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"Conhecer a Javé" a partir da Prática do Direito e da Justiça

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“CONHECER A JAVÉ” A PARTIR DA PRÁTICA DO DIREITO

E DA JUSTIÇA*

Luiz Alexandre Solano Rossi**

Resumo: as palavras do profeta Jeremias são marcadas pela materiali-dade, ou seja, são palavras inseridas na própria realidade que se vive. Consequentemente sua percepção do que significa conhecer a Javé está associada necessariamente à prática do direito e da justiça. A conclusão é clara: não é possível conhecer a Javé sem o encontro com os mais vulneráveis da sociedade.

Palavras-chave: Direito. Justiça. Vulnerabilidade. Conhecer Deus.

Co-tidiano.

A

prática do direito e da justiça (mishpat utsedaqah) pode ser con-siderada a exigência básica por excelência que percorre o livro de Jeremias do começo ao fim; a denúncia social em seu discurso é fundamental e inquietante: setores da sociedade, principalmente a liderança – seja civil ou religiosa – vivem como se não houvesse leis e limites! Para Jeremias conhecer a Javé não significa visitá-lo informalmente no Templo, mas sim encontrá-lo na prática do direito e da justiça nas ruas da cidade.

Além disso, o profeta não abre mão de dar um tratamento mais profundo a respeito do compromisso da monarquia e da religião com o di-reito e a justiça. A importância da exortação de Jeremias insistindo na defesa das pessoas mais fracas e acrescentando a proibição de derramar sangue inocente é essencial para entendermos uma das maiores novidades de seu discurso, ou seja, a promessa de conti-nuidade da dinastia condicionada à prática do direito e da justiça.

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Ele se recusa a apresentar e defender uma promessa incondicional desvinculada da vida.

É muito comum a pressuposição e o ensino de que os fiéis precisam buscar o conhecimento de Deus. A primeira vista não há qualquer tipo de problema com essa orientação. Todavia, problemas começam a surgir a partir do momento em que se passa a estabelecer que o conceito de “conhecer” é identificar-se com o conhecido e, consequentemente, viver em relação de comunhão individual com ele. Uma situação que individualiza as relações entre fiel e divindade sem a necessidade de recorrer às relações interindividuais e de solidariedade.

Três textos são de particular importância para analisar o significado de “conhecer a Deus” em Jeremias: 7,1-11; 21,11-22,5 e 22,13-17. Neles encontramos os discursos de Jeremias direcionados a dois ambientes e sujeitos de ação diferentes. No entanto, entre eles existe uma forte carga semântica que os aproximam. A pergunta que dire-ciona e problematiza a investigação dos textos é: qual o significado de “conhecer a Javé” para o profeta Jeremias? Uma pergunta que se faz necessária e urgente porque a resposta a ela – a partir dos textos jeremianos – pode nos ajudar a corrigir o distanciamento que hoje temos da teologia profética.

No capítulo 7 há uma série de orientações/ações que são ditas àqueles que frequentam o templo. Deve-se ressaltar que todas elas se relacionam com o cuidado para com os pobres. O capítulo 21,11-22,5 nos coloca em outro cenário, o palácio, mas a exigência da proteção do pobre se faz presente com proximidade semântica incrível. É somente em 22,16, ainda em ambiente palaciano, que encontraremos a expressão “conhecer a Javé”. Mas devemos estar atentos que a expressão somente aparece após a descrição de ações e comportamentos necessários que tem como foco a proteção dos mais vulneráveis da sociedade.

O PROfETA E sUA ÉPOcA

A linha do tempo que acompanha a vida do profeta Jeremias é muito ex-tensa. Poderíamos esquematizá-la segundo os reis e seus reinados, da seguinte maneira: Josias; Joacaz, Joaquim, Joaquin e sedecias. Do ponto de vista da fé israelita, Josias foi um rei que mereceu aprovação.

Aproveitando-se da decadência da Assíria, fez uma ampla reforma religiosa. Todavia, por causa de uma infeliz visão política, acabou

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falecendo numa batalha no ano de 609 a.c., ao tentar impedir a passagem das tropas egípcias, que agora defendiam a Assíria ago-nizante contra as poderosas forças aliadas de medos e babilônios. Por quatro anos o Egito ainda volta a dominar o cenário político da região.

Joacaz assume em lugar de Josias. No entanto sua permanência no trono real é extremamente curta. Permanece apenas três meses na posi-ção de rei; é preso e substituído por outro filho de Josias, chamado Joaquim (609-598). Nessa época a Babilônia havia se tornado a potência máxima em toda a região após derrotar o Egito em car-quemish (605) assumindo, consequentemente, a dominação sobre Judá. O rei Joaquim ainda tenta uma resistência política, mas morre sem ver as consequências da implementação de sua terrível política. seu filho Jeconias (598) assume o reinado, mas depois de apenas três meses,

tem de render-se e é exilado, juntamente com altos oficiais e outros importantes, na Babilônia (597 a.c., ano da primeira deportação). O império da Babilônia até permitiu que Judá continuasse existindo como nação sob o governo de sedecias, que havia sido instalado por Nabucodonosor, para reinar em Jerusalém. Num primeiro momen-to o rei sedecias se submete aos babilônios, mas posteriormente, pressionado por seus oficiais, tenta armar uma nova rebelião. Tais gestos vão precipitar o desastre final: após 18 meses de sítio, apenas 22 anos depois da morte de Josias, Jerusalém é conquistada, seus muros são destruídos e o Templo arrasado. Em 587 a.c., acontece a segunda deportação.

Jeremias nasceu em Anatot, um pequeno povoado próximo da cidade de Jerusalém, ao redor do ano 645 a.c. seu pai se chamava Helcias, mas quanto ao nome da mãe não sabemos nada. Jeremias era de família sacerdotal. Há uma possibilidade de que um dos ances-trais de Jeremias fosse o sumo sacerdote Abiatar que havia sido sacerdote no tempo do rei Davi, quase 400 anos antes. Na vida desse sacerdote nos deparamos com um fato marcante: ele e mais alguns líderes eram integrantes de um partido político contrário a candidatura de salomão ao governo real. Logo após a vitória de salomão aconteceu uma feroz vingança contra aqueles que lhes eram contrários, eliminando a todos. Entretanto, o novo rei não teve coragem de matar o sacerdote, mas cassou os direitos dele e o exilou em Anatot. E é perceptível que um dos maiores problemas de Jeremias encontrava-se justamente nos integrantes do clero do

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templo. Este clero era dirigido por membros da casa de sadoc. E, como vimos acima, Jeremias provavelmente estava ligado ao rival de sadoc, Abiatar!

Jeremias tinha ao redor de dezoito anos quando, em 627 a.c, recebeu sua vocação. Jeremias não era um homem da capital, era um jovem agri-cultor. Em suas imagens é possível observar a influência do ambiente rural: observa os costumes dos animais (8,7); inquieta-se com as con-sequências de uma seca (14,4); interessa-se pela vinha (8,13). Pode-se dizer que Jeremias pertencia a esfera de influência dos sacerdotes resistentes de Anatot e, como benjaminita, estava muito próximo às tradições das tribos do Norte. É conhecedor de suas tradições e entre elas deve-se destacar a do êxodo libertador. Anatot era uma cidade levita do território de Benjamim. A tradição dos levitas era zelar pela causa de Javé e manter viva no meio do povo a fé em Javé. Possivel-mente Jeremias estava mais ligado às tradições proféticas do Reino do Norte e, por isso, criticava as injustiças da monarquia contra o mundo dos camponeses, que era o seu próprio mundo.

O profeta Jeremias foi uma testemunha viva de muitos dos mais trágicos e angustiantes eventos da história do povo de Deus. Uma testemu-nha ocular que fez da observação dos mais variados eventos uma verdadeira matéria prima para seus discursos. seu livro é um for-midável comentário sobre os mais desastrosos episódios da história de Judá que o Antigo Testamento testemunha, episódios esses que trouxeram inúmeras consequências políticas e religiosas para toda a nação. Pode-se dizer que os momentos mais sombrios da história do povo de Deus se passaram durante a vida do profeta Jeremias. sua atuação situa-se ao redor de acontecimentos da história nacional e internacional. Ele reagiu em função de suas próprias convicções e da evolução da situação.

7,1-11

21,11-22,5

22,13-17 Palavra de Javé, que

foi dirigida a Jeremias: “coloque-se na porta do Templo e diga o seguinte: Escutem a palavra de Javé,

vo-Você dirá ao palácio do rei de Judá: escu-te a palavra de Javé. casa de Davi, assim diz Javé: Vocês, de manhã, administrem a justiça

Ai daquele que constrói a sua casa sem justiça e seus aposentos sem di-reito, que faz o próximo trabalhar por nada, sem dar-lhe o pagamento, e

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cês todos de Judá que entram por esta por-ta, a fim de adorar a Javé. Assim diz Javé dos exércitos, o Deus de Israel: Endireitem seus caminhos e sua maneira de agir, e eu morarei com vocês neste lugar. Não se iludam com palavras mentirosas, dizendo: ‘Este é o Templo de Javé, Templo de Javé, Templo de Javé!’ se vocês endireitarem seus caminhos e sua maneira de agir; se começarem a praticar o direito cada um com o seu próximo; se não oprimirem o estrangei-ro, o órfão e a viúva; se não derramarem sangue inocente neste lugar e não correrem atrás dos deuses es-trangeiros que lhes trazem a desgraça: então eu continuarei morando com vocês neste lugar, nesta terra que eu dei aos seus antepassados há muito tempo e para sempre. Vocês se iludem com palavras mentirosas que não trazem pro-veito nenhum. Não é

e libertem o oprimido da mão do opressor. se não, a minha ira devo-rará como fogo; ela se acenderá, e ninguém poderá apagá-la, por causa de todo o mal que vocês praticam. Eu estou chegando, Mora-dora do vale, Rochedo da planície – oráculo de Javé. Vocês dizem: “Quem poderá vir para nos atacar? Quem entra-rá em nossas casas?” Eu castigarei vocês confor-me o fruto de suas ações – oráculo de Javé. Porei fogo na floresta de vo-cês e ele devorará tudo em volta. Assim diz Javé: Desça ao palácio do rei de Judá. chegan-do aí, diga o seguinte: Rei de Judá, você que está sentado no trono de Davi, escute a pala-vra de Javé. Que seus funcionários também escutem, como todo o povo que costuma entrar por estas portas. Assim diz Javé: Pratiquem o direito e a justiça. Li-bertem o oprimido da mão do opressor; não tratem com violência, nem oprimam o imi-grante, o órfão e a

vi-que diz: “Vou construir uma casa grande, com imensos aposentos”. E faz janelas, recobre a casa com cedro e a pinta de vermelho. Você pensa que é rei porque tem mais cedro que os outros? O seu pai não comeu e não bebeu? Pois ele fez o que é justo e o que é direito, e no seu tempo tudo correu bem para ele. Ele julga-va com justiça a causa do pobre e do indigente; e tudo corria bem para ele! Isto não é conhecer--me? – oráculo de Javé. Mas você não vê outra coisa e não pensa a não ser no lucro, em derra-mar sangue inocente e em praticar a opressão e a violência.

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ANáLIsE DOs TExTOs

O discurso de Jeremias em 7,1-11 é marcado pela contundência. Um pronunciamento ousado tanto pelo conteúdo – a corrupção da religião – quanto pelo local em que foi proferido – o templo – e que trará para a sua vida a companhia frequente da hostilidade. Por causa desse discurso Jeremias comprou a inimizade de am-plos círculos da população e em especial dos sacerdotes. suas palavras não foram recebidas como boas-novas, mas sim como verdadeiras blasfêmias. Nesse discurso Jeremias ao se desfazer de um paradigma tido por perene constrói um novo paradigma em que se percebe não mais uma promessa incondicional de perpe-tuidade do reinado – na expressão que recorda a eterna promessa de Davi a seus filhos plasmada no oráculo fornecido pelo profeta Natã: “A tua casa e a tua realeza durarão para sempre diante de mim” (2sm 7,16) - mas, sim, uma promessa condicional, ou assim? Roubar,

ma-tar, cometer adultério, jurar falso, queimar incenso a Baal, seguir deuses estrangeiros que vocês nunca co-nheceram... E depois vocês se apresentam diante de mim, neste Templo, onde o meu nome é invocado, e dizem: ‘Estamos sal-vos!’, para depois con-tinuarem praticando es-sas abominações. Este Templo, onde o meu nome é invocado, será por acaso esconderijo de ladrões? Estejam atentos, porque eu es-tou vendo tudo isso – oráculo de Javé”.

úva; e não derramem sangue inocente neste lugar. se vocês obe-decerem de verdade a esta ordem, os reis que se sentam no trono de Davi, e também os seus funcionários e todo o seu pessoal, conti-nuarão entrando pelas portas deste palácio, montados em carros e cavalos. Mas se vocês desobedecerem a estas palavras, eu juro por mim mesmo - oráculo de Javé – que este pa-lácio se transformará em ruína.

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seja, o comportamento ético é que de fato determina a presença ou não de Javé no Templo.

Em outras palavras, se o comportamento ético não melhorar a consequência inevitável será a ausência de Javé do próprio templo. A acusação de fundo é justamente aquela que aponta para a discrepância en-tre o comportamento na vida diária e a confiança no Templo. De acordo com Pixley (2004: 26) a verdadeira religião foi convertida em mentira por conta das injustiças cometidas pela comunidade de adoração contra os pobres em seu meio.

Javé orienta Jeremias para o local em que ele deve se posicionar: “à porta do Templo”. Deve-se pensar aqui na passagem para o pátio interno. Nesse local, no enorme pátio externo, à entrada do espaço mais restrito do pátio interno, por onde passam os que vão adorar Javé, Jeremias pode contar com boa audiência e com espaço suficiente. Devemos perceber que a palavra se dirige pura e simplesmente aos que entram no Templo para adorar a Javé, ou seja, aos piedosos. Jeremias questiona a maneira como eles estão se relacionando com Deus ao afirmar que a relação com Deus não acontece através de uma confiança mágica no Templo, ao contrário, o relacionamento com Javé se estabelece através da rea-lização de sua vontade a partir do cotidiano.

Praticar o direito” cada um com o seu próximo se refere à prática do direito no âmbito da jurisprudência local, na porta, onde as pessoas aparecem com suas questões diante dos anciãos. O direito divino coloca os israelitas em pé de igualdade no tribunal. Não há privi-légio para quem quer que seja. Esse direito até mesmo protege de modo todo especial o pobre e o indefeso no tribunal (Ex 23,6-9). No tribunal deve acontecer o direito, como igualdade para todos, e isso parece que não está acontecendo. É a partir das relações inte-rindividuais justas que nos aproximamos ou nos afastamos de Deus! Outra condição ético-social para a manutenção da promessa é a de “não

oprimir o estrangeiro, o órfão e a viúva”. Essa condição é uma exi-gência fundamental do pacto da Aliança (Ex 22,21-24). A infração dessa condição significa quebra da Aliança e, portanto, rompimento da relação com Javé.

A terceira exigência não se refere ao Templo, mas ao país (v. 7). Matar uma pessoa inocente é considerado infração da Aliança. Nesse momento é possível acrescentar que “abandonar a Javé” não é ape-nas sacrificar a outros deuses. Abandonar a Javé também possui o significado de deixar de cumprir a sua vontade expressa na Aliança

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e isso significa, por sua vez, que é também infringir a integridade social que esta vontade estabelece. Abandonar a Javé é também abandonar o ser humano! Percebe-se, então, que se os israelitas perderem sua promessa da terra, isso acontecerá acima de tudo porque feriram a integridade social de seu país ao transformarem o ser humano em objeto.

só a quarta condição é que falará da exclusividade de adoração a Javé. Na Aliança encontramos de forma muito cristalina a seguinte afirmação: “Eu serei o vosso deus e vós sereis o meu povo” (Dt 16,16). seguindo outros deuses os israelitas, automaticamente, se colocam para fora da Aliança. A questão de fundo pode ser definida da seguinte forma: a exclusividade da adoração não se relaciona com um capricho pessoal de Javé. A relação precisa ser vista a partir do projeto de libertação, ou seja, os deuses opressores são nomeados e invocados com uma linguagem penetrante e poderosa, que introjeta profundamente na consciência a própria opressão que expressam. Pixley afirma (2004, p. 70) “O Deus de Israel demanda justiça como um elemento de adoração enquanto os outros deuses possuem demandas diferentes”, ou seja, se os deuses do faraó legi-timam seu governo assim como os deuses de canaã legilegi-timam seus reis, a demanda deles não possui relação alguma com a defesa dos pobres. Assim, adorar com exclusividade a Javé também significa respeitar profundamente os homens e as mulheres.

Diante dessa situação Jeremias adverte o povo para que não confie em pala-vras enganosas. O povo está colocando sua confiança em palapala-vras que são mentira. Eles mesmos se enganam. Um engano que acende a luz vermelha do alerta. Mas em que reside o auto-engano desse povo? Eles diziam que pelo simples motivo de terem o Templo estariam protegidos de toda e qualquer catástrofe. Afinal, o Templo era sagrado; além de sagrado era intocável. Assim, se o Templo de Javé pertencia a eles, nada – absolutamente nada – poderia acontecer se eles se apegassem ao Templo. Javé, nessa hipótese, estaria obrigado a salvar o povo dos inimigos. O próprio Deus estaria de mãos amarradas; preso numa construção de pedra. Para o israelita, Deus não teria mais liberdade para executar sua vontade soberana. Através da concepção mágica do Templo e da negação do comportamento ético no cotidiano eles negavam o exercício da vontade divina.

Mas Jeremias diz que essa confiança não serve para nada. É um grande engano que acaba por desestabilizar o presente deles e a

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compro-meter o próprio futuro. A proposta de Jeremias não admite outra hipótese: o relacionamento com Javé não é construído a partir de um processo mágico, mas unicamente através da obediência à sua vontade, que é livre e não se prende a coisa alguma. Além disso, o profeta acrescenta que a busca que eles fazem do Templo não com-bina com as injustiças praticadas no dia-a-dia, isto é, ele condena enfaticamente os sacrifícios realizados no templo acompanhado pelas injustiças praticadas exteriormente (Is 1,10-17). O culto não combina com a vida diária deles e, por isso, não é autêntico. Para Jeremias o comportamento diário é o critério para a autenticidade do culto. certamente que para o profeta é aquilo que acontece nas ruas que profanam ou não o templo. E, consequentemente, Jeremias relativiza a forma de culto que não tem seu início na “sacralização” da vida ao dizer que Javé não ouve as orações e hinos daqueles que não são obedientes à sua palavra. No entanto, o povo não vê a necessidade de seguir a vontade de Javé na vida diária. A apre-sentação da culpa é de uma lógica impiedosa, convincente e sem lacunas. O coração das acusações é a falsidade (sheqer) na vida da nação de Judá. O profeta demonstra essa situação em três tempos:

a) primeiramente cometem-se as maldades (v. 9)

b) depois eles vão ao Templo (v. 10a): uma situação muito normal,

pois é legítimo um pecador confessar e se arrepender de seus pecados no Templo

c) e, finalmente, eles saem do templo e retornam ao seu cotidiano praticando as mesmas maldades contra os mais vulneráveis (v. 10b).

Dessa forma, eles estão mostrando, com seu procedimento, que no conceito deles o Templo não vale muita coisa. O Templo e os rituais nele realizados funcionam somente como um possível calmante para Javé. O verso 11b: “Estejam atentos porque eu estou vendo tudo isso!” demonstra que a situação não é pacífica. Javé se apresenta como testemunha ocular de como o lugar de encontro dele com o povo foi transformado em covil de ladrões. Pixley sugere que exista uma conexão na experiência do êxodo entre lealdade a Javé e a redenção dos escravos. Assim sendo, seria possível afirmar que também exista “uma equivalência entre adoração exclusiva de Javé e o cuidado pelo pelos pobres” (PIxLEy, 2004, p. 70).

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Ao nos aproximarmos de Jeremias 21-2 logo percebemos que a tarefa primordial do rei deveria ser a administração do direito e da justiça principalmente em relação àqueles que são mais vulneráveis no tecido social. Assim sendo, a ação preferencial da realeza deveria acontecer na defesa dos oprimidos e não em fomentar a injustiça. No Antigo Testamento, o contrário dos pobres não são simplesmente os ricos, mas sim os orgulhosos e poderosos. Estes exploram, enganam, oprimem, esmagam e matam os pobres. A pobreza bíblica, nesse caso, não deve – de forma alguma – ser considerada uma situação resultante de uma lei natural ou como se fosse vontade de Javé. Não é lei natural e muito menos doutrina teológica. Mas sim o resultado da violência e da injustiça. Na literatura bíblica, principalmente nos profetas, a pobreza é sentida como um escândalo intolerável. Nesse sentido o texto bíblico procura ser metódico na defesa dos

enfra-quecidos: a defesa precisa acontecer de manhã! Por quê? Exata-mente porque é pela manhã que os pobres comparecem ao tribunal público levando as suas causas (2 samuel 15,2-4). A administração da justiça foi um tema frequente nos profetas anteriores. Dela de-pendia em grande parte a existência da sociedade. Mas, até então, só encontramos exortações dirigidas a alguns grupos específicos, entre eles, os juízes, as autoridades, os chefes de Israel e de Judá e os sacerdotes. Todos esses eram responsáveis pela administração da justiça. Porém, o rei, como o responsável último, não era men-cionado. No entanto, Jeremias muda essa situação e mostra que é de fato o rei que deve servir de intermediário entre o povo e Deus, administrando o direito e a justiça.

Mas ao invés de solidariedade em relação aos pobres observa-se a mais pura e nociva presunção dos que moram na cidade: “quem pode vir nos atacar? Quem poderá entrar em nossas casas?” Jerusalém sente-se inexpugnável e, por isso, não tem medo. E não tendo medo pode continuar com seus atos de opressão sem qualquer tipo de preocupação. Mas Javé está atento: o desrespeito pelos mais pobres pode implicar em ruína dos mais ricos causadores da opressão. A continuidade da vida depende da construção ou não de relações profundamente humanas e afetivas com aqueles que são transformados em objetos! É a prática do direito e da justiça que há de sustentar o trono. sem a prática da justiça e do direito o palácio corre o risco de se transformar em luxo-lixo inútil e perigoso.

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O princípio da solidariedade estaria fundamentado na prática do direito e da justiça. O texto inicialmente fala de modo genérico dos que sofrem a opressão e depois os discrimina. Genericamente são os oprimidos, que assumem o rosto do imigrante, do órfão e da viúva. Basta relembrar por enquanto que o profeta não está dizendo nada de novo. Ele simples e insistentemente invoca a legislação que protege os inocentes: “Não maltrate a viúva nem o órfão, porque, se você os maltratar e eles clamarem a mim, eu escutarei o clamor deles” (Ex 22,21-22); “Não distorça o direito do estrangeiro e do órfão, nem tome como penhor a roupa da viúva” (Dt 24,17) – além de Dt 6,11; Jó 24,3-4; sl 68,6; 94,5; Is 1,17; 10,2; Ml 3,5. contra eles há modos diferentes de agir opressivamente. O texto cita pelo menos três: “mão do opressor”, “tratar com violência” e “derramar sangue inocente”. Mas é especificamente em Jeremias 22,13-17 o profeta faz uma descrição

corajosa do rei Joaquim. O país estava sob o domínio do Egito e o faraó havia imposto pesado tributo sobre Judá. Em 2 Reis 23,33-35 encontramos o relato da alta carga tributária e sua consequência: “O faraó impôs ao país um tributo de três toneladas e meia de prata e trinta e quatro quilo de ouro” e para ser “fiel” ao conquistador e pagar a quantia exigida pelo faraó, o rei Joaquim teve que criar impostos no país”. Ou seja, o rei repassou a dívida para o povo, gerando uma exploração ainda maior.

A corrupção andava solta. E mesmo nessa situação o rei achava normal construir seu luxuoso palácio enquanto o povo passava fome. A descrição do texto bíblico não deixa lugar para dúvidas: apesar da falta de dinheiro por causa do tributo, o rei gastou uma verda-deira fortuna na construção de um palácio de uso privado! Joaquim está contrariando o que diz Deuteronômio 44,14-15: “Não explore um assalariado pobre e necessitado, seja ele um de seus irmãos ou imigrante que vive em sua terra, em sua cidade. Pague-lhe o salário a cada dia, antes que o sol se ponha, porque ele é pobre e a sua vida depende disso. Assim, ele não clamará a Javé contra você, e em você não haverá pecado”.

A fim de que nada se extravie nessa descrição, o profeta compara Joaquim ao seu pai, Josias. É na prática de cada um deles que encontramos a diferença básica. Em Josias encontramos um rei que através do seu governo procurava reformar a vida da nação. Mas em Joaquim, o próprio governo se transformou num centro de opressão, corrupção e de violência. É a própria concepção da realeza que está em jogo.

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clements (1988, p. 128) afirma que os reis ao invés de agirem como pai e guardião de seu povo “mostraram-se como exploradores e opressores do povo”. Joaquim não somente infringe uma lei do Deuteronômio, mas falta com a sua obrigação de rei ao deixar o direito e a justiça distante de sua prática real. Que significa o próximo na vida do rei Joaquim? Absolutamente nada! O próximo é reduzido a mão de obra e a objeto de opressão. Ao reduzir o ser humano a menos do que ele é, o rei Joaquim sinaliza que ele mesmo já se desumanizou. Ao negar para o outro uma visão enriquecedora do ser humano, ele mesmo se identifica como o protagonista da anti-vida.

Dessa forma, Joaquim vive na prática da injustiça e essa situação impede que ele conheça a Javé. Que significa conhecer a Javé? Não seria demais dizer que as palavras de Jeremias é uma das mais importantes e reveladoras declarações sobre o conhecimento de Deus em toda a Bíblia. O texto não deixa dúvidas: é reconhecer suas exigências éticas. É necessário olhar para o texto com certa acuidade. Vamos, portanto, a Jeremias 22,16: “ele julgou (referindo-se ao rei Josias) a causa do pobre e necessitado; e tudo corria bem para ele. Não é isso me co-nhecer? diz o senhor”. O texto não se expressa da seguinte forma (que para muitos poderia ser uma forte tentação): “porque ele me conheceu, ele julgou a causa do pobre e necessitado”. A conclusão possível é que a prática da misericórdia para o pobre é conhecimento de Deus (o profeta Oséias apresenta a mesma chave de leitura em 4,1-2 e 8,2-3). A partir do verso 13 é possível inferir que há duas maneiras de organizar a sociedade a partir da presença ou ausência do direito e da justiça. E, certamente, a organização da sociedade sob os fundamentos do direito e da justiça é diferente da organiza-ção da sociedade que estabelece outros fundamentos que não esses. Mas como poderia Joaquim viver a partir de um padrão ético se o seu coração estava totalmente entregue ao lucro? se para atingir o lucro era capaz de fazer uso da violência e explorar os mais vul-neráveis? Os olhos e coração de Joaquim estavam transbordando de práticas injustas de tal maneira que não havia espaço para o cultivo do direito e da justiça. Quando há ausência do direito e da justiça multiplicam-se toda sorte de injustiças. Triste a situação do rei Joaquim: o dinheiro é o seu deus e, por isso, se tornou incapaz de reconhecer o Deus verdadeiro, que não tolera qualquer tipo de adversário! Na morte de Joaquim não se fará uso das lamentações normais (1 Reis 13,30), e ele também não terá um funeral real (2

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Reis 24,6). Ao contrário, ele será jogado sem cerimônia num monte de lixo, assim como jumentos mortos eram arrastados para fora da cidade e deixados apodrecer. Triste destino para aquele que fazia do luxo seu principal objetivo. Triste fim, do luxo para o lixo! cONcLUsãO

Em Jeremias “conhecer a Javé” possui profundas conexões com a realidade vivida no cotidiano. Não é um conhecimento teórico ou que leve o fiel à uma relação apenas individual com seu Deus. Ao contrário, trata-se de um conhecimento profundamente comprometido com a vida e a favor dos mais vulneráveis. Não é sem razão que o profeta utiliza em seus textos uma série de palavras – praticar o direito e a justiça, endireitar caminhos, estrangeiro, órfão, viúva, explorado, pobre, indigente, explorador, opressão, violência – que nos lançam para dentro da história e de suas contradições, para o encontro com Javé na história e ao lado dos mais fracos.

Talvez também seja necessário repensar uma das mais surpreendentes palavras de Jesus que se relacionam com o tema proposto. Na oração sacer-dotal, como anotada no evangelho de João, Jesus assim se expressa: “que eles conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo” (17,3). Naturalmente, poderíamos dizer, não se trata de qualquer tipo de conhecimento que presenciamos nessa fórmula sintética da fé e que representa o conteúdo essencial do ser e viver cristão, mas de um conhecimento que nos leva a redescobrir Deus e Jesus cristo nos encontro com os necessitados! E, nesse caso, os textos de Jeremias servem como bússola a nos orientar.

“KNOWING THE JAHWEH” fROM THE PRAcTIcE Of RIGHT AND JUsTIcE

Abstract: the words of the prophet Jeremiah are marked by materiality,

i. e, words are inserted into the very reality which we live. There-fore their perception of what it means to know God is necessarily associated with the practice of law and justice. The conclusion is clear: we cannot know Javé without an encounter with the most vulnerable in society.

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Referências

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ROssI, L.A.s. como ler o livro de Jeremias. são Paulo: Paulus, 2007. scHOKEL, L.A., DIAZ, J.L.s. Profetas I. são Paulo: Paulinas, 1988. * Recebido em: 15.05.2011.

Aprovado em: 08.06.2011.

** Professor-Adjunto no Programa de Pós-Graduação da PUc-PR, Pós-Doutor em Teologia e em História Antiga. E-mail: luizalexandrerossi@yahoo.com.br

Referências

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