Fundamentos da Eletrostática
Aula 16
Dielétricos / Polarização
Prof. Alex G. Dias Prof. Alysson F. Ferrari
Dielétricos
Consideramos, em aulas passadas, a resolução de problemas eletrostáticos na presença de condutores. Um material condutor caracteriza-se pelo liberdade das cargas transitarem livremente de um ponto a outro do material, e a principal consequência disso, como já vimos, é que o campo elétrico é sempre nulo na região ocupada por um condutor ou, o que signica o mesmo, condutores são equipotenciais. Em geral, materiais que não se caracterizam como condutores são chamados de isolantes, mas usaremos o termo dielétrico, mais tradicional no estudo da eletrostática. Estes materiais são caracte-rizados pelo fato das cargas elétricas estarem fortemente presas em seus lugares. Tipicamente, os elétrons estão fortemente ligados aos respectivos núcleos; os átomos se ligam entre si formando moléculas, que (no caso de materiais sólidos e, mais fracamente, em líquidos e gases) por sua vez também estão ligados uns aos outros por exemplo numa estrutura cristalina como um grão de areia, ou através de forças como a de Van der Waals, no caso de líquidos e gases.
Vamos começar a estudar, nesta aula, o efeito de campos elétricos externos sobre dielétricos, e a inuência destes sobre o campo aplicado. Ao fazê-lo, seremos capazes de escrever as equações da eletrostática em sua maior generalidade.
O Efeito de Campos Elétricos sobre Átomos
e Moléculas
Começamos considerando o efeito de
um campo elétrico externo E0 a um
átomo neutro. Embora o átomo seja neutro, ele é composto por um núcleo po-sitivamente carregado, mais os elétrons que ocupam o espaço ao redor do núcleo, carregados negativamente. Elétrons e núcleo sentem a inuência do campo elétrico externo, as cargas positivas sentindo uma força na direção de E0, cargas negativas na direção oposta.
Um modelo muito rudimentar do que acontece é o seguinte: repre-sente o átomo como uma esfera de raio a, negativamente carregada com carga −q, com densidade de carga uniforme (representando os elétrons), contendo em seu centro uma partícula pontual de carga +q (representando o núcleo). Veja gura, à esquerda. Lembre-se que o campo elétrico de uma esfera com carga −q, uniformemente distribuída, é dado por
E (r) = −q
4πε0a3r .
No centro da esfera, E (0) = 0, de forma que nenhuma força é exercida sobre o núcleo, e o sistema está em equilíbrio.
Imagine agora que é aplicado um campo externo E0, como na
gura, à direita. A esfera de carga é atraída para a esquerda e o
núcleo para a direita. Como o núcleo não está mais no centro da esfera, estando na verdade a uma distância d deste centro, ele sente uma força elétrica, apontando para a esquerda, de módulo
q |E (d)| = q2d
4πε0a3 .
A situação de equilíbrio, portanto, na presença do campo externo E0, é quando esta força equilibra, perfeitamente, a força qE0 devida ao campo externo, ou seja,
q2d
4πε0a3 = qE0 ⇒ qd = 4πε0a
3E 0.
Na nova situação de equilíbrio, a esfera negativamente carregada e o núcleo positivamente carregado estão defasados por uma distância d, portanto, formando um minúsculo dipolo de magnitude p = qd. O que acabamos de descobrir acima é que p é proporcional ao campo elétrico aplicado, e p está na mesma direção de E0, ou seja
p = αE0,
onde α é chamada de constante de polarizabilidade do átomo. No nosso modelo simplicado, ela vale
Alguns números
Podemos testar este modelo para o átomo de Hidrogênio, para comparar com os dados experimentais.
O raio do átomo de Hidrogênio, obtido através de vários tipos de experimentos, é aproximadamente a = 120 × 10−12m. Logo, α 4πε0 calculado = 120 × 10 −12m3 ≈ 1.7 × 10−30m3
O polarizabilidade obtida experimentalmente para o átomo de Hidrogênio, é aproximadamente,
α 4πε0 experimental ≈ 0.7 × 10 −30m3
Os dois valores são da mesma ordem de magnitude, o que é um resultado bom para um modelo tão simplicado.
O comportamento que acabamos de descrever é bastante geral: átomos tendem a adquirir um momento de dipolo elétrico quando submetidos a um campo elétrico externo. Com boa aproximação, vale a relação linear
p = αE0,
onde α depende da estrutura eletrônica do átomo, e pode ser
ob-tido experimentalmente, ou por métodos teóricos mais aprimorados. Abaixo, alguns valores obtidos experimentalmente para α.
A aproximação linear é boa para campos elétricos fracos. Se E0
for muito forte, pode haver a ionização do átomo, ou seja, as forças elétricas são tão intensas que provocam a expulsão de um ou mais elétrons do átomo neutro. Por outro lado, ao se desaparecer o campo
externo E0, o momento de dipolo p desaparece. Diz-se que p, neste
caso, é induzido pelo campo E0.
No caso de moléculas, algo similar acontece, mas agora os valores de po-larizabilidade podem ser diferentes de-pendendo da direção do campo externo
E0. No átomo de CO2, por exemplo,
α é maior quando E0 está na direção do eixo de simetria dos
áto-mos. Dado um campo externo E0, separado nas partes paralela e
perpendicular ao eixo de simetria da molécula, ou seja, E0 = Ek0 + E⊥0 ,
escrito como
p = αkEk0 + α⊥E⊥0 , onde αk e α⊥ podem ser bastante diferentes.
Caso a molécula seja pouco simétrica, em geral a relação entre p e E0 é bem mais complexa, sendo uma relação linear geral, ou seja,
px = αxx(E0)x+ αxy(E0)y + αxz(E0)z py = αyx(E0)x+ αyy(E0)y + αyz(E0)z px = αzx(E0)x+ αzy(E0)y + αzz(E0)z
Os nove números αxx, αxy, . . . podem ser organizados numa
ma-triz 3x3 e, de fato, são componentes do tensor polarizabilidade da
molécula. Nossa equação inicial, p = αE0 torna-se, assim, um caso
particular, quando a matriz do tensor polarizabilidade é da forma α 1 0 00 1 0 0 0 1 ,
o que acontece se a molécula é altamente simé-trica.
Por outro lado, existem moléculas que pos-suem momento de dipolo elétrico sem a ne-cessidade da existência de um campo elétrico externo. Um exemplo importantíssimo é a mo-lécula de água. Nesta momo-lécula, cuja geometria
é representada na gura ao lado, os elétrons tendem a car mais próximos do núcleo de Oxigênio, o que gera um acúmulo de carga negativa no vértice, e portanto um excesso de carga positiva nas extremidades (mantendo-se a molécula neutra). Em tal situação, a molécula possui um momento de dipolo elétrico diferente de zero, daí a molécula de água é dita ser polar (o nome cará claro quando introduzirmos o conceito de polarização). Na verdade, o momento de dipolo da molécula de água é bastante alto, comparado com a maioria das outras moléculas, o que é razão de muitas propriedades químicas importantes da água, como sua eciência como solvente.
Um modelo muito simples para a mo-lécula de água é o da gura ao lado, onde substituimos os átomos por cargas pon-tuais. Como a carga total do sistema é zero, o momento de dipolo independe da escolha da origem, portanto escolhemos a origem sobre a carga +q. Neste caso, o momento de dipolo torna-se:
p = q2 −d sinθ2 ˆy + d cosθ 2ˆz +q 2 d sinθ 2 ˆy + d cos θ 2ˆz + (−q) × 0 =qd cosθ2ˆz ,
conrmando a existência do momento de dipolo, na bissetriz do ângulo
θ.
O Efeito de Campos Elétricos sobre dipolos
Já vimos que campos elétricos tendem a induzir momentos de dipolo em átomos e moléculas, enquanto que algumas moléculas, pela sua própria estrutura e distribuição de cargas, já apresentam naturalmente um momento de dipolo elétrico.
Estamos interessados em estudar os efeitos de um campo elétrico sobre um dipolo elétrico seja este induzido ou natural. Considere um dipolo como o da gura, sujeito a um campo elétrico E0.
A carga +q sente a força F+ = qE0,
enquanto que a carga q−sente uma força F− = −qE0.
Se E0 for constante, claramente F+ + F− = 0, o que signica
que o dipolo como um todo não sente força resultante, e portanto não é acelerado pelo campo elétrico. No entanto, existe um torque resultante, calculado por exemplo na origem O indicada, onde d é o vetor que vai de −q a +q:
T = r+× F++ r−× F−
= (d/2) × (qE0) + (−d/2) × (−qE0)
ou seja, em termos do momento de dipolo p = qd,
T = p × E0.
O torque aplicado pelo campo externo faz o dipolo girar no sentido horário (note que T está entrando no plano da gura), até que p
esteja alinhado na direção de E0. Chegamos ao primeiro resultado
fundamental,
Um campo elétrico tende a alinhar na sua direção dipolos elétricos.
Por m, note agora que se E0 não é constante, F+ 6= −F−, e
portanto haverá uma força resultante sobre o dipolo, que será portanto acelerado pelo campo elétrico. A força resultante será dada por
F = F+ + F− = q E+0 − E−0
.
A diferença entre E0 atuando na carga +q e −q pode ser calculada
da seguinte forma. Seja d = (dx, dy, dz) e r = (x, y, z) a posição da carga −q (o que signica que a posição da carga +q é r + d = (x + dx, y + dy, z + dz). Então,
E0x(x + dx, y + dy, z + dz) − E0x(x, y, z) ≈ ≈dx∂ E∂x0x + dy∂ E∂y0x + dz∂ E∂z0x
= (d · ∇) E0x ;
expressões similares valem para E0y e E0z. Logo,
F = q E+0 − E−0 = q (d · ∇) E = (p · ∇) E .
Observe que as distâncias dx, dy, dz envolvidas são muito pequenas,
então E0 precisa variar muito rapidamente para haver uma força
apreciável. Ressalva feita, concluímos que:
Um campo elétrico não constante tende a acelerar dipo-los elétricos.
Polarização
Já temos os elementos sucientes para entender, ao menos qualita-tivamente, o que acontece quando um material dielétrico é submetido
a um campo elétrico externo E0. Para xar idéias, vamos supor E0
constante.
Se inicialmente os átomos e/ou moléculas que constituem o
mate-rial não possuem momento de dipolo, o campo E0 induz um p 6= 0.
Se as moléculas já possuíam p 6= 0, então os momentos de dipolo
são em geral modicados pela presença de E0. De uma forma ou de
outra, os constituintes do material apresentam momentos de dipolo, e sejam estes naturais ou induzidos, eles tendem a se alinhar na direção
de E0. Note que o alinhamento não será, em geral, perfeito: os
constituintes do material estão em perpétua agitação térmica, além disso existem forças entre estes constituintes que impedem que eles girem livremente.
Para entender o que acontece, imagine um cubo de volume ∆V , centrado no ponto r, contido no dielétrico, muito pequeno do ponto de vista macroscópico, mas ainda assim grande o suciente para conter muitos dipolos elementares p. Na ausência de um campo elétrico externo, os dipolos tendem a estar orientados aleatoriamente. Se calculamos um momento de dipolo médio,
P = 1 ∆V X p em ∆V p encontramos P = 0.
Na presença de E0, todos os dipolos tenderão a se alinhar ao menos
ligeiramente na direção de E0; ao se calcular a média, portanto,
encontraremos um resultado diferente de zero. A este resultado chamamos de polarização P do material dielétrico. Em palavras, em um dado ponto r do dielétrico, teremos
P (r) = momento de dipolo médio em torno de r
= soma dos p contidos em ∆V∆V
Uma polarização diferente de zero sinaliza, portanto, um parcial alinhamento dos momentos de dipolo elétrico dos constituintes do material.
O Campo de um Objeto Polarizado
Suponha agora um certo material dielétrico neutro, mas polarizado, ou seja, com P 6= 0. Esta polarização pode ter sido induzida por um campo externo, mas não é neste aspecto que queremos nos focalizar. O que queremos saber é se o material polarizado produz um campo elétrico apreciável, e se este pode ser calculado. Anal, a cada dipolo elementar p, temos um potencial elétrico
ϕdipolo (r) = 4πεp · ˆr0r2 .
Se os dipolos estão alinhados de forma totalmente aleatória, imagina-mos que o potencial gerado por eles vai tender a se cancelar; isto já não acontece se existe um alinhamento parcial, ou seja, se P 6= 0. É esperado, portanto, que um corpo polarizado possa produzir um potencial e um campo elé-trico não triviais. É o que vamos calcular agora.
Da denição de P, segue que um elemento innitesimal de vo-lume d3V0, localizado pelo vetor
r0 relativo a uma dada origem,
possui um momento de dipolo médio p (r0) = P (r0) d3V0. Por outro
lado, o potencial devido a um dipolo p localizado na origem é 1
4πε0 r r3 · p ,
e se p não está na origem, e sim no ponto r0, temos 1
4πε0
r − r0
|r − r0|3 · p .
Dado um dielétrico com polarização P (r0), o potencial produzido por um volume innitesimal do dielétrico, num ponto r fora do dielétrico é, portanto, dϕ (r) = 4πε1 0 (r − r0) |r − r0|3 · P (r 0) d3V 0
e o potencial gerado por toda a distribuição é obtido pela integral
ϕ (r) = 1 4πε0 ˆ V (r − r0) |r − r0|3 · P (r 0) d3V0,
onde V é o volume ocupado pelo dielétrico. Note que (|r−rr−r00|)3 =
∇0 1
|r−r0|
(∇0 signica o gradiente tomado em relação às variáveis x0, y0, z0), logo ϕ (r) = 1 4πε0 ˆ V ∇ 0 1 |r − r0| · P (r0) d3V 0.
Usando a relação ∇ · (fA) = ∇f · A + f∇ · A ⇒ ∇0 1 |r − r0| · P (r0) = ∇0 · P (r0) |r − r0| − 1 |r − r0|∇0· P (r0) , temos que ϕ (r) = 1 4πε0 ˆ V ∇ 0· P (r0) |r − r0| d3V 0 − 1 4πε0 ˆ V 1 |r − r0|∇0· P (r0) d3V0.
No primeiro termo, podemos usar o teorema da divergência de Gauss para escrever ϕ (r) = 1 4πε0 ˛ S P (r0) |r − r0| · n da0 − 1 4πε0 ˆ V 1 |r − r0|∇0· P (r0) d3V0.
Esta fórmula foi obtida por manipulações matemáticas, mas ela possui uma interessante interpretação física, que discutiremos na próxima aula. Se introduzimos uma densidade volumétrica de carga
ρP (r0) ≡ −∇0· P (r0)
e uma densidade supercial
σP (r0) ≡ P (r0) · n , o que nos permite escrever
ϕ (r) = 1 4πε0 ˛ S σP (r0) |r − r0|da0 + 1 4πε0 ˆ V ρP (r0) |r − r0|d3V0.
Esta é justamente a expressão para o potencial devido a uma densidade volumétrica de carga ρP, presente no volume ocupado pelo dielétrico,
e uma densidade supercial σP na superfície externa do dielétrico.
Contudo, partimos de um dielétrico neutro, contendo uma
polariza-ção. As densidades ρP e σP foram obtidas através de manipulações
matemáticas, então ca em aberto a sua interpretação física. Este será um dos tópicos da próxima aula.
Problema: a esfera com polarização
constante
Considere uma esfera de material dielétrico, com polarização P constante. Escolhemos um referencial em que P = P ˆz. Queremos encontrar o potencial e o campo gerado por tal polarização. Como ∇ · P = 0, temos ϕ (r) = 1 4πε0 ˛ S σP (r0) |r − r0|da0 onde σP (r0) = P · ˆr0 = P cos θ .
O cálculo explícito da integral acima é uma forma de resolver o problema, mas podemos também utilizar o método de separação de variáveis. Já mostramos, numa aula passada, que a solução geral para a equação de Laplace ∇2ϕ = 0, em coordenadas esféricas, é da forma
ϕ (r, θ) = ∞ X `=0 A`r` +rB`+1` P`(cos θ) .
Para garantir que ϕ não seja singular na origem e quando r → ∞,
temos que tomar B` = 0 dentro da esfera e A` = 0 fora da esfera,
ou seja,
ϕd (r, θ) = P∞`=0A`r`P`(cos θ) ϕf (r, θ) = P∞`=0rB`+1` P`(cos θ)
O potencial tem que ser contínuo em r = R, logo ϕd (R,θ) = ϕf (R,θ) ⇒ ∞ X `=0 A`R`P`(cos θ) = ∞ X `=0 B` R`+1P`(cos θ) Como os polinômios de Legendre formam um conjunto linearmente independente, a igualdade acima exige que os coecientes de cada P`(cos θ) sejam iguais entre si, ou seja,
A`R` = B` R`+1 ⇒ B` = R2`+1A`. Logo: ( ϕd (r, θ) = P∞`=0A`r`P`(cos θ) ϕf (r, θ) = P∞`=0A`R 2`+1 r`+1 P`(cos θ)
A outra condição, que permite determinar A`, é que a componente
normal do campo elétrico tenha uma descontinuidade, em r = R, igual a σP/ε0. Mas E · ˆr = Er = −∂ϕ∂r, logo devemos ter
∂ϕf (R,θ) ∂r − ∂ϕd (R,θ)∂r = −σP ε0 = − P ε0 cos θ ⇒ ∂ϕf(R,θ) ∂r = − P∞ `=0(` + 1) A`R`−1P`(cos θ) ∂ϕd(R,θ) ∂r = P∞ `=0`A`R`−1P`(cos θ)
Lembrando agora que cos θ = P1(cos θ), temos ∞ X `=0 (2` + 1) A`R`−1P`(cos θ) = εP 0P1(cos θ) . Devido à ortogonalidade, esta reclação implica
A` = 0 se ` 6= 0 A1 = 3ε1 0P B1 = 3ε1 0P R 3 e portanto, ( ϕd (r, θ) = 3εP0r cos θ ϕf (r, θ) = 3εP0 R3 r2 cos θ
Dentro da esfera, percebendo que r cos θ = z, temos ϕd = 3εP0z ⇒ Ed = −∇ϕd = −3εP0ˆz , ou seja,
Ed = −3ε10P .
Já fora da esfera, notando que P cos θ = ˆr · P, escrevemos ϕf (r, θ) = 4πε1 0 4 3πR3 ˆr · P r2 = 1 4πε0 ˆr · PT r2 .
Ou seja, o potencial gerado fora da esfera é exatamente o mesmo gerado por um dipolo na origem, com momento de dipolo igual ao momento total PT = 4 3πR3 P .
Abaixo, gráco com o campo elétrico resultante desta congura-ção.