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Palavra, olha e silêncio em Dom Casmurro

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Academic year: 2020

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PALAVRA,

OLHAR E SILÊNCIO

EM

DoM CASMURRO*

Erick

Ramalho de Souza Lima··

RESUMO

E

ste trabalho almeja demonstrar o processo de individuação de Ca-pitu através da construção da palavra, do olhar e do silêncio em Dom Casmurro. Tal processo permite que Capitu transforme-se na lin-guagem do narrador, interferindo, assim, na própria estrutura da narra-tiva.

~

enialidade, quando tecida em Letras, tende a provocar dúbia reação de a fas-amento e aproximação. De Machado de Assis, é arriscado afastar-se por

ausa da adjetivação "clássico", que provoca certa inércia crítica contra a qual se debate qualquer novo estudo acerca de sua obra. A aproximação costuma ocorrer, por outro lado, pela busca de explicações extraliterárias para a expressão do gênio, justificando-a, por exemplo, por causas físicas, como pelo fato de o próprio Machado de Assis ter invocado "a sua condição de míope, salientando que a vant a-gem deste é exagerar onde as grandes vistas não pegam". (Gomes, apud Bosi, 1996, p. 369)

Aqui se crê, todavia, na genialidade como processo dinâmico, mais que abstração no vácuo existencial ou produto intelectual. Processo que se faz sempiter -no no momento de cada leitura, quando signos, a princípio negros e estáticos na ti -pologia do papel, movimentam-se em significados que penetram os recônditos da al -ma rumo à superação do lugar comum. Deve-se, portanto, uma vez mais tratar de Dom Casmurro, 1 sem pretender serem assim exauridas possibilidades interpretati -vas ou interesse por aspectos dessa obra, sobretudo, se a ensaística literária devid

a-• I" lugar no concurso de monografias ''A obra de Machado de Assis", prêmio CESPUC/Minas Gerais 5/99, pa -ra alunos de graduação.

··Aluno do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

1 A edição aqui utilizada é ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Cultrix, 1965. Todas as citações serão indicadas apenas pelo número de página.

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PALA\"RA, outAR E s1Li·.:-.ICIO 1·.~1 DoM CASMURRO

mente realizar-se como atividade distinta daquela do "longo verme gordo" colhido por Bentinho de um alfarrábio c seu simples roer de textos, independentemente da natureza e do prazer ou ódio que nos vermes despertaria.

Pretende-se, aqui, demonstrar como dois artifícios lingüístico-literários es-truturais de Dom Casmurro (deslocamento da palavra e instituição do silêncio sob a égide da construção discursiva do olhar de Capitu) ativam, enquanto estratégias dis-cursivas, o processo de individuação de Capitu, a fim de equipará-la à própria figura do narrador (fundamental ao romance autodiegético), a ponto de promover a rever -são diegética que altera os rumos da narrativa. Analisar-se-á a eclosão deste processo a partir das relações entre forma do discurso (significantes) e seu conteúdo (signifi-cados), sempre se atendo à estrutura lingüística do romance como nascimento de seus temas, mais que preocupando-se com a análise temática que independe da for -ma estética essencial ao texto literário.

PROLEGÔMENOS À INDIVIDUAÇÃO DE CAPITU:

O OLHAR, O SILÊNCIO E A PAlAVRA DESLOCADA

Ao desestruturar a neutralidade dos fatos e impossibilitar o conhecimento da versão de Capitu, a condição autodiegética2 da narrativa, cuja análise é recorrente na crítica machadiana, irrefutavelmente assegura a dúvida essencial a Dom Cas-murro. A peculiaridade dessa característica no romance, entretanto, é ocorrer simul

-taneamente a outro artifício fundamental: o complexo de convergência de opostos, o não delinear dos limites entrefictum efactum pretendidos em outras estâncias. Tra

-ta-se do sistema especular de reflexos mútuos e internos que refletem movimento de idas e vindas - extra, intra e metatcxtual- entre passado e presente (Matacavalos e Engenho Novo), enredo e "realidade" (por intermédio dos vocativos ao leitor), m e-tatexto e intertexto (pela metalinguagem que demarca a criação acompanhada de ci

-tações diretas a autores outros), dentre vários outros.

Além de relativizar não apenas o enredo, mas a estrutura romanesca, os r

e-cursos supracitados convergem, segundo aqui se nota, para a criação de "ambiente" discursivo dialético e dinâmico dentro da narrativa. Trata-se de toei específicos que permeiam a estrutura textual profunda com dinâmica e constituição discursivas su -ficientes para dialogar com o plano primeiro (estrutura superficial). Tais loci, antité-ticos à linearidade prototípica, inserem-se na estrutura dinâmica da obra e,

subja-2 Adota-se, conforme Reis & Lopes (1987, p. 101-102), a definição de "diegesc" como "universo cspacio-tcmpo-ral no qual se desenrola a história" ou ··o universo do significado, o 'mundo possível' que enquadra, valida c

confere intcligibilidadc à história [do qual! ( ... )formaram-se outros termos (dicgético, intradiegético, homo-diegético, etc.)", corrcspondendo autodicgético ao "narrador em primeira pessoa ( ... )como entidade colocada

em tempo ulterior em relação à história que rclaw [c eclode sobrei( ... ) uma distância temporal mais ou menos

alargada entre o passado da história c o presente da narração". (Reis & Lopes, 1987, p. 205)

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Erick Ramalho de Souza Lima

centes ao discurso de Bentinho, automaticamente excluem as possibilidades de na r-ração heterodiegética.

Nessas brechas discursivas, constrói-se, paralelamente à voz central de Ben-tinho, a personalidade de Capitu, a qual se reflete na estrutura superficial pela bi vo-calidade do narrador (cuja voz é o único contato entre Capitu e o leitor). Assim, sob a égide dos fatos narrados segundo a memória/imaginação de Bentinho, Capitu a r-quiteta-se individualmente na estrutura textual profunda através do desvio ou subli-mação semântica arraigada ao significante que compõe a narrativa, permitindo des -locamentos de sentido rumo aos "lugares discursivos" acima referidos, no que aqui se denomina deslocamento da palavra.

A bem da verdade, a partir de Kristeva ["A escritura instaura uma outra le-galidade. Sustentada não pelo sujeito do entendimento mas por um sujeito desdo-brado, e até pluralizado, que ocupa não o lugar da enunciação, mas lugares permu -táveis, múltiplos e móveis", (apud Goulart, 1993, p. 17)], Goulart percebe

o surgimento de um outro sentido que perlllrba não apenas a previsibilidade s

emân-tica do discurso mas também o sujeito enunciadO/; deslocando-os e marcando-lhes um outro luga1: Daí a inutilidade das suposições dos que querem centrar o lugar do sentido

na "verdade" do presumível discurso do autor. Como se vê, o que caracteriza a escritu

-ra é exatamente a sua complacência com o não-lugar do sentido, de vez que este é or e-sultado do deslizamento contínuo a que os significantes estão submetidos na prática

discursiva. (Goulart, 1993, p. 17-18)

De fato, aqui se enfatiza a necessidade de perceber como, contrária à "pre-visibilidade do discurso", a insurreição da individualidade de Capitu (deslocada para o "não-lugar do sentido") faz-se através "do deslizamento contínuo a que os signifi -cantes (no caso, do narrador Bentinho) estão submetidos na prática discursiva (aqui, a narrativa de Dom Casmurro)".

Para concretizar literariamente esse processo, Machado torna dois artifícios recorrentes em Dom Casmurro, a hipérbole e a variação entre discurso direto, indi -reto e indireto livre. Quanto à primeira, Gomes lembra que:

Há hipérbole por excesso- diz o Padre Antônio Vieira-, e hipérbole por diminuição:

e ambas mentem para chegar à verdade: "ut ad verum mendacio veniat" (Sêneca). A

hipérbole por excesso diz o muito que se não pode cre1; para que se creia o que é; e a hi-pérbole por diminuição diz o pouco que se pode dizer, para que se creia o que será.

(Gomes, apud Bosi, 1982, p. 369)

Lê-se de fato em Dom Casmurro que "o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustan -do-se" (p. 99). Tal duplicidade cria o movimento descentralizador da narrativa en-quanto a variação entre discursos contribui com o dinamismo necessário para criar a

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PALAVRA, OLIIAR E SILÊNCIO nt 00!11 CASMURRO

complexidade do segundo plano discursivo. Isso pode ser notado na metáfora dos olhos de Capitu, o "mundo interior e inexplorado" que Bentinho debalde tenta ade

n-trar, na típica reação humana de buscar apreender o desconhecido por hipóteses ("Olhos de ressaca? Vá, de ressaca") as quais, não encontrando resposta no empiris-mo, remetem-se à metafísica apaixonada: "Trazia não sei que fluido misterioso e

enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca". (p. 99)

O discurso direto, além de garantir "teatralidade" ao texto machadiano (co n-soante ao theatrum mundi de Shakespeare cuja representação metaliterária acha-se

no episódio da ópera do capítulo IX), serve de estância primeira dialética de um se-gundo âmbito, o discurso indireto, ambos entremeados pelo discurso indireto livre a

fazer com que todos, afinal, permitam uma dinâmica de vozes, ecoando distintas ou em uníssono, permeadas por um silêncio velado. Tudo a permitir, além da função

es-tética e da garantia das próprias características essenciais da narrativa, o ambiente

propício ao deslocamento da palavra para estâncias de transitoriedade c

transcen-dência em relação ao plano primeiro e imediato da leitura, a estância de manif esta-ção de Capitu.

A bem da verdade, enquanto o discurso indireto traz "o sentido intelectual e não a forma lingüística" da fala e o indireto livre é, para Machado, "recurso

subsi-diário para encaminhar os diálogos até um clímax em discurso direto ou comunicar

pensamentos necessariamente inconsistentes e difusos do personagem", o discurso

direto faz da narração "imaginária representação teatral" (Câmara, 1979, p. 26). A s-sim, Capitu transita pela complexa rede discursiva de Dom Casmurro, ocupando

"posições" diversas na estrutura da narrativa.

Faltaria, contudo, urdir esta personagem construída de maneira dinâmica

na estrutura profunda da obra à estância primeira, ao significante. Isto é resolvido pela construção sintática do olhar de Capitu, resguardando-lhe instantes fulcrais de silêncio. O silêncio é aqui visto por seu uso retórico (permitir a expressão de Capitu por estratégica dialética, "dum tacent, clamant", conforme aforismo latino) e artísti -co (velar significados nos invólucros de que se constitui a literatura) no processo de criação (enunciação) artística, mais que reprodução de traços do discurso pragmáti

-co sendo, logo, observável mesmo sem verbos específicos ("calar", "silenciar", etc.). Assim, é impossível concordar com Meyer, que afirma em seu ensaio "O

romance machadiano: o homem subterrâneo", ter faltado a Machado de Assis "uma intuição mais fina do valor do silêncio na estruturação de seus romances [já quel o leitor precisa de um espaço próprio e de uma franja de silêncio" (apud Bosi, 1982, p. 360). O silêncio, como se sabe, não está no enunciado de Dom Casmurro, onde foi

procurá-lo o crítico, mas na enunciação, conforme aqui se deseja demonstrar. Sim, pois, se toda a fala de Capitu atinge o leitor através da bivocalidade de Bentinho,

res-ta à hermenêutica do silêncio interpretar a expressão de Capitu deslocada à estrutura

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Erick Ramalho de Souza Lima

profunda nos instantes em que o narrador detém-se na descrição de seu olhar. Ob-serve-se, por exemplo, a exposição de Bentinho do risco de ir para o seminário:

Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notícia era a que me afligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se cor de cera.

-Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminário; não entro, é escusado teimarem comigo; não entro.

Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-se em si e deixou-se estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu, para darfor-ça às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia crer nem descre1; não parecia se-quer ouvir; era uma figura de pau. (p. 52)

Enquanto Bentinho põe-se a buscar soluções por inania uerba, Capitu olha em silêncio e a descrição de seu olhar é o mecanismo de manifestação de sua interi o-ridade. Tomada pela sinceridade psicossomática ("fez-se cor de cera"; "parecia uma figura de pau"), é capaz da introspecção ("recolheu os olhos em si e deixou-se estar com as pupilas vagas e surdas") do sujeito íntegro, dotado de consciência e de in -consciente.

Ao invés das vãs ameaças de Bentinho, Capitu atém-se à introspecção: "Ca-pitu refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo aper-tado dos olhos" (p. 54). Obviamente, surge uma ponta de ironia nessa construção, já que caracterizar os olhos de Capitu como "apertados", quando ela pensa, é singel a-mente dizer que ela necessita de certo esforço para fazê-lo, como se fosse-lhe penosa tal tarefa. Isso, porém, não diminui a existência da interioridade confirmada, por exemplo, na cena do canapé:

Caímos no canapé, e ficamos a olhar para o ar. Minto; ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim ... Mas eu creio que Capitu olhava para dentro de si mesma enquanto que eu fitava deveras o chão ... (p. 96)

Nesse trecho, a incerteza de Bentinho segue os olhos de Capitu em movi-mentos desbravadores de espaço. Enquanto ele, absorto em sua inocência, olhava para o ar e cria que Capitu estava a fazer o mesmo, ela "olhava para o chão", autôno -ma e discordante. Bentinho, ao perceber o desafio ocular de Capitu, segue-a, sem, contudo, conseguir acompanhá-la na tarefa introspectiva que garante a ela a indi vi-dualidade ("Capitu olhava para dentro de si mesma") e preocupa-se com a imersão

individual dela ("Quando tornei a olhar Capitu vi que não se mexia, e fiquei com tal medo que a sacudi brandamente") (p. 96). Ela, afinal, volta à realidade exterior ("Ca-pitu tornou cá fora") sem esquecer sua tarefa pensante, "Capitu refletia, refletia,

re-fletia ... ". (p. 96)

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PAL<\VRA, OLI-lt\R E SIU~NCIO EM DoM CASMURRO

O olhar, motivo central da cena acima, é, na verdade, um processo de in

-trospecção de vários níveis, pelo processo que Lacan assim descreve:

em nossa relação com as coisas, tal como ela se constitui por intermédio da visão e é or-denada nas figurada da representação, alguma coisa desliza, passa, transmite-se, de de-grau em dede-grau, para estar de alguma forma sempre aí elidido- é isso que se chama

olhar. (apud Branco, 1995, p. 20)

Capitu, por essa visão "ordenadora" do mundo biofísicosocial, olha para

apreender, intratextualmente, a realidade transfigurada em narrativa literária (plano

da criação) e revela, pelos" deslizamentos" dos signos de sua visão, os diversos níveis ("degraus") que o compõem enquanto sujeito.

Pelo fato de Bentinho não ter acesso aos "degraus" mais distantes da

interi-oridade de Capitu, resta-lhe, enquanto narrador, descrever a exterioridade que

ca-racteriza o processo, ou seja, comentar as manifestações superficiais da dinâmica in-terior de Capitu. É exatamente o que ocorre, além da cena do Canapé, no velório de Escobar:

Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas( ... )

Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da vilÍva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã ... (p. 207)

O clímax dessa cena ocorre pela angústia de Bentinho (e do leitor) ao tentar

debalde conhecer o que se passa dentro de Capitu, pois ele não pode ir além das ma-nifestações físicas do fenômeno (o movimento dos olhos e as lágrimas), o qual nada

mais é que o resultado de complexa rede introspectiva à qual é impossível ter acesso, salvo tivesse Capitu a condição autodiegética no romance.

Note-se, tanto nesse episódio quanto na cena do canapé, a presença im

-prescindível do silêncio enquanto indício ou ação daquele em estado de in trospec-ção. É este silêncio que demarca a fronteira entre a percepção de Bentinho e o misté-rio intrínseco à alma feminina de Capitu quando ela se cala a florescer interiormente

em signos, tendo os olhos a servir-lhe como arautos da interioridade, pontas do i

ce-bergue de linguagem, que ela interiormente possui, sólido o suficiente para substi

-tuir as palavras.

A angústia de Bentinho é causada justamente ao defrontar-se com o desco-nhecido-os segredos imersos em Capitu -e a decorrência disso ultrapassa a per

so-nagem e alcança o narrador, interferindo-lhe no ato de narrar. A dúvida construída sobre a voz do narrador serve, por sua vez, à pseudo-desconstrução (Riedel, 1974, p. 94) do texto machadiano, como no trecho em que quase em uníssono, autor e narra

-dor, constroem sintagmas para destruir certezas: "falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis: risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos somente uma cri

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Erick Ramalho de Souza Lima

tura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs" (p. 78 e 79). Da impenetrabilidade da personagem Bentinho no âmago de Capitu, surge a dúvida que interfere na narração, em Matacavalos, de Bentinho e permite, por parte de Ma

-chado de Assis, a relativização das barreiras da (meta)literatura.

Além desse uso do silêncio, existem situações de deslocamento da palavra (pseudo-silêncio, talvez) em que Capitu manifesta-se pela escrita. Nesses trechos, o muro e o chão servem de anteparo à palavra de Capitu, projetada por deslocamento. Tome-se, por exemplo, a atitude de Capitu ao temer a ida de Bentinho ao seminário:

-Não fale em morre~; Capitu!

Ela teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no

chão; inclinei-me e Li: mentiroso.

Era tão estranho tudo aquilo que não achei resposta. Não atinava com a razão do

es-crito, como não atinava com a do falado. Se me acudisse ali uma injúria grande ou

pe-quena, é possível que a escrevesse também, com a mesma taquara, mas não me

Lem-brava nada. Tinha a cabeça vazia. (p. 99)

Após desafiá-lo, Capitu cala-se, sorrindo, e projeta sua palavra no chão, a fim de conduzir a ação de Bentinho para ler o que está escrito- a palavra de Capitu está em itálico no original para realçar a bivocalidade do termo. Bentinho, por outro lado, é incapaz de expressar-se pelo mesmo meio (o deslocamento da palavra) de Ca-pitu e, perdido com a voz central da narrativa, acabar por subjugá-la a Capitu, pois ele "tinha a cabeça vazia".

Se silêncio, enfim, é enigma, faz-se necessária a dissimulação, pois nin

-guém, diz Bacon, "can be secret, except he give himself a little scope of diss imulati-on; which is, as it were, but the skirts o r train o f secrecy" (Bacon, 1995, p. 19) .3 Para

tanto, Capitu faz uso astuto da linguagem como modus operandi da dissimulação e, denotando personalidade e livre arbítrio, alcança a ironia (estância congênere da pri

-meira, do grego ElpWVELa, "dissimulação") por valer-se das nuances entre ser e parecer, já que "a linguagem de Capitu mostrava uma coisa e significava outra, mui-to diversa da aparente" (Garbuglio, op. cit., p. 464). A tendência de alguém, segundo Bacon, frente ao segredo velado por outrem, é:

so beset a man with questions, and draw and draw him on and pick it out o f him, that,

without an absurd silence, he must show an inclination one way; or 1j he do not, they

wiLL gather much by his silence as by his speech. As for equivocations, or oraculous

speeches, they cannot hold Long. (Bacon, 1995, p. 19)4

3 "Pode ser secreto, a não ser que dê a si mesmo algum escopo de dissimulação, o que é, como se fora, os véus ou a continuidade do segredo". Minha tr:,dução.

4 "T:1nto ameaçar alguém (man esna acepção atual de one, "indivíduo") com pergunt:1s, indagando-o para ti

-rar-lhe informações que, sem absurdo silêncio, ele acabaria demonstrando inclinação para um lado; ou, se não, tenta-se apreender tanto de seu silêncio quando de sua fala. Quanto aos equívocos ou dizeres oraculares, não surtirão efeito por muito tempo". Minha tradução.

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PALAVRA, OLHAR E SILÊNCIO EM DoM CASMURRO

Essa descrição adequa-se perfeitamente à conduta de Bentinho que, ao tentar colher sentido tanto do silêncio de Capitu quanto da fala dela, dá vazão à sua índole fantasiosa que busca significados na possível dubiedade (tal qual dos oráculos) no discurso de Capitu.

Isto denota, de fato, a (re)criação de artifícios de construção de personagens femininas marcantes pela via da metaliteratura, fundamental na criação de Dom Casmurro. A inovação de Machado de Assis consiste em transfigurar tais artifícios gerais em mecanismos específicos da prosa moderna, repercutindo, por exemplo, a grandiloqüência logopaica da Ilíada- em que, sob lanças a cruzar os céus helênicos e naus que, furiosas e apaixonadas, cortavam mares, Helena, ainda que razão da guerra, deleita-se, incólume, como rainha, mais que cativa-na conduta de Capitu

-apaixonada mas calculista a fim de reverter a influência de Dona Glória sobre a vida

de Bentinho.

Se "Capitu é um anjo" (p. 185) e "cigana oblíqua e dissimulada" (p. 63), Helena de Tróia (aquéia e, logo, onomasticamente dúbia) é vista por Licofronte pela "ambigüidade( ... ) entre dois epítetos: Pephnaías kunós ('cadela de Pefnos') e tréronos

('pomba tímida')". Dona Glória, por outro lado, é a figura antagônica não apenas de Capitu, mas reflete a tendência da mulher tradicional desafiada por Helena entre os gregos e

J

ulieta no Renascimento. Veja-se, para tanto, a descrição de Dona Glória por Bentinho, revelando atitudes inconcebíveis em Capitu: "O [retrato] de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: 'sou toda sua, meu guapo cavalhei -ro!' O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: 'Vejam como esta moça me quer"'. (p. 34)

Mesmo o possível adultério de Capitu serviria, em oposição à atitude passi -va da mãe de Bentinho, como afirmação de sua personalidade. Observe-se que pela distinção entre moral- constituição sociocultural de valores-e ética-assimilação e reformulação individual dos primeiros-, Capitu, se optou por infringir a leis sociais do casamento (moral), estaria amalgamando, para o bem ou para o mal, seus valores (ética), independentemente dos padrões morais brasileiros do século XIX.

Verificam-se, pois, em Capitu: consciência; equilíbrio, raro nas persona

-gens masculinas, que oscilam entre arroubos de paixão e racionalidade; a manifesta -ção (consciente) de uma volição e (inconsciente) de um desejo para, afinal, constituir a integridade do sujeito. Isso condiz com o processo de individuação protagonizado pela "alma" no mito de Eros e Psiquê quando dos desafios de Afrodite, do qual Brandão conclui que: "a difícil tarefa com que se defronta qualquer psiquê feminina em seu caminho para a individuação: ela deve abandonar o anseio pelo que está pró-ximo em função de um objetivo distante e abstrato" (Brandão, 1995, p. 245). Garbu -glio lembra, no que se pode entender como próximo do "objetivo distante e abstrato" de Brandão que:

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Erick Ramalho de Souza Lima a linguagem de Capitu vela as intenções, deixa na penumbra os objetivos que tem em mente, não só para facilitar a remoção dos obstáculos por acaso interpostos, como para não prejudicar sua conquista lenta, tortuosa, mas acima de tudo segura. (Garbuglio, apud Bosi, 1982, p. 464)

As características supracitadas podem ser verificadas em diversos trechos de

Dom Casmurro, mais ou menos consoantes aos intertextos machadianos. A saber, "Capitu tinha meia dúzia de gestos únicos na terra" (p. 215); não submete suas

von-tades à palavra de Bentinho (como na recusa das cocadas, cap. XVIII); e, ao ser acu-sada de envolvimento amoroso com Escobar, ri e diz "em um tom juntamente irôni -co e melancólico": "-Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus

ciú-mes!". (p. 224)

INDrvÍDUO EM CONFRONTO COM O OUTRO NA NARRATIVA: A REVERSÃO DIEGÉTICA

Encontram-se, em Dom Casmurro, estratagemas estruturais (o silêncio sob a égide da construção do olhar e deslocamento da palavra e interferência lingüística) os quais se erguem sobre a espinha dorsal da narrativa (a condição autodiegética e o complexo arquitetônico de opostos). A eles, adicionam-se minúcias lingüísticas como as construções hiperbólicas e a variação entre discurso direto, indireto e indireto li -vre.

Tudo isso, afinal, operacionaliza as condições ideais para que Capitu possa, dentro da narrativa, não apenas individualizar-se, mas sobrepujar-se a Bentinho, quer enquanto personagem (intratextualmente, ou seja, no enredo) quer na posição de narrador, quando de fato opera o que aqui se denomina reversão diegética.

Assim, surgem indícios da interioridade de Capitu pelo silêncio marcado na estrutura superficial da descrição/construção sintática de seu olhar. Além dos tra -ços que lhe asseguram a individualidade, a palavra de Capitu deslocada rumo ao se-gundo plano discursivo-e a interferência desse sobre o plano primeiro regido pela

voz de Bentinho- dá-se a ponto de alterar a ontologia da narrativa de Dom

Casmur-ro.

A prz'ori, deve-se perceber que, ao individualizar-se, Capitu opõe-se enquanto

sujeito à figura de Bentinho (em termos sartrianos, principalmente) e a linguagem é

reflexo imediato disso, pois, como ressalta Garbuglio, "existe um profundo

desen-contro que as articulações da linguagem só fazem avultar, alargando a distância que

entre eles desde cedo se manifesta". (apud Bosi, 1982, p. 463)

Esta manifestação lingüística de Capitu é o que realmente interessa aqui,

já que ela será a via central da alteração dos rumos metaliterários da narrativa.

Note-se que a estrutura de Dom Casmurro (o romance de busca de Frye), por ter Benti

-nho à procura de sua identidade ("o meu fim evidente era atar as duas pontas da

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PAI~\\'RA, OLIIAR E SILÍ,NCIO EM DoM CASMURRO

da, e restaurar na velhice a adolescência") (p. 25), baseia-se na memória que urge

transmudar-se em linguagem ("há dessas reminiscências que não descansam antes

que a pena ou a língua as publique", p. 119).5 Memória que é (des)motivada pela

ausência da mulher amada ("não consegui recompor o que foi nem o que fui"), a

qual interfere no narrar em busca do prazer ("contando aquela crise do meu amor

adolescente, sinto uma cousa que não sei se explico bem, e é que as dores daquela

quadra, a tal ponto se espiritualizam com o tempo, que chegam a diluir-se no prazer.

Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros"). (p. 145)

Claramente, tem-se a situação daquele que necessita verter a memória em

linguagem como modo de manter viva a relação com a amada ou de procurar respo

s-tas para o que poderia ter sido, condição sine qua 11011 para a literatura. Assim,

Benti-nho dá vazão a seu inconsciente na transposição do passado lembrado\imaginado

(criado pelo autor) para o ego-hic-nunc. Ora, se "o inconsciente é o discurso do Ou-tro" (Lacan, apud Branco, 1995, p. 20) e Capitu é a única personagem de Dom

Cas-murro a constituir-se solidamente através de uma posição singular na estrutura da

narrativa (somente ela é arquitetada no segundo plano discursivo pelo deslocamento

da palavra), a narração não sofre apenas a interferência da fala de Capitu frente à

personagem Bentinho, mas Capitu é a própria linguagem (uerbum) que constitui a

fala (uox) do narrador.

A transposição de Capitu, enquanto linguagem, do segundo plano discur

-sivo (palavra deslocada) rumo ao plano primeiro (o da narração em si), ocorre pelos

espaços da fala de Bentinho, a qual, sabe-se, "tem os flancos abertos, as fendas escan

-caradas, por onde penetra a fala tortuosa e orientadora" de Capitu (Garbuglio apud Bosi, 1982, p. 464). Tal processo é aquele descrito por Lacan: "o arroio onde se situa

o desejo não é somente a modulação da cadeia significante, mas o que corre por

bai-xo( ... ) o que no ato significado passa de um significante ao outro da cadeia, sob todas significações" (apud Bosi, 1982, p. 98). É exatamente pelo deslize, inconsciente para

Bentinho, dos significantes (uerba)- ainda que conscientemente produzido pela

pe-na calculista de Machado- que Capitu verte-se na linguagem do narrador.

Jamais se deve esquecer que se está tratando de texto literário e pela condi

-ção de arte da palavra, Capitu, ao tornar-se linguagem, é a própria essência de Dom

Casmurro. Apesar de a estrutura diegética do romance estabelecer-se pela voz de

Bentinho e seus pronomes de primeira pessoa (uox mea), é a palavra ontológica de

Capitu (eius uerbum, a segunda pessoa em relação ao narrador-personagem) que

co-5 Não convém misturar as figuras de narrador e autor. Este conscientemente elabora a inocência c os traços

mcmorialísticos de Bentinho, sobre cuja linguagem Capitu constrói-se para, sob a tutela do autor, promover a reversão dicgética. Em termos machadianos, todavia, este processo deve ser indagado dentro do romance, co-mo na fala de Bentinho: "um antigo dizia arrencgar de conviva que tem boa memória. A vida é cheia de tais convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova de ter a memória fraca seja exatameme não me acudir agora o nome de tal antigo" (p. 119). Apesar de nomes c datas extinguirem-se com facilidade da memória do

narrador, Capitu vive incólume nela, enquanto significante da própria cxisti:ncia dele.

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Erick Ramalho de Souza Lima

manda o fluir da narrativa, deslizando seus significados pelos significantes de

Benti-nho (uox mea eius uerbo ),6 os quais refletem, ipso facto, a expressão individual de Ca-pitu.

Para que isto ocorra é necessário, ademais, que existam "orifícios" na fala

de Bentinho, para que Capitu, através de sua individualidade, nela possa adentrar verbalmente. Tais "espaços" discursivos, cuidou o autor de construí-los em diversas

instâncias na personalidade de Bentinho. A tendência à cisão interna e, principal -mente, o medo de que isto ocorresse já os percebera Gledson (1991), ao defender que a recusa da paternidade de Ezequiel por Bentinho advém do questionamento do fa-to de como um mesmo "eu" poderia estar no filho e nele mesmo. Conforme Gl ed-son, esse

é um problema que ele [Bentinho] "resolve" mais tarde, com lógica impecável, deci -dindo que o filho não é seu. Pode-se suspeitar que, na verdade, o "eu" seja quimérico, mas não o é para Bento, que continua convencido não só da sua existência mas

tam-bém da sua inviolabilidade, e quando está ameaçado pela "divisão" (11 divisão, que foi sempre uma das operações difíceis para mim .. " [I, 898]) reage em autodefesa.

(Gledson, 1991, p. 39)

Embora isto não demonstre diretamente o processo de reversão diegética, comprova, ao tratar do temor de Bentinho pela cisão, a suscetibilidade desta per so-nagem à interferência de outrem em seu inconsciente. Da mesma forma que a pre

-sença de Ezequiel traz à tona o medo pela clivagem do "eu" de Bentinho, a ausência de Capitu no ser casmurro do Engenho Novo permite a existência de flancos, que Capitu pode penetrar quando transformada na linguagem que serve de arauto às memórias de Bentinho e, extraliterariamente, na matéria prima de que se compõe

Dom Casmurro.

Cabe notar, todavia, que a manifestação de Capitu dar-se-á como processo eminentemente lingüístico, ainda que Gledson tente perceber o processo de divisão através de nuances temáticas. Faz-se necessário, para tanto, recorrer a Lacan:

O efeito da linguagem é a cawa introduzida no sujeito. Por este efeito, ele não é causa

de si mesmo, mas traz em si a larva do que o racha. Pois sua causa é o significante sem o qual não haveria 11enhum sujeito no real. Mas este sujeito é o que significante repre-senta, e ele não saberia nada representar senão para outro significante. (apud Branco,

1995, p. 32)

6 A voz do narrador (uox mea) constrói a narrativa através da palavra de Capitu (eius uerbum), tendo-a como modo narrantes (ablativo), portanto uox mea eius uerbo, ou seja, "minha voz pela palavra dela". A polissem ia c universalidade do termo latino uerbum pretendem, aqui, envolver não apenas a palavra projcta(b pela fala, o

discurso objetivo pelo qual Capitu embater-se-ia contra a palavra do narrador Bentinho em alguma espécie de logomaquia. Objetiva-se mais que o Jogos da mulher imcligeme, a imcrrnitência passional que equilibra-se

em Capitu, sobrepujando a noção de ratio implicita em Jogos rumo à plenitude das estâncias não pronunc ia-das do discurso.

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PALAVRA, OU-lAR E SILI~NCIO EM DoM CASMURRO

Ao considerar-se a divisão interna de Bentinho reconhecida por Gledson,

resta perceber que, ao tomá-lo como "sujeito no real" (no caso a realidade estetica

-mente transfigurada do romance)/ cuja única forma de existência é o significante

("a causa introduzida no sujeito"), Capitu é, claramente, a própria linguagem intro

-duzida em Bentinho. Ela é "a larva do que o racha" entre Matacavalos e Engenho Novo, manifestando-se bivocalicamente pelo deslize de seus significados através dos

significantes da fala de Bentinho e, obviamente, permitindo a existência de Bentinho dentro das possibilidades da narrativa já que, enquanto sujeito, ele "não é causa de si mesmo"

Eis, portanto, a reversão diegética, ou seja, o processo de transformação

dis-cursiva da cisão interna de Bentinho (intratextualmente construída) através da pr e-sença inconsciente de Capitu na vida da personagem Bentinho e na fala do narrador não apenas interferindo-lhe no narrar, mas fortalecendo-se ao ponto de mesmo in

-verter, em termos extratextuais, a condição tradicional da narrativa autodiegética.

Este processo de reversão diegética apóia-se em condição fundamental: a individu a-ção de Capitu, demarcada pelos indícios básicos da construção do olhar e do silêncio.

Tem-se, portanto, em processos simultâneos bem urdidos: a construção da individualidade de Capitu, ao contracenar int.ratextualmente com Bentinho; a cisão

deste por Capitu, que gera o ser casmurro; a ontologia do narrador a partir da tran

s-formação das memórias de Bentinho na linguagem marcada pela presença/ausência (desejo, enfim) de Capitu; e, afinal, a reversão diegética que se manifesta, além da apreensão geral de Dom Casmurro, por pontualismos cuidadosamente espalhados

pelo autor.

Um desses pontualismos lingüísticos da reversão diegética pode ser visto,

por exemplo, na repreensão de Capitu à vontade de Bentinho de, no seminário, d

e-latar o namoro secreto a Escobar. Ela pretere o pronome possessivo "nosso"-o qual poderia servir como eufemismo de sua individualidade, insinuando sua igualdade/

submissião a Bentinho- para bem demarcar sua condição de sujeito autônomo atra

-vés da palavra autêntica (uerbum ), que se sobrepõe à ação de Bentinho:

No fim de cinco semanas estive quase a contar a este as minhas penas e esperanças;

Ca-pitu refreou-me:

- Escobar é muito meu amigo, Capitu.

7 Valoriza-se aqui a análise do texto literário a partir de sua enunciação sem jamais perder a dimensão estética

que o origina artisticamente. Aqui não se pretende fazer uma análise da veiculação do inconsciente do autor

através das linhas de sua obra, mas perceber os artifícios literários consciente c laboriosamente traçados por Machado de Assis para a construção das personalidades de Capitu e Bentinho, ainda que haja marcas incon

s-cientes do autor nas mesmas. Em suma, objetiva-se demonstrar como, através da atitude consciente c laboriosa de Machado, a construção de Capitu, parte dinâmica da narrativa, faz-se através do discurso de Bentinho, pela

relação entre significante c significado na manifestação do inconsciente, conforme defendido por Lacan. J a-mais se perde a dimensão literária de ambas as personagens c percebe-se que mesmo os atos falhos de

Benti-nho para a expressão de Capitu são permeados pela mão de Machado, objetivando, antes mesmo do devi r psi-canalítico que individualiza Capitu, o objetivo estético de Dom Casmurro.

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Erick Ramalho de Souza Lima

- Mas não é meu amigo.

- Pode vir a se1~· ele já me disse que há de vir cá para conhecer mamãe.

-Não importa; você não tem o direito de contar um segredo que não é só seu, mas

também m~u e não Lhe dou Licença de dizer nada a pessoa nenhuma.

Era justo, calei-me e obedeci. (p. 128-9)

Essa insurreição lingüística de Capitu afronta o status quo da narrativa em

que Bentinho, na tentativa de suprimir a dicotomia "seu/meu" do discurso de

Capi-tu, vale-se da condição plural de "nosso" para tentar dirimir a individualidade dela

sob sua fala. Bentinho afirma, por exemplo, quando da cena em que surpreende

Ca-pitu, ainda menina, a escrever o nome de ambos no muro: "em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós" (p. 46). Essa divergência pronominal bem denota a

con-cepção de individualidade de Capitu a qual Bentinho tenta inconscientemente po

-dar através de sua fala.

Nesses termos, há de se discordar aqui da asserção de Stein, segundo a qual

o "ponto central" de Dom Casmurro "é o eu e não o ela" já que o "escopo inicial [das

memórias de Bentinho é] saber 'o que foi' e 'o que fui"' (Stein, 1984, p. 109). Ora, se

Capitu é a "larva" que racha a personagem Bentinho e, sobremaneira, a peça-chave

da criação do narrador de Dom Casmurro, sendo que sem Capitu não haveria o nar

-rador Bentinho, crê-se que sem o "ela" não haveria o "eu". Tal observação de Stein

provém de fato da negação, por parte desta autora, da individualidade de Capitu, al

-go que fica claro ao questionar "se com Capitu não se terá dado o caso clássico da

mulher ativa e empreendedora em solteira que, casada, se acomoda, passar a ser 'par

-te' do marido e a ele se submete". (p. I 08)

Como se sabe, Capitu não se altera substancialmente após o casamento,

jamais dirimindo, assim, seu processo de individuação e, portanto, garantindo a pr

e-ponderância de seu "eu" (o "ela" do ponto de vista do narrador). Exemplo disso en

-contra-se no capítulo CXXXVIII, quando a acusação direta de Bentinho provoca a

manifestação do sujeito político e social no qual se torna Capitu. Atente-se, pois, às

etapas da fala de Capitu, ao desafiar Bentinho, tomar-lhe a palavra e marcar o in

s-tante fulcral de silêncio para demonstrar, simultaneamente, que o casamento não

lhe dirimiu a força verbal, nem afetou sua personalidade e muito menos interferiu

no seu processo de reversão diegética:

-Não Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho de

-fesa, ou peço-lhe desde já nossa separação: não posso mais!

-Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança ... A vontade de Dew explicará tu -do ... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus, eu creio. Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada. (p. 223-224)

Enquanto texto que garante sua qualidade pelos reflexos mútuos entre

for-ma estética e conteúdo retórico, Dom Casmurro reflete, tematicamente, indícios da

reversão diegética que lhe estrutura a narrativa. Pode-se notar isto na inversão da

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PALt\\'RA, OLIIAR E SIL~:NCIO EM DoM CASMURRO

simbologia da flor quando, relata Bentinho, "Capitu chamava-me às vezes bonito, mocctão, uma flor; outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos" (p. 42).

Observe-se, além da masculinização de símbolo tradicionalmente feminino, a con

-duta ativa de Capitu ao reter as mãos de Bentinho entre as suas, contrariamente à

imagem das alvas mãos das damas francesas retidas (ou assim sonhadas) por seus

pares masculinos.

Todavia, ainda que se encontrem asserções diversas de Bentinho acerca das

idiossincrasias de Capitu - "Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas,

muito menos que outras que lhe vieram depois" (p. 55) e ''Assim, apanhados pela

mãe, éramos dous e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio" (p. 79) -, não se deve ignorar o "questionamento do processo de narrar", em Dom Casmurro, que "encontram uma indagação correspondente no próprio

texto que vai se construindo à medida que se interroga e se busca nos seus processos, e vai se interrogando à medida que se vai construindo" (Riedel, 1974, p. 94). A r ever-são diegética é, pois, posta em xeque no seguinte excerto:

Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particulm; mais mulher do que eu era h o-mem. Se ainda não o disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se deve in-cutir na alma do leit01; à força de repetição. (p. 73)

Note-se a condução para a possibilidade de o caráter único de Capitu não ser mera indução de Bentinho. O corolário de que" há conceitos que se deve incutir na alma do leitor"- "incutir à força de repetições" a superioridade de Capitu é rir-se em silêncio dela, ainda que também a rir da ingenuidade de Bentinho- pressuporia

a possibilidade de Capitu na verdade não ser "mais mulher" do que Bentinho "era

homem", embora, decerto, fosse "uma criatura mui particular".

Quanto à metaliteratura, sobretudo, a reversão diegética é referida no diá -logo entre Bentinho e Ezequiel, adulto e recém-chegado da Europa, onde Capitu morrera. Neste trecho, a ironia, além de seu uso tradicional, confirma, em incursão

metaliterária, a reversão diegética, pois não se detém no sarcasmo superficial e im

e-diato (acerca do estereótipo feminino da elite brasileira do século XIX). Note-se que

Ezequiel retrata o estereótipo da mulher romântica em discurso indireto, próximo

da voz do autor-modelo. Isto magnífica a ironia, já que o autor-modelo em uníssono com Ezequiel é aquele que construiu a reversão diegética de Capitu. Confira-se:

94

Ezequiel falou-me em sua viagem à Grécia, ao Egito, à Palestina, viagem científica, promessa feita a alguns amigos.

- De que sexo? pe1guntei rindo.

Sorriu vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca haviam de entender uma ruína de trinta séculos. (p. 309)

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Erick Ramalho de Souza Lima

CONCLUSÃO

Remarca-se a reversão diegética, portanto, por três pontos fundamentais,

complementares e intrínsecos à estrutura de Dom Casmurro: as interferências intra

-textuais de Capitu no comportamento e no discurso da personagem Bentinho (na

microestrutura da obra, isto é, no enredo); a progressiva transformação de Capitu na

linguagem (uerbum) que preenche, paulatinamente, os significantes do discurso (uox)

do narrador Bentinho e, em decorrência de ambos, a eclosão do terceiro, ou seja, a

te-mática- interpretada através dos significantes que permitem os anteriores- da

su-premacia da mulher demonstrada pela conduta ao mesmo tempo racional e

apaixo-nada típica das grandes personagens femininas universais, ainda que inédita, até

Dom Casmurro, na literatura brasileira.

Todos esses planos, obviamente, fiam-se com precisão na estrutura multi

-estratificada da narrativa, urdidos à estesia vista nos indícios intratextuais da

indivi-duação de Capitu (construída na descrição do olhar de Capitu, na insurreição de seu

silêncio, na precisão de sua linguagem). A reversão diegética não diz respeito, desse

modo, a processo linear e localizado, mas é equilíbrio de tabuleiro de xadrez, no qual

cada instante não é representado tão-somente pela posição das peças e sim pela rela-ção entre cada uma delas e seus respectivos locais previamente ocupados e os espaços

onde há possibilidade de ocupação na jogada seguinte. Logopeças, de fato, movidas com a frieza mecanicista dos vermes dos livros, ilustradas pela genialidade que de

fa-to se constrói em sempre estado de transformação.

AB

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his paper aims at demonstrating Capitu's individuating proccss through the construction o f the word, the look and the silence in Dom Casmurro. Such process permits Capitu to change hersclfinto thc

narrator's language, thereby interfering in thc literary narrative stru

c-turc itself.

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PALAVHA, OLHAH E SILI~NCIO EM DoM CASMUHRO

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Referências

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