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OS DIREITOS HUMANOS NA REFORMA DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO

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* Doutora em Direito pela Ufsc; professora dos cursos de Graduação e Pós-graduação da Facinter – PR e Unoesc – SC; Fellow da Capes na Espanha e Inglaterra no período acadêmico 2003-2004; autora de várias obras e artigos acerca do direito de acesso à justiça e dos direitos humanos; annoni@justice.com

O presente artigo versa sobre um tema controverti-do, qual seja, a reforma do Poder Judiciário brasileiro no que se refere à nova regulação dada aos direitos hu-manos. Com efeito, muitas mudanças foram introduzi-das pela Emenda Constitucional (EC) 45/2004, intitu-lada de Reforma do Poder Judiciário. Algumas delas, voltadas à efetivação dos direitos humanos, trouxeram

alterações significativas, e que, ao contrário do que sus-tenta a doutrina majoritária, não foram positivas, repre-sentando um retrocesso no processo de reconhecimento e de efetividade dos direitos humanos no Brasil. Palavras-chave: Direitos Humanos. Reforma do Ju-diciário. Emenda Constitucional 45/2004. Tratados Internacionais. Tribunal Penal Internacional.

Os direitos humanos na reforma

do judiciário brasileiro

Danielle Annoni *

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1 INTRODUÇÃO

A Reforma do Poder Judiciário, como ficou conhecida a Emenda Constitucional 45/2004, esta-beleceu um marco divisor de águas no cenário jurí-dico-político nacional, sobretudo no que se refere à preocupação em tornar o Poder Judiciário mais de-mocrático e acessível à população. Isso não implica dizer que essa preocupação não existia antes, ou que as reformas processuais e procedimentais anteriores não tiveram este condão. Significa, todavia, afirmar que todas as tentativas anteriores não surtiram tama-nho impacto, ainda que os resultados não sejam, até o momento, animadores.

Com efeito, o Brasil vive as reformas desde a abertura democrática, na década de 80. Muitas ocorreram em diversos setores e âmbitos de atua-ção e conhecimento, na tentativa de restabelecer e consolidar a democracia, sobretudo nas instituições públicas. Mas as reformas que visavam atingir o Po-der Judiciário e melhorar o atendimento fornecido à população resumiram-se, até então, a um ataque aos códigos de processo e procedimentos internos dos tribunais, muitas vezes aumentando a burocracia, os custos e, por conseguinte, gerando efeito contrário ao pretendido. A EC 45/2004 inovou nesse sentido. Não se tratou de uma reforma processual, mas sim de princípios e garantias constitucionais, dentre os quais se inseriu a garantia “à duração razoável do processo.”

Mas não apenas de princípios tratou a EC 45/2004. A “Reforma do Judiciário” também criou o Conselho Nacional de Justiça, possibilitou ao Su-premo Tribunal Federal (STF) editar súmulas vincu-lantes, comprometeu o Estado brasileiro a compor a infra-estrutura humana do Poder Judiciário, sobre-tudo no que se refere ao quantum de magistrados, em número proporcional à população e à demanda, fortaleceu o Ministério Público e a Defensoria Públi-ca, ampliou as competências da Justiça Federal e do Trabalho, enfim, fomentou mudanças institucionais que geraram e continuam a gerar alterações e inova-ções legislativas.

Dentre todas as mudanças citadas, merece des-taque a regulação dada pela EC 45/2004 aos direitos humanos e às tentativas, muitas vezes equivocadas,

de adequar-se aos compromissos firmados pelo Es-tado brasileiro em prol da defesa e efetivação dos direitos do ser humano dentro e fora de suas fron-teiras.

2 A EMENDA CONSTITUCIONAL 45/2004 E OS

TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

A Emenda Constitucional 45, de 2004, res-saltou a importância da proteção efetiva dos direi-tos humanos no plano interno do Estado brasileiro, preocupando-se, logo num primeiro momento, em consagrar dentro do rol de direitos fundamentais do artigo 5º, o direito de acesso à justiça dentro de um prazo razoável. A par dessa positivação, a Emenda Constitucional 45, de 2004, reafirmou o interesse do Estado brasileiro em proteger os direitos do ser humano dentro e fora de suas fronteiras, acrescendo dois novos parágrafos ao artigo 5º, e ainda criando a possibilidade de os crimes contra os direitos hu-manos poderem ser processados pela Justiça Federal, sabidamente melhor aparelhada, mais eficaz e rápida do que a Justiça comum, como se verá adiante.

A inclusão, todavia, de dois novos parágrafos ao artigo 5º da Constituição Federal em vigor rea-cendeu uma divergência histórica entre a doutrina pátria e os tribunais nacionais, sobretudo no que se refere à incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos pelo ordenamento jurídico brasi-leiro, referida no § 2º do artigo 5º e agora disposta expressamente no § 3º do mesmo artigo.

À primeira vista, o legislador tentou encerrar a discussão sobre a prevalência dos Tratados Inter-nacionais de Direitos Humanos, conferindo-lhes, definitivamente, status constitucional. A princípio, parece ter sido esse o intuito do legislador, mas a re-dação dada ao recém-acrescido § 3º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 não traz essa mensa-gem. Dispõe o texto constitucional que:

[o]s tratados e convenções internacio-nais sobre direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos vo-tos dos respectivos membros, serão equi-valentes às emendas à Constituição.

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A redação dada pelo novo parágrafo, todavia, trouxe mais discussões, a par das já existentes em razão do disposto no § 2º do mesmo artigo, que já definia, desde 1988, que:

[...] os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados inter-nacionais em que a República Federa-tiva do Brasil seja parte.

Desde sua promulgação, a Constituição Fede-ral de 1988 tratou a questão dos tratados internacio-nais de direitos humanos de modo particularizado, dando a esses tratados, e não a outros, status cons-titucional por força do § 2º do artigo 5º.1 Apesar do

posicionamento equivocado do STF no famoso caso sobre a possibilidade de prisão por dívidas para o de-positário infiel2, contrariando a disposição da

Con-venção Americana de Direitos Humanos, que só ad-mite a prisão civil em casos injustificados de não-pa-gamento da pensão alimentícia, a doutrina nacional, bem como a grande maioria dos tribunais regionais e superiores, dentre eles o Superior Tribunal de Justiça e mesmo de alguns ministros do STF, a exemplo do

Ministro Carlos Velloso3, já havia pacificado o

en-tendimento de que a única interpretação possível ao texto do § 2º seria o reconhecimento da hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos

humanos.4

A inclusão de um parágrafo terceiro ao dis-positivo, contudo, alterou essa certeza. De fato, a redação dada pelo § 3º limitou a paridade constitu-cional apenas aos tratados internacionais de direitos humanos que fossem aprovados pelas duas Casas do Congresso Nacional, em dois turnos e com quorum mínimo de três quintos dos votos respectivos, o que gerou, dentre a doutrina nacional, algumas indaga-ções, quais sejam: a) se somente os novos tratados internacionais de direitos humanos, aprovados se-gundo os requisitos exigidos pelo novo § 3º, terão

status de emenda constitucional, que status terão os

tratados anteriores à edição da Emenda Constitucio-nal 45, de 2004?; b) ou ainda, que status terão os novos tratados internacionais de direitos humanos que não forem aprovados obedecendo a esses

requi-sitos?; c) em se entendendo que o § 3º do artigo 5º estabelece hierarquia entre os tratados internacio-nais de direitos humanos, não seria esse parágrafo inconstitucional à luz do já existente § 2º do mesmo artigo, por estar restringindo a proteção pétrea dada aos direitos humanos na interpretação do § 2º e que já não existe no § 3º?

Em resposta à primeira indagação, Piovesan afirma que, por força do § 2º do artigo 5º, todos os tratados internacionais de direitos humanos já eram, antes da Emenda Constitucional 45, de 2004, reco-nhecidos materialmente como normas constitucio-nais. O novo § 3º não teria, portanto, o condão de reduzir esse status, também em razão do disposto no artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, que disciplina sobre as cláusulas pétreas (PIOVESAN, 2005, p. 73).

Assim, o § 3º do artigo 5º deve ser interpre-tado segundo o desejo do legislador originário, que dispôs no § 2º do mesmo artigo sua preocupação em não limitar o rol de direitos e garantias fun-damentais aos direitos ali consagrados, ampliando esse rol para todo novo direito humano reconhe-cido posteriormente pelo Estado brasileiro, sejam eles:

[...] decorrentes do regime e dos prin-cípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Fe-derativa do Brasil seja parte.

Nesse sentido, Piovesan afirma, em resposta à segunda indagação, que os novos tratados interna-cionais de direitos humanos, além do reconhecimen-to constitucional material, também poderão ter as-sento formal na Constituição, se, para sua aprovação, forem observados os requisitos no § 3º do artigo 5º da Constituição Federal.5 Essa medida teria a

inten-ção de assegurar a perenidade dos direitos humanos internacionais reconhecidos e positivados pelo Esta-do brasileiro, uma vez que os trataEsta-dos internacionais de direitos humanos, da mesma forma que qualquer

outro tratado internacional, admite denúncia6 pelo

Estado-parte, ao passo que os direitos consagrados como fundamentais na Constituição Federal brasilei-ra seriam eternos por força do artigo 60, § 4º, IV, da Carta de 1988.7

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Todavia, apesar dos esforços em se interpretar o § 3º do artigo 5º de modo positivo, a redação dada pelo legislador reformador fomenta a interpretação conservadora de que haveria sim uma hierarquia en-tre os tratados internacionais de direitos humanos, que teriam o status constitucional de direitos fun-damentais no Brasil somente após passarem pelo procedimento especial destinado às emendas cons-titucionais, uma vez que os requisitos dispostos pelo legislador no § 3º do artigo 5º são os mesmos dis-postos no artigo 60, § 2º, relativos a toda e qualquer emenda à Constituição, tratando a matéria de direitos humanos ou não.

Ainda é cedo para que os tribunais nacionais se manifestem sobre a questão, mas é importante res-saltar que o STF, antes mesmo da edição da Emenda Constitucional 45, de 2004, não reconhecia tal pari-dade, acolhendo os tratados internacionais de direi-tos humanos como normas infraconstitucionais, uma vez que os tratados internacionais são incorporados ao ordenamento jurídico nacional por meio de ato do Poder Executivo (ratificação de tratado interna-cional), convertido em Decreto.

O posicionamento conservador da Corte Cons-titucional em matéria de direito internacional é fator preponderante para a preocupação em torno da in-terpretação do § 3º do artigo 5º, levando Cançado Trindade a indagar sobre a inconstitucionalidade do dispositivo em face do § 2º do mesmo artigo, que já consagrava os direitos humanos reconhecidos pelos tratados internacionais, protegendo-os por cláusula pétrea, portanto, não passíveis de modificação que os restrinja, limite ou exclua.

30. Esta nova disposição busca

outor-gar, de forma bisonha, status consti-tucional, no âmbito do direito interno brasileiro, tão-só aos tratados de di-reitos humanos que sejam aprovados por maioria de 3/5 dos membros tan-to da Câmara dos Deputados como do Senado Federal (passando assim a ser equivalentes a emendas constitucio-nais). Mal concebido, mal redigido e mal formulado, representa um lamen-tável retrocesso em relação ao mode-lo aberto consagrado pemode-lo parágrafo 2 do artigo 5 da Constituição Federal de 1988, que resultou de uma proposta de minha autoria à Assembléia Nacional

Constituinte, como historicamente do-cumentado. No tocante aos tratados anteriormente aprovados, cria um im-bróglio tão a gosto de publicistas esta-tocêntricos, insensíveis às necessidades de proteção do ser humano; em relação aos tratados a aprovar, cria a possibili-dade de uma diferenciação tão a gosto de publicistas autistas e míopes, tão pouco familiarizados, – assim como os parlamentares que lhes dão ouvi-dos, – com as conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

31. Este retrocesso provinciano põe em

risco a inter-relação ou indivisibilidade dos direitos protegidos no Estado de-mandado (previstos nos tratados que o vinculam), ameaçando-os de fragmen-tação ou atomização, em favor dos ex-cessos de um formalismo e hermetismo jurídicos eivados de obscurantismo. A nova disposição é vista com compla-cência e simpatia pelos assim chamados ‘constitucionalistas internacionalistas’, que se arvoram em jusinternacionalis-tas sem chegar nem de longe a sê-lo, porquanto só conseguem vislumbrar o sistema jurídico internacional através da ótica da Constituição nacional. Não está sequer demonstrada a constitucio-nalidade do lamentável parágrafo 3 do artigo 5, sem que seja minha intenção pronunciar-me aqui a respeito; o que sim, afirmo no presente Voto, – tal como o afirmei em conferência que ministrei em 31.03.2006 no auditório repleto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em Brasília, ao final de audiências públicas perante esta Corte que tiveram lugar na histórica Sessão Externa da mes-ma recentemente realizada no Brasil, – é que, na medida em que o novo pa-rágrafo 3 do artigo 5 da Constituição Federal brasileira abre a possibilidade de restrições indevidas na aplicabilida-de direta da normativa aplicabilida-de proteção aplicabilida-de determinados tratados de direitos hu-manos no direito interno brasileiro (po-dendo inclusive inviabilizá-la), mostra-se manifestamente incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigos 1(1), 2 e 29). 32. Do prisma do Direito Internacional dos Direitos Humanos em geral, e da normativa da Convenção Americana em particular, o novo parágrafo 3 do artigo 5 da Constituição Federal bra-sileira não passa de uma lamentável aberração jurídica. O grave

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retroces-so que representa vem a revelar, uma vez mais, que a luta pela salvaguarda dos direitos humanos nos planos a um tempo nacional e internacional não tem fim, como no perene recomeçar, imor-talizado pelo mito do Sísifo. Ao descer a montanha para voltar a empurrar a rocha para cima, toma-se consciência da condição humana, e da tragédia que a circunda (como ilustrado pelas his-tórias de Electra, e de Irene Ximenes Lopes Miranda).8

De fato, o legislador errou ao introduzir um pa-rágrafo terceiro ao artigo 5º com a redação apresenta-da que vem a reacender a discussão sobre a hierarquia dos direitos humanos reconhecidos por tratados in-ternacionais em face dos direitos fundamentais con-sagrados na Constituição Federal de 1988. Os termos dispostos pelo legislador reformador conferem razão ao argumento de Cançado Trindade sobre a incons-titucionalidade do dispositivo, cuja redação induz a restrições na incorporação de novos direitos humanos fundamentais, contrariando frontalmente o § 2º do arti-go 5º, esse sim instituído pelo legislador originário.

Outro argumento que fortalece essa indaga-ção refere-se à prevalência dos princípios gerais do Direito. Em que pese a redação dada ao § 3º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e o posiciona-mento do STF envolvendo matéria de natureza in-ternacional, cabe ressaltar que, ante o caso concreto e em se tratando de violação de direitos humanos, a interpretação dos dispositivos legais deve respei-tar o princípio basilar do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que é a primazia da norma mais

favorável ao ser humano.9

O ser humano, como visto, tornou-se o cen-tro das preocupações a partir da segunda metade da década de 1990, e o Direito, em especial as normas criadas pelos Estados nazista e fascista, passou a ser questionado por meio dos princípios gerais do Direito, tendo em conta o Direito das Gentes como paradigma. O século XXI cobra, pois, a reconstrução do jus gentium como direito universal da humanida-de a humanida-determinar limites ao legislador e ao intérprete da norma, ambos agentes estatais, classicamente im-buídos de defender os interesses do Estado, quando o momento histórico exige a supremacia da proteção do indivíduo.

Definitivamente, não se pode visua-lizar a humanidade como sujeito do Direito a partir da ótica do Estado; o que se impõe é reconhecer os limites do Estado a partir da ótica da humani-dade. (TRINDADE, 2006, p. 28).

3 A EMENDA CONSTITUCIONAL 45/2004 E O

TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Outro desacerto do legislador reformador refe-re-se à inclusão do § 4º ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe: “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.” Novamente a re-dação dada ao dispositivo não faz luz à terra de Rui Barbosa. O artigo expressamente afirma que o Brasil irá se submeter a uma jurisdição internacional, con-trariando os preceitos constitucionais relativos à so-berania nacional e à soso-berania popular, comumente invocados para justificar a opção dualista no que diz respeito ao direito internacional.10

Se interpretado à luz do § 3º, o § 4º não faz o menor sentido. Primeiramente porque o § 3º, como visto, retroage no que se refere à proteção aos direitos humanos, criando novos obstáculos à sua positivação constitucional e reforçando a natureza infraconstitu-cional dos tratados internacionais, salvo se versarem sobre direitos humanos e se forem aprovados pelo Congresso Nacional obedecendo aos requisitos dis-postos no artigo 60, § 2º, todos da Constituição Fe-deral de 1988.

Com esse engessamento, a redação dada pelo § 3º fortaleceu a tese dualista, ou seja, reafirmou que o Estado brasileiro não reconhece automaticamente os tratados internacionais, logo os tratados interna-cionais de direitos humanos não são automaticamen-te convertidos em norma constitucional, mas, tão-so-mente, após serem submetidos ao crivo do Legislati-vo e, desde que, obedecidos aos requisitos exigidos para as emendas constitucionais.

No § 4º, contudo, o legislador inverteu o posi-cionamento adotado no parágrafo anterior, afirman-do que o Estaafirman-do brasileiro irá se submeter a toda e qualquer decisão do Tribunal Penal Internacional, ou seja, toda norma internacional emitida pelo Tribunal Penal Internacional vinculará automaticamente o

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Es-tado brasileiro. Em se tratando de sentença interna-cional, o disposto no § 4º do artigo 5º afasta a exi-gência do artigo 105, I, “i”, da Constituição Federal de 1988, que agora atribui ao Superior Tribunal de Justiça a competência para processar e julgar “a ho-mologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias.”11

Todavia, o retrocesso trazido pelo § 4º não se refere à incorporação automática de norma interna-cional, mas sim ao status privilegiado conferido à ratificação desse tratado internacional, de natureza penal, e que implica diretamente violação a diversos direitos e garantias consagrados pela Constituição Federal de 1988.

O Tribunal Penal Internacional foi criado pelo Estatuto de Roma em 1998, tendo sido ratificado pelo Brasil e incorporado ao ordenamento jurídico nacional em 6 de junho de 2002, mediante o Decreto Legislativo 112, o que implica dizer que o Brasil, desde 2002, já reconhecia a competência do Tribunal Penal Internacional para processar e julgar crimes contra a humanidade, como o crime de terrorismo e de genocídio. Mesmo a simples ratificação pelo Estado brasileiro suscitou, dentre a doutrina, críticas e inquietações, uma vez que esse tratado não admitiu reservas e prevê, dentre outras disposições conflituosas, a pena de prisão perpétua e a extradição de nacionais (PIOVESAN, 2005, p. 77), disposições expressamente proibidas pela Constituição Federal de 1988 no artigo 5º, incisos

XLVII e LI, respectivamente.12

A par de contrariar frontalmente garantias constitucionais originárias, o § 4º do artigo 5º ainda confere relevância privilegiada a uma norma inter-nacional de natureza punitiva, dentre tantas normas internacionais protetivas. Apesar do evidente fracas-so dos sistemas penais e penitenciários mundo afora e dos movimentos em prol do direito penal mínimo, o legislador preferiu elevar ao status constitucional à ratificação de um instrumento meramente puniti-vo13, ao invés de conferir esse privilégio à

Conven-ção Americana de Direitos Humanos e/ou ainda à competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Numa escala de valores, o legislador reforma-dor, ao atender ao disposto no artigo 7º do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias da Consti-tuição Federal de 1988, que dispõe: “o Brasil pro-pugnará pela formação de um tribunal internacional de direitos humanos”, optou pelo Tribunal que cas-tiga, a um que ampara, preferiu um tribunal inqui-sitório a um tribunal protetivo, o que representa um enorme retrocesso na consolidação dos movimen-tos em prol dos direimovimen-tos humanos, em especial os que defendem alternativas à pena prisão, compro-vadamente ineficaz, no plano internacional e interno dos Estados.

4 A EMENDA CONSTITUCIONAL 45/2004 E A

JUSTIÇA FEDERAL

A boa notícia quanto à atenção dispensada pelo legislador reformador aos direitos humanos refere-se à possibilidade de avocação pela Justiça Federal dos casos envolvendo violação aos direitos humanos. O recente inciso V-A e seu correspondente § 5º, ambos do artigo 109 da Constituição Federal, foram acerta-damente inseridos no texto constitucional, no intuito de reparar a limitação anterior que impedia a inter-venção da União Federal nos Estados, por força do pacto federativo consagrado no artigo 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

Antes da Emenda Constitucional 45, de 2004, as violações aos direitos humanos ocasionadas pela polícia penitenciária, civil ou militar, que são admi-nistradas pelos governos estaduais, eram processa-das exclusivamente pelos tribunais estaduais, cujo inquérito policial era conduzido pelas próprias polí-cias estaduais.

Quando as violações são perpetradas por aqueles que teriam por obrigação investigá-las, ou quando envolvem altas autoridades que exercem grande influência sobre as instâncias estaduais de aplicação da lei, a impunidade tem, infelizmente, se tornado regra.14

Com efeito, a Emenda Constitucional 45, de 2004, deu um passo à frente na defesa aos direitos humanos, permitindo ao Estado brasileiro punir os responsáveis pelas graves violações aos direitos hu-manos, evitando assim uma condenação internacio-nal.15 No que diz respeito ao sistema constitucional,

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a alteração trazida pela nova redação do artigo 109, V-A e § 5º, não entra em conflito com os demais dispositivos constitucionais, ou seus princípios e valores16, ao contrário, vem ao encontro:

[...] das garantias do Estado Democrá-tico de Direito e da dignidade da pes-soa humana, materialmente concebida, expostas no artigo 1º da Constituição Fe-deral de 1988. (FACHIN, 2005, p. 235).

5 CONCLUSÃO

Apesar da boa intenção legislativa, o texto constitucional não conseguiu traduzir os esforços da doutrina, nacional e estrangeira, bem como dos mo-vimentos sociais, organizações internacionais e não-governamentais em prol da efetivação dos direitos humanos. Muito pelo contrário, frustrou expectati-vas e esperanças daqueles que há muito lutam não apenas pelo reconhecimento, mas também pela efe-tiva e concreta materialização dos direitos de todos no Brasil.

No cenário internacional, a posição do Brasil não é diferente. Condenado em 2006 pela Corte

In-teramericana de Direitos Humanos a indenizar, além de tomar outras providências contra os agressores, a família de Damião Ximenes, pela violação de di-reitos humanos que resultou em sua morte, o Estado ainda não cumpriu a sentença, nem sequer puniu os envolvidos.

No que se refere aos direitos humanos, a EC 45/2004 não trouxe novidades positivas, exceto pela possibilidade de determinados casos transitarem na Justiça Federal. E isso é pouco. Um país como o Brasil, de (des)proporções continentais, de violações históricas contra os direitos, não se pode “dar ao luxo” de editar normas contraditórias ou retrógra-das. A existência de normas protetivas aos direitos humanos não significa a existência efetiva destes direitos, mas ajuda. A restrição legislativa ou a não-existência dessas normas protetivas, condena o in-divíduo à própria sorte, ou pior, à vontade e desejos alheios.

Segue-se a luta, à espera de uma nova refor-ma, uma reforma em prol do indivíduo, em prol do cidadão, em prol da sociedade, e não apenas, em prol das instituições que os deveriam servir bem, e os renegam.

Human Rights in the Brazilian Judiciary Reform Abstract

The present paper turns on a controversial subject, which is, the Brazilian Judiciary Power reform es-pecially about the new regulation on the human ri-ghts. In fact, many changes had been introduced by Constitutional Amendment 45/2004, called Judiciary Power Reform. Some of them, in terms of human rights protection, had brought significant altera-tions, and that, contrary to what a several number

of Brazilian legal circles have asserted, it had not been positive, symbolizing a backslide in the process of recognition and effectiveness of the human rights in Brazil.

Keywords: Human Rights. Reformation of the Judi-ciary. Constitutional Amendment 45 on December 2004. International Treaties. International Criminal Court.

Notas explicativas

1 “Logo, por força do art. 5º, §§ 1º e 2º, a Carta de 1988 atribui aos direitos enunciados em tratados internacionais a natureza de norma

constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam aplicabilidade imediata. Conclui-se, portanto, que o direito brasileiro faz opção por um sistema misto, que combina regimes jurídicos diferenciados: um regime aplicável aos tratados de direitos humanos e um outro aplicável aos tratados tradicionais. Enquanto os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos – por força do art. 5º, § 2º – apresentam natureza de norma constitucional, os demais tratados internacionais apresentam natureza infraconstitucional.” (PIOVESAN, 2005, p. 71).

2 Julgamento do HC 72.131/RJ, de 22.11.1995, que teve como relator o Ministro Celso Mello.

3 Julgamento do HC 82.424/RS. Sobre o caso, ver: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. São

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4 Para um histórico circunstanciado do § 2º do art. 5º da Constituição Federal brasileira, ver: TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado

de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Safe, 2003. v. III, p. 597-643; TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Brasil (1948-1997): as primeiras cinco décadas. 2. ed. Brasília: UnB, 2000. p. 1-214; GALINDO, G. R. Bandeira. Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Constituição Brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 2002; e LOUREIRO, Sílvia M. da Silveira. Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

5 “Acredita-se que, por um lado, o novo dispositivo vem a reconhecer de modo expresso a natureza materialmente constitucional dos tratados

de direitos humanos. Contudo, para que os tratados de direitos humanos obtenham assento formal na Constituição, requer-se a observância de quorum qualificado de três quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos – que é justamente o quorum exigido para a aprovação de emendas à Constituição, nos termos do art. 60, § 2º, da Carta de 1988 Nesta hipótese, os tratados de direitos humanos formalmente constitucionais são equiparados às emendas à Constituição, isto é, passam a integrar formalmente o texto constitucional.” (PIOVESAN, 2005, p. 72).

6 Denúncia é o ato por meio do qual um Estado retira sua aprovação a determinado tratado, deixando, portanto, de fazer parte do grupo que

ratificou o instrumento.

7 “Em suma: os tratados de direitos humanos materialmente constitucionais são suscetíveis de denúncia, em virtude das peculiaridades do

regi-me de direito internacional público, sendo de rigor a democratização do processo de denúncia., com a necessária participação do Legislativo. Já os tratados de direitos humanos material e formalmente constitucionais são insuscetíveis de denúncia.” (PIOVESAN, 2005, p. 75).

8 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes Vs Brasil. Sentencia de 4 de Julio de 2006, Serie C n.

149, voto em separado do Juiz Antônio Augusto Cançado Trindade, parágrafos 30 a 32. Também disponível em: <www.corteidh.or.cr/docs/ casos/vsc_cancado_149_por.doc>.

9 A respeito, ver: TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Safe,

1997. v. I, p. 401-402.

10 Pela teoria dualista, o Estado é independente e soberano e suas normas não precisam de aprovação internacional, ao passo que as normas

internacionais precisam ser “convalidadas” pelo Estado para que tenham eficácia dentro das fronteiras do seu território. Pela teoria dualista, ainda que o Estado assuma compromissos no âmbito internacional, essas obrigações, assim como os direitos, somente se estenderão aos nacionais após terem sido “transformadas” em lei interna; no Brasil em regra, por meio de Decretos.

11 Essa competência era do STF, por força do art. 102, I, “i”, revogado pela Emenda Constitucional 45, de 2004, a mesma que transferiu para

o STJ essa competência.

12 Antes da Emenda Constitucional 45, de 2004, o Estatuto de Roma integrava o ordenamento jurídico nacional como Decreto Legislativo, ou

seja, norma infraconstitucional que, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, só tem eficácia na parte que não contraria a Constituição Federal, não sendo recepcionadas as partes que versam diferentemente do texto constitucional. Com base nessa interpretação, comumente empregada pelo STF, as discussões sobre os conflitos suscitados pelo Estatuto de Roma foram dadas por encerrado. Com o novo § 4º do artigo 5º, essas questões voltaram a imperar.

13 “A natureza e as circunstâncias de perpetração de crimes contra a humanidade e assemelhados não permitem que a pena desempenhe

fina-lidades preventivas. A penalização internacional é incapaz de prevenir futuras violações de direitos humanos e tampouco poderá conseguir a ‘ressocialização’ dos criminosos. Dito de outra forma, não é possível termos em tais casos nem efeitos de prevenção geral nem efeitos de prevenção especial. Nesse âmbito, as únicas funções que podem ser desempenhadas é o castigo ‘exemplar’ que segrega os culpados da socie-dade, constituindo expressão de vingança e produzindo a mensagem simbólica de que tais atos são intoleráveis (função que parte da doutrina denomina de prevenção geral positiva). Em palavras claras, a punição só pode servir para ‘a estigmatização, o desprezo, a segregação, a expulsão’ dos acusados e condenados. Ora, tais tratamentos, literalmente desumanos e degradantes, deveriam, em vez do entusiasmo que inspira o TPI na maioria dos doutrinadores, causar arrepio a qualquer defensor dos direitos humanos.” (DIMOULIS, 2005, p. 112).

14 Relatório Azul de 1996 a 1999, (apud FACHIN, 2005, p. 233).

15 Importante lembrar o caso Damião Ximenes Lopes, por meio do qual o Brasil foi condenado pela primeira vez pela Corte Interamericana de

Direitos Humanos em razão da tortura e morte de uma pessoa portadora de deficiência, internada numa instituição pública. Destaca-se que a sentença considerou na condenação o fato de o Estado brasileiro, por meio da instituição hospitalar e da polícia local, ter usado de todos os recursos possíveis para impedir e macular as investigações. O processo no Judiciário local ainda não foi julgado. Em razão da demora, a irmã da vítima demandou contra o Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esse é o exemplo de um caso que pode ainda ser avocado pela Justiça Federal, cuja punição dos responsáveis não é apenas medida de justiça interna, mas também requisito de cumprimento da sentença internacional.

16 “Em suma, tais enfoques privilegiados seriam: a) não paira qualquer dúvida quanto à sua compatibilidade com a independência do Judiciário,

uma vez que seria um órgão judicial – o Superior Tribunal de Justiça – que poderia determinar o citado deslocamento; b) guarda perfeito paralelismo com a regra do esgotamento dos recursos internos como condição para que a questão possa ser levada ao conhecimento da Corte Interamericana – pois ambos são mecanismos marcados pela subsidiariedade, em que o órgão que primeiro tem competência para apreciar o fato funciona mal, e somente em decorrência deste ‘mal funcionamento’ abre-se a possibilidade de submeter a questão a outra instância; c) tal incidente não é estranho ao direito brasileiro, pois é instituto bastante assemelhado ao desaforamento (deslocamento da competência do tribunal do júri, nos termos do art. 424 do CPP).” (FACHIN, 2005. p. 234).

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REFERÊNCIAS

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes Vs Brasil. Sentencia de 4 de Julio de 2006, Serie C n. 149. Também disponível em: <www.corteidh.or.cr/docs/ casos/vsc_cancado_149_ por.doc>.

DIMOULIS, Dimitri. O art. 5º, § 4º, da CF: Dois retrocessos políticos e um fracasso normativo. In: TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Reforma do Judiciário: Emenda Constitucional 45/2004, Analisada e Comentada. São Paulo: Método, 2005. p. 107-119.

FACHIN, Luiz Edson. A tutela efetiva dos direitos humanos fundamentais e a reforma do Judiciário. In: RENAULT, Sérgio Rabello Tamm; BOTTINI, Pierpaolo (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 225-241.

GALINDO, G. R. Bandeira. Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Constituição Brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

LOUREIRO, Sílvia M. da Silveira. Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 1997.

_______. Reforma do Judiciário e Direitos Humanos. In: TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Reforma do Judiciário: Emenda Constitucional 45/2004, Analisada e Comentada. São Paulo: Método, 2005. p. 67-81

TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Brasil

(1948-1997): as primeiras cinco décadas. 2. ed. Brasília: UnB, 2000.

_______. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Safe, 2003. v. III.

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