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Notas sobre desigualdade e identidade numa perspectiva de ciência política

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Academic year: 2021

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Notas sobre desigualdade e identidade numa

perspectiva de ciência política

Fábio Wanderley Reis

Advertência: Apesar de um começo mais fluente e menos elíptico, o pouco tempo de que dispus para preparar estas notas acabou levando a que elas se transformassem em mero roteiro telegráfico. Peço desculpas e espero que pelo menos sejam de ajuda para a apresentação e a discussão orais.

São frequentes as tentativas de definir a política como correspondendo a uma espécie de “pedaço” da realidade social, que teria a ver com o estado e entidades ou comportamentos de alguma forma referidos a ele. Mesmo quando o recorte se vale da idéia de poder, que parece trazer-lhe fundamentos analíticos e mais abstratos, a tendência é que a própria idéia de poder seja referida ao estado e à sua atuação. Se tal tendência ocorre vulgarmente, ela pode também ser encontrada entre autores sofisticados.

É o caso, por exemplo, de formulações de Jürgen Habermas em Lógica das Ciências Sociais, que são retomadas em trabalhos mais recentes e que discuti em meu livro Política e Racionalidade, publicado em primeira edição em 1984. Procurando caracterizar a ação estratégica e esclarecer suas relações com a ação comunicativa, Habermas tece considerações sobre certo traço de “intencionalidade abstrata” (o rótulo é meu) que distinguiria a primeira: ela se definiria pelo empenho de “obter valores máximos ou ótimos a partir de grandezas mensuráveis ou pelo

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menos definíveis comparativamente”. Tendo a ver com a “afirmação de si” (ou com o que Alessandro Pizzorno, procurando definir a idéia de “interesse”, designou antes como o “distinguir-se”), a ação estratégica envolveria, no limite, a possibilidade de apreensão “monológica” do seu sentido, que seria “’univocamente’ claro, acessível sem esforço hermenêutico”, isto é, sem que seja necessário apreender (compreender) o contexto institucional (comunicacional) da ação para que se torne inteligível a intencionalidade (estratégica) que a distingue. Nesse contexto, Habermas é levado a associar a ação estratégica a “categorias tais como riqueza ou poder”, com a riqueza sendo referida ao “potencial de satisfação das necessidades” e o poder sendo posto em correspondência com “votos” e “armas”, isto é, “o potencial de legitimação do domínio ou de aniquilação física”.

Meu comentário à passagem em questão de Habermas destaca justamente seu recurso a essas duas categorias, riqueza e poder, para extrair algumas consequências. O ponto central consiste em que é possível tomar a idéia de poder em duas acepções diferentes: uma acepção estreitamente “política” ou “político-institucional”, em que se justificaria a menção conjunta que faz Habermas a poder e riqueza como exemplos de relações em duas áreas supostamente distintas que apresentariam ambas a propriedade de permitirem comparações e a apreensão daquela intencionalidade abstrata; ou uma acepção ampla em que o “poder” teria na própria riqueza uma forma de manifestar-se. Daí se segue o desdobramento que considero importante: se se pretende – como é claramente o caso de Habermas nessa passagem – tomar a expressão poder no sentido restrito indicado em primeiro lugar, é óbvio que as esferas do “poder” e da “riqueza” não são as únicas que caberia ver como podendo servir de substrato e referência à ação estratégica com sua intencionalidade abstrata: que dizer das relações “comparativas” e estratégicas, de “distinguir-se” e “afirmação de si”, que podem dar-se em

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torno de questões como raça, cor, origem étnica, sexo, geração ou idade, maior ou menor liberdade de praticar a própria religião, honra ou prestígio, competência e assim por diante? Dir-se-á, talvez, que em todos esses casos se trata sempre de poder? Mas isso significa transitar da primeira acepção de poder para a segunda, a acepção ampla. E a intuição relevante é que é exatamente essa noção ampla e genérica de poder que está por detrás da intencionalidade abstrata própria da ação estratégica: a independência do caráter intencional da ação estratégica com respeito a qualquer contexto “institucional” dado, aquilo que traz o caráter “abstrato” à intencionalidade que a marca, tem a ver justamente com o fato de que qualquer contexto ou área substantiva de problemas, independentemente da natureza intrínseca destes, pode servir de substrato ou ponto de referência para o surgimento de interesses ou para o estabelecimento de relações estratégicas – e que acabamos tendo uma espécie de sinonímia entre a idéia de relações estratégicas, com o “distinguir-se” e o “afirmar-se” que as define, e as idéias de interesse, de conflito potencial ou real e de poder em acepção ampla e envolvente.

Como parece claro, daí se pode transitar para uma concepção de política em que, em vez da referência a um “pedaço” da realidade social percebido como de natureza estatal ou afim, o critério é antes analítico, envolvendo a referência à presença do elemento conflitual, estratégico, de interesse ou de poder em qualquer espaço dado de interação, seja qual for seu “conteúdo” ou sua natureza intrínseca. Naturalmente, a referência a esse elemento não tem por que ser entendida como correspondendo a um “realismo” míope, como o que caracteriza os manuais convencionais de ciência política, que com frequência pretendem ter na mera referência ao poder a garantia de uma objetividade que excluiria a dimensão valorativa ou normativa a não ser como objeto, ela própria, de análise empírica e “neutra”. A atenção para o elemento conflitual ou estratégico pode ser vista como levando, antes, à sensibilidade para a dialética em que ele se articula

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com o elemento de convergência, aglutinação ou solidariedade em diferentes níveis ou escalas. Temos, assim, o foco dirigido à questão de como eventualmente se resolve, de maneira sempre precária, o problema do poder, o poder como problema – o que remete a inescapável fundamento filosófico ou doutrinário em que se postula o não-poder, a condição de igualdade e autonomia de todos como aspiração ou meta.

– Se nos voltamos para aspectos mais concretos do tema da igualdade, destacar inicialmente como questões de identidade podem ser introduzidas: contraste, por exemplo, entre mecanismos que podem ser conceitualizados em termos de “casta” x “classe”, com desdobramentos relevantes para confrontos como o que correntemente se tem entre liberalismo e multiculturalismo. Casta envolve identidade estamental acrítica, acomodação confortável na desigualdade (desigualdade não vivida subjetivamente como problemática), levando ao extremo o princípio da estratificação estamental (reconhecimento da honra do próprio estamento). Com classe, possibilidade da ocorrência de mecanismos de comparação e frustração, as “comparações odiosas”, acompanhadas do sentimento de injustiça que se dá quando a desigualdade emerge em relações que percebemos como devendo ser de igualdade: W. G. Runciman, velho livro de 1966, Relative Deprivation and Social Justice, e a idéia de injustiça relacionada a uma forma básica de “incongruência de status” que ressalta certa dialética ou tensão entre ser igual e simultaneamente ser desigual... Importância para liberalismo-multiculturalismo: não basta identidade, ela pode ser compatível com desigualdade mesmo extremada (e, justamente, quanto mais extremada, provavelmente menores chances de que sentimento de identidade redunde em reclamo de igualdade); o que promove a busca da igualdade é antes um componente inequivocamente afim ao liberalismo: a comparação e o ânimo “estratégico”, e latentemente conflitual, de superar a condição em que somos inferiorizados ou

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injustiçados, de buscar a autonomia – ânimo este sem o qual, no limite, não há sequer a possibilidade de se falar de política propriamente (não haveria política na sociedade de escravos em que estivesse inteiramente excluída a possibilidade de que estes viessem a afirmar-se autonomamente, ou em que os únicos interesses a contar fossem de uma vez por todas os do senhor).

– A ponderação de que o “si” que se afirma na interação estratégica pode ser individual ou plural (coletivo): desdobramento com respeito à questão dos fundamentos coletivos da identidade e de sua relevância para autonomia como prerrogativa dos indivíduos, de um lado, ou eventualmente de coletividades, do outro.

Algumas situações que se podem conceber: (1) Hipótese de um grupo isolado e talvez homogêneo, fatores sociológicos (coletivos) que naturalmente conformariam psicologicamente os indivíduos (se se quiser, sua identidade), mas no limite irrelevância da identidade assim constituída para aspirações de autonomia ou para interações de tipo estratégico, já que o grupo como tal não se constituiria em foco significativo para a definição da identidade dos seus membros (o que não exclui a possibilidade de que ocorram, dentro do grupo, interações estratégicas no plano interindividual, que se veriam mesmo provavelmente intensificadas na ausência do fator de coesão interna representado pela referência contrastante e potencialmente belicosa a outros grupos). (2) Grupos diversos postos de alguma forma na presença uns dos outros: identidade coletiva e adscritícia (resultante da própria imersão não voluntária no grupo) adquire relevância para aspirações de autonomia e para ocorrência de interações estratégicas e políticas. (3) Situação em que se superaria o mero condicionamento social e adscritício das identidades e em que identidade se tornaria em ampla medida o objeto de escolha livre, com ideal de autonomia levado ao próprio plano da definição da identidade; individualismo; naturalmente, dialética com elementos socialmente dados,

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além de possibilidade de escolha das solidariedades e dos grupos (voluntários) em que o indivíduo buscará o calor da amizade, do amor, do reconhecimento...

– O caráter mais ou menos reflexivo da identidade implícito em distinções como casta-classe e a ponderação de que aspiração de autonomia envolve self-consciousness. Presença e importância de um elemento de natureza cognitiva. Naturalmente, possibilidade de distinguir entre a autonomia no sentido da pura afirmação impulsiva e, no limite, mais ou menos estúpida de si (em correspondência com a idéia do poder como algo que dispensa o poderoso da necessidade de aprender) e a autonomia no sentido mais exigente do autocontrole, que envolve a capacidade de ser seletivo com respeito aos impulsos próprios e aos estímulos do ambiente em função da capacidade de relacionar-se com objetivos mais remotos ou com certo ideal de vida (talvez de morte) – e envolve também, portanto, definição mais sofisticada da identidade própria.

Consequência para diferentes formas de se articularem identidade individual e identidade coletiva, ingênuas e acríticas versus cognitivamente sofisticadas, e relevância para a discussão de questões de igualdade e autonomia com referência a um contexto como o brasileiro. Ilustração com dados relativos ao processo político-eleitoral do país.

– Exploração do interesse talvez especial de uma categoria conceitual: a idéia de consociativismo como conciliação entre identidade e estratégia (interesses, poder), ou como meio de mitigar a contaminação estratégica (e a relevância política) da manifestação de identidades. Em contraste com o mero recurso a um princípio individualista (e sua tradução usual em termos da regra da maioria), em situações em que identidades diversas em princípio “horizontais” (territoriais, étnicas, religiosas) buscam afirmar-se pode-se obter a neutralização da relevância política da identidade pela “segmentarização”, com mecanismos em que se autoriza e estimula a

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manifestação institucional e a representação em termos igualitários das identidades coletivas como tal, evitando-se que os mecanismos de decisão majoritária redundem na sujeição de umas identidades a outras. Mas peculiaridades quando se trata de identidades relacionadas diretamente com o plano vertical ou com a estratificação social: neste caso, o consociativismo (corporativismo das social-democracias) ocorre quando grupos contam com a possibilidade efetiva de afirmar-se, por contraste com o caso de sociedades grandemente desiguais como a brasileira, onde “consociativismo” (ou “conciliação”)tem sido usado para indicar antes a convergência que se estabelece entre as elites e no interesse de assegurar a continuidade do domínio exercido por elas... Relevância do ponto de vista da perspectiva sugerida acima quanto às relações multiculturalismo-liberalismo: é a associação com o estratégico que faz a ênfase na identidade contribuir para a produção de igualdade. Contudo, certo matiz importante, que se mostra quando o consociativismo étnico de certos países europeus é aproximado do caso das relações raciais: cabe buscar “consociativismo” neste último caso? Como alcançar a condição em que raça seja irrelevante, por meio da cegueira “individualista” diante dela ou por meio da promoção “consociativa” das diferentes identidades raciais? Haverá autênticas identidades raciais em jogo e correspondentes reivindicações estratégicas efetivas?

Referências

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