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As leis bárbaras: objeto da História e da Historiografia

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AS LEIS BÁRBARAS: OBJETOS DA HISTÓRIA E DA HISTORIOGRAFIA THE BARBARIC LAWS: OBJECTS OF HISTORY AND HISTORIOGRAPHY

Sylvie Joye

Université de Reims - Institut Universitaire de France Tradução

Flávia Aparecida Amaral

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Resumo: As chamadas leis bárbaras estão entre as fontes mais utilizadas, mas também entre as mais discutidas para o estudo da primeira Alta Idade Média. Nas últimas décadas, um trabalho importante tem sido feito para tentar repensar os contextos e as motivações de escrita desses textos. Os outros tipos de fontes não apresentam, talvez, o testemunho direto ou sistemático da aplicação dessas leis na precisão de delitos e das penas descritas, mas esse talvez não seja o objetivo primeiro do registro escrito das leis. A questão central se torna cada vez mais a da escrita das leis, e não somente da representação da autoridade, da ideia de uma transmissão de direitos antigos, da influência do direito romano. Essas são escolhas técnicas efetuadas no momento dessa escrita, relacionadas à

literacy ou à qualificação dos delitos, bens,

pessoas, que podem ainda nos ensinar muito sobre os reinos pós-romanos. Tentarei, assim, esboçar, ao mesmo tempo, um retrato desses textos e da historiografia que lhes é pertinente, para tentar esclarecer a forma como os historiadores modernos e como os legisladores antigos se ampararam nos documentos normativos.

Palavras-chave: Leis Bárbaras, Instrução, Textos Jurídicos.

Abstract: The so-called barbaric laws are amongst the most used sources, but also amongst the most discussed, for the study of the first High Middle Ages. In recent decades, an important work has been done to try to rethink the contexts and motivations of their writing. The other types of sources do not have, perhaps, the direct or systematic evidence of the application of these laws on the accuracy of criminal offenses and penalties described, but this may not be the primary goal of the written record of the laws. The central question increasingly becomes that of the writing of the laws - and not only that of the representation of authority, the idea of transmission of ancient rights, the influence of the Roman law. These are technical choices made at the time of writing, related to the literacy or qualification of the offenses, goods, people, who can still teach us much about the post-Roman kingdoms. I thus try to sketch, at the same time, a portrait of these texts and of the historiography that is relevant to them, to try to clarify how modern historians and how ancient legislators sustained themselves from the normative documents.

Keywords: Barbaric Laws, literacy, juridical texts.

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Recebido em: 25/04/2016 Aprovado em: 18/07/2016

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As chamadas leis bárbaras estão entre as fontes mais utilizadas, mas também entre as mais discutidas para o estudo da primeira Alta Idade Média. As “leis bárbaras” constituem, com efeito, as fontes principais através das quais os historiadores e historiadoras do direito tentaram reconstituir os costumes e o direito dos “bárbaros” durante e até mesmo antes da formação dos reinos que surgem com a queda do império romano. Nas últimas décadas, um trabalho importante tem sido feito para tentar repensar os contextos e as motivações de escrita desses textos1. Além das controvérsias a esse respeito, há o problema de sua aplicação – que a confrontação com as fontes narrativas não esclarece através de testemunhos diretos sobre a lei ou a justiça – já que frequentemente estão muito longe da lei. Se as diferentes leis foram objeto de estudos pontuais no quadro dos estudos sobre esse ou aquele povo, elas suscitaram, finalmente, menos pesquisas nos últimos anos do que todas as outras fontes que evocam o judiciário e o infra-judiciário. Enquanto as leis foram colocadas à margem das pesquisas realizadas sobre a regulação dos conflitos, aparecia o problema de saber como e o que essas leis bárbaras podiam trazer para o conhecimento das sociedades pós-romanas. É com essa ideia de fazer uma síntese das diversas abordagens aplicadas a essas fontes e de suas contribuições, assim como para direcionar a atenção para seu interesse geral, que Marcelo Cândido da Silva, Bruno Dumézil e eu lançamos, em conformidade com muitos outros colegas, o projeto de um livro coletivo sobre as leis bárbaras a ser publicado na França e no Brasil em 2017, sendo esse texto uma primeira oportunidade para apresentar algumas visões gerais a esse respeito. Elas partem da minha pesquisa sobre a apresentação da família e do casamento nessas leis, mas também dos trabalhos de outros pesquisadores envolvidos nesse projeto, tais como Céline Martin, sobre a construção do código visigótico2, e os de Marcelo Cândido da Silva3, sobre o Pactus Legis Salicae e os preceitos e decretos dos reis merovíngios.

1 Um extraordinário instrumento de trabalho foi desenvolvido por Karl Ubl. Trata-se da Bibliotheca legum, que traz

uma apresentação, uma bibliografia recente e uma lista de manuscritos para cada uma das leis : http://www.leges.uni-koeln.de/

2 MARTIN, C. La réforme visigothique de la justice: les années Recceswinth. In: GUGLIELMI, Nilda

(coord.), RUCQUOI, Adeline (coord.). Derecho y justicia: el poder en la Europa medieval. Buenos Aires: IMHICIHU. – CONICET, 2008, p. 37-5; e sobretudo: MARTIN, C. Le Liber Iudiciorum et ses différentes versions. Mélanges de la Casa de Velázquez, Nouvelle série, n. 41, v. 2, 2011, p. 17-34.

3 Refiro-me aqui a seus trabalhos sobre o roubo na época merovíngia. Agradeço ao autor por ter me

disponibilizado seu texto antes da publicação do livro: DA SILVA, M. Cândido. Uma História do roubo

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O que chamamos de “lei bárbara” ?

Em um primeiro momento, lembremos rapidamente quais são os textos designados comumente pelo nome de leis bárbaras. Distingue-se, tradicionalmente, no seio das leis bárbaras, uma série de grupos que reúnem leis que parecem ter relação entre si, notadamente pela sua maior ou menor semelhança com o direito romano. Essa distinção se dá, em parte, em função dos aspectos formais mais diretos, mas que só se justifica em parte, como veremos. As leis dos visigodos e dos burgúndios são normalmente as mais próximas do direito romano. A segunda comporta também um número relativamente importante de artigos que se preocupam com questões eclesiásticas.

A lei dos visogodos é considerada a mais antiga das leis bárbaras. O primeiro estado de sua redação, o código de Eurico, data do terceiro quartel do século V (um primeiro código de Eurico propriamente dito está conservado sob a forma de palimpsesto). As diferentes leis presentes no Liber Iudiciorum dos Visigodos (o código de lei visigótico tal como promulgado por Recesvinto) têm o nome de seu promotor. Aquelas designadas como

lex antiqua datam de Leovigildo (567-586); as outras leis levam o nome de diversos

promulgadores das coleções seguintes, ou de seu promotor, desde que ele não tenha sido atingido pela damnatio memoriae. A lei dos visigodos aparece como um conjunto muito bem arquitetado que apresenta, além de capítulos de leis propriamente ditas, passagens devotadas a uma verdadeira reflexão sobre a origem da sociedade e a organização civil.

Às vezes chamada de Lex Gundobada, a Lei dos Burgúndios foi elaborada (ou pelo menos significativamente alterada) sob a ordem de Sigismundo (516-524). Ela reúne constituições desse rei e de seus predecessores, sendo mais tarde completada com a inserção de artigos tirados da legislação de seu pai Gondebaudo. Na forma pela qual ela chegou até nós (Liber Constitutionum), a lei dos Burgúndios deve, de fato, muito aos acréscimos e correções adicionadas sob a ordem de Sigismundo, em 517. O Liber

Constitutionum parece ter sido utilizado no reino burgúndio de Gontrão, o neto de Clóvis,

sendo ainda evocado no século IX.

As leis que qualificamos como francas, ou seja, a Lei Sálica, a Lei Ripuária e a chamada Lei dos Chamaves são muito semelhantes entre si. Suas relações com o direito romano são consideradas menos evidentes. A forma mais antiga da Lei Sálica

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é registrada por escrito e datada do início do século VI: é chamada de Pactus Legis

Salicae4. É necessário, no entanto, evitar considerar essas leis como radicalmente diferentes das outras leis bárbaras: as medidas que, por muito tempo, se pensou não terem sido inspiradas pelo direito romano, como a impossibilidade de uma mulher herdar a terra sálica, podem, na verdade, ter antecedentes nas medidas editadas por dirigentes romanos. O padre Du Bos já havia notado isso no século XVIII, em sua história da monarquia francesa. Ele já ligava a impossibilidade para uma mulher herdar a proveniência pública do bem ("feudo"), e daí tirou sua conclusão para a um objeto que lhe interessava prioritariamente: o fato de nunca se ter visto uma mulher à frente do reino ("o primeiro dos feudos").

Os francos forçavam os povos que entravam em sua zona de influência a colocar as leis por escrito: a Lei dos Alamanos e a Lei dos Bavários, registradas por escrito na época merovíngia, são muito próximas uma da outra; a Lei dos Saxões, a Lei dos Frísios e a Lei dos Turíngios foram registradas por escrito sob a influência de Carlos Magno. As leis lombardas são marcadas pela influência das legislações precedentes, notadamente a visigótica. Elas se apresentam sob a forma de um edito promulgado por Rotário, em 643, suplementado por leis promulgadas pelos reis, Liutprand em particular, sem ser modificado em sua substância própria.

Essas leis têm em comum o fato de estarem escritas na língua latina, escolha que sublinha simplesmente a absorção de um modelo até então habitual de legislar. Mesmo os editos dos primeiros reis anglo-saxões retomam esse modelo, sem o uso do latim e apesar de uma presença menor, porém real, de elementos de influência romana. A historiografia, por muito tempo, supôs que as leis dos anglo-saxões representavam o estado mais antigo de um "direito germânico". Em relação ao casamento, procurou-se traços de um estágio de evolução menos avançado em relação ao modelo romano (clássico, o que coloca em si um problema).

4 Na verdade, a versão publicada por Karl August Eckhardt, sob o nome de Pactus Legis Salicae, resulta, em

grande parte, de suas escolhas pessoais, que não correspondem de forma alguma à lógica dos manuscritos. Não se pode considerar essa versão como testemunha confiável da primeira configuração da Lei Sálica, impossível de ser reconstituída, como afirma Magali Coumert (ver conferência dessa autora em Namur, no dia 25 de fevereiro de 2016: La loi salique est-elle inéditable? https://rmblf.be/2016/02/17/conference-magali-coumert-la-loi-salique-est-elle-ineditable/). Ver também: FAULKNER, Th.. Law and Authority in the Early Middle Ages: the Frankish leges in the Carolingian Period. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p. 1-45; UBL, K. Die erste Leges-Reform Karls des Großen. In: Guldentops, G. (ed.), Speer, A. (ed.). Das Gesetz - The Law - La Loi. Berlin/New York: De Gruyter, 2014, p. 75-92. Sobre as “origens” da lei sálica: UBL, Karl. L’origine contestée de la loi salique: une mise au point, Revue de l'IFHA, n. 1, 2009, p. 208-234.

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O vocabulário empregado para descrever a maneira com a qual se concluíam as uniões fez supor a existência de um casamento “por compra”. Foi demonstrado que essa impressão se devia, essencialmente, ao fato de que essas leis são justamente as únicas que não foram redigidas em latim, e que a polissemia dos termos empregados tinha sido negligenciada. O uso de um termo pertencente à mesma família da palavra que significa "comprar" não quer dizer que o casamento fosse uma compra5. Não há nenhuma razão para ver nos artigos em questão a expressão de um direito "germânico" livre de toda influência romana ou cristã, ou para reduzi-los ao testemunho mais rudimentar do direito no Ocidente na Alta Idade Média.

A unidade desse corpus, bem como a sua denominação de "leis bárbaras", devem ser consideradas com precaução, não somente em função dos elementos de diversidade (atualmente relativizados, como vimos) a que já elucidamos. Estudamos aqui um corpus cuja unidade foi em parte construída, como aconteceu frequentemente, pelos editores modernos. O uso do próprio termo "lei" acrescido do nome de um povo é, em muitos casos, o resultado da escolha de um editor moderno. No que se refere à legislação visigótica, a expressão "Lex Wisigothorum" é, em realidade, somente um dos nomes dados por Zeumer à sua edição das Monumenta, nunca tendo sido utilizada na Idade Média6. No máximo,

usou-se o termo Lex Gothorum em certos manuscritos, mas não antes do século IX. O Liber Iudiciorum, título com que é realmente denominado nas fontes contemporâneas e no manuscrito mais antigo, é um código de leis, uma compilação de textos anteriores, aos quais são adicionados, pelo promulgador, novos textos. Se ele não procura tratar os assuntos à exaustão, isso não o diferencia dos códigos da época precedente como o Código Gregoriano, ou mesmo o Código Teodosiano: as constituições que estão ali reunidas e que tomam a forma de reditos (respostas do imperador a casos particulares que vão adquirir força de lei), são realmente classificadas por temas, mas não são exaustivas, notadamente no que concerne ao direito privado. As leis bárbaras, das quais se sublinha frequentemente o aspecto quase unicamente penal, possuem, desse ponto de vista, as

5 Fritz Mezger estudou o problema da significação da raiz germânica kaup- (MEZGER, F. Did the

institution of marriage by purchase exist in old germanic law?, Speculum, n. 18, 1943, p. 369-371. Charles Lefebvre já havia destacado que o pretium que se encontra nas leis bárbaras não tinha, sem dúvida,”o mesmo sentido que tinha na legislação romana. LEFEBVRE, Ch.. Histoire du droit matrimonial français. Paris: Sirey, 1908, t. 1 p. 365).

6 MARTIN, C.. Le Liber Iudiciorum et ses différentes versions. Mélanges de la Casa de Velázquez,

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mesmas características que os códigos. Ao mesmo tempo, os códigos do final da Antiguidade não procuravam reunir todo o direto em vigor em um momento e lugar dados, nem buscavam a todo custo, evitar as contradições. A existência, nos reinos pós-romanos, de elementos do direito oral, principalmente para o direito privado, e de editos que podem parecer estar em contradição com os textos da lei, notadamente no caso franco, não se choca e não traz nada de eminentemente distinto em relação à situação do último século do Império Romano. O Código Justiniano é o primeiro a proibir o uso de qualquer outra coleção, como o fez o Liber Iudiciorum dos Visigodos. De fato, essa medida tardia dos soberanos visigodos corresponde a um momento em que o código visigótico foi consideravelmente ampliado, enquanto que o Código de Eurico parece ter tido uma grande brevidade. Essa característica do Código de Eurico, para Javier Alvarado Palanas, teria relação com o fato de que, nos domínios não abordados, o direito romano teria sido a referência suplementar, e isso ainda na época de Leovigildo7.

Além disso, se a distinção entre as seções das leges e dos capitularia nos

Monumenta Germaniae Historica pode ser justificada sobre alguns pontos, ela não é

natural. Novamente, a situação parece, de início, muito dividida entre o conjuntos das leis francas, ou aparentadas à lei franca, e as outras. A criação dessas divisões no seio das

Monumenta é influenciada pelo interesse central dos membros da Rechtsschule pelo

espaço dominado pelos francos. Os textos que emanam do poder real, possuindo em diversos níveis um aspecto normativo, são reunidos por Boretius nas Capitularia

Merowingica: essa denominação é problemática por vários motivos, já que o termo

capitulária só aparece em um ato oficial do mundo franco no último quartel do século VIII, e que esses textos são, na verdade, de natureza muito heterogênea, o que lhes dá ao mesmo tempo uma unidade e uma singularidade artificiais. Analisando mais profundamente, as diferenças talvez não sejam tão irredutíveis entre a situação franca e a dos lombardos, ou mesmo dos visigodos, ainda que, para alguns desses casos, a relação entre uma primeira série de textos e a que vem em seguida seja diferente, mais em grau do que em natureza: o Código dos Visigodos, que conhece novas promulgações e recusa o apoio real (sem o banir completamente) aos procedimentos judiciários; a Lei dos Lombardos, que preserva o primeiro edito na forma, mas acrescenta novidades; a Lei

7 ALVARADO PALANAS, J.. El problema del germanismo en el derecho español. Siglos V-XI. Madrid: Marcial

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Sálica, aparentemente promulgada várias vezes sem modificações de grande amplitude. Dos reis merovíngios, nos restam somente alguns editos ou preceitos que não se apresentam diretamente como um complemento à Lei Sálica8.

É certo que o aspecto prático de algumas dessas leis é mais diretamente evidente do que de outras. Em razão disso, atribuiu-se a essas últimas um significado em parte simbólico, político e identitário. Assim, enquanto o valor dos manuscritos do Liber

Iudiciorum destinados aos juízes é evocado explicitamente por um dos seus artigos, a

forma com a qual eram utilizadas outras leis, ou melhor, sua escrita, como no caso da lei sálica, é muito mais difícil de definir.

A expressão da identidade de um povo?

Desde o século XVIII, os historiadores franceses viram nos costumes e na cultura "germânicas" elementos profundamente diferentes de tudo o que era a civilização romana, identificada, antes de qualquer coisa, como uma civilização da lei9. A exceção mais

marcante foi sem dúvida o padre Du Bos10, que viu uma larga continuidade de práticas e

de instituições romanas no contexto de uma acomodação progressiva de dois conjuntos, mais do que uma conquista brutal. Ele teve muitos críticos posteriormente, à exceção de Fustel de Coulanges11. Para Mably, em oposição ao poder real absoluto que Du Bos

8 Patrick Wormald não hesita em qualificar essas edições de “novas”; ele também reconhece a influência do

direito romano. WORMALD, P.. The Making of English Law. 1. Legislations and its Limits. Oxford: Wiley-Blackwell, 1999, p. 43. Sobre a tradição do rei romano e a autoridade na órbita franca: ESDERS, S. Römische

Rechtstradition und merowingisches Königtum. Zum Rechtscharakter politischer Herrschaft in Burgund im 6. und 7. Jahrhundert, Göttingen, 1997. Patrick Wormald discute a complementaridade e os estatutos respectivos

da Lei Sálica e dos capitulários à época carolíngia, a partir de estudos dos manuscritos: WORMALD, P.. The

Making of English Law. Op. cit., p. 66-67.

9 JOYE, S. Les notions de Romanité et de Germanité dans les études françaises du XIXe siècle consacrées

au haut Moyen Âge, Mélanges de l’École Française de Rome. Moyen Âge, n. 119 v. 2, 2007, p. 278-296. Sobre Montesquieu: ESDERS, S. Montesquieu über das Absterben und Fortleben des römischen Rechts im frühen Mittelalter (De l'esprit des lois 28), Exempla imitanda. In: SCHUOL, M. (ed.), WENDT, Chr. (ed.), WILKER, J. (ed.), Mit der Vergangenheit die Gegenwart bewältigen? Festschrift für Ernst Baltrusch zum 60. Geburtstag, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2016, p. 29-45.

10 DU BOS, J.-B. Histoire critique de l’établissement de la monarchie française dans les Gaules. Paris:

Nyon Fils, 1734. Sobre Du Bos, ver: WOOD, I. N. The Modern Origins of the Early Middle Ages, Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 29-36.

11 Sobre a feudalidade alto-medieval ver, por exemplo: FUSTEL DE COULANGES, N. D.. L’aristocratie en

France depuis la féodalité jusqu’au XVIIIe siècle, In: HARTOG, Fr.. Le XIXe siècle et l’Histoire. Le cas Fustel

de Coulanges. Paris: Seuil, 2001, p. 306-312 ; e também: FUSTEL DE COULANGES, N.D.. Histoire des institutions politiques de l’ancienne France. 2. Les invasions germaniques et la fin de l’Empire. Paris: Librairie

Hachette et Cie, 1905 [1877]. Estamos preparando, Marcelo Cândido da Silva e eu, um artigo sobre a Lei Sálica na obra de Fustel de Coulanges.

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tentava justificar, os francos se caracterizavam por sua grande liberdade, seu espírito comunitário: ele supunha que os francos começaram a adotar as leis romanas e foi dessa forma que se corromperam, abandonando a liberdade coletiva pela escravidão aos interesses individuais e o caráter imperial (romano) da nova realeza. Alguns autores vão mais longe, fazendo do mundo franco um mundo onde a lei é profundamente estranha. Quando Huguenin Jeune, um autor loreno especializado na história da Austrásia, descreve Brunilda, em 1834, como uma romana perdida em meio aos bárbaros, ele opõe civilização romano-visigótica à barbárie franca. E a civilização é a lei: "a filha de Atanagildo só conhecia a lei e não admitia nada que pudesse fugir à lei"12, enquanto os francos só conheciam a força. A verdadeira lei só poderia ser romana ou copiada a partir de um modelo romano, tal como foi concebida a Lei Visigótica. A Lei Sálica seria então, por natureza, totalmente diferente do direito romano e da Lei Visigótica. Ela é uma "quase-lei", uma pálida imitação da lei. Para Chateaubriand, nos seus Études ou discours

historiques sur la chute de l’Empire romain, la naissance et les progrès du christianisme, et l’invasion des barbares et son Analyse raisonnée de l’Histoire de France depuis le règne de Khlovigh jusqu’à celui de Philippe VI, dit de Valois, a violência dos costumes

bárbaros é palpável sobretudo através do grande número, na Lei Sálica, das menções de ferimentos (dentes quebrados, dedos cortados...). Mas a violência dos fatos descritos nas leis é, para ele, compensada pela raridade das referências à pena de morte. A ausência - ou o caráter alusivo - de passagens que tratam do direito civil (que encontramos, no entanto, nos códigos tardo-antigos, como vimos) é concebida como uma prova do aspecto hiperconflituoso da sociedade franca, obcecada pelo afrontamento e pela violência13.

A ideia de um direito germânico fundamentalmente diferente de seu equivalente romano, notadamente porque ele teria sido fundado sobre costumes populares, ao contrário desse último, está ultrapassada. Considera-se, hoje, muito difícil distinguir quais procedimentos

12 JEUNE, Huguenin Brunechild et les Austrasiens. Première étude sur l’Histoire d’Austrasie, Metz: Lamort, 1834,

p. 23.

13 DE CHATEAUBRIAND, Fr.-R. Études ou discours historiques sur la chute de l’Empire romain, la

naissance et les progrès du christianisme, et l’invasion des barbares. Paris: Ledentu, 1834, vol. 3, p.

152-155. Sobre o romantismo e as leis bárbaras, ver: ARTIFONI, E.. Il Medioevo nel Romanticismo. Forme della storiografia fra Sette e Ottocento. In: Cavallo, G. (ed.), Leonardi, C. (ed.), Menestò, E. (ed.). Lo spazio

letterario del medioevo, 1, Il medioevo latino. Roma: Ed. Salerno, 1997, p. 175-221; GRACEFFA, A.. Race

mérovingienne et nation française: les paradoxes du moment romantique dans l'historiographie française du premier XIXe siècle. In: REIMITZ, H (ed.), Zeller B. (ed.). Vergangenheit und Vergegenwärtigung:

frühes Mittelalter und europäische Erinnerungskultur. Vienne: Verlag der Österreichischen Akademie der

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poderiam ser puramente de origem não-romana: por exemplo, o juramento não parece ter sido um procedimento tão importante para os burgúndios, como bem mostrou Ian Wood. Muitos costumes ou leis provinciais, diferentes do Direito Romano presente nos códigos teodosiano ou justiniano, e apresentando cláusulas similares às das leis "bárbaras", foram considerados durante muito tempo como puramente germânicos, mas não o são.

A procura por uma identidade (cultura, civilização) germânica comum a todos os bárbaros14 e claramente diferente da identidade romana, marcou o interesse pelo uso das leis bárbaras no estudo da Alta Idade Média no século XIX, sobretudo na Alemanha, e influenciou de maneira durável a pesquisa europeia. A real novidade na época desses estudos provinha da elaboração dos métodos da História Científica, fundada na Filologia e na Arqueologia, paralelamente ao desenvolvimento de um nacionalismo exacerbado pela oposição entre franceses e alemães no curso das guerras napoleônicas. Uma vez que o espaço germânico não possuía uma unidade política, se construiu a ideia de uma continuidade geográfica e linguística alemã. A relação entre língua e identidade teve um papel de primeiro plano, teorizada por Jacob Grimm e construída através do projeto dos

Monumenta Germaniae Historica, iniciado em 1819. A língua era o critério de inserção

das histórias dos povos nas Monumenta: todos tinham, a priori, uma língua aparentada às línguas germânicas. Assim, a filologia criou o método e os Monumenta criaram seu objeto, delimitando o espaço dominado pelos povos de língua germânica. Esses espaços são assim integrados à Germânia, e a mutação produzida pela instalação dos bárbaros é reputada como um fato profundamente marcante.

O espírito do povo, o Volksgeist atribuído a Hegel, é invocado, em primeiro lugar, pelos historiadores do direito. Para Karl von Savigny e para o seu discípulo Jacob Grimm, o direito não pode se impor a partir do exterior: ele se desenvolve no curso da história de um povo. Mais uma vez, os pesquisadores alemães se diferenciam da França napoleônica pandectista, onde foi elaborado o Código Civil. Para Savigny, a lei é, antes de tudo, a expressão da consciência coletiva do povo, igualmente, a fonte dos costumes e da construção política. No entanto, enquanto Savigny associa influência romana e

14 ALVARADO PALANAS, J.. El problema del germanismo en el derecho español. Siglos V-XI. Madrid: Marcial

Pons, 1997. Sobre a pouca relevância do conceito de “leis germânicas”: WORMALD, P. The Making of

English Law: King Alfred to the Twelfth Century. 1. Legislations and its Limits. Oxford: Wiley-Blackwell,

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continuidade germânica no Direito, Grimm, mais radical, se dedica a produzir um catálogo racional dos elementos judiciais e penais germânicos. A ideia de uma civilização germânica real é imposta na Alemanha através da questão do direito e das instituições. No que se refere à Lei Sálica, por exemplo, Rudolph Sohm considera que seu conteúdo descreve melhor o período de Tácito do que o de Clóvis, a sedentarização tendo trazido profundas modificações que não são nunca transcritas na lei, que continua inalterada e quase que imediatamente obsoleta após seu registro escrito15.

Essa ideia de uma germanidade profundamente diferente da romanidade durou por muito tempo, mesmo fora da historiografia alemã. Antes dos anos 1970, a historiografia, italiana em particular, considerava que a chegada dos bárbaros constituía uma mudança radical que havia fundado uma sociedade totalmente nova. Por exemplo, Gian Pietro Bognetti procurou identificar quais seriam as características "lombardas" e como foram perpetuadas através dos séculos16. Uma série de estudos sobre as leis lombardas, publicados

na Itália ao longo das últimas décadas, abandonaram a ideia de que características propriamente germânicas poderiam ser identificadas nas leis lombardas17. Um importante

debate a esse respeito ainda caracteriza a historiografia italiana desses últimos anos, no seio dos quais deve-se distinguir os importantes trabalhos de Ennio Cortese18. Algumas medidas, por muito tempo qualificadas como germânicas, já que ausentes do direito romano (clássico), podem, no final das contas, ser o resultado de respostas concretas dos legisladores, sem que tenha prevalecido um critério cultural: é uma hipótese proposta,

15 Sobre a historiografia alemã das leis bárbaras, ver: LIENHARD, Th.. L’historiographie germanophone

sur les lois barbares: centres de gravité, évolutions, desiderata. Bulletin de l’Institut Français d’Histoire en

Allemagne, n. 2, 2010, p. 133-163.

16 TABACCO,G. Espedienti politici e persuasioni religiose nel medioevo di G. P. Bognetti, Rivista di storia

della Chiesa in Italia, n. 24, 1970, p. 504-523.

17 GASPARRI, Stefano. Mouvements de peuples, ethnogenèse et transformation du monde ancien, Des

sociétés en mouvement. Migrations et mobilité au Moyen Âge (40e congrès de la société des médiévistes.

Nice 2009). Paris: Publications de la Sorbonne, 2010, p. 17-31.

18 CORTESE, E. Il diritto nella storia medievale. Rome: Il Cigno Galileo Galilei, 1995 (2 vol.). A apresentação

dessa controvérsia historiográfica está muito precisa em: CONTE, E. Droit médiéval. Un débat historiographique italien, Annales. Histoire, Sciences sociales, n. 57, v.6, 2002, p. 1593-1613. Ennio Cortese invalida a ideia de que as leis bárbaras seriam o fruto de uma negociação e coloca em destaque a figura do rei. Ele demonstra como essa ideia de uma lei negociada vinha, em grande medida, da tradição “germanista” da historiografia do século XIX, que enxergava aí um traço distintivo da legislação “germânica” em relação ao direito romano. Mario Ascheri e Paolo Grossi, ao contrário, insistiram em seus trabalhos recentes na importância da tradição popular nas leis bárbaras: GROSSI, P. L’ordine giuridico medievale. Rome/Bari: Editori Laterza, 1996; ASCHERI, M. Tra legge e consuetudine : qualche problema dell’alto medioevo (e dell’età contemporanea). In: ROSSETTI,G., VITOLO, G. (dir.). Medioevo Mezzogiorno Mediterraneo. Studi in onore di M. Del Treppo II. Naples: Gisem/Liguori Editore, 2000, p. 313-327.

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sobretudo por Ian Wood, para explicar o recurso à compensação nas leis bárbaras. A ideia de que os traços próprios a uma extensa civilização germânica podem ser encontrados graças ao estudos dessas leis foi praticamente abandonada, ainda que, como observa maliciosamente Stuart Airlie, a historiografia atual peque talvez por excesso inverso, negando a existência de culturas bárbaras19. Mais enfático ainda, Patrick Wormald considera que recusar a origem germânica da faida presente nas leis bárbaras "tende à perversidade"20.

Em todo caso, não se trata de uma cultura unificada, e não se pode reconstruí-la a partir das leis. No que se refere ao domínio religioso, por exemplo, as evocações explícitas ao paganismo só podem ser encontradas na Lei dos Frísios; a menção ao "porco consagrado" da Lei Sálica, por exemplo, hoje não é mais sistematicamente considerada como uma alusão à proteção das práticas pagãs nessa lei. O conteúdo das leis bárbaras não é mais concebido, pela maior parte dos historiadores, como a tradução quase imediata de uma cultura germânica global. As relações entre as leis bárbaras e a identidade, as reivindicações identitárias e políticas de um povo ou mesmo de uma pessoa são igualmente reconsideradas. No que se refere aos indivíduos, a ideia de personalidade das leis foi questionada nos últimos anos. Fundada sobre a interpretação de uma breve passagem das leis dos Ripuários e sobre uma concepção carolíngia do uso das leis no contexto de um império em que os deslocamentos de pessoas tinham se tornado muito importantes, a personalidade das leis não é uma característica própria das leis bárbaras em sua origem. Yolanda Garcia Lopez apontou para o fato de que o manuscrito em que se encontra pela primeira vez o título Lex Gothorum data do século IX, o que mostraria que a personalidade das leis é uma marca carolíngia. É dessa época também que data o aumento do número de manuscritos conservados, que começam a conter textos de muitas leis diferentes. Por outro lado, ainda no que diz respeito à lei dos Visigodos, Roger Collin considera que a menção a medidas que se aplicariam diferentemente aos "romanos" ou aos "bárbaros" se explica, na verdade, por uma diferença de estatuto entre civis e militares, os godos sendo originalmente considerados militares21. Isso vai ao encontro de

19 AIRLIE,St. The historiography of Elites in Gaul, Laboratoire de Médiévistique Occidentale de Paris, p.

6-7 Disponível em: <http://lamop.univ-paris1.fr/IMG/pdf/airlie.pdf>, acessado em jul. 2016.

20 WORMALD, P.. The Making of English Law. 1. Legislations and its Limits. Oxford: Wiley-Blackwell,

1999, p. 39.

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certas hipóteses sobe a Lei Sálica expostas por Jean-Pierre Poly22, Ian Wood23 e Ralph Mathisen24. Esse último, ao estudar as aparentes restrições aos casamentos mistos entre romanos e bárbaros no direito tardo-antigo, demonstrou que essas proibições se referiam, antes de tudo, aos militares ou a pessoas que se beneficiavam de um estatuto militar.

Assim, a promulgação das leis ditas "romanas" nos reinos pós-romanos não deve ser entendida como uma expressão da personalidade das leis, mas sim da multiplicidade mais geral das formas de regulação de conflitos e também da complementaridade dos tipos de normas ou de textos de direito aos quais pode-se recorrer.

A identidade étnica afirmada nessas leis foi apresentada comumente como o resultado da conjuntura identitária e política correspondente à instalação de um novo poder nos novos reinos bárbaros25. Para muitos defensores da etnogênese, a escrita da lei serve de vetor privilegiado para a afirmação da identidade de um povo e seu processo de formação. Segundo esse esquema, a lei, no entanto, não é o simples registro escrito de antigos costumes, e só o proclama ser parcialmente: a identidade é, em parte, criada ou reforçada pela implementação da lei, mas a lei não preexiste enquanto tal a esse registro por escrito. Da mesma forma que não existem povos se deslocando em bloco e recusando se misturar

22 POLY,J.-P. La corde au cou. Les Francs, la France et la Loi salique. In: Genèse de l’État moderne en

Méditerranée Approches historique et anthropologique des pratiques et des représentations. Actes des tables

rondes de Paris (24-26 septembre 1987 et 18-19 mars 1988). Rome: École Française de Rome, 1993. Esse artigo é regularmente citado pelos historiadores (veja uma seleção de comentários sobre esse artigo em POLY, J.-P. La cousine germaine et le rapt des Saliques. Mariage et parenté dans la coutume d’Ing. In: ROUCHE, M. ed.

Mariage et sexualité au Moyen Âge. Accord ou crise?. Paris: Presses Universitaires de Paris- Sorbonne, 2000, p.

20 n. 8). Os artigos seguintes do autor, sobre as origens da Lei Sálica, propõem reconstruções detalhadas das etapas de sua produção (POLY, J.-P. Le premier roi des Francs. La loi salique et le pouvoir royal à la fin de l’Empire. In: CONSTABLE, G. (ed.), ROUCHE, M. (ed.). Auctoritas. Mélanges offerts au professeur O. Guillot. Paris: PU Paris-Sorbonne, 2006, p. 97-128; POLY, J.-P. Le dernier des Mérovingiens ou la parenté du premier roi de France, Revue Historique de Droit Français et Étranger, 1996, p. 353-396). Ver UBL, Karl. L’origine contestée de la loi salique: une mise au point, Revue de l'IFHA, n. 1, 2009, p. 208-234 ; UBL, Karl. Im Bann der Traditionen. Zur Charakteristik der Lex Salica. In: MEIER, M. (ed.), PATZOLD, St. (ed.). Chlodwigs Welt.

Organisation von Herrschaft um 500, Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2014, p. 423-445.

23 Wood, I. N. Roman Law in the Barbarian Kingdoms. In: ELLEGÅRD, A. (ed.),

ÅKERSTRÖM-HOUGEN, G. (ed.). Rome and the North. Göteborg: Astrom Editions, 1996, p. 14.

24 MATHISEN, R. W.. Peregrini, Barbari, and Cives Romani: Concepts of Citizenship and the Legal

Identity of Barbarians in the Later Roman Empire. American Historical Review, n.111, v. 4, 2006, p. 1011-1039; ver também: SIVAN, H.. The appropriation of Roman law in barbarian hands: “Roman-Barbarian” marriage in Visigoth Gaul and Spain. In: POHL, W. (ed.), REIMITZ, H. (ed.). Strategies of Distinction.

The Construction of Ethnic Communities, 300-800. Leyde/Boston/Cologne: BRILL , 1998, p. 189-204.

25 WORMALD, P. The Leges Barbarorum: Law and ethnicity in the post-roman West. In: GOETZ, H.-W. (ed.),

JARNUT, J. (ed.), POHL, W. (ed.). The Relationship between Late Antique and Early Medieval Peoples and

Kingdoms in the Transformation of the Roman World, Leyde/Boston: BRILL, 2003, p. 21-54; AMORY, P. The

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a outras populações, não há textos de lei de vocação puramente política ou simbólica, mesmo no caso em que a aplicação e a alteração dos textos não deixaram traços diretos.

A escrita de um texto de lei corresponde, pelo menos em parte, a uma vontade de construir a identidade de um povo associado a um novo reino, porém essa não é a sua vocação primeira26. Se certos meta-textos que acompanham as leis têm, aparentemente, por função fazer o elogio das origens do povo em questão, eles podem ter sido redigidos com intenções políticas bem precisas. A associação da Origo Gentis Langobardorum ao Edito de Rotário não é sistemática: só uma minoria de manuscritos (datando de épocas em que o reino lombardo já não mais existia) associa os dois textos. Além do mais, Walter Pohl27 e Magali Coumert28 mostraram que a visão das origens lombardas presente na Origo é, na verdade, bem diferente em seus detalhes e em sua intenção da visão presente no prólogo do edito. Enquanto a Origo apresenta um povo e uma realeza lombardas ligadas aos outros povos (notadamente por casamentos principescos), a visão dada por Rotário é outra. Além de apresentar a sucessão dos soberanos lombardos de forma a melhor legitimar sua própria posição, o Edito de Rotário é orientado para o futuro, apresentando o povo lombardo como um todo impermeável, guiado por Deus em direção à Terra Prometida. Se podemos ver nessa escolha de Rotário a vontade de impor uma identidade forte e bem distinta para os lombardos, não se pode afirmar que ela foi a mais eficaz do ponto de vista memorial, já que a narrativa da Origo conhece uma posteridade muito maior. Em todo caso, a afirmação da identidade do povo tem um objetivo prático, unificador, e não conservador.

Uma questão espinhosa: as relações entre a lei, a justiça e a autoridade pública Os meta-textos e, em particular, os prólogos foram amplamente explorados para definir as características da autoridade pública e do poder do soberano no início da Alta Idade Média, mais ainda do que para analisar as capacidades memoriais e identitárias das leis bárbaras per se.

26 ESDERS, St.. Roman law as an identity marker in post-Roman Gaul (5th-9th centuries). In: POHL, W.,

GANTNER, Cl., GRIFONI, C., POLLHEIMER, M.. Transformations of Romanness in the early middle

ages: Regions and identities, (no prelo).

27 POHL, W.. Origo Gentis. Langobarden, Reallexikon der Germanische Altertumskunde, n. 22, 2003, p.

183-189; POHL, W.. Werkstätte der Erinnerung. Montecassino und die Gestaltung der langobardischen

Vergangenheit, Vienne/Munich: Böhlau Wien, 2001, p. 117-120.

28 COUMERT, M. Origines des peuples. Les récits du Haut Moyen Âge occidental (550-850). Paris:

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O registro escrito da lei proclama de uma forma mais ou menos direta a capacidade do poder que a promulga ou que lhe assegura a sustentação judiciária. No caso das leis promulgadas explicitamente em nome do soberano e regularmente alteradas, como as leis visigóticas ou lombardas, a questão parece mais clara do que nos textos que não fazem referência direta à função legislativa do soberano, como é o caso da Lei Sálica.

Michael Wallace-Hadrill apresentou todas as leis bárbaras como leis reais29. Patrick Wormald, por outro lado, ressaltou que isso coloca um problema, sobretudo para a Lei Sálica, que não era designada em seu prólogo como de um rei franco30. Além do mais, as correções trazidas por Ian Wood31 e Alexander Murray32 aos trabalhos de Karl-August Eckhardt sobre a datação e a atribuição das promulgações sucessivas das diferentes versões da Lei Sálica, mostram uma diminuição do número de promulgações reais. Ainda que o modelo do rei legislador não seja retomado diretamente na Lei Sálica, é necessário ressaltar que ele está nos editos e preceitos, por menos numerosos que pudessem ser33.

Como bem mostrou o trabalho de Milton Mazetto, a noção de sermo regis, fora do qual são colocados os que recusam a compensação, denota a importância que tinha o rei no sistema geral da resolução de conflitos, como responsável pela comunidade e pelo estatuto de cada um, e como sustentáculo potencial da lei34.

Dessa forma, ainda que o registro escrito da lei não revele um caráter propriamente real, pode parecer excessivo ver na lex scripta solidificada e em sua "força totêmica" "a prova irônica de que a ambição de criar um regime de lei escrita no norte da Europa da Alta Idade Média era irrealista", tal como escreveu Patrick Wormald. Por outro lado, esse último reconhece o registro escrito como prova direta da "imagem que os reis germânicos e seus conselheiros queriam dar deles mesmos e de seu povo", e prova

29 HADRILL, J. M.. The Long Haired Kings. Londres: Methuen, 1962, p. 179-181;

WALLACE-HADRILL, J. M.. Early Germanic Kingship in England and on the Continent. Oxford: Oxford University Press, 1971, p. 43-44.

30 WORMALD, P. Legal Culture in the Medieval West. Law as Text, Image and Experience. Londres/Rio

Grande: The Hambledon Press, 1999, p. 42.

31 WOOD, I. N. Merovingian Kingdoms. 450-751. Londres: Longman, 1994, p. 108-114. 32 MURRAY, A. C. Germanic Kinship Structures. Toronto: Brepols, 1983, p. 126-127. 33 Ver n. 5.

34 MAZETTO, M. Verbum regis, sermo regis: Pouvoir royal et règlement des conflits. Colloque Faire de

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indireta dos costumes bárbaros e das decisões reais35. Mesmo para os críticos, é difícil descartar completamente o papel do poder real na promulgação da lei franca36. Finalmente, o problema mais interessante é o do registro escrito das leis e suas motivações. Tal problema não se coloca da mesma forma nas regiões nas quais prevalece o recurso à oralidade, que é o que interessa a Patrick Wormald, que evoca o verbum regis e a complementaridade do direito oral e da lei escrita, notadamente no caso do direito civil. O fato de colocar por escrito uma parte do direito em um momento em que a utilização da escrita é pequena, remete a um modelo romano, que é o modelo do príncipe legislador (e igualmente um modelo bíblico, insiste Wormald). Patrick Wormald sugere que esse modelo poderia ter sido proposto pelas elites romanas dos reinos bárbaros, a fim de conservar os quadros políticos precedentes, ou ao menos sua aparência37.

A iniciativa legislativa dos francos se identifica com o modelo romano, uma vez que eles pressionam os povos sob sua influência para que adotem uma lei escrita, segundo o modelo dos códigos provinciais adaptados pelos governadores das províncias no final da Antiguidade. Por outro lado, não se pode considerar o recurso à lei escrita como algo marginal, como o faz Wormald. Esse recurso não é um elemento inerte e sem relação com a realidade, ainda que a lei escrita não fosse aplicada na definição das penas e que apresentasse, por vezes, contradição em relação aos editos38. É o caso também dos reinos em que a escrita tem um papel mais direto. Ela traduz valores, princípios, qualificações jurídicas em que se encontram a confirmação de outros tipos de fontes do mesmo período39, como se empenha para mostrar Marcelo Cândido da Silva em seus estudos

35 WORMALD, P.. Legal Culture in the Medieval West. Law as Text, Image and Experience. Londres/Rio

Grande : The Hambledon Press, 1999, p. XIV e p. 38. Para Wormald, enquanto a autoridade real se exprimia, no domínio legislativo, para afirmar uma força que ela não possuía de fato, ela teria adquirido, graças a esse meio, uma força real ao longo do tempo, particularmente na Inglaterra.

36 Idem, p. 40: Patrick Wormald ressalta que, mesmo entre os francos, o rei tinha importantes funções no

domínio da lei. Reflexões renovadas sobre o tema: Recht und Konsens im frühen Mittelalter, V. Epp, Chr. H. F. Meyer ed., Ostfildern, a ser publicado em2016 (Vorträge und Forschungen. 82), part. concl. ESDERS, St., Zwischen Historie und Rechtshistorie. Der consensus iuris im frühen Mittelalter. In: EPP, Verena (ed.), MEYER, Christoph H. F. (ed.). Recht und Konsens im frühen Mittelalter, Ostfildern 2016 (Vorträge und Forschungen 82), S. 427-474 (no prelo)

37 WORMALD, P., Legal Culture in the Medieval West. Law as Text, Image and Experience. Op. cit., p.

27-28.

38 Sobre a escrita e a oralidade na prática judiciária franca, ver: BARNWELL, P.. Action, Speech and

Writing in Early Frankish Legal Proceedings. In: MOSTERT, M. (ed.), BARNWELL, P. (ed.), Medieval

legal process. Physical, spoken and written performance in the Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2012, p.

11-25.

39 JOYE, S.. Fabrique d’une loi, fabrique d’un peuple, fabrique des mœurs : les lois barbares. In:

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sobre os sujeitos e os bens através do tratamento do exemplo do roubo no Pactus Legis

Salicae e nos editos e preceitos dos reis merovíngios40.

Yan Thomas ressaltou a necessidade de se atentar às operações formais do direito, aos esquemas de qualificação, que serviam muito mais para produzir o mundo do que para descrevê-lo, uma vez que a qualificação jurídica "formata a vida social, divide e singulariza entidades como pessoa, bens, propriedade, contrato... todas formas necessárias às operações práticas e mudanças do direito". Ora, essas formas são instrumentos que servem não "para conhecer, mas para avaliar as coisas, para resolver as

disputas travadas a seu respeito – e então a produzi-las de forma distinta daquela que existe fora dessa estreita e precisa medida do direito"41. Se não podemos estudar a produção e a efetividade dos procedimentos jurídicos do nosso período, a compreensão sobre o que era então a qualificação dos bens e dos sujeitos pode ter um papel muito importante para esclarecer as relações interpessoais. Quanto às contradições internas ou aos impasses dos textos francos, eles nos informam tanto sobre os conflitos das normas jurídicas, morais e sociais quanto sobre o contexto de outros reinos bárbaros.

As leis acrescentadas aos códigos, em sua maior parte aos códigos dos visigodos e dos lombardos, permitem tentar captar inflexões, que só podem aflorar de forma muito menos direta e mais dificilmente compreensível nos escritos normativos francos. Para citar apenas um exemplo, evoquemos rapidamente a evolução da legislação sobre o rapto entre os visigodos e as conclusões a que se pode chegar42.

la norme. Lieux et modes de production des normes au Moyen Âge et à l’époque moderne. Rennes: Presses

universitaires de Rennes, 2012, p. 91-108; ESDERS, St. ‘Eliten’ und ‘Strafrecht’ im frühen Mittelalter. Überlegungen zu den Bußen- und Wergeldkatalogen der Leges barbarorum. In: BOUGARD, Fr. (ed.), GOETZ, H.-W. (ed.), LE JAN, R. (ed.), Théories et pratiques des élites au haut Moyen Âge. Turnhout: Brepols, 2011, p. 261-282.

40 DA SILVA, Marcelo Cândido. Le vol de biens et la construction sociale dans le royaume des Francs

(VIe-IXe siècle). In: BEAULANDE-BARRAUD, V. (ed.), CLAUSTRE, J. (ed.), MARMURSZTEJN, E. (ed.). La fabrique de la norme. Lieux et modes de production des normes au Moyen Âge et à l’époque

moderne. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2012, p. 75-90; DA SILVA, Marcelo Cândido. A Realeza Cristã na Alta Idade Média. Os fundamentos da autoridade pública no período merovíngio (séculos

V-VIII). São Paulo: Alameda Editorial, 2008.

41 THOMAS, Y.. Présentation (dossier “Histoire et droit”), Annales. Histoire, Sciences sociales, n. 57, v. 6, 2002,

p. 1426.

42 JOYE, S.. Prática social e armadilhas das fontes: as fontes historiográficas e normativas sobre o

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A lei dos visigodos tornou-se mais rigorosa a respeito da interdição do casamento após rapto na época de Recesvinto (654) e de Ervígio (681). Recesvinto acrescenta, em 654, um artigo que proíbe o casamento entre o sequestrador e sua vítima, se ela for noiva. Ervígio, por outro lado, em 681, estende essa interdição aos casamentos que se seguem ao rapto de uma mulher livre, de uma liberta ou ao estupro. O artigo em questão explicita porque a mulher é punida: ela esposou aquele que tinha se tornado seu escravo, tornando-se, desse modo, escrava de seus próprios herdeiros. As precisões trazidas por Ervígio demonstram um desejo de fazer com que fossem respeitadas as barreiras que deveriam existir entre os indivíduos de estatutos jurídicos diferentes. O legislador se interessa pelas questões que colocam em evidência personagens de baixa extração social. Ele previa uma pena diferente para os casos que envolviam uma liberta idonea e um escravo idoneus, dotados de uma qualificação particular e empregados no seio da casa, e para os casos que envolviam uma liberta e um escravo pertencentes ao mundo do campo e que se ocupavam em explorar a terra. Os remanejamentos e as modificações dos textos romanos no Liber

Iudiciorum e no Breviário de Alarico, atestando mudanças sociais e modificações ligadas

à posse de terras e ao desejo de hierarquização social, caminham ao lado da emergência do papel crescente do soberano legislador43.

As leis franca e aglo-saxã, que precedem os reinados de Pepino ou de Alfredo, não são transformadas diretamente por via escrita dessa forma. Se era importante em um mundo dominado pela religião do Livro que houvesse uma lei escrita, a evolução do direito se fazia amplamente pela via da oralidade. Os textos que eram promulgados pelos soberanos francos à margem da Lei Sálica não colocavam em causa a existência da mesma como escrito fundador do direito. Uma vez que a aplicação precisa e sistemática das penas prescritas tanto pela Lei quanto pelos textos posteriores não faz sentido, a contradição entre elas não lhes retira todo o valor nem toda a eficácia. Além disso, elas são bastante úteis do ponto de vista da história das representações e das influências (notadamente eclesiásticas) que poderiam se exercer sobre os detentores da autoridade legislativa, judiciária e pública. Mais ainda do que uma atualização da lei, a promulgação de novas medidas registradas por escrito dá um papel completamente diferente ao soberano. Como nota com

43 Leges Visigothorum 3, 3, 1; 3, 3, 3 e 3, 3, 9. Ver JOYE, S.. La transcription du droit de la famille et de la propriété,

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razão Cristina La Rocca, "se Rotário é o rei que coloca a lei por escrito, seus sucessores se tornaram reis que interpretam a lei, isto é, que fazem a lei escrita"44. O rei é consultado a respeito de casos concretos, em relação aos quais ele especifica a lei. Esse papel pode, sem dúvida, ser atribuído também ao soberano franco, ao menos na medida em que se consideraria o rei franco como um soberano emitindo em seus editos uma lex que é uma interpretação dos princípios gerais enunciados pelo ius. É precisamente esse o caso da Lei Sálica. A apresentação da escrita da lei como a simples tradução de regras antigas não deve ser tomada ao pé da letra, mas é um elemento simbolicamente importante na postura do rei legislador: nós a encontramos tanto no prólogo do Edito de Rotário, como no preâmbulo do preceito de Clotário.

Dois pontos parecem incontestáveis para a Alta Idade Média. A lei é composta para responder a uma situação existente no momento de sua redação. Ela é a afirmação do poder de um legislador que procura impor aos conflitos soluções que assegurem um equilíbrio das relações que lhe seja favorável. Nessa ótica, as leis sobre o rapto têm uma relação direta com a atenção dada à autoridade paterna e à transmissão dos patrimônios de uma geração à outra. Por outro lado, é evidente que apenas o fato de editar uma lei não trazia a adesão dos justiciáveis... É particularmente verdade no caso de casamento por rapto, que estudei na minha tese, e que leva, ao mesmo tempo, a sanções penais (penas de morte, servidão, multas) e a efeitos civis (em relação à validade da formação do casamento e da transmissão dos bens). Entre os lombardos, essa nova forma de se relacionar com os membros da aristocracia vem das mudanças políticas e sociais resultantes da conquista militar de uma grande parte da Itália. Rotário procurava garantir um tipo de devoção por parte dos exercitales e tranquilizá-los em relação aos seus direitos sobre seus novos patrimônios. O processo de fortalecimento da monarquia lombarda, característico dos séculos VII e VIII, apóia-se também no crescimento do patrimônio fiscal, que resulta em um interesse mais agudo dos reis pela legislação sobre o casamento, a ser compreendido, sem dúvida, em sua relação com a transferência de bens.

44 LA ROCCA, Cr.. Pouvoirs des femmes, pouvoir de la loi dans l’Italie lombarde. In: LEBECQ, S. (ed.),

DIERKENS, A. (ed.), LE JAN, R. (ed.), SANSTERRE, J.-M. (ed.). Femmes et pouvoirs des femmes à

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Cristina La Rocca, no contexto de várias pesquisas sobre as viúvas veladas, apontou que a legislação lombarda sobre o mundium estava essencialmente destinada a restringir a liberdade da mulher em alienar seus próprios bens (morgengabe, meta,

faderfio). Ela considera que essa medida não é uma simples lembrança dos costumes

preexistentes à redação da lei: ela constitui uma novidade real, introduzida a partir da importância das disparidades de fortuna no processo de distinção social. A sintaxe dos artigos que regulamentam a transmissão dos bens detidos pelas mulheres pode ser um indício de sua redação recente. Eles não se apresentam sob a forma tradicional "Si quis…", mas são introduzidos por uma fórmula que traduz uma vontade real: "Nulli liceat… ". Essa transformação da legislação acompanha a instalação dos lombardos na Itália. A sedentarização é acompanhada por uma afirmação da distinção social, que se traduz pela ostentação, da qual as mulheres participam cada vez mais45.

Cabe aos juízes ou aos árbitros interpretarem e escolherem as normas: mesmo no caso dos códigos visigóticos, promulgados como um conjunto, há contradições ou obscuridades entre as leis compiladas. Os códigos visigóticos sucessivos podiam complementar-se para serem solicitados em níveis diversos, para questões de naturezas diferentes. Essa forma de trabalhar confere ao juiz uma grande margem de manobra, pois ele pode escolher aplicar uma norma ao invés de outra. Essa prática é atestada até mesmo na Espanha visigótica, ainda que Recesvinto tenha tentado limitá-la, excluindo a aplicação, em juízo, de outras leis além daquelas reunidas no Liber Iudiciorum. Ele pôde retirar seu apoio judiciário às outras leis, mas sem proibir que elas servissem de referência em certas circunstâncias. Não se deve esquecer que o regulamento judiciário é somente uma das vias de regulação dos conflitos na Alta Idade Média: nada impedia a um árbitro de se fundamentar no direito romano ou nas leis antigas, ainda que, em juízo, somente o Liber pudesse ser invocado.

Expressão de um poder legislativo reivindicado, o registro escrito da lei foi qualificado de "expediente político", no caso lombardo, por Gian Paolo Bognetti46, expressão retomada por Claudio Azzara. A expressão é forte, ainda que, em condições de

45 LA ROCCA, Cr.. Pouvoirs des femmes, pouvoir de la loi dans l’Italie lombarde. In: LEBECQ, S. (ed.),

DIERKENS, A. (ed.), LE JAN, R. (ed.), SANSTERRE, J.-M. (ed.). Femmes et pouvoirs des femmes à

Byzance et en Occident (VIe-XIe). Villeneuve d’Ascq: CRHEN-O, 1999, p. 41-42.

46 BOGNETTI, G. P.. L’editto di Rotari come espediente politico di una monarchia barbarica. In: PALMA,

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disputa pelo poder, possa se prever que a promulgação da lei se torne uma arma concreta e simbólica. Essa arma foi utilizada por exemplo, contra Chindasvinto, por seu filho e sucessor Recesvinto, que chegou a instituir a retroatividade de algumas de suas medidas; tudo isso em um clima de golpe de estado em que pai e filho eram de fato apoiados por facções aristocráticas diferentes.

Para concluir: o que se pode esperar de um estudo centrado nas leis bárbaras atualmente?

Os reinos "bárbaros" ou pós-romanos, como queiram, são na verdade "Filhos de Roma", exatamente como suas leis. No entanto, deve-se ressaltar que, no âmbito do direito e em todo o resto, eles souberam elaborar estruturas e ideias novas. Por sua importância qualitativa e quantitativa no seio das fontes do início da Idade Média, as leis bárbaras devem continuar sendo um elemento importante de nossos estudos. Considerar a norma como ator e como objeto da história é primordial para o estudo do período que nos ocupa. No entanto, devemos ser prudentes, já que as acessamos apenas através de um jogo de espelhos, o da escrita. Dito isso, talvez seja através desse viés que podemos aprender muito mais.

Para a segunda metade do século VII, as fontes não normativas são quase inexistentes em certos locais. Tiram-se então conclusões determinantes das fontes normativas. A ausência de um estudo sobre fontes normativas nos expõe a contrassensos de consequências graves. Céline Martin47 e Amancio Isla Frez48 mostraram, por exemplo, como se chegava frequentemente a conclusões erradas a respeito das aparentes contradições de duas leis do livro IX do Liber Iudiciorum49 que se referiam à obrigação militar e que foram editadas, respectivamente, por Wamba e por Ervígio. A primeira lei evoca a obrigação para os eclesiásticos de participarem do esforço de guerra, enquanto que a segunda os dispensa. Essa diferença foi tida por muito tempo como uma das provas da maior influência dos bispos, aos quais o rei teria procurado se aliar contra uma nobreza triunfante nos últimos anos do reino visigótico. Na verdade, se prestarmos atenção na descrição dos fatos tratados, percebe-se que as duas leis não tratam da mesma situação: a de Wamba trata de uma situação

47 MARTIN, C. Le Liber Iudiciorum et ses différentes versions. Mélanges de la Casa de Velázquez,

Nouvelle série, n. 41, v. 2, 2011, p. 17-34.

48 ISLA FREZ, A.. Ejército, sociedad y política en la Península Ibérica entre los siglos VII y XI. Madrid:

Editorial CSIC, 2010, p. 89-95.

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de urgência em que todo o reino está em perigo, de scandalum, enquanto a lei de Ervígio se refere a obrigações devidas fora do contexto de exceção. Assim, não deve haver precipitação, nem para encontrar sistematicamente grandes evoluções, quando se trata de leis que são constantemente alteradas, com o risco de exagerar, nem para se contentar em sempre invocar a inexistência de aversão à contradição nos textos e entre os textos normativos da Alta Idade Média. O estudo dessas leis só pode ser frutífero se elas forem bem conhecidas, cada uma em sua lógica global e também em seus menores detalhes, mas, sobretudo, se não forem vistas como uma sucessão de fatos.

A lei constrói um sistema de valores que possui uma relação com a realidade social, mesmo no caso de leis tidas, à primeira vista, como "estáticas", como é o caso da Lei Sálica. Os outros tipos de fontes não apresentam, talvez, o testemunho direto ou sistemático da aplicação dessas leis na precisão de delitos e das penas descritas, mas esse talvez não seja o objetivo primeiro do registro escrito das leis. Essas leis não pretendem ser exaustivas, mas propõem ou impõem princípios, classificações, hierarquias, escolhas. As punições evocadas chegam a montantes que não fazem sentido para uma aplicação geral, já que são elevados (é o caso para o rapto de uma noiva no direito lombardo, por exemplo50). A questão central se

torna cada vez mais a da escrita das leis, e não somente da representação da autoridade, da ideia de uma transmissão de direitos antigos, da influência do direito romano. São as escolhas técnicas efetuadas no momento dessa escrita, relacionadas à literacy ou à qualificação dos delitos, bens, pessoas, que podem nos ensinar muito sobre os reinos pós-romanos.

50 Dito isso, as tarifas exorbitantes adquirem sentido na medida em que consideramos que elas podem corresponder

a uma avaliação da rede social do culpado, que pode, eventualmente, reunir a soma por intermédio de seus parentes e aliados. Rotário 186 ; Liutprand 30 : 900 soldos para uma livre e 1000 soldos no caso de uma religiosa. A pena de 900 soldos corresponde igualmente à punição dos homicídios mais graves. AZZARA, Cl. (ed. trad.), GASPARRI, St. (ed.). Le leggi dei Langobardi. Storia, memoria e diritto di un popolo germanico. Milan: Editrice La Storia, 1992, p. 52 et 144 [nova ed. Roma: Viella, 2005, p. 58 et 158].

Referências

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