas governamentais de natureza mais estrutural, dispor das condições mínimas necessárias para garantir para si a possibilidade de um processo de inclusão social sustentável. Trata-se aqui de combater a tradição de uma cultura brasileira punitiva com relação à pobreza e aos pobres, não poucas vezes lhes atribuindo uma “incapacidadee” de objetivamente informar sobre suas condições de vida ou os vendo com desconfiança, atribuindo-lhes arbitrariamente uma capacidade de desvirtuar as informações fornecidas quando do cadastramento.

Um breve balanço

Quando do lançamento do Programa Bolsa-Família, o presidente da República reiterou a meta de atingir o atendimento de 3,6 milhões de famílias em dezembro de 2003 e 11,4 milhões até 2006.

Em dezembro do ano passado o programa atingiu a meta. Envolvendo um volume de recursos da ordem de R$ 264 milhões8 e presente na quase totalidade dos municípios, o Bolsa-Família incluiu 3.615.816 famílias recebendo benefícios com um valor médio de R$ 72,80.

Além do alívio imediato da condição de penúria em que essas famílias sobrevivem, não há como desconhecer o impacto que essa transferência de recursos tem para as

economias locais, já que em dezembro de 2003 as transferências realizadas

representaram para a Região Norte o equivalente a 15% dos recursos provenientes do Fundo de Participação Municipal; para a Região Nordeste, 28%; para a Sudeste, 10%;

para a Sul, 8%; e, para a Centro-Oeste9, 7% – o que autoriza afirmar seu caráter redistributivo também em termos regionais.

Obedecendo à concepção que norteia a formulação do programa – que reside no entendimento de que o enfrentamento da pobreza, da desigualdade e da exclusão social não pode ser tarefa de um único ente da federação e muito menos de somente um de seus programas, mas sim de um esforço intersetorial envolvendo todas as unidades da federação, estabelecendo-se uma relação virtuosa entre programas e políticas sociais e econômicas e entre os entes da federação –, para os estados e municípios são

apresentadas duas propostas básicas de pactuação. Para aqueles que têm programa próprio de transferência de renda, que considerem a transferência do Bolsa-Família como parte do benefício que já implementam e, com a diferença, ampliem a cobertura dos próprios programas. E, para todos eles, que tomem esses grupos familiares como alvo privilegiado de outras políticas e programas desenvolvidos no âmbito local. Com essas duas propostas é que se vêm buscando negociações de pactuação com os estados e os municípios.

Paralelamente, o Cadúnico está sendo aperfeiçoado e instrumentos técnicos e

contratuais vêm sendo desenvolvidos para que as prefeituras possam acessá-lo, o que até recentemente era impossível. Da mesma forma, têm sido promovidas oficinas de discussão com especialistas na questão da pobreza e gestores governamentais para que se desenvolva uma proposta de indicadores multidimensionais da pobreza visando aprimorar o processo de seleção das famílias.

Igualmente estão em curso vários estudos de caso de experiências locais de

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implementação do Bolsa-Família para avaliá-lo da perspectiva da administração pública (eficiência) e da perspectiva da gestão pública, com ênfase no processo de sua

implementação, tendo em vista o controle social (público), a construção da cidadania e uma nova qualidade da relação do Estado com a sociedade.

A identidade do Bolsa-Família

O Bolsa-Família não reivindica para si a invenção da roda. Mas tampouco pode ser reduzido a um programa que tem por objetivo meramente racionalizar os três programas provenientes do governo anterior (Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação e Auxílio-Gás), acrescidos do Cartão-Alimentação, criado no governo atual pelo Ministério

Extraordinário de Segurança Alimentar (MESA). Da mesma forma, ele traz consigo a clara distinção entre sua especificidade e a especificidade das competências atinentes à assistência social, regulamentadas pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).

Ele representa um avanço frente às propostas anteriores exatamente porque as resgata em outro patamar: busca a integração entre as políticas setoriais no interior do próprio governo, perseguindo a intersetorialidade das ações na área social, imprimindo outro sentido ao processo de descentralização ao tratar os entes da federação como efetivos parceiros nessa tarefa, propondo-se como um programa matricial e transversal das iniciativas governamentais dirigidas para o combate à pobreza.

Nesse sentido, pelo menos quatro características suas devem ser ressaltadas: ter como objeto de intervenção a família em seu conjunto, e não mais cada indivíduo

isoladamente; entender que programas de transferência de renda não constituem um fim em si, porque isoladamente não são suficientes para garantir que essas famílias, sem ações públicas complementares, vejam aumentada sua possibilidade de geração

autônoma de renda uma vez desligadas do programa; buscar uma parceria com estados e municípios, promovendo um processo de “descentralização pactuada” entre os entes da federação; e ter como eixo a preocupação com a dimensão republicana – a criação de critérios públicos e universais de inclusão e exclusão no programa, orientados por uma concepção não punitiva, mas contratual quanto às condicionalidades, e a ênfase em mecanismos de controle social e público sobre sua implementação, sem que com isso o Estado abra mão de sua responsabilidade republicana. As condicionalidades assumem, assim, a dimensão de responsabilidade essencialmente pública, de caráter universal, e portanto do Estado, quer do ponto de vista da oferta adequada de serviços, quer do ponto de vista do monitoramento de seu cumprimento.

Embora seja voz corrente que o ambiente econômico não se constitui num bom

cúmplice nesse processo, isso não justifica que se fique no âmbito estreito do “realismo do possívell”, em detrimento da utopia futura de uma sociedade mais justa em que imperem os direitos da cidadania.

Notas:

1 Texto entregue para publicação em 14 de janeiro de 2004.

2 Pochmann, M. e Amorim, R. (orgs.), Atlas da Exclusão Social no Brasil, S. Paulo, Cortez, 2003; Campos, A., Pochmann, M. e Silva, R. (orgs.), Atlas da Exclusão Social no Brasil – Dinâmica e Manifestação Territorial, v. 2, S. Paulo, Cortez, 2003, p. 37.

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3 Referência feita por Lena Lavinas em “Proteção social: sem compulsórios nem clientelass”, em Teoria e Debate nº 55, set./out./nov. 2003.

4 Estimadas num total de 11,4 milhões de famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, das quais 5 milhões com renda per capita de até um quarto do salário mínimo.

5 Em 2003 o governo federal investiu R$ 4,3 bilhões em programas de transferência de renda (Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Cartão-Alimentação, Auxílio-Gás e Bolsa- Família) e para 2004 estão orçados R$ 5,3 bilhões. O valor médio dos programas anteriores de transferência de renda era de R$ 25, enquanto em 2003 é de R$ 75.

6 Texto apresentado por Ricardo Paes de Barros e Mirela de Carvalho P. da Silva no seminário Indicadores Multidimensionais de Pobreza, em Brasília, novembro de 2003, mimeografado.

7 É freqüente a presença do termo “castigoo”, referindo-se às sanções pelo não- cumprimento das condicionalidades, em textos oficiais ou relatórios de seminários promovidos por agências internacionais.

8 O conjunto dos programas de transferência de renda (Bolsa-Família, Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Cartão-Alimentação e Auxílio-Gás) soma um volume de recursos nesse mesmo mês da ordem de R$ 433 milhões.

9 Sem considerar o Distrito Federal.

*Amélia Cohn é diretora de Monitoramento e Avaliação da Secretaria-Executiva do

Programa Bolsa-Família

*Ana Fonseca é secretária-executiva do Programa Bolsa-Família

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