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REPOSITORIO INSTITUCIONAL DA UFOP: As memórias de Bento : representações pela nostalgia no jornal A Sirene – Para não Esquecer.

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Academic year: 2019

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

LÍDIA HELENA DA SILVA FERREIRA

As Memórias de Bento:

Representações pela nostalgia no jornal A Sirene – Para não Esquecer

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As Memórias de Bento: representações pela nostalgia no jornal A Sirene

– Para não Esquecer

Dissertação apresentada à banca examinadora como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Ouro Preto.

Área de concentração: Comunicação e Temporalidades. Linha de Pesquisa: Práticas comunicacionais e tempo social.

Orientadora: Profa. Dra. Hila Rodrigues

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Agradecer é reconhecer a partilha durante a caminhada. Mais ainda, é saber valorizar cada um que se dispôs a me ajudar, a ouvir e me apoiar durante os dois anos tão intensos. Por isso, começo agradecendo aos meus pais, Helena e Antônio, os responsáveis pela minha conquista. Eles foram meu abrigo, meu canto no mundo, minha segurança, minha força e toda minha proteção. Obrigada! Agradeço ao meu irmão Heitor, por ser sempre um aconchego nas horas difíceis e um parceiro de vida.

À minha querida orientadora Hila, toda a minha gratidão não cabem em linhas. Agradeço por me estender a mão e seguir comigo durante toda a pesquisa. Agradeço pelo afeto e ternura com que abraçou meus tempos, respiros, minhas dúvidas, meus anseios. Por ser uma inspiração profissional e de vida. Obrigada por acreditar na minha pesquisa e não permitir que eu deixasse de acreditar. Agradeço o encontro e a partilha! O que aprendi nesses dois anos passa pelo seu carinho e sua forma de deixar o mundo mais leve.

À minha família sempre tão presente e afetuosa. Agradeço as orações e todo amor. Obrigada as minhas madrinhas Iria e Naná, à Tia Ice, Tia Nanã, Tia Rita, Tia Marcinha. As minha cunhada Flávia pelo apoio, e ao meu Tio Osório e Tia Cris pelas conversas inspiradoras.

À Antonela e Marinna por serem meu respiro e descanso.

Ao Luan por seguir do meu lado em todos os momentos, pelo apoio, amor e paciência. Por me acompanhar até Bento Rodrigues e por não me deixar desistir de seguir em frente.

Ao Luiz Abreu por comprar a ideia e desenvolver um projeto gráfico tão lindo. Obrigada pela paciência em cada esboço, por ouvir e abraçar o que eu queria, por tanta gentileza. Obrigada por tonar belo os afetos.

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Aos amigosVirgínia, Mari, Íris, Ana Carolina, Tayrine, Júlia, Izabella, Letícia Naves, Letícia Cabral, Aline, Thaís, Lorena, Bárbara, Rafaela, Eduardo, Tatá e a Nananda. Obrigada por todo amor e paciência nesses anos. Agradeço ao apoio, a torcida e ao incentivo.

À Universidade Federal de Ouro Preto e ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação.

Ao professor Frederico Tavares, por ser parte da minha formação e por cada contribuição tão valiosa. Ao professor Cláudio Coração por caminhar sempre por perto e nos ensinar as belezas da vida. A professora Juçara Brittes por tanta gentiliza ao me ajudar no trajeto da pesquisa. E a Renata, por ser tão paciente e prestativa.

A Giulle da Mata pelas conversas sempre tão atenciosas e inspiradoras para construção do projeto. Por lembrar-me que é preciso paixão para que a escrita se torne bela. Talvez por issoescolhi falar de afetos.

Ao grupo Quintais pelas trocas.

Aos professores André Carvalho e Flávio Vale pelo carinho que me receberam no estágio docência. Obrigada pela confiança e aprendizado.

Ao Jornal A Sirene e ao Rafael Drummond, Gustavo Nolasco e Marília Mesquita por me ajudarem a conhecer o jornal.

Aos atingidos Mônica Santos, Manoel Muniz, Cristiano Gomes, Mônica Gomes, Terezinha Quintão, por serem tão gentis nas trocas, por me acolherem na visita a Bento Rodrigues e por me deixarem conhecer um pouco mais de suas histórias.

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- A gente só conhece bem as coisas que cativou – disse a raposa. – Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo já pronto nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo demonstrar como se revelam as recordações e de que forma a nostalgia é representada e transportada para as páginas do jornal A Sirene – Para não Esquecer. Partimos dos estudos sobre a contemporaneidade até chegar às reflexões sobre a cidade e suas lembranças e a compreensão da memória individual e da memória coletiva. Elegemos a nostalgia como ferramenta analítica para compreender os processos plurais que nos levam a formação de sentimentos sobre um lugar, um objeto, uma pessoa, um momento. Como metodologia, tomamos como base a Cartografia dos Afetos e propomos uma Cartografia das Recordações, com o intuito de viabilizar a passagem dos afetos e, a partir da análise das narrativas, criar uma nova linguagem para falar dessa experimentação afetiva. A partir da cartografia proposta criamos dois mapas nostálgicos: A Permanência e O Atravessar, que nos permitiram maior compreensão da relação do homem com o tempo, das diferentes formas de se falar do passado e, principalmente, entender o jornal como elemento de transformação e resistência.

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ABSTRAT

This study treats nostalgia and its plurality of affections. We start from the contemporaneity, we have arrived to the city until the comprehension of individual memory and collective memory. Therefore, we examine the memories that allowed us to map and understand how nostalgia makes presence in photographic and textual narratives from the local newspaper "A Sirene - Para não Esquecer" (The Siren - Not to Forget). Our aim is to demonstrate how these memories are revealed and in which ways nostalgia is represented and transported to the pages of the newspaper. As a methodology, we take Affection Cartography as a base to propose a Memory Cartography, with the purpose of opening passages for the affections and, after the narrative analysis, to create a new language, based on nostalgia, to speak of that affective experimentation. We propose the creation of two nostalgic maps: The Permanence and The Throught. The analyzes has allowed us to increase the comprehension of mankind's relationship with time, the different ways of speaking about the past and, mainly, to understand the newspaper as a transformation element.

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TABELA 1- NOSTALGIA RESTAURADORA E REFLEXIVA ... 25

TABELA 2 -– PERCENTUAL DE OPINIÃO SOBRE OS MAIORES INCÔMODOS PROVOCADOS PELA MINERAÇÃO ... 37

TABELA 3 - DEMONSTRATIVO DO CORPUS DE ANÁLISE... 67

TABELA 4 - CARTOGRAFIA DAS RECORDAÇÕES ... 72

TABELA 5 - A PERMANÊNCIA ... 76

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FIGURA 1 - ESCRITOS NOS ESCOMBROS DE BENTO RODRIGUES ... 32

FIGURA 2 - IGREJA DE SÃO BENTO EM BENTO RODRIGUES ... 35

FIGURA 3 - BENTO RODRIGUES ANTES DA TRÁGEDIA ... 38

FIGURA 4 - BENTO RODRIGUES ANTES DA TRÁGEDIA ... 38

FIGURA 5 - FESTA DO PADROEIRO DE SÃO BENTO ... 39

FIGURA 6 - DISTRITO DE BENTO RODRIGUES ANTES DE SER DEVASTADO PELA LAMA. ... 39

FIGURA 7 - DISTRITO DE BENTO RODRIGUES ANTES DE SER DEVASTADO PELA LAMA. ... 40

FIGURA 8 - DISTRITO DE BENTO RODRIGUES ANTES DE SER DEVASTADO PELA LAMA. ... 41

FIGURA 9 - BENTO RODRIGUES DOIS ANOS APÓS A TRAGÉDIA ... 42

FIGURA 10 - BENTO RODRIGUES DOIS ANOS APÓS A TRAGÉDIA ... 43

FIGURA 11 - BENTO RODRIGUES DOIS ANOS APÓS A TRAGÉDIA ... 44

FIGURA 12 - ESCRITOS NOS ESCOMBROS DE BENTO RODRIGUES ... 47

FIGURA 13 - MAPA ILUSTRATIVO DAS RUAS ATINGIDAS EM BENTO RODRIGUES ... 53

FIGURA 14 - LEGENDA ... 54

FIGURA 15 - O CAMINHO DOS REJEITOS ... 55

FIGURA 16 - 5 DE NOVEMBRO DE 2015 ... 56

FIGURA 17 - BAR DA SANDRA ANTES E DOIS ANOS APÓS O ROMPIMENTO ... 57

FIGURA 18 - PRIMEIRA REUNIÃO DE PAUTA JORNAL A SIRENE – ICSA/UFOP. ... 62

FIGURA 19 - PROTESTO #UMMINUTODESIRENE, DISTRIBUIÇÃO DO PRIMEIRO EXEMPLAR DO JORNAL A SIRENE62 FIGURA 20 - CAPAS JORNA A SIRENE ... 65

FIGURA 21 - PRIMEIRO ESBOÇO CARTOGRAFIA DAS RECORDAÇÕES ... 74

FIGURA 22 - MAPA 1: A PERMANÊNCIA ... 80

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ANEXO A - O QUE QUEREMOS DO VELHO NO NOVO BENTO? ... 92

ANEXO B - BELEZAS DE BENTO ... 93

ANEXO C - SABORES DA MEMÓRIA ... 94

ANEXO D - PAPO DI CUMADI ... 96

ANEXO E - A LAVOURA PERTO DE BENTO ... 97

ANEXO F - NOSSA HISTÓRIA DEBAIXO DO DIQUE ... 99

ANEXO G - ACABOU-SE O QUE ERA DOCE ... 100

ANEXO H - SEU FILOMENO: A FESTA DENTRO DE UM HOMEM ... 102

ANEXO I - ACOLHIDA, ESPERANÇA E RESISTÊNCIA ... 104

ANEXO J - DIVERSIDADE QUE NOS CONVIDA A ACOLHER ... 105

ANEXO K - NEM NA MINHA CASA EU MANDO MAIS ... 106

ANEXO L - AFETADOS PELA LAMA ... 107

ANEXO M - A ÚLTIMA NOITE ... 108

ANEXO N - 1 ANO DE ATINGIDO ... 109

ANEXO O - POR QUE TOMBOU? ... 112

ANEXO P- O DIA QUE DORMIMOS NO BENTO DE NOVO ... 114

ANEXO Q - MUROS ANTIGOS DE BENTO ... 115

ANEXO R - MEMÓRIA E ESPAÇO ... 116

ANEXO S - FAMÍLIA SILVA, DE BENTO RODRIGUES ... 117

ANEXO T - O ÚLTIMO CASAMENTO DE BENTO RODRIGUES ... 119

ANEXO U - AS RUAS QUE SOBRARAM ... 120

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PRÊAMBULO ... 13

O DIA EM QUE FUI A BENTO ... 13

INTRODUÇÃO ... 16

CAPÍTULO 1... 20

A NOSTALGIA E SEUS AFETOS ... 20

1.1 A origem do conceito ... 20

1.2 Nostalgias restauradora e reflexiva ... 24

1.3 Os Afetos ... 30

2 A CIDADE COMO TESSITURA DA MEMÓRIA ... 35

2.1 Bento Rodrigues ... 35

2.2 A memória urbana ... 45

2.3 Memórias coletiva e individual ... 47

3 A SIRENE: A SUBMERSÃO – UM CONTO INACABADO ... 52

3.1 - 5 de novembro de 2015 ... 53

3.2- O surgimento do Jornal A Sirene – Para não Esquecer ... 58

3.3- ANO I ... 60

3.4 - ANO II ... 62

3.5 CAPAS ... 64

3.6 - Corpus da Pesquisa: ... 66

4. UMA CARTOGRAFIA DAS RECORDAÇÕES ... 68

4.1 Propostas de uma Cartografia das Recordações ... 70

4.2 Um primeiro olhar ... 73

4.3 A Permanência ... 75

4.4 O Atravessar ... 81

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 86

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PRÊAMBULO

O DIAEM QUE FUI A BENTO

“Não se faz um mapa sem conhecer o território” – frase dita pelo professor Frederico

Tavares, na banca de qualificação deste trabalho, em 01 de setembro de 2017. Na manhã de domingo, 21 de janeiro de 2018, finalmente consegui viabilizar minha ida a Bento Rodrigues. Passada a placa que sinaliza o trajeto rumo à cidade, ainda no asfalto, o caminho até o subdistrito é vazio. Cruzamos apenas com um carro da Defesa Civil de Minas Gerais. Sinalizações em fitas brancas, amarradas nas árvores ao longo da estrada de terra, indicam o local onde será construído o Novo Bento.

Ao ver aproximar a região do antigo Bento, encantei-me com o que parecia ser um imenso lago de águas claras, sem qualquer indício de lama – pelo menos para quem contempla de fora. Uma vista bonita, cercada de verde. Ao chegar, descobri que eram os diques S3 e S41. Logo na entrada, onde há uma guarita, o guarda me impediu de entrar. “Sem o acompanhamento de um morador, você não tem a autorização para andar aqui dentro”. Expliquei que já havia combinado com a Mônica (moradora que retorna ao distrito nos finais de semana), mostrei nossa conversa no aplicativo do WhatsApp, contei que era uma visita de campo para uma pesquisa acadêmica, apresentei-me e mostrei a carteirinha da UFOP, que comprovava meu vínculo com a Universidade. “Apenas se Mônica vier até aqui (na guarita) te buscar, mas acho que ela saiu bem cedo”.

Outro carro de fiscalização se aproxima. Explico novamente minha situação, mostro novamente a conversa e digo que o celular da Mônica está sem área, só por isso não consigo falar com ela. O motorista pensa, olha para o outro guarda e diz que vai até a casa da moradora. Vinte minutos de espera e Mônica chega. Acha estranha a situação e diz que nunca precisou buscar ninguém que quisesse entrar. Contou que só naquele dia – o de minha visita – havia um carro da Defesa Civil andando por lá.

Chegamos, então, à casa de D. Terezinha Quintão. Fomos recebidos com a cordialidade mineira. Já se aproximava a hora do almoço e todos estavam na varanda. Mônica me apresentou aos

1 Os diques S3 e S4 foram construídos pela mineradora Samarco para a contenção de minérios no córrego Santarém

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amigos, contou sobre minha pesquisa e explicou o motivo de minha visita. Todos se sentaram ao redor de uma grande mesa e começamos a falar. Deixei que a conversa fluísse e me dispus a ouvir o que eles queriam me contar. Sem muitas perguntas, a conversa sempre perpassava o dia 52.

Uma hora depois e o “macarrão x-tudo”, feito de maneira improvisada, chega à mesa. Uma

panela dessas grandes. Fomos logo avisados de que, em casa de mineiro, não se faz cerimônia nem se recusa comida. Almoçamos e o assunto continuou. Todos me contavam como sobreviveram à tragédia. Diante da lama, cada um tem sua história. Descreveram com detalhes os momentos que antecederam o rompimento da barragem, os pedidos de ajuda, o ônibus que levou muitas pessoas para fora do subdistrito, a noite que se seguiu. Emocionaram-se ao relembrar os momentos em que descobriam que mais um estava vivo, que a lama não o havia levado. Tentei direcionar algumas perguntas para o passado. Afinal, eu queria saber mais sobre o Bento Rodrigues que antecedeu a tragédia: suas particularidades, suas memórias. As respostas vinham, mas, junto com elas, a lama – que insistia em permanecer na conversa.

Comemos a sobremesa – um rocambole de chocolate Prestígio. Perguntei se poderia caminhar pelo distrito e, rapidamente, Manoel e Cristiano (moradores de Bento Rodrigues que estavam na casa de D. Terezinha Quintão, no dia da visita) se colocaram à disposição para me acompanhar. Era um dia de sol forte e, por volta de 14h, atravessei o coração do subdistrito. Imaginei que veria lama nas ruas, mas os caminhos já estavam livres dela. Ainda assim a destruição era completa. Vi escombros em meio ao verde das plantas que cresceram. Vi a marca da lama ao longe, nas árvores, e vi de muito perto a marca da lama que cobriu as casas. Vi as janelas e portas saqueadas. Vi as paredes escritas com lama. Vi o que restou da Escola Municipal Bento Rodrigues. Vi o marco que Maanoel fez antes da construção do dique, para saber exatamente onde era a sua casa.

Vi, em todos os locais, as sinalizações para a evacuação da área caso a sirene tocasse. Perguntei se agora havia uma sirene. Eles apontaram para uma torre ao longe e responderam:

“Dizem que é lá, mas nunca tocou, né?”. Havia um tom de ironia, misturado à indignação.

Caminhamos até onde era a Igreja de São Bento. Cristiano me mostra, no celular, uma imagem de como era o lugar onde estávamos. Ali era o lugar que eu havia usado como referência para meu

2O dia 05 de novembro de 2015 refere-se à data de rompimento da Barragem de Fundão (Samarco), submergindo o

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primeiro mapa das recordações. Ali eu me emocionei. Não havia mais a igreja. Ali eu entendi muito das narrativas que li no Jornal A Sirene.

Em meio aos escombros da capela, foi erguida uma lona branca, sustentada por armações de ferro. No chão havia tablados de madeira. Na entrada, uma placa enorme explica que as ruínas da Igreja são parte do Patrimônio Histórico de Minas Gerais. Ao fundo, um banner com a foto do altar. Um ato de resistência. Permaneci naquele lugar por alguns minutos, contemplando o banner, sem saber o que dizer a Manoel e Cristiano, que me perguntaram: “Difícil, não é?”. Eu realmente não sabia o que dizer a eles. Não era difícil. Era impossível.

Entendi, naquele momento, porque não é possível separar a história de Bento Rodrigues da lama de rejeitos. Entendi que o Bento que eu queria pesquisar e descrever não seria legítimo se eu ignorasse o dia 5. Talvez soe óbvio, mas estar ali me permitiu compreender que todos os afetos em relação àquele lugar atravessam a tragédia. Hoje posso dizer que, nesse trabalho, falo de Bento Rodrigues a partir das particularidades descritas e compartilhadas por muitas pessoas nos dias e anos que antecederam o tsunami de lama – mas também a partir das lembranças que essas pessoas construíram, tendo a própria tragédia como referência. Se pareço dar demasiada atenção a essa

“descoberta” é porque, de todos os momentos da pesquisa, esse foi o que mais me aproximou das

narrativas que li e busqueinas páginas do jornal A Sirene, nesse exercício de mapear a nostalgia. O que vi ali não é o que mostro nos mapas, mas, como jornalista e ser humano, tento me aproximar das lembranças de cada um que se dispôs a compartilhar sua história comigo. Assim, falo sobre um Bento derecordações e memórias.

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INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, o termo saudade é utilizado para falar de lembranças, de algo de que sentimos falta. Normalmente relaciona-se à perda e está diretamente ligada ao tempo passado. É comum, no nosso cotidiano, ouvir expressões do tipo “como isso era bom na minha época” ou

“aquele tempo bom não volta mais”. Ambas simbolizam um apego a tempos idos. Atualmente, falar

de saudade ganhou certa amplitude devido à aceleração do tempo. Essa pesquisa surge da curiosidade sobre a maneira como as pessoas olham com afetuosidade para o passado, sobre como tendem a resgatar objetos, reviver a moda e tantos outros processos.

Inicialmente procuramos entender como esse olhar se manifesta e como pode ser representado no âmbito do jornalismo.Ao mesmo tempo, caminhamos pelos estudos sobre a memória e também sobre a modernidade e sua velocidade característica. Nessa busca por elementos que falassem do passado, descobrimos a nostalgia.Estudar a nostalgia é mais que entender o significado de saudade: é compreender os processos plurais que nos levam à formação de sentimentos sobre um lugar, um objeto, uma pessoa, um momento. Por isso escolhemos falar desse sentimento tão particular.

Os estudos sobre anostalgia em si não são fartos – e a bibliografia sobre o tema se divide em diferentes campos do saber. Desta forma, no capítulo inicial procuramos traçar uma genealogia do conceito norteador desse trabalho. Discutimos o surgimento da palavra, que se dá em um contexto médico, com o suíço Johannes Hofer, em 1688, até seu entendimento nos dias atuais como emoção social. Recorremos aos dois tipos de nostalgia apresentados pela pesquisadora russa Svetlana Boym (2001) – a reflexiva e a restauradora –, que usaremos como eixo operador no percurso metodológico. Propomos também, nessa etapa inicial, uma reflexão sobre os afetos baseada nas perspectivas de autores como Denilson Lopes (2016), Didi –Huberman (2016) e Muniz Sodré (2006).

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Paracatu de Cima, Campinas, Borba, Pedras e Bicas, pertencentes a Camargos, também foram atingidos pelo mar de rejeitos. Nenhum sinal sonoro foi emitido para alerta a população e permitir a evacuação das pessoas que transitavam naquele momento pelo lugar. A tragédia se estendeu por 650 quilômetros, de Minas Gerais até o litoral do Espírito Santo. A lama seguiu o curso do Rio Doce e encontrou o mar, afetando um total de 39 cidades de formas direta e indireta, além das comunidades ribeirinhas. Foram registradas 19 mortes, entre trabalhadores, terceirizados da mineradora e moradores das comunidades. Além dos óbitos, aproximadamente um milhão de pessoas foram prejudicadas, segundo informações da Defesa Civil de Minas Gerais.

De maneira concomitante, procuramos mostrar o subdistrito antes e depois da destruição, destacando os efeitos do mar de rejeitos e das perdas ocasionadas pelo rompimento da barragem. Foi com esse intuito que realizamos a visita de campo do dia 28 de janeiro de 2018 (exposta e detalhada no preâmbulo deste trabalho). Após essa contextualização, a pesquisa convoca os estudos de Halbwachs (1990), Michael Pollack (1989), Ecléa Bosi (1994) e Jô Gondar (2016)– especialmente as abordagens acerca dos trabalhos de rememoração e suas relações com o lugar – para discutir o papel central da cidade e sua relação com a memória afetiva e com a memória social. Nossa intenção é tomar a cidade como parte constituinte da memória, entendendo que a relação

sujeito e lugar é parte importante na construção da memória coletiva – que, uma vez inscrita em documentos e outros registros, será também memória social (GONDAR, 2008).

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Assim, o objetivo deste estudo é identificar e cartografar as representações3 da nostalgia presentes no jornal A Sirene. Para melhor compreensão dos procedimentos e do objeto de estudo, os escritos que compõem nosso corpus de análise foram anexados ao final do documento, de forma a permitir um acompanhamento do método cartográfico e da análise empreendida.

Svetlana Boym, estudiosa das relações entre memória e modernidade, ressalta que pessoas nostálgicas são normalmente indivíduos com os sentidos – tato, audição, olfato, paladar e visão – mais apurados. A nostalgia em si é perpassada por afetos efêmeros, como sabores, aromas e lembranças sonoras. Assim, pretendemos, a partir das memórias individual e coletiva, mapear as narrativas orientadas por essas sensações.

Mas além de perpassada por múltiplas sensações,a nostalgia é também marcada por sentidos que se cruzam e por afetos como o vazio, a saudade, a melancolia. Propomos, assim, um caminho ao reverso: recorrer à nostalgia cartografada como ferramenta analítica para a percepção de um espaço de resistência e memória. Nessa perspectiva, a da nostalgia, torna-se, assim, um instrumento para compreender como as representações do passado são recriadas no presente e expressas no jornal A Sirene– e como os múltiplos afetos constituidores desse sentimento nostálgico, motivados pelo afastamento do lugar, 4podem intervir nas representações configuradas tanto pela memória individual quanto pela memória coletiva.

A presente dissertação abre caminhos para reflexões sobre a importância da compreensão do nosso passado, da história do nosso lugar de origem. Permite-nos discutir como se configura nossa experiência frente a grandes perdas. Por que valorizamos tanto o passado quando não temos mais acesso a ele? Construímos um passado idealizado para lidar com o que perdemos? Como a cidade é importante na formação de indivíduos e porque o exílio geralmente é tão doloroso?

A nostalgia cartografada nesse trabalho permitiu visualizar os afetos que pulsam dessas reflexões e ampliou nossos questionamentos quanto à compreensão da relação do homem com o tempo. Frente a uma comunidade completamente devastada pela lama, é possível elencar inúmeras indagações sobre essa relação. A conexão dos moradores de Bento Rodrigues com o lugar marcava

3Representações de origem latina representare significa “tornar presente”, fazer presente alguém ou alguma coisa

ausente. Neste trabalho optamos por utilizar a definição do termo que diz respeito às expressões que simbolizam e caracterizam os afetos relacionados à nostalgia.

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uma temporalidade diferente daquela vivenciada em grandes metrópoles. Tinha suas peculiaridades. O que a nostalgia cartografada pode revelar desse processo de transição perpassado pelo trauma?

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CAPÍTULO 1

A NOSTALGIA E SEUS AFETOS

Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos.

Machado de Assis

O que é a nostalgia? Apenas aquele sentimento que nos aproxima da saudade, mas a partir de um passado idealizado? Refletir sobre o que é a emoção social que chamamos de nostalgia e compreender, principalmente, as mudanças de entendimento e de percepção que atravessam a formação desse conceito – pensando as relações que se estabelecem na sociedade contemporânea – constituem elementos impulsionadores para a realização deste trabalho. A nostalgia nos parece híbrida e capaz de abarcar inúmeros afetos e emoções para além da saudade – e compreendê-la exige uma viagem às origens do termo.

1.1 A origem do conceito

Voltar. Vir ou ir. Regressar, retornar. O afeto que elegemos como desejo de retorno é o que, na contemporaneidade, denominamos nostalgia. Entretanto, o sentimento doloroso é a conjunção das palavras gregas nostos (voltar para casa) e algos (sofrimento, uma condição dolorosa). Foi inventada pelo médico suíço Johannes Hofer, em 1688, para nomear o que ele considerava uma entidade clínica, isto é, uma enfermidade já reconhecida como tal. A nostalgia surge, portanto, como uma doença mental aparentemente curável, mas perigosa, e, por vezes, mortal.

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interrupção do fluxo menstrual nas mulheres, distúrbios glandulares, distúrbios de digestão e secreção, vômito, diarreia e convulsão, além do principal sintoma psicológico: uma dificuldade de concentração em qualquer coisa que não seja a lembrança em si (NATALI, 2006).

Em meados do século XVIII, o médico suíço Johann Jakob Scheuchzer relacionou a nostalgia a uma diferença significativa de pressão atmosférica que causava pressão corporal, diminuindo a circulação e comprometendo o fluxo sanguíneo para o coração e para o cérebro, causando um sentimento de angústia. O tratamento para todos esses sintomas era regressar com o doente à sua terra natal, caso o diagnóstico não fosse tardio. Se o retorno não fosse possível, os médicos recomendavam que o paciente fosse induzido a acreditar que retornaria, já que era preciso alimentar a esperança de um retorno em breve. Em casos extremos, a doença poderia levar à morte ou desencadear atos de extraordinária violência.

É importante ressaltar, nesse ponto, que a nostalgia surge na condição de doença em um contexto em que a mobilidade social não era comum. As pessoas nasciam, cresciam e morriam em sua terra natal. Casos de imigração aconteciam por eventos extraordinários, como guerras e epidemias. Assim, aqueles que não estavam longe do lar não contraíam a nostalgia – o que explica o grande número de homens afetados pela doença, já que a mobilidade feminina era ainda mais restrita. No entanto, um psiquiatra inglês, no século XVIII, registrou o acometimento da doença em uma menina, filha de um casal que havia passado longa temporada fora de casa (NATALI, 2006). Esse registro marca uma transformação no entendimento da doença: “a distância da terra natal e do lar já não é um requisito para o seu aparecimento, sendo suficiente que o lar seja transformado de forma radical” (NATALI, 2006, p. 27).

Posteriormente, na primeira metade do século XIX, o conceito é novamente atualizado: a nostalgia deixa de ser apenas “um sofrimento causado pela separação física, seja da terra natal ou de um ente querido” e passa a ser reconhecida, também, como “uma dor provocada pela distância

temporal, isto é, pela passagem do tempo” (NATALI, 2006, p. 28). É nesse contexto que o conceito,

até então associado a uma doença, começa a ganhar contornos de uma emoção social. Não era mais preciso se afastar de alguém ou de algo para se sentir nostálgico, bastava apenas querer reviver o passado no presente. A partir dessa concepção, não era mais possível sugerir que o indivíduo regressasse ao passado, como era indicado, que ele retornasse à sua terra natal.

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nostalgia não é antimoderna, mas contemporânea, é resultado de uma nova percepção do tempo e do espaço. Nesse viés, ela pode ser mais que retrospectiva, pode ser também perspectiva, e, de certa forma, a utopia do futuro. Assim, reflexão e saudade podem caminhar juntas. O sentimento nostálgico reaparece inevitavelmente, por exemplo, “como um mecanismo de defesa a um tempo de mudanças drásticas ou em ritmos acelerados de vida” (BOYM, 2001, p. 5).

No final do século XIX, a palavra inventada por Hofer passa a ser usada não mais como diagnóstico de uma doença ou com pretensões científicas, mas migra para outros discursos e esferas, nos quais continua a determinar formas de se relacionar com o passado, mas agora se referindo a questões ligadas à política e ao empirismo. De acordo com Natali (2006), que retorna aos escritos de Marx para explicar os novos contornos da nostalgia e seu lugar na cartografia política moderna, o termo começa a ser empregado para denunciar o apego ao passado. Esse apego é tomado como uma aberração, pois poderia facilmente se transformar em obstáculo ao progresso, ao desenvolvimento e à justiça social. Segundo o autor, essa perspectiva transformou a nostalgia “em uma espécie de crime político” (NATALI, 2006, p. 49).

Mas a nostalgia moderna é mesmo paradoxal – pois embora a “universalidade da saudade possa aumentar nossa empatia pelos seres humanos”, como observa Boym (2001), acabamos nos distanciando dos outros sempre que “tentamos reparar essa saudade”, retornando a lugares que

possam assegurar um pertencimento particular. “Algia (saudade) é o que partilhamos, e nostos (ou

voltar para casa) é o que nos divide” (BOYM, 2001, p. 4). No começo do século XX a nostalgia institucionalizou-se, por exemplo, “em museus nacionais e provinciais, instituições patrimoniais e

monumentos urbanos” (BOYM, 2001, p. 7). Nessa perspectiva, Herman Lubbe e Odo Marquard

foram precursores ao promoverem uma discussão sobre a construção de uma cultura de recordação, sensibilização e conservação. Citados por Huyssen, os filósofos alemães mostraram como a

“musealização já não era mais ligada à instituição do museu no sentido estrito, mas tinha se

infiltrado em todas as áreas da vida cotidiana” e, como diagnóstico, “assinalaram o historicismo expansivo da nossa cultura contemporânea e afirmaram que nunca antes o presente tinha ficado tão obcecado com o passado como agora” (HUYSSEN, 2004, p. 29).

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Nessa perspectiva, Hyussen (2004, p. 13) explica que, “no movimento transnacional dos discursos de memória, o Holocausto perde sua qualidade de índice do evento histórico específico e começa a funcionar como metáfora para outras histórias e memórias”.

Refletindo sobre essa relação entre passados presentes, o autor aponta para o que chama de “obsessão pela memória e pelo passado”, isto é, para uma cultura da memória decorrente de certa

neurose para com o tema (HUYSSEN, 2004, p. 16). Essa “cultura da memória”, segundo o autor, é

alimentada, na verdade, pelo medo do esquecimento – especialmente no cenário contemporâneo marcado por novas tecnologias, novas políticas midiáticas e por um consumo desenfreado. O ritmo acelerado da industrialização e da vida cotidiana mudou drasticamente a nossa forma de nos relacionar com o passado. Nessa perspectiva, Hugo Achugar, através de uma leitura de Walter Benjamin, define o que chamamos de velocidade moderna:

A velocidade, hoje, é uma das formas como se apresenta o contemporâneo e parece caracterizar, de um modo peculiar, os tempos que se chamam modernamente pós-modernos. Uma distinção contemporânea – no sentido bourdienanoe distinção – que pode implicar, tanto no pertencimento, como na exclusão, em função da sua relação com a velocidade (ACHUGAR, 2009, p. 15-16).

Nesse sentido, não é possível ignorar que vivemos em tempos de aceleração, diferente daqueles aos quais as gerações do século XX estavam adaptadas. Hoje, estamos em busca do novo – mas um novo que mais nos parece permanecer do que, de fato, inovar. Trata-se de uma ideia presente nas reflexões cotidianas dos sujeitos – e que, não por mero acaso, é frequentemente expressada nos campos da literatura, do cinema e da música. No final da década de 1980, emergia, por exemplo, na canção do cantor e compositor Cazuza, que via “o futuro repetir o passado”, dando

forma ao que chamou de “um museu de novidades”, antes de asseverar que “o tempo não para”5.

Lidamos com o presente e com o futuro como mulheres e homens modernos e, ao mesmo tempo, nos ancoramos no passado para preservar o tradicional, evocar um tempo perdido. Desejamos segurança. E, de fato, a nostalgia – desde sua condição de doença, nos séculos XVIII e XIX, até a

5 Trata-se da canção O Tempo não para, sexta faixa do quarto álbum solo do cantor brasileiro de rock

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tradução contemporânea de melancolia (passando pela dimensão política no pensamento de Marx) – , está certamente ancorada aos tempos idos, e a essas diferentes formas de lidar com o que já não é.

1.2 Nostalgias restauradora e reflexiva

Com base nessa genealogia e na compreensão da nostalgia como um elemento da cultura global, que não pertence a nenhuma disciplina em particular, Svetlana Boym – na obra intitulada O Futuro da Nostalgia – apresenta uma tipologia que esclarece alguns dos mecanismos de sedução e manipulação presentes no sentimento melancólico. Para isso, diferencia dois tipos básicos de nostalgia: a restauradora e a reflexiva, que usaremos como norte metodológico nesse trabalho. De modo genérico, é possível dizer que a primeira carrega a intenção de reestruturar o passado em sua origem, sem alterações. Em algumas circunstâncias, portanto, significa rejeitar o presente em função de um certo conservadorismo. Por sua vez, a nostalgia reflexiva tomará elementos do passado para repensar e renovar o presente.

De maneira mais precisa, a perspectiva de Boym (2001) salienta, na nostalgia restauradora, o nostos (a casa) – e diz de uma reconstrução histórica da terra perdida. Está, assim, “no cerne do

revivamento nacional e religioso recentes”. Para compreendê-la, “é preciso distinguir entre os

hábitos do passado e os hábitos de restauração do passado” (p. 12). Boym (2001) explica que quanto mais rápida e devastadora é a aceleração na escala da modernização, “mais conservadoras e

imutáveis tendem a ser a novas tradições” (p. 16). Restauração, aqui, significa um retorno à

harmonia original, restaurar e reconstruir uma terra natal com persistência insana.

De maneira distinta, a nostalgia reflexiva se fomenta com a algia (o próprio anseio) e retarda esse desejo de retorno ao lar de forma melancólica. Ela reside na “ambivalência do pertencimento e na saudade, características da humanidade” (BOYM, 2001, p. 9). Tende à criação da individualidade estética, preocupando-se com o tempo histórico, mas também com o individual. O foco não é a recuperação do passado, nem daquilo que, em um outro tempo, foi tomado como verdade absoluta, mas com a consideração sobre a história e a passagem do tempo. A nostalgia reflexiva valoriza fragmentos esparsos da memória, temporaliza o espaço, coloca a verdade absoluta em dúvida, “trata de viver o tempo fora do tempo e de aproveitar o presente fugaz” (BOYM, 2001, p. 10). Refletir é sinônimo de flexibilidade. Não há o restabelecimento da harmonia. Boym (2001)

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experimentam o prazer sensível na tessitura do tempo não mensurável por relógios e calendários” (p. 11).

A nostalgia reflexiva, assim, é crítica, e abre inúmeros campos de consciência, “nomes de lugares abrem mapas mentais e o espaço desdobra-se em tempo” (BOYM, 2001, p. 10). Diferentemente da nostalgia restauradora, a reflexiva tem como atributo a luta pela resistência da memória do lugar perdido, e não o desejo de reconstruí-lo. Embora os tipos nostálgicos possam coexistir em um mesmo objeto, são, entretanto, contraditórios. Nas palavras de Boym (2001), “podem usar os mesmos símbolos e disparadores de memória” (p. 12).

De forma resumida:

Tabela 1- Nostalgia Restauradora e Reflexiva

Nostalgia restauradora Nostalgia Reflexiva

 Toma a si própria muito a sério.

 Acentua o nostos (lar). Prospera no

algia (o desejo em si). Objetiva uma reconstrução trans-histórica do lar perdido.

 Pensa a si mesma como verdade e tradição.

 Protege a verdade absoluta.

 Está no cerne dos recentes revivals

nacionais e religiosos.

 Sua retórica não é sobre o passado, mas sobre valores, família, natureza, terra natal e verdades universais.

 Apresenta um pretexto para

“melancolias de meia-noite”.

 Ligada à memória nacional, baseada

numa simplificada versão de

identidade nacional.

 Conhece dois principais esquemas: 1)

 Pode ser irônica e bem-humorada, inconclusa e fragmentária.

 Atrasa a volta para casa.

 Pensa na ambivalência do desejo e pertencimento humanos.

 Põe em dúvida a verdade absoluta.

 Está preocupada com o tempo

histórico e individual, com a irrevocabilidade do passado e a finitude humana.

 Sua retórica é sobre retirar o tempo do tempo e compreender a fuga presente.

 Pode apresentar um desafio ético e criativo.

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A restauração das origens; 2) A Teoria da conspiração: revela o simples conceito pré-moderno entre o bem e o mal.

 Retorna e reconstrói a terra natal com determinação paranoica.

símbolos.

 Não segue um único padrão, mas explora modos de habitar muitos lugares ao mesmo tempo e imaginar diferentes zonas temporais.

 Teme o retorno com a mesma paixão.

Fonte: Oliveira (2015, p. 105-106), elaborado a partir de Boym (2001).

Um relato ficcional que exemplifica essa coexistência é o filme Nostalgia, de Andrei Tarkovski (1983). Nele, o diretor conta a história do poeta russo Andrei Gorchakov e sua viagem à Itália. A narrativa traz questões como o exílio e impedimentos políticos, assim como a impossibilidade de retornar ao passado, o silêncio diante das lembranças e o poder das recordações de nortear nossas escolhas. Para Tarkovski, a desorientação define sua obra:

Meu tema é um russo totalmente desorientado pelas impressões com que é bombardeado, e, ao mesmo tempo, a sua dramática incapacidade de compartilhar suas impressões com as pessoas que lhe são mais caras, e também a impossibilidade de incorporar a nova experiência ao passado a que está preso desde o nascimento. Eu mesmo passei por algo semelhante quando me ausentei da minha pátria durante algum tempo: meu encontro com outro mundo e com outra cultura, e o princípio de uma ligação com eles provocaram uma irritação, quase imperceptível, mas incurável — algo como um amor não correspondido, um sintoma da impossibilidade de tentar apreender o que é ilimitado, ou de unir o que não pode ser unido; um indicador de quão limitada, quão restrita, deve ser a nossa experiência na terra; como um sinal das limitações que predeterminam a nossa vida, impostas não por circunstâncias exteriores (com as quais seria fácil lidar!), mas pelos nossos próprios "tabus” interiores (TARKOVSKI, 1998, p. 242).

No filme, os diferentes tipos de nostalgia estão presentes na relação diretor e personagem.

Tarkovski reflete em seu personagem a “impossibilidade de incorporar a nova experiência ao

passado”, uma experiência vivida por ele e colocada sob o ponto de vista reflexivo na produção de Nostalgia. O diretor tem um anseio crítico sobre o passado, compreende a impossibilidade de retorno e da reconstrução do lar, mas projeta o desejo paranoico no poeta russo, que protagoniza as cenas do seu longa-metragem para descrever, em outras palavras, essa sensação de não se adequar ao novo lugar e tempo.

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site da Agência FAPESP, onde comenta o livro Trago o fado nos sentidos, organizado por Heloísa de Araújo Duarte Valente, ressalta o caráter nostálgico do gênero:

[...] Mas há também outra causa, muito mais profunda, que é a própria natureza predominantemente sentimental, melancólica e nostálgica do fado. Essa “dor da alma” vem a calhar com o sentimento da pessoa que está fora de seu contexto de origem. Não que todos os fados sejam tristes. Existem também os alegres. Mas poucos gêneros souberam cantar tão bem a saudade (ARANTES, 2013).

Nessa perspectiva, o fado, que hoje é reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, é, em sua melodia e melancolia características, uma forma de expressão da nostalgia e de suas emoções genuínas. Na voz de Amália Rodrigues, um dos ícones do gênero a partir dos anos 50 do século XX, o fado ganhou protagonismo nacional e internacional. Uma das letras compostas por Alberto Janes, e que ganhou os holofotes no canto de Amália, é Vou dar de beber à dor6, que, assim como o filme de Tarkovski, traz questões como recordações particulares do lugar de origem, aliadas à consciência dolorida de que a casa onde vivia Mariquinhas não mais será a mesma.

“Foi no domingo passado que passei À casa onde vivia a Mariquinhas

Mas está tudo tão mudado Que não vi em nenhum lado As tais janelas que tinham tabuinhas

Do rés-do-chão ao telhado Não vi nada, nada, nada

Que pudesse recordar-me a Mariquinhas E há um vidro pregado e azulado

Onde havia as tabuinhas Entrei e onde era a sala agora está À secretária um sujeito que é lingrinhas

Mas não vi colchas com barra Nem viola, nem guitarra

Nem espreitadelas furtivas das vizinhas O tempo cravou a garra

Na alma daquela casa

Onde às vezes petiscávamos sardinhas Quando em noites de guitarra e de farra

Estava alegre a Mariquinhas

6 Primeira faixa do álbum Vou dar de beber à dor, lançado no ano de 1969 pela fadista, cantora e atriz portuguesa

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As janelas tão garridas que ficavam Com cortinados de chita às pintinhas

Perderam de todo a graça Porque é hoje uma vidraça Com cercadura de lata às voltinhas

E lá pra dentro quem passa Hoje é pra ir aos penhores Entregar ao usurário umas coisinhas Pois chega a esta desgraça toda a graça

Da casa da Mariquinhas Pra terem feito da casa o que fizeram Melhor fora que a mandassem pras alminhas

Pois ser casa de penhores O que foi viveiro d'amores É ideia que não cabe cá nas minhas

Recordações do calor E das saudades o gosto Que eu vou procurar esquecer

Numas ginginhas

Pois dar de beber à dor é o melhor Já dizia a Mariquinhas Pois dar de beber à dor é o melhor

Já dizia a Mariquinhas”7

A música é lembrança, recordação, recupera uma raiz e descreve particularidades da casa de Mariquinhas. Ao mesmo tempo, “dar de bebida à dor” é uma tentativa de esquecimento, uma busca por refúgio para lidar com o que já não é. A canção legitima o exílio e a vontade de reviver, por meio daquele lugar, um passado que hoje foi transformado em um cenário contemporâneo: “entrei e, onde era a sala agora, está, à secretária, um sujeito que é lingrinhas”. É, mais uma vez, a sensação de não se adaptar ao lugar ou ao tempo.

Na concepção de Boym, há a percepção de que a nostalgia e a sensação de aceleração do tempo caminham juntas no cenário contemporâneo e nos seus espaços sociais. A aceleração contemporânea produz um sentimento de efemeridade e, com a incessante necessidade de movimento, é como se corrêssemos em círculos: nada permanece, mas também nada de essencial muda. E o indivíduo que quer se inserir nessa configuração social precisa ser capaz de multitarefas. Na cultura da urgência é primordial realizar funções simultâneas. Vivemos o tempo das máquinas, no qual as formas de marcar o tempo são cada vez mais precisas e presentes, e definem uma temporalidade artificial, abstrata, em contraponto aos tempos biológicos, regidos pelos ciclos da

7 Canção Vou dar de beber à dor, de autoria de Alberto Janes, também conhecida por “Casa das Mariquinhas”, editada

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natureza, das colheitas, das estações do ano. É notório, portanto, como essa aceleração pós-industrial inerente a homens e mulheres modifica as relações sociais, as vivências individuais e coletivas. Nesse sentido, a jornalista Eliane Brum, em sua coluna para a edição online do jornal El

País, de 4 de julho de 2016, diria que “estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos

e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo virou a condição humana dessa época” (BRUM, 2016).

A mudança de percepção do tempo, aliada à insegurança diante do futuro compartilhada por todos nós, resulta em um olhar afetuoso para o passado. Como assinala Huyssen (2004, p. 32), “quanto mais rápido somos empurrados para o futuro global que não nos inspira confiança, mais forte é o nosso desejo de ir mais devagar e mais nos voltamos para a memória em busca de

conforto”. A nostalgia torna-se um refúgio cômodo, seguro, palpável. Temos, portanto, uma

sociedade que olha com romantismo para o passado, com saudades, como contrapartida das urgências do presente.

A nostalgia é, portanto, em um cenário contemporâneo, um afeto plural. Quando tomamos o passado como base de nossa narrativa, fazemos isso com o objetivo de interferir num acontecimento do presente, desencadeando reações nostálgicas e, por conseguinte, interferindo no processo de construção social da realidade. Essas reações podem ser acionadas por diferentes afetos, como a dor, a saudade, o apego, a tristeza, ou a simples lembrança de um momento feliz. Ao ser acionado em cada indivíduo, o processo nostálgico torna-se individual.

É sintomático, nesse sentido, o sucesso, nos dias atuais e entre os jovens, de bandas como The Beatles e Mamonas Assassinas. Embora nesse trabalho seja observada a experiência nostálgica do sujeito em relação ao lugar e suas memórias, há de se observar o fenômeno em uma perspectiva mais ampla. Um exemplo é o sucesso do Canal Viva, um canal de televisão por assinatura brasileiro, que faz parte do grupo Globosat. O foco da emissora são as reprises, e, para isso, exibe minisséries, seriados, filmes dublados, novelas e programas de variedades que não estão no ar e foram produzidos pela Rede Globo e pelo canal GNT. O canal já atingiu grandes picos de audiência ao reprisar a célebre telenovela Vale Tudo, com o inesquecível mistério de “quem matou Odette Roitman?”.

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que, através dessa hashtag, sejam lembrados acontecimentos que ocorreram no passado e também passagens pessoais, como, por exemplo, a recordação de quando se esteve com um amigo em determinado lugar. Em todas as quintas-feiras, nas redes sociais, essa hashtag se faz presente, especialmente no Instagram e no Twitter, onde milhões de pessoas compartilham memórias e acontecimentos do seu passado. A hashtag #fbf surgiu como uma derivação da #tbt, e é utilizada como complemento ou extensão da anterior. A sigla em inglês significa Flashback Friday, e, em português, a sexta-feira do flashback, como uma referência direta à hashtag anterior.

Temos, portanto, disponível no mercado, um passado real e experimentado, e outro construído – representações da nostalgia restauradora e da reflexiva. Viver o passado no presente abre possibilidades, requer contemplação, duração e coragem. É preciso pausar para rever, para experimentar.

Assim, a nostalgia pode ser considerada não apenas um sentimento individual, mas também algo compartilhado entre os indivíduos, manifestado em narrativas. Por isso acreditamos que pensar a nostalgia nas páginas do jornal A Sirene é uma forma de não esquecer o rompimento da barragem, de não esquecer Bento Rodrigues. É, de certa maneira, reforçar uma voz que luta por reconhecimento em um território de disputas políticas, econômicas e sociais.

1.3 Os Afetos

Para introduzir a análise proposta, é preciso, aqui, refletir sobre os afetos. Os críticos da modernidade e da pós-modernidade os tomam como “autônomos e impessoais”, em detrimento das sensações e experiências vivenciadas coletivamente na atualidade, tais como essa acentuada valorização do presente, a preocupação com o agora, a aceleração dos tempos (LOPES, 2016). Uma nova forma de pensar os afetos –que se convencionou chamar de “virada afetiva” (affective turn)– marcou o começo do segundo milênio “não só para enfatizar uma dimensão existencial e da experiência do pesquisador na reflexão teórica [...], mas também formas de pertencimento, multidões e comunidades, um regime estético e ampliado” (LOPES, 2016, p. 34). Mas o que delimita o afeto? É importante defini-lo e relacioná-lo à nostalgia, de maneira a proporcionar melhor compreensão da cartografia dos afetos adotada aqui como metodologia de análise.

Denilson Lopes, a partir da leitura de Deleuze e Guattari (1992), explica o afeto como um

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de vista, o afeto guardaria relação com uma “memória corpórea constituída por uma temporalidade não linear” (idem). Nesse sentido, o afeto, segundo o autor, não é de domínio do indivíduo, mas

“emerge da relação entre os sujeitos” (idem).

Nessa mesma perspectiva, Toni Nigro, no livro Exílio – em que trabalha o valor afetivo sob a perspectiva capitalista – define o afeto como potência expansiva:

Significa que trata de uma potência de liberdade, de abertura ontológica, de difusões multidirecionadas. [...] Se, efetivamente o afeto constrói o valor “a partir de baixo”, se o transforma na dinâmica do “que é comum”, se apropria das condições materiais de sua própria realização, é mais do que evidente que ele (o afeto) mobiliza uma potência de expansão (NIGRO, 2001, p. 67).

Ambos os autores trabalham a dimensão social do afeto, de algo compartilhado, que só existe na relação com o outro. É algo que atinge o todo, é da natureza da emoção, como bem explica Didi-Hubermam: “a emoção não diz ‘eu’: primeiro porque, em mim, o inconsciente é bem maior,

bem mais profundo e mais transversal do que o meu pobre e pequeno ‘eu’” (DIDI-HUBERMAM,

2016, p. 30). O autor também ressalta, assim como Lopes (2016), a esfera social: “Depois porque, ao meu redor, a sociedade, a comunidade dos homens, também é muito maior, mais profunda e mais

transversal do que cada pequeno ‘eu’ individual” (DIDI-HUBERMAM, 2016, p. 30).

Entretanto, estar junto também tem a ver com uma “sintonia sensível das singularidades”, como afirma Sodré (2006, p. 69), para quem essa ligação humana se dá na pluralidade do comum:·.

Quanto ao comum (instaurador do vínculo), é precisamente esse plural manifestado na totalidade das veiculações humanas, que não se deixa definir nem como uma unidade abstrata, nem como uma centrifugação de diferenças. Não se trata, portanto, de um mero estar-juntos, entendido como um aglomerado físico de individualidades, e sim da condição de possibilidade de uma vinculação compreensiva. O comum é a sintonia sensível das singularidades, capaz de produzir uma similitude harmonizadora do diverso (SODRÉ, 2006, p. 69).

Em uma definição da Biblioteca Virtual em Saúde, da Organização Mundial de Saúde

(OMS), é o “tom emocional que acompanha uma ideia ou representação mental. É o derivado

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Sob esse prisma, é possível pensar a relação lugar-afeto-sujeito,uma perspectiva em que o afeto se manifesta de forma integrada, como parte de um todo – um todo que se coloca em relação ao outro, ao ambiente e às sensações, mas sem lugar específico. Como aponta Nigro, o afeto é universal porque constrói “uma comunidade entre os sujeitos” (NIGRO, 2001, p. 66). Na concepção

do autor, “o ‘não-lugar’ do afeto fica no cerne dessa comunidade, porque essa comunidade não é

um nome, mas uma potência, porque não é uma comunidade de coerção, mas um desejo” (idem). Desejo e emoção emergem, portanto, como movimentos. Mas, como observa Didi-Hubermam

(2016), “se a emoção é um movimento, ela é, portanto, uma ação: algo como um gesto ao mesmo

tempo exterior e interior, pois, quando a emoção nos atravessa, nossa alma se move, treme, se agita” (p. 30).

Esses movimentos permitem a percepção do afeto também em seu aspecto diverso, multifacetado. Nesse estudo, a nostalgia é concebida como um afeto plural e ambíguo. Plural, porque abarca sensações como raiva, dor, tristeza, saudade, alegria e satisfação, entre tantas outras. Ambíguo, justamente porque pode abrigar opostos – como a tristeza e a alegria contidas em uma mesma lembrança. O desafio é compreender a coexistência desses afetos. A foto a seguir nos dá uma dimensão dessa manifestação:

Figura 1 - Escrito nos escombros de Bento Rodrigues

Foto: Lincon Zarbietti (2016)

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demarcar a relação com o lugar, uma utopia entrecruzada de passado e futuro. A nostalgia é representada pela saudade e exibe as marcas da lama, em um ato carregado de simbolismo. O que significa utilizar a lama para escrever “Bento Rodrigues Saudades”? O que significa escrever com lama nas paredes de uma escola (destruída também pela lama) para manifestar um afeto em relação a esse lugar? Trata-se de um discurso de permanência através do sentir. E é esse sentir, tão presente nos afetos em relação a Bento Rodrigues, que nos interessa.

Nesse ponto, é preciso considerar que toda imagem (no caso desse estudo, as imagens e recordações que dizem respeito a Bento) possui variadas e diversas representações e leituras. Nessa pesquisa, optamos por assimilar a imagem e a comunicação em um sentido mais profuso, de comunhão, como sugere Muniz Sodré (2006) em As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Significa que procuraremos perceber os sentidos presentes na fotografia e em escritos que dizem respeito a Bento como um elemento singular dentro de um contexto, ou seja, em toda a sua particularidade. Nesse processo, passaremos a utilizar o afeto como ferramenta analítica. Na concepção de Sodré, o afeto está presente na totalidade dos pensamentos, e isso se estende à dimensão corpórea, além de dizer sobre o cognitivo e as interações humanas.

Em suma, o afeto será tomado, neste trabalho, não apenas em seu aspecto social, mas também em sua singularidade e em sua relação com as esferas corpórea e coletiva. Consideramos o afeto a partir do seu lugar comum, das suas relações cotidianas e da sua relação com o outro. Destacamos a importância e o vínculo com o externo – como, por exemplo, uma cidade – e partimos disso para entender a relação de Bento Rodrigues com suas memórias coletivas e individuais.

Cidades e afetos se entrelaçam para desenhar histórias de vida e memórias que se movem e se tornam suportes imateriais do subdistrito destruído. Aqui, como já se mencionou, esses afetos são múltiplos, carregados de medo sobre o futuro e permeados de emoções sobre o passado (drasticamente modificado pela tragédia). Raiva, revolta e saudades se manifestam no mesmo campo em que se toma consciência da importância de se compreender certos sentimentos de pertencimento e resistência.

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2 A CIDADE COMO TESSITURA DA MEMÓRIA

“Na praça, há o murinho dos velhos que veem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.”

As cidades invisíveis – Ítalo Calvino

2.1 Bento Rodrigues

Na tarde do dia 5 de novembro de 2015 a lama que se rompeu da Barragem de Fundão transformou em ruínas o subdistrito Bento Rodrigues, de Santa Rita Durão, da cidade de Mariana, em Minas Gerais. Atualmente, o que se vê é um amontoado de escombros marcado pelos rejeitos, misturado ao verde do mato que cresceu entre os destroços. Só de perto percebe-se que são casas. Parte do lugarejo foi submerso pela construção do Dique S4 (obra que, de acordo com a mineradora Samarco, impede que a lama continue a seguir até o Rio Doce).

ManoelMuniz, morador8 de Bento Rodrigues, tentou manter um registro de onde ficava sua casa. Com ajuda de amigos fez um marco em material plástico e madeira e enterrou entre os rejeitos. Hoje é possível ver apenas a parte superior do marco, que também foi alagado pelo dique. “Eu preciso chegar aqui e saber onde ficava minha casa, preciso dessa referência, mesmo que minha casa não exista mais9”.

A casa da dona Terezinha Quintão, situada na parte mais alta do lugarejo, não foi atingida pela lama. Apesar de ter sido saqueada logo após a tragédia, o lugar é hoje o ponto de encontro dos moradores de Bento, que insistem em visitar o local. A sensação de pertencimento dessas pessoas não foi inteiramente quebrada. Na casa, o chuveiro é improvisado, assim como fogão. Há bandeirinhas de festa junina espalhadas na varanda, amarradas nas lonas, que substituem o telhado. Em um dos quartos, há uma colcha de retalhos e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida.

É difícil falar sobre Bento Rodrigues e não relembrar o dia 5 de novembro. A lama ainda escoa nas falas, naquele desânimo produzido pela mente como forma de evitar a dor e outros

8Optamos por utilizar o termo “morador” e não “ex-morador”, atendendo ao pedido dos entrevistados que contribuíram

com a pesquisa.

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sofrimentos. No rosto de alguns moradores, ainda se vê uma expressão de medo e de preocupação. Também é possível notar os olhos marejados nos momentos de recordação do lugar que deixou de existir após o rompimento.

Ao lado da casa de Dona Terezinha, está a cooperativa onde era produzida a geleia artesanal de pimenta biquinho. O doce era fabricado no tacho por mulheres da comunidade e a matéria prima era plantada e colhida ali. De acordo com dados do relatório da Força Tarefa10, do Governo do Estado de Minas Gerais, a empresa era um dos destaques da comunidade. O relatório apresenta dados da Junta Comercial de Minas Gerais (JUCEMG), onde estão registradas as empresas que, em sua maioria, pertenciam ao setor do comércio varejista – responsável, portanto, pela venda de produtos diretamente ao comprador final, caso dos hortifrutigranjeiros, alimentos e algumas bebidas. Há ainda o registro de uma pequena de pequeno porte, voltada para atividades de consultoria empresarial especializada.

De acordo informações da Fundação Renova11, o povoamento de Bento Rodrigues teve início com a mineração, no século XVIII. A comunidade, fundada em 1708 pelo bandeirante paulista Bento Rodrigues, tinha aproximadamente 600 moradores. De acordo com Maurício Viana Borato (2012), em um estudo12 sobre o índice de sustentabilidade da mineração, 74% desses moradores residiam no lugarejo há mais de 20 anos. Bento fazia parte da Estrada Real, a 35 km da sede Mariana, e a 124 km da capital mineira, Belo Horizonte. Em sua tese, Viana registra que 72% dos moradores mantinham uma relação – seja direta ou indireta – com as mineradoras Samarco e Vale. Desses, 44% eram ex-empregados ou subcontratados. É sob esse aspecto que o autor considera “interessante” o fato de que, ainda em 2012, quase dois terços dos entrevistados de Bento Rodrigues temerem que seus imóveis fossem “desapropriados ou adquiridos pelas empresas de

mineração” (VIANA, 2012, p.216). Outro dado importante está na tabela a seguir. Ela indica que

10 Trata-se de um relatório desenvolvido pela Força-Tarefa intitulado Avaliação dos efeitos e desdobramentos do rompimento da Barragem de Fundão em Mariana-MG, publicado no dia 20 de novembro de 2015 pelo Governo de Minas Gerais, em resposta ao rompimento da Barragem de Fundão. Disponível em:

http://www.agenciaminas.mg.gov.br/ckeditor_assets/attachments/770/relatorio_final_ft_03_02_2016_15h5min.pdf. Acesso em 1º de fev. de 2018.

11 A Fundação Renova surgiu do após a assinatura do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) e foi

criada para reparação e compensação dos danos causados pela tragédia. Disponível em:

http://www.fundacaorenova.org/reassentamentos/bento-rodrigues/. Acesso em 1º de fev. de 2018

12 Trata-se da tese de doutorado intitulada Avaliando Minas : índice de sustentabilidade da mineração (ISM), que

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68% da população demonstrava receio em relação à possibilidade de rompimento da barragem. Três anos depois o medo concretiza-se em fatos.

Tabela 2–Percentual de opinião sobre os maiores incômodos provocados pela mineração

Fonte: VIANA (2012, p. 215)

No centro de Bento Rodrigues havia a Igreja de São Bento. O senhor Filomeno, de 82 anos,

era o “guardião do templo” desde os 13 anos de idade. Hoje, é possível ver apenas uma lona

branca, partes dos muros de pedra que cercavam a Igreja e um amontoado de escombros. A lápide que indica o jazigo do Major Camillo de Lelis Ferreira (1823-18970), no interior da capela, está quase intacta debaixo dos tapumes de madeira improvisados para a cerimônia de celebração da Festa de São Bento, em julho de 2017. Em Bento Rodrigues, o calendário religioso local era extenso, como registra a edição do jornal A Sirene, em julho de 2016: “Festa de São Sebastião, de São José, de Nossa Senhora das Dores, de São Bento, de Maria Concebida, do Sagrado Coração de Jesus, de São Benedito, de Nossa Senhora das Mercês e do Menino Jesus” (p.13). O destaque era para a cerimônia do padroeiro, ou seja, para a Festa de São Bento, sempre no último final de semana do mês de Julho.

Figura 2 - Igreja de São Bento em Bento Rodrigues

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À direta da Igreja ficava o Bar da Sandra, famoso pelas coxinhas saborosas e por abrigar os torcedores para os clássicos de Cruzeiro x Atlético. O bar era uma herança do seu pai. De acordo com dados disponibilizados pelo site da Prefeitura Municipal de Mariana, o subdistrito, assim como a sede, tinha o relevo ondulado, com a presença de montanhas, além de um clima tropical de altitude úmida e temperatura média anual de 19ºC. De acordo com os moradores, o subdistrito era tranquila no dia a dia, e tinha certa agitação nos finais de semana. As crianças brincavam nas ruas e as cachoeiras eram pontos turísticos importantes.

Figura 3 - Bento Rodrigues antes da tragédia

Foto: Bruno Arita

Figura 4 - Bento Rodrigues antes da tragédia

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Figura 5 - Festa do Padroeiro de São Bento

Fonte: Imagem cedida pelo morador Manoel Muniz

Figura 6 - Distrito de Bento Rodrigues antes de ser devastado pela lama.

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Figura 7 - Distrito de Bento Rodrigues antes de ser devastado pela lama.

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Figura 8 - Distrito de Bento Rodrigues antes de ser devastado pela lama

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Figura 9 - Bento Rodrigues dois anos após a tragédia

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Figura 10 - Bento Rodrigues dois anos após a tragédia

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Figura 11 - Bento Rodrigues dois anos após a tragédia

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2.2 A memória urbana

A memória de uma cidade se faz da memória de seus moradores? O que significa, de fato, falar sobre a memória de uma cidade? Qual a importância de se resgatar a memória de Bento Rodrigues? Tudo isso está estreitamente relacionado aos processos de construção de memórias afetivas, e também da memória social.

É sob essa perspectiva que decidimos recorrer às reflexões de Ecléa Bosi em Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos, seu trabalho de livre docência. Nele, a autora, apresenta um estudo singular e poético sobre memórias de velhos, feito a partir de entrevistas com oito idosos com idade superior a 70 anos – e que tinham como espaço social em comum a cidade de São Paulo. Recorrendo a autores como Bergson, Halbwachs, Bartlett e Stern, Bosi apresenta a história da cidade por meio da memória social de sujeitos que participaram de sua construção.

No trabalho de Ecléa, não há preocupação com a autenticidade dos fatos contatos pelos idosos, mas, sim, com a escolha das lembranças – aquilo que livro algum de história poderia contar. Embora saliente que não pretendeu escrever sobre memória ou a velhice, Ecléa admite que se manteve “na intersecção dessas realidades” ao colher “memórias de velhos” (BOSI, 1994, p. 39). Inspirado nessa maneira de olhar, esse trabalho busca percorrer um caminho parecido: apresentar Bento Rodrigues e sua história através da memória dos sujeitos que constituíram o subdistrito. Entretanto, diferentemente de Bosi (1994), nosso olhar se direciona para um espaço que não apenas sofreu modificações urbanas, mas que foi completamente devastado por rejeitos de mineração.

Como ponto de partida, é preciso relembrar o lugar. E relembrar o subdistrito é relembrar como ele cresceu e construiu vínculos com seu cenário natural, ou seja, com sua arquitetura singular. É nesse sentido que Pinheiro e Silva (2004), ao descreverem a simbologia das cidades, argumentam que os textos produzidos pelas povoações não são os únicos elementos responsáveis pela fixação dessa memória. Para eles, “a própria arquitetura urbana cumpre esse papel” (PINHEIRO E SILVA, 2004, p.21).

Nessa perspectiva, preservar um lugar é também preservar, muitas vezes, aquilo que se considerada sagrado. É como observa Ruskin (2008), teórico da preservação na Inglaterra do século XIX, quando aponta o caráter de santidade que cada casa deveria ter:

Referências

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