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URGUESA NOB
RASILERNESTO GEISEL AND THE BOURGEOIS AUTOCRACY IN BRAZIL
David Maciel
macieldavid@ig.com.br RESUMO: Este trabalho busca discutir o papel desempenhado por Ernesto Geisel na consolidação da autocracia burguesa no Brasil como um de seus intelectuais orgânicos. Ao longo de sua carreira Ernesto Geisel pôde desempenhar funções decisivas na reprodução e na consolidação da dominação burguesa no Brasil, emergindo não apenas como um dos principais representantes das forças políticas e militares vitoriosas nos embates políticos das décadas de 1930 a 1980, mas como um dos seus principais dirigentes. Por conta disto, avançamos a tese de que, mais do que um intelectual vinculado ao chamado bloco dependente‐associado, ao longo de sua trajetória Geisel constituiu‐se como um intelectual orgânico da autocracia burguesa no Brasil.
PALAVRAS‐CHAVE: Militares; Intelectual orgânico; Autocracia burguesa.
ABSTRACT: This paper discusses the role of Ernesto Geisel in the consolidation of bourgeois autocracy in Brazil as one of its organic intellectuals. Throughout his career Ernesto Geisel could perform functions critical for the reproduction and consolidation of bourgeois rule in Brazil, emerging not only as one of the leading representatives of political and victorious military forces in the political struggles of the decades from 1930 to 1980, but as one of its main leaders. Because of this, we advanced the thesis that more than an intellectual linked to the call‐dependent block associated throughout his career Geisel was established as an organic intellectual of bourgeois autocracy in Brazil.
KEYWORDS: Military; Organic intellectual; Bourgeois autocracy.
Introdução
Este trabalho pretende discutir o papel desempenhado por Ernesto Geisel na consolidação da autocracia burguesa no Brasil como um de seus intelectuais orgânicos. Ao longo de sua carreira como comandante militar, gestor de empresa pública, secretário estadual, ministro de Estado, juiz e presidente da República Ernesto Geisel pôde desempenhar funções decisivas na reprodução e na consolidação da dominação burguesa no Brasil, emergindo não apenas como um dos principais representantes das forças políticas e militares vitoriosas nos embates políticos das décadas de 1930 a 1980, mas como um dos seus principais dirigentes. Defensor do forte intervencionismo estatal em favor da grande
Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós‐graduação em História da UFG. Coordena o Núcleo
de Estudos e Pesquisas em História Contemporânea (NEPHC) e o Grupo de Pesquisa “Capitalismo e História” (CNPq). É pesquisador do NUPEMARX (Núcleo de Pesquisa Marxista).
indústria e do capital monopolista, Geisel contribuiu para a definição de um padrão de desenvolvimento marcadamente concentrador de renda e poder.
No plano político adotou uma concepção corporativista que destinava à burocracia de Estado, especialmente aos militares, tidos como única instituição nacional, uma função cesarista e antidemocrática marcada pela defesa da ordem social, pelo anticomunismo e pela recusa da organização e mobilização das classes trabalhadoras, vista como ação política subversiva, portanto ilegal e ilegítima; o que o levou a combater as forças democráticas e populistas no período 1945‐64, participar das articulações que desembocaram no golpe de 1964, atuar decisivamente na montagem institucional da Ditadura Militar e na sua superação por uma transição política que permitiu sua auto‐reforma. Finalmente, como quadro da burocracia de Estado oriundo das Forças Armadas e formado durante seu processo de modernização e profissionalização, Geisel apresentou uma visão integral do problema da dominação burguesa no Brasil, buscando combinar desenvolvimento econômico, estabilização da ordem e controle do conflito político num cenário de acelerada expansão capitalista e de intensificação das contradições de classe e dos conflitos sociais e políticos, levando‐o a adotar uma posição de relativa autonomia frente aos interesses capitalistas imediatos. Diante destas características, avançamos a tese de que mais do que um intelectual vinculado ao chamado capital multinacional e associado, como Dreiffus o qualifica em seu importante livro sobre o golpe de 1964 e a formação da elite orgânica que lhe deu sustentação (1986, p. 71‐82), ao longo de sua trajetória Geisel constituiu‐se como um intelectual orgânico da autocracia burguesa no Brasil. Porém um intelectual de tipo específico, pois sendo oriundo de um agrupamento originariamente identificado como de intelectuais tradicionais, os militares, Geisel sempre imaginou o desenvolvimento capitalista e a dominação burguesa em função dos valores de segurança e desenvolvimento desenvolvidos pelas Forças Armadas no século XX, não em função dos valores capitalistas do lucro e da liberdade de mercado. Isto lhe possibilitou relativa autonomia diante dos interesses das frações burguesas específicas, atuando mais como organizador de sua dominação coletiva, do que como preposto dos interesses do capital dependente‐associado.
A origem intelectual dos militares e sua assimilação pela ordem social do capital no Brasil
Refletindo sobre a formação e o papel dos intelectuais orgânicos na sociedade capitalista Gramsci afirma:
Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresário capitalista cria
consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc. (...) Pode‐se observar que os intelectuais “orgânicos” que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo são, na maioria dos casos, “especializações” de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz (GRAMSCI, 2004, p. 15‐16).
Assim, os intelectuais orgânicos emergem como “organizadores” da intervenção social, política e ideológica das classes fundamentais, conferindo‐lhes unidade de ação e coerência de propósitos, enquanto sujeitos portadores de uma vocação hegemônica, a partir das suas próprias funções econômicas originais. No entanto, ao longo do seu processo de constituição e afirmação como ator histórico os grupos sociais fundamentais encontram intelectuais oriundos de formações socais anteriores, com os quais disputam a hegemonia e mesmo buscam “assimilar” a seu favor. De acordo com ele:
Todo tipo social “essencial’, contudo, emergindo na história a partir da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até nossos dias – categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não foi interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas. (...) Dado que estas várias categorias de intelectuais tradicionais sentem com “espírito de grupo” sua ininterrupta continuidade histórica e sua “qualificação”. Eles se põem a si mesmos como autônomos e independentes do grupo social dominante (GRAMSCI, 2004, p.16‐17).
Em conformidade com esta definição Gramsci afirma que originalmente os militares, assim como o clero, se definem como “intelectuais tradicionais”, ou seja, não emergem diretamente do mundo da produção moderna, nem se vinculam estritamente a nenhuma classe social fundamental da sociedade capitalista, guardando relativa autonomia em relação aos seus interesses específicos por conta de sua própria origem pretérita; podendo assim variar sua vinculação a uma ou outra classe ao longo do tempo ou mesmo vincular‐se à várias classes ao mesmo tempo. Numa passagem do Caderno 12 (1932), sobre os intelectuais, Gramsci localiza o papel do clero e dos militares como intelectuais tradicionais na América Latina. Afirma ele:
Na América do Sul e Central, a questão dos intelectuais, ao que me parece, deve ser examinada levando‐se em conta as seguintes condições fundamentais: também na América do Sul e Central inexiste uma ampla categoria de intelectuais tradicionais, mas o problema não se apresenta nos mesmos termos que nos Estados Unidos. De fato, encontramos na base do desenvolvimento desses países os quadros da civilização espanhola e portuguesa dos séculos XVI e XVII, caracterizada pela Contra Reforma e pelo militarismo parasitário. As cristalizações ainda hoje resistentes nestes países
são o clero e uma casta militar, duas categorias de intelectuais tradicionais fossilizadas na forma da metrópole européia. A base industrial é muito restrita e não desenvolveu superestruturas complexas: a maior parte dos intelectuais é de tipo rural e, já que domina o latifúndio, com extensas propriedades eclesiásticas, estes intelectuais são ligados ao clero e aos grandes proprietários. A composição nacional é muito desequilibrada mesmo entre os brancos, mas complica‐se ainda mais pela imensa quantidade de índios, que em alguns países formam a maioria da população. Pode‐se dizer que, no geral, existe ainda nessas regiões americanas uma situação tipo kulturkampf e tipo processo Dreyfus, isto é, uma situação na qual o elemento laico e burguês ainda não alcançou o estágio da subordinação dos interesses e da influência clerical e militarista à política do Estado moderno. Ocorre assim que, por oposição ao jesuitismo, tenham ainda grande influência a Maçonaria e o tipo de organização cultural como a “Igreja Positivista”. Os eventos dos últimos tempos (novembro de 1930) – do kulturkampf de Calles, no México, às insurreições militar‐populares na Argentina, no Brasil, no Peru, no Chile, na Bolívia – demonstram precisamente a exatidão destas observações (GRAMSCI, 2004, p. 30‐31).
No entanto, na avaliação de Gramsci a condição de intelectual tradicional exercida por estes agrupamentos sociais não impede a sua assimilação pela sociedade capitalista e pelas classes fundamentais que a compõe (a burguesia e proletariado), redefinindo suas funções como intelectuais orgânicos. Este processo é condicionado pela capacidade destas classes em criar sua própria sociedade civil, ou seja, seus próprios aparelhos de hegemonia e seus próprios intelectuais orgânicos, criados por sua atividade prática direta, atraindo a adesão dos intelectuais tradicionais para sua perspectiva hegemônica. Segundo Gramsci:
Uma das características mais marcantes de todo grupo que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista “ideológica” dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão for capaz de elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos (GRAMSCI, 2004, p. 19).
No Brasil, o processo de assimilação dos militares como intelectuais orgânicos da ordem social capitalista inicia‐se ainda durante a transição do trabalho escravo para o trabalho livre com a reforma militar de 1850, avança com a Guerra do Paraguai, e se reforça com os movimentos abolicionista e republicano em torno de uma perspectiva anti‐escravista, republicana e meritocrática, favorável à ação política dos militares como grupo social específico, vocacionado para a representação do interesse nacional. Tal representatividade do conjunto do povo‐Nação se justificaria por conta de seu patriotismo, de sua racionalidade e de seu alheamento em relação aos interesses oligárquicos e particularistas, numa postura tipicamente cesarista, em que os militares assumiriam a direção política do Estado em nome
do progresso e da ordem. Este movimento de assimilação ocorreu primeiramente no Exército em função de sua própria configuração como força repressiva no período imperial (1822‐ 1889), pois enquanto a Marinha tinha grande proximidade com a aristocracia escravista, o Exército era considerado uma força armada inferior, composta por pobres e incultos, sem outra opção de sobrevivência senão o recrutamento. Daí que a principal força militar terrestre para a ordem imperial fosse a Guarda Nacional, composta por grandes proprietários de terras e escravos, o que conferia à aristocracia escravista o direito de uso da força, além do controle do processo de representação política. Esta posição inferior em que a ordem imperial colocava o Exército deu origem à uma reação por parte de determinados setores militares, que encontrou na afirmação do seu direito de intervenção política a sua maior expressão, particularmente após a reforma de 1850, que instituiu a meritocracia e a antiguidade como critérios para a promoção na carreira, diminuindo a importância das relações pessoais na configuração do oficial ato (SAES, 2013, p. 19‐21).
A reação do Exército à sua condição subalterna no Estado escravista e a defesa do seu direito de intervenção política combinam‐se ao processo de crise do escravismo colonial e de transição para o capitalismo, revelando o início de um processo longo e tortuoso de assimilação das Forças Armadas como intelectuais orgânicos da ordem social capitalista. O apoio de determinados setores militares à abolição da escravidão e à constituição de uma institucionalidade política baseada no republicanismo e na meritocracia expressam sua vinculação à perspectiva burguesa e ao desenvolvimento das relações sociais capitalistas. A defesa do protagonismo militar na definição dos rumos políticos do país em nome do patriotismo e do seu pretenso compromisso com os interesses gerais da nação também expressam a utopia burguesa de superação do regionalismo em favor da centralização política e da homogeneização nacional. No entanto, tal movimento não se deu sem idas e vindas em função do caráter particular assumido pela transição para o capitalismo no Brasil, onde elementos fundamentais da velha ordem social, como a prevalência da dependência econômica, da grande propriedade da terra, de relações de trabalho baseadas na dependência pessoal, do oligarquismo e do clientelismo, foram transplantadas para a nova ordem, ditando o ritmo e a abrangência das mudanças. A derrota do florianismo no alvorecer da República e a subordinação política dos militares às oligarquias durante a maior parte da República Velha (1889‐1930) revelam as vicissitudes deste processo de assimilação em sua fase inicial (SAES, 2013, p. 21‐28).
Após a implantação do regime republicano a perspectiva cesarista do movimento de afirmação do protagonismo político do Exército conviveu durante muito tempo em seu interior como um movimento alternativo, de defesa de sua modernização em termos profissionais, técnicos e de aparelhagem, em favor de sua “neutralidade” diante dos conflitos políticos e partidários e em detrimento de sua vocação política, o que, em certa medida, também revela sua vinculação à perspectiva burguesa e ao desenvolvimento capitalista na
medida em que o “profissionalismo” militar é a outra face da perspectiva de superação do regionalismo e da subordinação política dos militares às oligarquias. Este movimento pela profissionalização e modernização das Forças Armadas consolidou‐se principalmente depois que militares brasileiros estagiaram no Exército alemão, onde se conscientizaram do atraso técnico‐militar do país, e da instalação da Missão Francesa, em 1919, que inspirou a redefinição a formação acadêmica dos militares em favor das disciplinas técnicas e em detrimento da formação político‐cultural e filosófica, predominante até então (NETO, s/d, p. 43‐70).
Nos anos 20 o tenentismo retoma a perspectiva política cesarista em nome do combate às oligarquias e da modernização política e econômica do país, porém, a partir da Revolução de 1930 a tendência militar vitoriosa, dos chamados “reformadores” e da qual o general Góes Monteiro foi a grande liderança, é a da síntese entre as duas perspectivas,
compondo‐se num só movimento de afirmação ao mesmo tempo política e funcional. Daí
em diante, a defesa do aparelhamento, da modernização técnica e da profissionalização se deu paralelamente ao desenvolvimento de uma concepção de intervenção política que considerava não só natural como necessária a ação política dos militares diante de suas demandas profissionais, porém, não como expressão dos interesses dos grupos políticos e sociais distintos, mas como um agente político autônomo, representativo do conjunto da nacionalidade e de seus interesses coletivos. Nestes termos, a “neutralidade” diante dos interesses políticos específicos se combinou à perspectiva cesarista. Neste processo foi decisivo o reforço da hierarquia e a politização “despartidarizada” dos militares, operada pelo Alto Comando (NETO, s/d, p. 43‐70). Esta orientação foi vitoriosa ao longo do tempo e atraiu a adesão da maioria dos militares, particularmente os militares de “direita”, apesar do seu envolvimento direto nos conflitos políticos e sociais dos anos 30 a 60. É nisto que reside o caráter orgânico das funções intelectuais assumidas pelo Exército no século XX, pois a defesa dos interesses coletivos da nacionalidade tendeu a se confundir com a perspectiva política autocrático‐burguesa, expresso na associação progressiva entre segurança nacional e desenvolvimento econômico (OLIVEIRA, 1976, p. 189‐55).
Esta redefinição implicou no apoio militar ao esforço industrializante dirigido pelo Estado, inclusive com os militares assumindo funções de planejamento e gestão; no reforço da disciplina e da hierarquia, fortalecendo a perspectiva profissional; e na atualização de sua perspectiva de ação política com a emergência do problema da segurança nacional, do qual os militares colocaram‐se como tutores. No período 1930‐1945 a tendência militar vitoriosa se impôs com o esvaziamento dos tenentes como força política específica através de sua incorporação aos postos de comando militares e administrativos e sua subordinação à hierarquia militar, prevalecendo a ação política do Exército enquanto instituição nacional em lugar da ação de grupos específicos. Paralelamente, os militares assumem progressivamente funções de gerenciamento em atividades econômicas fundamentais para o processo de desenvolvimento industrial e para o próprio aparelhamento técnico e bélico das Forças
Armadas, de interesse imediato dos militares. Além disso, os militares, particularmente o Exército, passam a assumir papel decisivo na defesa da ordem social e na luta contra a “subversão”, como fica explicitado a partir da instalação da Lei de Segurança Nacional e da repressão à ALN (Aliança Nacional Libertadora) e ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) em 1935, criando‐se um aparato repressivo que terá forte atuação durante todo o Estado Novo. A eclosão da Segunda Guerra Mundial e as pressões das potências beligerantes para que o país participasse do conflito tornam ainda mais premente a necessidade de modernização técnica, bélica e profissional das Forças Armadas, paralelamente à demanda pela aceleração e intensificação do processo de industrialização, o que favoreceu a aproximação com os EUA e o envio da FEB para a Europa. A ação conjunta com o exército norte‐americano na Itália e a participação em cursos de instrução e treinamento nos EUA desenvolveu em muitos setores do oficialato a perspectiva de que o desenvolvimento econômico e o posicionamento externo do país deveria se dar em aliança com os estadunidenses, criando uma corrente militar de grande importância política no período seguinte (NETO, s/d, p. 43‐70).
Durante o período 1946‐1964 a tendência à vocação “institucional” do Exército continuou a se afirmar, particularmente com o avanço do processo de industrialização e de desenvolvimento capitalista. Porém, isto não impediu o surgimento de divergências e de divisões entre os militares, que em certa medida expressavam os próprios conflitos sociais e políticos que atravessavam a sociedade civil de alto a baixo nesta conjuntura, dando origem a basicamente dois partidos militares, o nacionalista e o antinacionalista. Apesar de existirem outras clivagens fragmentando os militares, como a existente entre liberalismo econômico e intervenção estatal, ou aquela entre liberalismo conservador e maior participação política das massas populares, foi o debate sobre a relação com o capital estrangeiro que definiu as principais linhas de força entre os militares neste período. Isto porque, em linhas gerais, além de adotarem uma posição antiimperialista e de condenarem a presença do capital externo na economia brasileira, os nacionalistas tendiam a se alinhar com o populismo varguista, a defender a forte intervenção estatal na economia e, seus setores mais radicais, a propugnar uma aliança popular em torno do projeto de desenvolvimento nacional, envolvendo dos militares e frações burguesas nacionais até os trabalhadores da cidade e do campo. Enquanto isto, os antinacionalistas não só defendiam a colaboração do capital externo no desenvolvimento nacional, como ainda defendiam a livre iniciativa, apesar de não condenarem totalmente a intervenção estatal, e enxergavam na mobilização popular, crescente no período, um perigo para a manutenção da ordem, propugnando um regime político liberal conservador de democracia restrita, onde a participação política das massas seria estritamente limitada e controlada e os militares teriam um papel político preponderante, como verdadeiros representantes da vontade nacional (PEIXOTO, s/d). A Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1948 pelos militares antinacionalistas vinculados à perspectiva cesarista e autocrática, emergiu assim como principal aparelho de elaboração e divulgação desta ideologia, inclusive entre lideranças civis, associando segurança nacional,
entendida como defesa da ordem e combate repressivo à subversão, e desenvolvimento econômico, concebido em termos capitalistas e dependente‐associados (OLIVEIRA, 1976, p. 19‐55). Apesar das peculiaridades de sua posição politico‐ideológica, em termos práticos Geisel atuou ao lado desta corrente.
Esta divisão dos militares em dois grandes partidos evidencia a forma contraditória e tortuosa de sua assimilação à sociedade capitalista no Brasil e sua relativa autonomia diante do bloco no poder, pois se no conjunto as Forças Armadas se vinculam à perspectiva de desenvolvimento capitalista e de afirmação do Estado nacional, pois mesmo os setores vinculados ao PCB propugnavam uma revolução burguesa de caráter democrático‐nacional, em termos específicos as divergências quanto ao modelo de transformação capitalista, ao caráter do Estado e à própria relação dos militares com os variados grupos sociais e políticos eram totais. No entanto, é importante considerar que apesar das divergências inter‐militares e do envolvimento direto dos “partidos militares” com as disputas político‐partidárias sempre prevaleceu a hierarquia, como verdadeiro partido militar, pois mesmo nos momentos de maior tensão, era à hierarquia que os militares recorriam para resolver conflitos e evitar a ruptura. Esta situação favoreceu o cesarismo e a autonomia dos militares diante do bloco no poder (PEIXOTO, s/d, p. 71‐113).
A partir do golpe de 1964, com o governo Castelo Branco a tendência à subordinação política das frações militares ao Alto Comando e deste ao governo tornou‐se ainda mais forte, numa escalada cujo ápice se deu no governo Geisel, esvaziando os “partidos militares” enquanto força política específica. Paralelamente os setores militares vinculados ao movimento dos trabalhadores e organizações de esquerda foram extirpados das Forças Armadas, garantindo o exclusivismo dos setores de direita e autocráticos (OLIVEIRA, 1976, p. 56‐81; OLIVEIRA, s/d, p. 114‐153). De um lado este processo tornou as Forças Armadas ainda mais orgânicas para a autocracia burguesa, abrindo caminho para a conclusão do longo e tortuoso processo de assimilação intelectual iniciado ainda no regime imperial, pois vinculou‐as definitivamente à própria estrutura autocrática do Estado ao fortalecer suas funções institucionais de defesa da ordem social em desfavor de suas funções propriamente políticas e empresariais. Porém, por outro lado deu‐lhes ainda mais autonomia diante dos interesses burgueses específicos, na medida em que o cesarismo militar atingiu o seu ápice, configurando o que poderíamos denominar como uma “assimilação imperfeita” dos militares como intelectuais orgânicos do bloco no poder, particularmente do bloco dependente‐ associado.
Em acordo com a formulação de Gramsci, esta assimilação tornou‐se “imperfeita’ justamente em função das debilidades da supremacia burguesa construída ao longo do tempo no Brasil muito mais próxima da dominação pura e simples do que propriamente da hegemonia. O próprio caráter autocrático‐burguês do Estado brasileiro, pivô e dínamo da aliança entre novas e velhas classes dominantes, e sua articulação histórica com um padrão
de transformação capitalista baseado na dependência associada ao capital externo e na combinação entre setores capitalistas, pré‐capitalistas e subcapitalistas da economia, conforme formulação de Fernandes (1987, p. 201‐366), evidenciam as dificuldades das frações burguesas em criar uma sociedade civil suficientemente ampla e diversificada para produzir seus próprios intelectuais orgânicos e obter o consenso ativo das classes trabalhadoras.
Portanto, se entre as décadas de 1930 e 1980 os militares se dividiram em diversas correntes político‐ideológicas, ao longo do tempo predominou aquela que reforçou seu vínculo com os interesses do capital afirmando sua posição profissional e institucional, associando ideologicamente segurança nacional e desenvolvimento econômico e assumindo uma postura política cesarista e antipopular. Neste sentido, para além de suas vinculações específicas com o bloco dependente‐associado, esta tornou‐se a corrente mais expressiva do conjunto das Forças Armadas e de sua assimilação à ordem capitalista como seu intelectual orgânico coletivo, não só porque foi vitoriosa nas disputas inter‐militares, mas também porque foi aquela que melhor se adaptou às necessidades da dominação de classe burguesa nas condições em que ela se estabeleceu historicamente no país. Por conta disto, em nossa avaliação, a trajetória de Ernesto Geisel expressa de modo exemplar a trajetória desta corrente, daí a sua representatividade como intelectual orgânico da autocracia burguesa. Geisel como representante dos intelectuais orgânicos da autocracia burguesa. Em sua longa carreira Ernesto Geisel exerceu todos os tipos de função acessíveis a um militar no aparelho de Estado brasileiro no período que abrange as décadas de 1920 e 1970, desde as funções propriamente militares (comando e instrução) até funções político‐ administrativas (secretário de estado, chefe do gabinete militar da presidência da República, presidente da República), judiciárias (ministro do Supremo Tribunal Militar) e mesmo funções empresariais (superintendente da Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão, presidente da Petrobrás), numa trajetória ímpar quando comparada a outros militares de sua geração.
Nascido em 1907 no Rio Grande do Sul, numa família pequeno burguesa de Bento Gonçalves, Geisel estudou no Colégio Militar de Porto Alegre entre 1921 e 1924 e depois na Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, entre 1925 e 1927, onde se torna aspirante a oficial, ascendendo à segundo tenente em 1928 e primeiro tenente em 1930. Neste período identifica‐se com as teses anti‐oligárquicas e modernizantes do tenentismo, apesar de não se envolver diretamente com o movimento. Em 1930 apóia a aliança política que levou Getúlio Vargas ao poder, inclusive militarmente, assumindo o comando de uma bateria na frente de Itararé, na fronteira entre o Paraná e São Paulo. Em 1931 torna‐se secretário‐geral do
governo do Rio Grande do Norte e em 1932 assume a secretaria de Fazenda, Agricultura e Obras Públicas da Paraíba, contribuindo assim na política de intervenção federal nos estados com vistas à centralização política e ao enfraquecimento das oligarquias. Na Revolução Constitucionalista de 1932 combateu ao lado das tropas governistas contra a rebelião da oligarquia paulista, comandando uma bateria de artilharia. Em 1935 combate o Levante Comunista na Escola de Aviação Militar no Rio de Janeiro, experiência que nele suscita um forte sentimento anticomunista (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 465‐466).
Após concluir diversos cursos de formação e aperfeiçoamento e de tornar‐se instrutor, iniciativas que lhe permitem ascender na carreira, vai para os Estados Unidos, onde freqüenta novos cursos entre os anos de 1944 e 1945, inclusive o de comando e estado‐ maior em Fort Leavenworth, experiência que reforça sua perspectiva anticomunista e liberal conservadora. De volta ao Brasil participa da mobilização militar que depõe o presidente Vargas, em 1945, para impedir sua continuidade na presidência com o apoio do movimento sindical e dos grupos de esquerda. No novo governo é nomeado adido militar da embaixada brasileira em Montevidéu, cargo no qual permanece até 1950. Apesar de sua posição “nacionalista instrumental”, vincula‐se aos grupos militares anticomunistas e antinacionalistas nos embates do Clube Militar. Em 1952 matricula‐se na Escola Superior de Guerra, da qual se torna membro do corpo permanente no ano seguinte, ministrando cursos e participando de suas atividades. Apesar de se recusar a assinar o “Manifesto dos coronéis”, que pedia a demissão de João Goulart do ministério do trabalho do governo Vargas, por considerá‐lo um ato de indisciplina, nas disputas militares posiciona‐se ao lado do “partido militar” antinacionalista e anticomunista, vinculando‐se aos setores que organizam o golpe de 1954 que levou ao suicídio do presidente. Em 1955, no governo Café filho, assume a sub‐ chefia do Gabinete Militar da Presidência da República e logo depois a superintendência geral da Refinaria de Presidente Bernardes, em São Paulo, a partir da qual passa a se envolver nos assuntos referentes à indústria petrolífera no país. Em 1956 assume o comando do quartel do Exército de Quitaúna, em São Paulo e no ano seguinte o cargo de chefe da seção de informações do Estado maior do Exército, além de tornar‐se membro do Conselho Nacional do Petróleo, como representante do Ministério da Guerra e no qual defende o monopólio da Petrobrás (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 467‐469).
Em 1960 torna‐se general de brigada e assume o Comando Militar de Brasília e o comando da 11ª Região Militar. Participa ativamente da conspiração civil‐militar que organizou o golpe de 1964, apoiando a ascensão de Castelo Branco à presidência da República, em lugar de Costa e Silva, assumindo a chefia do Gabinete Militar e a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional em seu governo (1964‐1967) (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, 469‐470). Juntamente com Golbery do Couto e Silva, então chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), compôs o núcleo dos militares moderados, chamados “castelistas”, que ao mesmo tempo em que defendiam e executavam o “saneamento” da arena política dos setores considerados “subversivos”, propugnavam a volta dos militares aos
quartéis após o término da empreitada, postando‐se contra os militares “duros” que defendiam o cesarismo militar permanente. No entanto, diante da escalada autoritária que leva à Constituição de 1967 e à permanência dos militares no poder, com a ascensão de Costa e Silva à presidência, contribui na elaboração e articulação do conjunto de mudanças institucionais que aboliram definitivamente a institucionalidade democrática de 1946, prorrogando o mandato de Castelo Branco, suspendendo as eleições diretas para cargos executivos, criando o bipartidarismo, entre outras medidas. (MACIEL, 2004, pg. 37‐84).
Durante os períodos de Costa e Silva e Médici na presidência afasta‐se do governo, exercendo a função de ministro do Superior Tribunal Militar entre 1967 e 1969, após o que assume a presidência da Petrobrás, ocupando o cargo até sua indicação para a sucessão presidencial, em 1973. Entre 1974 e 1979 exerce a presidência da República, desencadeando o processo de transição “lenta, gradual e segura”, que lançou as bases para o fim da Ditadura Militar com a reforma da autocracia burguesa, a partir do projeto de “Distensão”, elaborado e conduzido por seu governo. Além do reforço do cesarismo militar como em nenhum outro governo, o projeto distensionista impôs a supremacia da presidência da República sobre os ministérios e comandos militares, garantindo maior controle sobre o aparelho de repressão e de informações e tornando a repressão mais seletiva; transferiu parte do poder decisório da presidência para os poderes Legislativo e Judiciário; fortaleceu os partidos e o processo eleitoral com vistas à canalização do conflito político para o interior da própria institucionalidade autoritária e atraiu o apoio da oposição burguesa, num movimento transformista bem sucedido. A presidência de Geisel também foi marcada pela tentativa de superar as dificuldades econômicas impostas pelas próprias contradições do chamado “Milagre Brasileiro” e pela crise econômica internacional através do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), que propunha a conclusão do processo de industrialização brasileiro através do fortalecimento do setor de bens de capital, da ampliação dos investimentos estatais e do crescimento do setor público (MACIEL, 2004, pg. 85‐206). Após o término do seu mandato Geisel assume a presidência da Norquisa (Nordeste Química S. A.) e posteriormente a presidência do conselho de administração da Copene (Companhia Petroquímica do Nordeste) (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 474). Mesmo fora do governo continuou exercendo grande liderança nos meios militares, sendo um dos fiadores do acordo que garantiu a eleição indireta de Tancredo Neves e o fim da Ditadura Militar (MACIEL, 2004, p. 305‐320).
Em termos políticos e ideológicos Ernesto Geisel adotou desde cedo uma perspectiva conservadora, antidemocrática e antipopular, combinando de maneira articulada cesarismo
militar, baseado numa concepção corporativista de ente nacional orgânico e harmônico
representado pelo Estado e, em especial, pelos militares; anticomunismo, expresso numa visão extremamente negativa das classes subalternas e de sua mobilização política e social;
política das massas populares (SAES, 1985, p. 151‐195), num mix autocrático‐burguês próprio dos setores militares de direita. No seu corporativismo insere‐se uma perspectiva que poderíamos definir como desenvolvimentista “nacionalista instrumental”, pois enxerga no Estado o agente fundamental do desenvolvimento econômico nacional e concebe a presença do capital externo na economia como positiva, desde que sob controle estatal e restrita aos setores não‐estratégicos. Neste ponto revela‐se ainda a uma visão desconfiada, para não dizer negativa, da ação empresarial, tida como meramente individualista e não‐ comprometida com o interesse nacional. Veremos agora como estas idéias se articulam na concepção politico‐ideológica de Geisel.
Já no período de sua formação, no Colégio Militar de Porto Alegre e na Escola Militar do Realengo, Geisel posiciona‐se contrário à orientação sugerida pelos alemães e pela Missão Francesa, e adotada por parte dos próprios militares brasileiros, que defendiam a “neutralidade” do Exército, o “grande mudo”, diante dos conflitos sociais e políticos em favor de sua profissionalização. Ao contrário, Geisel adota a concepção de que os militares deveriam se posicionar e atuar politicamente. Porém, por sua posição os militares deveriam atuar não em favor de um grupo ou outro, mas em defesa da nação e de seu progresso e desenvolvimento, adotando uma posição cesarista, particularmente nos momentos de crise, como viria a ocorrer durante a Ditadura Militar. Para ele:
Os militares devem ficar fora da política partidária, mas não da política geral. (...) o militar não deixa de ser um cidadão e, individualmente, tem o direito de ter pensamento político. Não deve, é claro, prevalecer‐se da força que a nação lhe confiou para atender sua posição política, que é necessariamente individual. Contudo, em ocasiões de crise, quando o país está ameaçado por graves dissensões internas, fomentadas por dirigentes políticos que se desviam de seu encargo de conduzir o país à realização das aspirações nacionais e utilizam o poder para satisfazer seus interesses e ambições pessoais e de seus apaniguados, a nação fica em perigo, e os militares, em conjunto, poderão ter que atuar com suas forças para afastar drasticamente o perigo manifesto (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 111).
Tal postura, que Geisel manterá por toda a vida, desenvolveu‐se originalmente no ambiente das revoltas militares dos anos 20, quando o tenentismo se postava contra o poder político das oligarquias em nome da modernização econômica e política do país. Segundo Geisel:
Achávamos que o país vivia entregue ao regime dos coronéis do interior, que dominavam. No Rio Grande do Sul havia uma estagnação, o governo
era imutável, o prefeito de Bento Gonçalves durante 30 anos havia sido o mesmo. Era um homem ronceiro, vivia no dia‐a‐dia despachando papel e não se preocupava com a cidade, com a vida, com o progresso, com o desenvolvimento (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 42). Esta posição faz Geisel aderir à aliança civil‐militar que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930, integrando os setores militares que lhe deram sustentação e apoiando ativamente o novo governo, seja ocupando cargos administrativos, contribuindo assim para fortalecer a intervenção federal nos estados e quebrar o poder político das oligarquias; seja defendendo‐ o de armas na mão, tanto em 1932, quanto em 1935 (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 42, 45‐ 50). Em sua avaliação, a Revolução de 1930 foi um episódio positivo e necessário, pois abriu caminho para a superação do atraso e da dependência comercial, apesar do fracasso em formar um “cidadão mais patriota e independente”. Em suas palavras:
O Brasil depois de 30 é outro, não é mais o Brasil de antes. Oque era o Brasil de antes? Era um Brasil que produzia café. Quase tudo de que se precisava era importado. Importava‐se manteiga! Em Bento Gonçalves comia‐se manteiga francesa. Quando se queria uma água mineral, para tratar de um doente, era água de Vichy. Cimento vinha em barricas importadas. Era tudo assim. Fazenda, carretel de linha, agulha, botão, tudo isso era importado. Depois de 30 o Brasil passou a ser outro. Mas a revolução fracassou na formação do povo, na conscientização política, na formação do cidadão mais patriota, mais preocupado com as coisas públicas, mas independente (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 46).
Esta postura negativa acerca da consciência política popular é uma característica importante de sua concepção política, manifesta em diversos momentos de sua intervenção política e militar, pois coloca‐se no centro de sua concepção autocrática. Afinal, como o cidadão comum não se formou como patriota e independente, ou seja, só pensa em seus interesses particulares e quando atua politicamente o faz conduzido por lideranças demagógicas e/ou subversivas, então a participação política do homem comum, das massas, deve ser nula, ou, no máximo, rigidamente controlada e limitada. É em nome desta posição que Geisel atua na repressão ao Levante Comunista de 1935, desenvolvendo um arraigado anticomunismo a partir de então, pois, segundo ele, “nas Forças Armadas, desde a Revolução de 1935, passamos a considerar o comunismo o principal problema de segurança interna” (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 141).
Para Geisel o comunismo é nada mais do que o fruto da situação de atraso econômico e social do país, da qual se aproveitam as forças demagógicas para iludir as classes populares com promessas irrealizáveis e conquistar apoio para a conquista do poder. Pior do que isto, o comunismo é uma espécie de doença, de patologia social, por fundamento irracional, pois contrária à natureza humana. Em suas palavras:
Há vários fatores que explicam essa influência do comunismo no Brasil. É resultado da situação do país, do seu atraso, das doenças, do analfabetismo, do problema social, do egoísmo das classes dominantes, da má distribuição de renda. O clima interno é favorável à doutrina porque ela favorece o céu na terra e muita coisa mais. É uma utopia que, para o indivíduo descontente e sofredor, ou para o sujeito desligado da realidade, para o sonhador, é considerada possível. É uma utopia principalmente por que não considera as peculiaridades da natureza humana, que fazem do homem um eterno insatisfeito, querendo sempre mais e, na generalidade das situações, não levando em conta o bem dos seus semelhantes. Muitos não pensavam assim e se deixavam levar pela doutrina comunista, aparentemente igualitária. Outros foram comunistas por recalques, por insucessos da vida, por frustrações. Quando o comunista está convencido do acerto da sua doutrina, não há ninguém que o convença do contrário. É uma doença incurável (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 145‐146).
Nesta crítica ao comunismo sintetiza‐se toda sua concepção acerca da não‐ legitimidade da ação política e social das classes subalternas, pois quando contestadora da ordem social e do Estado tal ação só pode ser considerada fruto de uma combinação peculiar de fatores, sanáveis com o desenvolvimento econômico e com o avanço de uma consciência nacional e patriótica, não uma concepção historicamente constituída pela luta dos trabalhadores, fruto das contradições inerentes à própria sociedade capitalista. Os comunistas, e sob este adjetivo compreende‐se os diversos matizes de esquerda e a militância política e social vinculada às classes subalternas, aproveitam‐se, então, da fragilidade popular para fazer proselitismo em favor de seu projeto particular de poder, que nada tem a ver com os reais interesses populares e ainda ameaça a segurança nacional. Comentando a atuação do CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) na conjuntura de crise do governo Goulart Geisel revela sua visão simplificadora das lutas sociais e a recusa em compreender a ação das classes subalternas num sentido ético‐político, que vá além do mero corporativismo, de articulação política entre as diversas frações das classes trabalhadoras e subalternas. Em sua avaliação:
No fundo era uma organização política muito de esquerda. Não era uma organização que visasse diretamente, honestamente, à situação do trabalhador. Havia muita demagogia, muito interesse de voto partidário. Era um foco comunista, sob a capa de ser uma organização de projeção dos trabalhadores. Na realidade seu objetivo era mais político. Quando os marinheiros se revoltaram em 1964, onde foram se acolher? Onde se reuniram em assembléia? No sindicato dos Metalúrgicos. Por que é que foram para o Sindicato dos Metalúrgicos? (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 145).
Diante de ameaça desta envergadura, resta apenas aos defensores da “ordem natural das coisas” agir tanto na eliminação das condições sócio‐econômicas que favorecem o
proselitismo de esquerda, quanto repressivamente, controlando ou mesmo eliminando sua ação política e social. Com base nesta perspectiva Geisel justifica a violência repressiva praticada pela Ditadura Militar, inclusive o uso da tortura. Comentando a repressão adotada pelo governo militar em 1967‐69 Geisel afirma:
se houvesse tolerância, cada vez que se fosse cedendo os subversivos haviam de querer mais e mais e acabariam tomando conta do poder. Por que o outro lado tinha um objetivo determinado. Grande parte era da esquerda comunista. Quer dizer, eles tinham uma ideologia e não parariam enquanto não conseguissem implantá‐la (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 215).
Diante deste cenário, a tortura era um recurso não só plausível, como necessário. Segundo ele:
acho que a tortura em certos casos torna‐se necessária, para obter confissões. (...) Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior! (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p.225)
A perspectiva corporativista da concepção de mundo de Ernesto Geisel expressa a própria posição político‐ideológica dominante no seio das Forças Armadas, que combinava tanto a defesa da intervenção dos militares no processo político, quanto a valorização de sua formação profissional, de sua capacidade técnica e material e de sua organização interna como corpo hierárquico coeso e disciplinado. Tal combinação só poderia se dar a partir de uma perspectiva política cesarista, qual seja, aquela onde os militares dirigem politicamente o bloco no poder assumindo seu papel político de avalistas da ordem interna, guardiões da segurança nacional e agentes do desenvolvimento econômico sem se vincular exclusivamente a nenhuma classe ou fração de classe, ao contrário guardando sua autonomia política e funcional como representantes do interesse nacional e se impondo como árbitros últimos do conflito político e social. Em outras palavras, sem se envolver nas disputas políticas comezinhas, na “politicagem” como diria o próprio Geisel, nem se vincular à interesses específicos e particulares.
Assim, por conta da ameaça comunista, enraizada na própria realidade nacional de atraso, miséria e incultura, os militares devem assumir uma posição preponderante na garantia da segurança nacional, por meio da repressão e da prevalência dos interesses nacionais sobre os interesses políticos particularistas, graças ao seu pretenso compromisso com a Nação. No plano do desenvolvimento econômico através da intervenção estatal e da modernização econômica a primazia militar se legitima em função do seu próprio
compromisso com a segurança nacional, num raciocínio circular em que segurança nacional e desenvolvimento capitalista se alimentam mutuamente. De acordo com esta perspectiva Geisel afirma:
Mas creio que o problema do Brasil é, principalmente, econômico. Dele derivam os demais, inclusive o social. A fome do povo, o desemprego do povo, os assaltos, os roubos, o tráfico de entorpecentes, tem a sua raiz na nossa deficiência econômica. Seremos uma nação de maior expressão, se conseguirmos desenvolver a nossa economia (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 354‐355).
Assim o cesarismo militar se justifica também economicamente, pois se as classes subalternas são incultas e manipuláveis, as classes dominantes, as burguesias, são motivadas primeiramente por seus interesses individuais, contribuindo com o interesse nacional desde que este se coadune com sua perspectiva de lucro e acumulação. Frente ao corpo nacional os militares devem assumir uma posição arbitral, como representantes desinteressados da vontade nacional. Por conta dos interesses particularistas do capital o desenvolvimento econômico nacional deve ser conduzido pelo Estado, devendo a colaboração externa ficar sob controle e limitada aos setores não‐estratégicos, numa visão “nacionalista instrumental” da relação com o capital internacional. Para ele:
Relativamente à questão dos empreendimentos materiais que o Estado tem tomado a si e que poderiam ser atribuídos às empresas de capital privado, cabe fazer as seguintes observações. Em primeiro lugar, há os que por sua natureza e finalidade, devem ser da exclusiva atribuição do Estado, tais como energia nuclear, telecomunicações, aeroportos internacionais ou empreendimentos vinculados a outros países, como Itaipu, eixos rodoviários, ferroviários, etc. O petróleo também deve ser incluído entre os empreendimentos de atribuição exclusiva do Estado (...). Em segundo lugar, há aqueles empreendimentos que, sendo de interesse nacional e devendo ser atribuídos à iniciativa privada, não são por ela realizados, seja por falta de capital próprio ou de empréstimo, seja por falta de interesse, inclusive por não terem assegurada a remuneração desejada, como se verificou nas grandes siderúrgicas e usinas hidrelétricas. Nesses casos, ou o empreendimento fica a cargo do governo ou não se faz. Finalmente, há atividades da empresa privada – indústrias, bancos, etc. – que são malsucedidas financeiramente e que, por débitos com o fisco ou provenientes de empréstimos, acabam em poder do governo, o qual dificilmente consegue livrar‐se delas ou, liquidá‐las. (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 291).
Para Geisel o empresário é um individualista, que não leva em conta os interesses nacionais, pois pensa apenas no seu lucro privado e se move em nome disto, a não ser que seja imbuído dos objetivos nacionais, formulados pelos militares, obviamente. Os militares, particularmente os do Exército, possuem este papel dirigente e superior à própria burguesia
porque além de funcionarem como o grande “fator de coesão nacional” também os que melhor conhecem a situação nacional por conta da própria dinâmica de sua carreira. Segundo ele:
O Exército é um fator de coesão nacional, porque o oficial que é originário de uma região, de um determinado estado, perde a sua característica regional, já que durante a carreira serve em diferentes lugares e aprende a conhecer o país. Talvez o oficial do Exército seja quem melhor conhece este país (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 461).
Daí a importância de o Estado, de preferência sob a direção política dos militares, assumir determinadas iniciativas econômicas por conta do pouco envolvimento do empresariado no desenvolvimento nacional Geisel diz:
Se o Brasil quiser ser uma nação moderna, sem o problema da fome e sem uma série de outras mazelas de que sofremos, tem que se desenvolver. E para isso, o principal instrumento, a grande força impulsora é o governo federal. A nação não se desenvolve espontaneamente. É preciso haver alguém que a oriente e impulsione, e esse papel cabe ao governo. Esta é uma idéia antiga que possuo, sedimentada ao longo dos anos de vida e esposada nos cursos da Escola Superior de Guerra. Como o país não tinha capitais próprios, como a iniciativa privada era tímida, às vezes egoísta, e não se empenhava muito no sentido do desenvolvimento, era preciso usar a poderosa força que o governo tem (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 287).
Daí a importância da ESG (Escola Superior de Guerra) como centro de formação ideológica que “eleva” a compreensão da elite empresarial acerca dos problemas nacionais em favor da segurança nacional e do desenvolvimento integral. Aqui se revela um componente da perspectiva cesarista de Geisel e de outros segmentos militares, qual seja, a supremacia política e ideológica dos militares sobre o conjunto das frações burguesas. Em sua avaliação:
Acho que a ESG foi importante porque conseguiu transmitir para uma boa parte do setor civil, mais responsável, informações e estudos sobre o problema da segurança no país, mostrando que aquele não era um problema só dos militares, mas de toda a nação. Os militares são responsáveis em parte pela segurança nacional, mas numa eventualidade de guerra, de ameaça à segurança do país, sua ação é limitada. (...) A ESG foi a instituição formuladora de uma doutrina de segurança nacional, realizando uma integração doutrinária entre o meio militar e o meio civil (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 109).
Finalmente para Geisel, neste cenário a democracia de massas é uma impossibilidade num país como o Brasil, pois dá margem à agitações, à demagogia e à prevalência dos interesses particularistas por conta do pretenso baixo nível cultural da população. Quando possível, ou seja, nos momentos de estabilidade política, os mecanismos de representação política devem ser restritivos e altamente seletivos, recrutando os segmentos mais conscientes das classes dominantes acerca dos problemas da segurança nacional e do desenvolvimento. Segmentos que, obviamente, devem ser “educados” pelos militares, como vimos acima. Aqui emerge o liberalismo conservador de Geisel, ao mesmo tempo antipopular, antipopulista e defensor de uma democracia restrita, viável apenas em conjunturas específicas de estabilidade política, pois nos momentos de crise o cesarismo militar deve prevalecer. Para ele:
Se você quiser adotar medidas democráticas e ao mesmo tempo garantir a viabilidade de um governo (...) será necessário verificar o estágio de civilização do povo, ver o que é esse povo, quais as suas tendências, como se comportam que nível cultural atingiu, quais as suas aspirações. (...) Eu não posso pegar o que se usa e se faz nos Estados Unidos, ou na Alemanha, ou na França, ou na Inglaterra, e transplantar integralmente para aqui. Não é judicioso. O país é diferente! É muito mais atrasado! O povo é mais inculto e de outra natureza! (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 395‐396). Em síntese, a democracia, mesmo a burguesa, não combina com o Brasil! Conclusão Apesar de sua peculiaridade em relação aos militares de “esquerda” e à setores dos militares de “direita”, avaliamos que a trajetória política e militar de Ernesto Geisel expressa em linhas gerais o modo específico como os militares foram assimilados como intelectuais orgânicos da ordem social do capital, pois ao mesmo tempo em que incorporam de maneira integral a perspectiva de reprodução do capital à sua própria perspectiva política e ideológica, buscam preservar sua autonomia e supremacia frente ao bloco no poder, propugnando uma posição cesarista que em 1964 os levou ao comando do Estado. Neste sentido, ao mesmo tempo em que emergem como organizadores da dominação burguesa numa perspectiva integral, pois não apenas no plano repressivo, mas também nos planos econômico e administrativo, os militares conseguiram preservar uma considerável margem de manobra sobre os interesses específicos das respectivas frações burguesas, mesmo aquelas do grande capital dependente‐associado, configurando a posição cesarista de que falamos anteriormente. Com isto não estamos aqui negando a identidade geral de interesses entre o grupo militar ao qual Geisel pertencia e o grande capital “multinacional e associado”,
como defende Dreiffus (1986, p. 71‐82); mas ressaltar que os militares não atuaram como simples “servidores” das frações burguesas, como meros “despachantes” de suas demandas.
Por isto, em nossa avaliação, por mais que em sua trajetória como intelectual orgânico da ordem do capital o general Ernesto Geisel se vincule aos interesses do bloco dependente‐associado, sua perspectiva cesarista, baseada na articulação político‐ideológica entre corporativismo, anticomunismo, liberalismo conservador e desenvolvimentismo nacionalista instrumental, o torna um intelectual orgânico da autocracia burguesa, com uma visão integral dos problemas da dominação burguesa no Brasil e autonomia relativa diante dos interesses burgueses específicos. Ernesto Geisel aparece então como típico representante deste processo de assimilação específica, apesar de seu vínculo com os setores militares que funcionaram como intelectuais orgânicos do bloco dependente‐ associado, pois atuou muito mais no sentido de fortalecer a dominação social numa perspectiva autocrático‐burguesa geral, do que no sentido dos seus interesses específicos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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