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Ernesto Geisel e a autocracia burguesa no Brasil

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Academic year: 2021

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E

RNESTO 

G

EISEL E A 

A

UTOCRACIA 

B

URGUESA NO 

B

RASIL

 

ERNESTO GEISEL AND THE BOURGEOIS AUTOCRACY IN BRAZIL 

David Maciel 

macieldavid@ig.com.br  RESUMO: Este trabalho busca discutir o papel desempenhado por Ernesto Geisel na consolidação da  autocracia  burguesa  no  Brasil  como  um  de  seus  intelectuais  orgânicos.  Ao  longo  de  sua  carreira  Ernesto Geisel pôde desempenhar funções decisivas na reprodução e na consolidação da dominação  burguesa no Brasil, emergindo não apenas como um dos principais representantes das forças políticas  e  militares  vitoriosas  nos  embates  políticos  das  décadas  de  1930  a  1980,  mas  como  um  dos  seus  principais dirigentes. Por conta disto, avançamos a tese de que, mais do que um intelectual vinculado  ao  chamado  bloco  dependente‐associado,  ao  longo  de  sua  trajetória  Geisel  constituiu‐se  como  um  intelectual orgânico da autocracia burguesa no Brasil. 

PALAVRAS‐CHAVE: Militares; Intelectual orgânico; Autocracia burguesa. 

ABSTRACT: This paper discusses the role of Ernesto Geisel in the consolidation of bourgeois autocracy  in  Brazil  as  one  of  its  organic  intellectuals.  Throughout  his  career  Ernesto  Geisel  could  perform  functions critical for the reproduction and consolidation of bourgeois rule in Brazil, emerging not only  as one of the leading representatives of political and victorious military forces in the political struggles  of the decades from 1930 to 1980, but as one of its main leaders. Because of this, we advanced the  thesis  that  more  than  an  intellectual  linked  to  the  call‐dependent  block  associated  throughout  his  career Geisel was established as an organic intellectual of bourgeois autocracy in Brazil. 

KEYWORDS: Military; Organic intellectual; Bourgeois autocracy. 

Introdução   

Este  trabalho  pretende  discutir  o  papel  desempenhado  por  Ernesto  Geisel  na  consolidação  da  autocracia  burguesa  no  Brasil  como  um  de  seus  intelectuais  orgânicos.  Ao  longo  de  sua  carreira  como  comandante  militar,  gestor  de  empresa  pública,  secretário  estadual,  ministro  de  Estado,  juiz  e  presidente  da  República  Ernesto  Geisel  pôde  desempenhar funções decisivas na reprodução e na consolidação da dominação burguesa no  Brasil, emergindo não apenas como um dos principais representantes das forças políticas e  militares  vitoriosas  nos  embates  políticos  das  décadas  de  1930  a  1980,  mas  como  um  dos  seus  principais  dirigentes.  Defensor  do  forte  intervencionismo  estatal  em  favor  da  grande 

Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós‐graduação em História da UFG. Coordena o Núcleo 

de  Estudos  e  Pesquisas  em  História  Contemporânea  (NEPHC)  e  o  Grupo  de  Pesquisa  “Capitalismo  e  História”  (CNPq). É pesquisador do NUPEMARX (Núcleo de Pesquisa Marxista). 

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indústria  e  do  capital  monopolista,  Geisel  contribuiu  para  a  definição  de  um  padrão  de  desenvolvimento marcadamente concentrador de renda e poder. 

No plano político adotou uma concepção corporativista que destinava à burocracia de  Estado,  especialmente  aos  militares,  tidos  como  única  instituição  nacional,  uma  função  cesarista e antidemocrática marcada pela defesa da ordem social, pelo anticomunismo e pela  recusa  da  organização  e  mobilização  das  classes  trabalhadoras,  vista  como  ação  política  subversiva,  portanto  ilegal  e  ilegítima;  o  que  o  levou  a  combater  as  forças  democráticas  e  populistas no período 1945‐64, participar das articulações que desembocaram no golpe de  1964, atuar decisivamente na montagem institucional da Ditadura Militar e na sua superação  por  uma  transição  política  que  permitiu  sua  auto‐reforma.  Finalmente,  como  quadro  da  burocracia  de  Estado  oriundo  das  Forças  Armadas  e  formado  durante  seu  processo  de  modernização  e  profissionalização,  Geisel  apresentou  uma  visão  integral  do  problema  da  dominação  burguesa  no  Brasil,  buscando  combinar  desenvolvimento  econômico,  estabilização  da  ordem  e  controle  do  conflito  político  num  cenário  de  acelerada  expansão  capitalista  e  de  intensificação  das  contradições  de  classe  e  dos  conflitos  sociais  e  políticos,  levando‐o  a  adotar  uma  posição  de  relativa  autonomia  frente  aos  interesses  capitalistas  imediatos.    Diante  destas  características,  avançamos  a  tese  de  que  mais  do  que  um  intelectual vinculado ao chamado capital multinacional e associado, como Dreiffus o qualifica  em seu importante livro sobre o golpe de 1964 e a formação da elite orgânica que lhe deu  sustentação  (1986,  p.  71‐82),  ao  longo  de  sua  trajetória  Geisel  constituiu‐se  como  um  intelectual  orgânico  da  autocracia  burguesa  no  Brasil.  Porém  um  intelectual  de  tipo  específico,  pois  sendo  oriundo  de  um  agrupamento  originariamente  identificado  como  de  intelectuais tradicionais, os militares, Geisel sempre imaginou o desenvolvimento capitalista  e  a  dominação  burguesa  em  função  dos  valores  de  segurança  e  desenvolvimento  desenvolvidos pelas Forças Armadas no século XX, não em função dos valores capitalistas do  lucro  e  da  liberdade  de  mercado.  Isto  lhe  possibilitou  relativa  autonomia  diante  dos  interesses  das  frações  burguesas  específicas,  atuando  mais  como  organizador  de  sua  dominação coletiva, do que como preposto dos interesses do capital dependente‐associado. 

 

A origem intelectual dos militares e sua assimilação pela ordem social do capital no Brasil   

Refletindo  sobre  a  formação  e  o  papel  dos  intelectuais  orgânicos  na  sociedade  capitalista Gramsci afirma: 

Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial  no  mundo  da  produção  econômica,  cria  para  si,  ao  mesmo  tempo,  organicamente,  uma  ou  mais  camadas  de  intelectuais  que  lhe  dão  homogeneidade  e  consciência  da  própria  função,  não  apenas  no  campo  econômico,  mas  também  no  social  e  político:  o  empresário  capitalista  cria 

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consigo  o  técnico  da  indústria,  o  cientista  da  economia  política,  o  organizador  de  uma  nova  cultura,  de  um  novo  direito,  etc.  (...)  Pode‐se  observar que os intelectuais “orgânicos” que cada nova classe cria consigo e  elabora  em  seu  desenvolvimento  progressivo  são,  na  maioria  dos  casos,  “especializações”  de  aspectos  parciais  da  atividade  primitiva  do  tipo  social  novo que a nova classe deu à luz (GRAMSCI, 2004, p. 15‐16). 

 

  Assim,  os  intelectuais  orgânicos  emergem  como  “organizadores”  da  intervenção  social,  política  e  ideológica  das  classes  fundamentais,  conferindo‐lhes  unidade  de  ação  e  coerência de propósitos, enquanto sujeitos portadores de uma vocação hegemônica, a partir  das  suas  próprias  funções  econômicas  originais.  No  entanto,  ao  longo  do  seu  processo  de  constituição  e  afirmação  como  ator  histórico  os  grupos  sociais  fundamentais  encontram  intelectuais oriundos de formações socais anteriores, com os quais disputam a hegemonia e  mesmo buscam “assimilar” a seu favor. De acordo com ele: 

Todo  tipo  social  “essencial’,  contudo,  emergindo  na  história  a  partir  da  estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta  estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até nossos  dias – categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como  representantes  de  uma  continuidade  histórica  que  não  foi  interrompida  nem  mesmo  pelas  mais  complicadas  e  radicais  modificações  das  formas  sociais  e  políticas.  (...)  Dado  que  estas  várias  categorias  de  intelectuais  tradicionais sentem  com “espírito  de grupo” sua ininterrupta  continuidade  histórica e sua “qualificação”. Eles se põem a si mesmos como autônomos e  independentes do grupo social dominante (GRAMSCI, 2004, p.16‐17).   

Em conformidade com esta definição Gramsci afirma que originalmente os militares,  assim  como  o  clero,  se  definem  como  “intelectuais  tradicionais”,  ou  seja,  não  emergem  diretamente  do  mundo  da  produção  moderna,  nem  se  vinculam  estritamente  a  nenhuma  classe social fundamental da sociedade capitalista, guardando relativa autonomia em relação  aos  seus  interesses  específicos  por  conta  de  sua  própria  origem  pretérita;  podendo  assim  variar  sua  vinculação  a  uma  ou  outra  classe  ao  longo  do  tempo  ou  mesmo  vincular‐se  à  várias  classes  ao  mesmo  tempo.  Numa  passagem  do  Caderno  12  (1932),  sobre  os  intelectuais, Gramsci localiza o papel do clero e dos militares como intelectuais tradicionais  na América Latina. Afirma ele: 

Na América do Sul e Central, a questão dos intelectuais, ao que me parece,  deve  ser  examinada  levando‐se  em  conta  as  seguintes  condições  fundamentais:  também  na  América  do  Sul  e  Central  inexiste  uma  ampla  categoria de intelectuais tradicionais, mas o problema não se apresenta nos  mesmos termos que nos Estados Unidos. De fato, encontramos na base do  desenvolvimento  desses  países  os  quadros  da  civilização  espanhola  e  portuguesa dos séculos XVI e XVII, caracterizada pela Contra Reforma e pelo  militarismo parasitário. As cristalizações ainda hoje resistentes nestes países 

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são o clero e uma casta militar, duas categorias de intelectuais tradicionais  fossilizadas  na  forma  da  metrópole  européia.  A  base  industrial  é  muito  restrita  e  não  desenvolveu  superestruturas  complexas:  a  maior  parte  dos  intelectuais  é  de  tipo  rural  e,  já  que  domina  o  latifúndio,  com  extensas  propriedades  eclesiásticas,  estes  intelectuais  são  ligados  ao  clero  e  aos  grandes  proprietários.  A  composição  nacional  é  muito  desequilibrada  mesmo  entre  os  brancos,  mas  complica‐se  ainda  mais  pela  imensa  quantidade  de  índios,  que  em  alguns  países  formam  a  maioria  da  população.  Pode‐se  dizer  que,  no  geral,  existe  ainda  nessas  regiões  americanas  uma  situação  tipo  kulturkampf  e  tipo  processo  Dreyfus,  isto  é,  uma  situação  na  qual  o  elemento  laico  e  burguês  ainda  não  alcançou  o  estágio da subordinação dos interesses e da influência clerical e militarista à  política do Estado moderno. Ocorre assim que, por oposição ao jesuitismo,  tenham  ainda  grande  influência  a  Maçonaria  e  o  tipo  de  organização  cultural  como  a  “Igreja  Positivista”.  Os  eventos  dos  últimos  tempos  (novembro de 1930) – do kulturkampf de Calles, no México, às insurreições  militar‐populares  na  Argentina,  no  Brasil,  no  Peru,  no  Chile,  na  Bolívia  –  demonstram precisamente a exatidão destas observações (GRAMSCI, 2004,  p. 30‐31). 

 

  No  entanto,  na  avaliação  de  Gramsci  a  condição  de  intelectual  tradicional  exercida  por  estes  agrupamentos  sociais  não  impede  a  sua  assimilação  pela  sociedade  capitalista  e  pelas  classes  fundamentais  que  a  compõe  (a  burguesia  e  proletariado),  redefinindo  suas  funções  como  intelectuais  orgânicos.  Este  processo  é  condicionado  pela  capacidade  destas  classes em criar sua própria sociedade civil, ou seja, seus próprios aparelhos de hegemonia e  seus  próprios  intelectuais  orgânicos,  criados  por  sua  atividade  prática  direta,  atraindo  a  adesão dos intelectuais tradicionais para sua perspectiva hegemônica. Segundo Gramsci:  

Uma  das  características  mais  marcantes  de  todo  grupo  que  se  desenvolve  no  sentido  do  domínio  é  sua  luta  pela  assimilação  e  pela  conquista  “ideológica”  dos  intelectuais  tradicionais,  assimilação  e  conquista  que  são  tão  mais  rápidas  e  eficazes  quanto  mais  o  grupo  em  questão  for  capaz  de  elaborar  simultaneamente  seus  próprios  intelectuais  orgânicos  (GRAMSCI,  2004, p. 19).  

 

  No  Brasil,  o  processo  de  assimilação  dos  militares  como  intelectuais  orgânicos  da  ordem  social  capitalista  inicia‐se  ainda  durante  a  transição  do  trabalho  escravo  para  o  trabalho livre com a reforma militar de 1850, avança com a Guerra do Paraguai, e se reforça  com os movimentos abolicionista e republicano em torno de uma perspectiva anti‐escravista,  republicana  e  meritocrática,  favorável  à  ação  política  dos  militares  como  grupo  social  específico,  vocacionado  para  a  representação  do  interesse  nacional.  Tal  representatividade  do conjunto do povo‐Nação se justificaria por conta de seu patriotismo, de sua racionalidade  e de seu alheamento em relação aos interesses oligárquicos e particularistas, numa postura  tipicamente cesarista, em que os militares assumiriam a direção política do Estado em nome 

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do progresso e da ordem. Este movimento de assimilação ocorreu primeiramente no Exército  em  função  de  sua  própria  configuração  como  força  repressiva  no  período  imperial  (1822‐ 1889),  pois  enquanto  a  Marinha  tinha  grande  proximidade  com  a  aristocracia  escravista,  o  Exército  era  considerado  uma  força  armada  inferior,  composta  por  pobres  e  incultos,  sem  outra  opção  de  sobrevivência  senão  o  recrutamento.  Daí  que  a  principal  força  militar  terrestre para a ordem imperial fosse a Guarda Nacional, composta por grandes proprietários  de terras e escravos, o que conferia à aristocracia escravista o direito de uso da força, além  do  controle  do  processo  de  representação  política.  Esta  posição  inferior  em  que  a  ordem  imperial  colocava  o  Exército  deu  origem  à  uma  reação  por  parte  de  determinados  setores  militares,  que  encontrou  na  afirmação  do  seu  direito  de  intervenção  política  a  sua  maior  expressão,  particularmente  após  a  reforma  de  1850,  que  instituiu  a  meritocracia  e  a  antiguidade  como  critérios  para  a  promoção  na  carreira,  diminuindo  a  importância  das  relações pessoais na configuração do oficial ato (SAES, 2013, p. 19‐21). 

A reação do Exército à sua condição subalterna no Estado escravista e a defesa do seu  direito de intervenção política combinam‐se ao processo de crise do escravismo colonial e de  transição  para  o  capitalismo,  revelando  o  início  de  um  processo  longo  e  tortuoso  de  assimilação  das  Forças  Armadas  como  intelectuais  orgânicos  da  ordem  social  capitalista.  O  apoio  de  determinados  setores  militares  à  abolição  da  escravidão  e  à  constituição  de  uma  institucionalidade  política  baseada  no  republicanismo  e  na  meritocracia  expressam  sua  vinculação à perspectiva burguesa e ao desenvolvimento das relações sociais capitalistas. A  defesa  do  protagonismo  militar  na  definição  dos  rumos  políticos  do  país  em  nome  do  patriotismo  e  do  seu  pretenso  compromisso  com  os  interesses  gerais  da  nação  também  expressam  a  utopia  burguesa  de  superação  do  regionalismo  em  favor  da  centralização  política  e  da  homogeneização  nacional.  No  entanto,  tal  movimento  não  se  deu  sem  idas  e  vindas em função do caráter particular assumido pela transição para o capitalismo no Brasil,  onde  elementos  fundamentais  da  velha  ordem  social,  como  a  prevalência  da  dependência  econômica,  da  grande  propriedade  da  terra,  de  relações  de  trabalho  baseadas  na  dependência  pessoal,  do  oligarquismo  e  do  clientelismo,  foram  transplantadas  para  a  nova  ordem, ditando o ritmo e a abrangência das mudanças. A derrota do florianismo no alvorecer  da República e a subordinação política dos militares às oligarquias durante a maior parte da  República  Velha  (1889‐1930)  revelam  as  vicissitudes  deste  processo  de  assimilação  em  sua  fase inicial (SAES, 2013, p. 21‐28). 

Após a implantação do regime republicano a perspectiva cesarista do movimento de  afirmação  do  protagonismo  político  do  Exército  conviveu  durante  muito  tempo  em  seu  interior  como  um  movimento  alternativo,  de  defesa  de  sua  modernização  em  termos  profissionais, técnicos e de aparelhagem, em favor de sua “neutralidade” diante dos conflitos  políticos  e  partidários  e  em  detrimento  de  sua  vocação  política,  o  que,  em  certa  medida,  também  revela  sua  vinculação  à  perspectiva  burguesa  e  ao  desenvolvimento  capitalista  na 

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medida em que o “profissionalismo” militar é a outra face da perspectiva de superação do  regionalismo  e  da  subordinação  política  dos  militares  às  oligarquias.  Este  movimento  pela  profissionalização e modernização das Forças Armadas consolidou‐se principalmente depois  que militares brasileiros estagiaram no Exército alemão, onde se conscientizaram do atraso  técnico‐militar  do  país,  e  da  instalação  da  Missão  Francesa,  em  1919,  que  inspirou  a  redefinição  a  formação  acadêmica  dos  militares  em  favor  das  disciplinas  técnicas  e  em  detrimento da formação político‐cultural e filosófica, predominante até então (NETO, s/d, p.  43‐70). 

Nos  anos  20  o  tenentismo  retoma  a  perspectiva  política  cesarista  em  nome  do  combate às oligarquias e da modernização política e econômica do país, porém, a partir da  Revolução de 1930 a tendência militar vitoriosa, dos chamados “reformadores” e da qual o  general  Góes  Monteiro  foi  a  grande  liderança,  é  a  da  síntese  entre  as  duas  perspectivas, 

compondo‐se  num  só  movimento  de  afirmação  ao  mesmo  tempo  política  e  funcional.  Daí 

em diante, a defesa do aparelhamento, da modernização técnica e da profissionalização se  deu  paralelamente  ao  desenvolvimento  de  uma  concepção  de  intervenção  política  que  considerava  não  só  natural  como  necessária  a  ação  política  dos  militares  diante  de  suas  demandas  profissionais,  porém,  não  como  expressão  dos  interesses  dos  grupos  políticos  e  sociais  distintos,  mas  como  um  agente  político  autônomo,  representativo  do  conjunto  da  nacionalidade  e  de  seus  interesses  coletivos.  Nestes  termos,  a  “neutralidade”  diante  dos  interesses  políticos  específicos  se  combinou  à  perspectiva  cesarista.  Neste  processo  foi  decisivo o reforço da hierarquia e a politização “despartidarizada” dos militares, operada pelo  Alto Comando (NETO, s/d, p. 43‐70). Esta orientação foi vitoriosa ao longo do tempo e atraiu  a  adesão  da  maioria  dos  militares,  particularmente  os  militares  de  “direita”,  apesar  do  seu  envolvimento direto nos conflitos políticos e sociais dos anos 30 a 60. É nisto que reside o  caráter orgânico das funções intelectuais assumidas pelo Exército no século XX, pois a defesa  dos  interesses  coletivos  da  nacionalidade  tendeu  a  se  confundir  com  a  perspectiva  política  autocrático‐burguesa,  expresso  na  associação  progressiva  entre  segurança  nacional  e  desenvolvimento econômico (OLIVEIRA, 1976, p. 189‐55). 

Esta  redefinição  implicou  no  apoio  militar  ao  esforço  industrializante  dirigido  pelo  Estado, inclusive com os militares assumindo funções de planejamento e gestão; no reforço  da disciplina e da hierarquia, fortalecendo a perspectiva profissional; e na atualização de sua  perspectiva de ação política com a emergência do problema da segurança nacional, do qual  os militares colocaram‐se como tutores. No período 1930‐1945 a tendência militar vitoriosa  se  impôs  com  o  esvaziamento  dos  tenentes  como  força  política  específica  através  de  sua  incorporação  aos  postos  de  comando  militares  e  administrativos  e  sua  subordinação  à  hierarquia militar, prevalecendo a ação política do Exército enquanto instituição nacional em  lugar da ação de grupos específicos. Paralelamente, os militares assumem progressivamente  funções  de  gerenciamento  em  atividades  econômicas  fundamentais  para  o  processo  de  desenvolvimento  industrial  e  para  o  próprio  aparelhamento  técnico  e  bélico  das  Forças 

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Armadas,  de  interesse  imediato  dos  militares.  Além  disso,  os  militares,  particularmente  o  Exército,  passam  a  assumir  papel  decisivo  na  defesa  da  ordem  social  e  na  luta  contra  a  “subversão”, como fica explicitado a partir da instalação da Lei de Segurança Nacional e da  repressão à ALN (Aliança Nacional Libertadora) e ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) em  1935, criando‐se um aparato repressivo que terá forte atuação durante todo o Estado Novo.  A eclosão da Segunda Guerra Mundial e as pressões das potências beligerantes para que o  país  participasse  do  conflito  tornam  ainda  mais  premente  a  necessidade  de  modernização  técnica, bélica e profissional das Forças Armadas, paralelamente à demanda pela aceleração  e intensificação do processo de industrialização, o que favoreceu a aproximação com os EUA  e o envio da FEB para a Europa. A ação conjunta com o exército norte‐americano na Itália e a  participação em cursos de instrução e treinamento nos EUA desenvolveu em muitos setores  do  oficialato  a  perspectiva  de  que  o  desenvolvimento  econômico  e  o  posicionamento  externo  do  país  deveria  se  dar  em  aliança  com  os  estadunidenses,  criando  uma  corrente  militar de grande importância política no período seguinte (NETO, s/d, p. 43‐70).  

Durante  o  período  1946‐1964  a  tendência  à  vocação  “institucional”  do  Exército  continuou a se afirmar, particularmente com o avanço do processo de industrialização e de  desenvolvimento  capitalista.  Porém,  isto  não  impediu  o  surgimento  de  divergências  e  de  divisões entre os militares, que em certa medida expressavam os próprios conflitos sociais e  políticos que atravessavam a sociedade civil de alto a baixo nesta conjuntura, dando origem a  basicamente dois partidos militares, o nacionalista e o antinacionalista. Apesar de existirem  outras clivagens fragmentando os militares, como a existente entre liberalismo econômico e  intervenção  estatal,  ou  aquela  entre  liberalismo  conservador  e  maior  participação  política  das massas populares, foi o debate sobre a relação com o capital estrangeiro que definiu as  principais linhas de força entre os militares neste período. Isto porque, em linhas gerais, além  de adotarem uma posição antiimperialista e de condenarem a presença do capital externo na  economia  brasileira,  os  nacionalistas  tendiam  a  se  alinhar  com  o  populismo  varguista,  a  defender a forte intervenção estatal na economia e, seus setores mais radicais, a propugnar  uma  aliança  popular  em  torno  do  projeto  de  desenvolvimento  nacional,  envolvendo  dos  militares e frações burguesas nacionais até os trabalhadores da cidade e do campo. Enquanto  isto,  os  antinacionalistas  não  só  defendiam  a  colaboração  do  capital  externo  no  desenvolvimento  nacional,  como  ainda  defendiam  a  livre  iniciativa,  apesar  de  não  condenarem  totalmente  a  intervenção  estatal,  e  enxergavam  na  mobilização  popular,  crescente  no  período,  um  perigo  para  a  manutenção  da  ordem,  propugnando  um  regime  político liberal conservador de democracia restrita, onde a participação política das massas  seria  estritamente  limitada  e  controlada  e  os  militares  teriam  um  papel  político  preponderante,  como  verdadeiros  representantes  da  vontade  nacional  (PEIXOTO,  s/d).  A  Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1948 pelos militares antinacionalistas vinculados  à perspectiva cesarista e autocrática, emergiu assim como principal aparelho de elaboração e  divulgação  desta  ideologia,  inclusive  entre  lideranças  civis,  associando  segurança  nacional, 

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entendida  como  defesa  da  ordem  e  combate  repressivo  à  subversão,  e  desenvolvimento  econômico, concebido em termos capitalistas e dependente‐associados (OLIVEIRA, 1976, p.  19‐55).  Apesar  das  peculiaridades  de  sua  posição  politico‐ideológica,  em  termos  práticos  Geisel atuou ao lado desta corrente. 

Esta divisão dos militares em dois grandes partidos evidencia a forma contraditória e  tortuosa de sua assimilação à sociedade capitalista no Brasil e sua relativa autonomia diante  do  bloco  no  poder,  pois  se  no  conjunto  as  Forças  Armadas  se  vinculam  à  perspectiva  de  desenvolvimento  capitalista  e  de  afirmação  do  Estado  nacional,  pois  mesmo  os  setores  vinculados ao PCB propugnavam uma revolução burguesa de caráter democrático‐nacional,  em  termos  específicos  as  divergências  quanto  ao  modelo  de  transformação  capitalista,  ao  caráter do Estado e à própria relação dos militares com os variados grupos sociais e políticos  eram totais. No entanto, é importante considerar que apesar das divergências inter‐militares  e  do  envolvimento  direto  dos  “partidos  militares”  com  as  disputas  político‐partidárias  sempre prevaleceu a hierarquia, como verdadeiro partido militar, pois mesmo nos momentos  de maior tensão, era à hierarquia que os militares recorriam para resolver conflitos e evitar a  ruptura. Esta situação favoreceu o cesarismo e a autonomia dos militares diante do bloco no  poder (PEIXOTO, s/d, p. 71‐113). 

A partir do golpe de 1964, com o governo Castelo Branco a tendência à subordinação  política  das  frações  militares  ao  Alto  Comando  e  deste  ao  governo  tornou‐se  ainda  mais  forte, numa escalada cujo ápice se deu no governo Geisel, esvaziando os “partidos militares”  enquanto  força  política  específica.  Paralelamente  os  setores  militares  vinculados  ao  movimento  dos  trabalhadores  e  organizações  de  esquerda  foram  extirpados  das  Forças  Armadas, garantindo o exclusivismo dos setores de direita e autocráticos (OLIVEIRA, 1976, p.  56‐81; OLIVEIRA, s/d, p. 114‐153). De um lado este processo tornou as Forças Armadas ainda  mais  orgânicas  para  a  autocracia  burguesa,  abrindo  caminho  para  a  conclusão  do  longo  e  tortuoso  processo  de  assimilação  intelectual  iniciado  ainda  no  regime  imperial,  pois  vinculou‐as  definitivamente  à  própria  estrutura  autocrática  do  Estado  ao  fortalecer  suas  funções institucionais de defesa da ordem social em desfavor de suas funções propriamente  políticas  e  empresariais.  Porém,  por  outro  lado  deu‐lhes  ainda  mais  autonomia  diante  dos  interesses burgueses específicos, na medida em que o cesarismo militar atingiu o seu ápice,  configurando o que poderíamos denominar como uma “assimilação imperfeita” dos militares  como  intelectuais  orgânicos  do  bloco  no  poder,  particularmente  do  bloco  dependente‐ associado. 

Em  acordo  com  a  formulação  de  Gramsci,  esta  assimilação  tornou‐se  “imperfeita’  justamente  em  função  das  debilidades  da  supremacia  burguesa  construída  ao  longo  do  tempo no Brasil muito mais próxima da dominação pura e simples do que propriamente da  hegemonia.  O  próprio  caráter  autocrático‐burguês  do  Estado  brasileiro,  pivô  e  dínamo  da  aliança entre novas e velhas classes dominantes, e sua articulação histórica com um padrão 

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de  transformação  capitalista  baseado  na  dependência  associada  ao  capital  externo  e  na  combinação  entre  setores  capitalistas,  pré‐capitalistas  e  subcapitalistas  da  economia,  conforme  formulação  de  Fernandes  (1987,  p.  201‐366),  evidenciam  as  dificuldades  das  frações  burguesas  em  criar  uma  sociedade  civil  suficientemente  ampla  e  diversificada  para  produzir  seus  próprios  intelectuais  orgânicos  e  obter  o  consenso  ativo  das  classes  trabalhadoras.   

Portanto,  se entre as décadas de 1930 e  1980  os militares se dividiram em diversas  correntes  político‐ideológicas,  ao  longo  do  tempo  predominou  aquela  que  reforçou  seu  vínculo  com  os  interesses  do  capital  afirmando  sua  posição  profissional  e  institucional,  associando ideologicamente segurança nacional e desenvolvimento econômico e assumindo  uma  postura  política  cesarista  e  antipopular.  Neste  sentido,  para  além  de  suas  vinculações  específicas com o bloco dependente‐associado, esta tornou‐se a corrente mais expressiva do  conjunto das Forças Armadas e de sua assimilação à ordem capitalista como seu intelectual  orgânico  coletivo,  não  só  porque  foi  vitoriosa  nas  disputas  inter‐militares,  mas  também  porque foi aquela que melhor se adaptou às necessidades da dominação de classe burguesa  nas condições em que ela se estabeleceu historicamente no país. Por conta disto, em nossa  avaliação,  a  trajetória  de  Ernesto  Geisel  expressa  de  modo  exemplar  a  trajetória  desta  corrente, daí a sua representatividade como intelectual orgânico da autocracia burguesa.    Geisel como representante dos intelectuais orgânicos da autocracia burguesa.    Em sua longa carreira Ernesto Geisel exerceu todos os tipos de função acessíveis a um  militar no aparelho de Estado brasileiro no período que abrange as décadas de 1920 e 1970,  desde  as  funções  propriamente  militares  (comando  e  instrução)  até  funções  político‐ administrativas (secretário de estado, chefe do gabinete militar da presidência da República,  presidente da República), judiciárias (ministro do Supremo Tribunal Militar) e mesmo funções  empresariais  (superintendente  da  Refinaria  Presidente  Bernardes,  em  Cubatão,  presidente  da Petrobrás), numa trajetória ímpar quando comparada a outros militares de sua geração. 

Nascido  em  1907  no  Rio  Grande  do  Sul,  numa  família  pequeno  burguesa  de  Bento  Gonçalves, Geisel estudou no Colégio Militar de Porto Alegre entre 1921 e 1924 e depois na  Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, entre 1925 e 1927, onde se torna aspirante a  oficial, ascendendo à segundo tenente em 1928 e primeiro tenente em 1930. Neste período  identifica‐se com as teses anti‐oligárquicas e modernizantes do tenentismo, apesar de não se  envolver diretamente com o movimento. Em 1930 apóia a aliança política que levou Getúlio  Vargas ao poder, inclusive militarmente, assumindo o comando de uma bateria na frente de  Itararé,  na  fronteira  entre  o  Paraná  e  São  Paulo.  Em  1931  torna‐se  secretário‐geral  do 

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governo do Rio Grande do Norte e em 1932 assume a secretaria de Fazenda, Agricultura e  Obras Públicas da Paraíba, contribuindo assim na política de intervenção federal nos estados  com  vistas  à  centralização  política  e  ao  enfraquecimento  das  oligarquias.  Na  Revolução  Constitucionalista  de  1932  combateu  ao  lado  das  tropas  governistas  contra  a  rebelião  da  oligarquia  paulista,  comandando  uma  bateria  de  artilharia.  Em  1935  combate  o  Levante  Comunista na Escola de Aviação Militar no Rio de Janeiro, experiência que nele suscita um  forte sentimento anticomunista (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 465‐466). 

Após  concluir  diversos  cursos  de  formação  e  aperfeiçoamento  e  de  tornar‐se  instrutor, iniciativas que lhe permitem ascender na carreira, vai para os Estados Unidos, onde  freqüenta  novos  cursos  entre  os  anos  de  1944  e  1945,  inclusive  o  de  comando  e  estado‐ maior em Fort Leavenworth, experiência que reforça sua perspectiva anticomunista e liberal  conservadora.  De  volta  ao  Brasil  participa  da  mobilização  militar  que  depõe  o  presidente  Vargas, em 1945, para impedir sua continuidade na presidência com o apoio do movimento  sindical e dos grupos de esquerda. No novo governo é nomeado adido militar da embaixada  brasileira  em  Montevidéu,  cargo  no  qual  permanece  até  1950.  Apesar  de  sua  posição  “nacionalista  instrumental”,  vincula‐se  aos  grupos  militares  anticomunistas  e  antinacionalistas nos embates do Clube Militar. Em 1952 matricula‐se na Escola Superior de  Guerra, da qual se torna membro do corpo permanente no ano seguinte, ministrando cursos  e participando de suas atividades. Apesar de se recusar a assinar o “Manifesto dos coronéis”,  que  pedia  a  demissão  de  João  Goulart  do  ministério  do  trabalho  do  governo  Vargas,  por  considerá‐lo um ato de indisciplina, nas disputas militares posiciona‐se ao lado do “partido  militar” antinacionalista e anticomunista, vinculando‐se aos setores  que organizam o golpe  de 1954 que levou ao suicídio do presidente. Em 1955, no governo Café filho, assume a sub‐ chefia  do  Gabinete  Militar  da  Presidência  da  República  e  logo  depois  a  superintendência  geral  da  Refinaria  de  Presidente  Bernardes,  em  São  Paulo,  a  partir  da  qual  passa  a  se  envolver nos assuntos referentes à indústria petrolífera no país. Em 1956 assume o comando  do  quartel  do  Exército  de  Quitaúna,  em  São  Paulo  e  no  ano  seguinte  o  cargo  de  chefe  da  seção de informações do Estado maior do Exército, além de tornar‐se membro do Conselho  Nacional  do  Petróleo,  como  representante  do  Ministério  da  Guerra  e  no  qual  defende  o  monopólio da Petrobrás (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 467‐469). 

Em  1960  torna‐se  general  de  brigada  e  assume  o  Comando  Militar  de  Brasília  e  o  comando  da  11ª  Região  Militar.  Participa  ativamente  da  conspiração  civil‐militar  que  organizou  o  golpe  de  1964,  apoiando  a  ascensão  de  Castelo  Branco  à  presidência  da  República, em lugar de Costa e Silva, assumindo a chefia do Gabinete Militar e a Secretaria  Geral  do  Conselho  de  Segurança  Nacional  em  seu  governo  (1964‐1967)  (D’  ARAÚJO  e  CASTRO,  1997,  469‐470).  Juntamente  com  Golbery  do  Couto  e  Silva,  então  chefe  do  SNI  (Serviço  Nacional  de  Informações),  compôs  o  núcleo  dos  militares  moderados,  chamados  “castelistas”,  que  ao  mesmo  tempo  em  que  defendiam  e  executavam  o  “saneamento”  da  arena política dos setores considerados “subversivos”, propugnavam a volta dos militares aos 

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quartéis  após  o  término  da  empreitada,  postando‐se  contra  os  militares  “duros”  que  defendiam o cesarismo militar permanente. No entanto, diante da escalada autoritária que  leva  à  Constituição  de  1967  e  à  permanência  dos  militares  no  poder,  com  a  ascensão  de  Costa e Silva à presidência, contribui na elaboração e articulação do conjunto de mudanças  institucionais  que  aboliram  definitivamente  a  institucionalidade  democrática  de  1946,  prorrogando  o  mandato  de  Castelo  Branco,  suspendendo  as  eleições  diretas  para  cargos  executivos, criando o bipartidarismo, entre outras medidas. (MACIEL, 2004, pg. 37‐84). 

Durante  os  períodos  de  Costa  e  Silva  e  Médici  na  presidência  afasta‐se  do  governo,  exercendo a função de ministro do Superior Tribunal Militar entre 1967 e 1969, após o que  assume  a  presidência  da  Petrobrás,  ocupando  o  cargo  até  sua  indicação  para  a  sucessão  presidencial, em 1973. Entre 1974 e 1979 exerce a presidência da República, desencadeando  o processo de transição “lenta, gradual e segura”, que lançou as bases para o fim da Ditadura  Militar com a reforma da autocracia burguesa, a partir do projeto de “Distensão”, elaborado  e conduzido por seu governo. Além do reforço do cesarismo militar como em nenhum outro  governo, o projeto distensionista impôs a supremacia da presidência da República sobre os  ministérios e comandos militares, garantindo maior controle sobre o aparelho de repressão e  de informações e tornando a repressão mais seletiva; transferiu parte do poder decisório da  presidência  para  os  poderes  Legislativo  e  Judiciário;  fortaleceu  os  partidos  e  o  processo  eleitoral  com  vistas  à  canalização  do  conflito  político  para  o  interior  da  própria  institucionalidade  autoritária  e  atraiu  o  apoio  da  oposição  burguesa,  num  movimento  transformista bem sucedido. A presidência de Geisel também foi marcada pela tentativa de  superar  as  dificuldades  econômicas  impostas  pelas  próprias  contradições  do  chamado  “Milagre Brasileiro” e pela crise econômica internacional através do II PND (Plano Nacional  de  Desenvolvimento),  que  propunha  a  conclusão  do  processo  de  industrialização  brasileiro  através  do  fortalecimento  do  setor  de  bens  de  capital,  da  ampliação  dos  investimentos  estatais  e  do  crescimento  do  setor  público  (MACIEL,  2004,  pg.  85‐206).  Após  o  término  do  seu  mandato  Geisel  assume  a  presidência  da  Norquisa  (Nordeste  Química  S.  A.)  e  posteriormente  a  presidência  do  conselho  de  administração  da  Copene  (Companhia  Petroquímica  do  Nordeste)  (D’  ARAÚJO  e  CASTRO,  1997,  p.  474).  Mesmo  fora  do  governo  continuou exercendo grande liderança nos meios militares, sendo um dos fiadores do acordo  que garantiu a eleição indireta de Tancredo Neves e o fim da Ditadura Militar (MACIEL, 2004,  p. 305‐320). 

Em termos políticos e ideológicos Ernesto Geisel adotou desde cedo uma perspectiva  conservadora, antidemocrática e antipopular, combinando de maneira articulada cesarismo 

militar,  baseado  numa  concepção  corporativista  de  ente  nacional  orgânico  e  harmônico 

representado  pelo  Estado  e,  em  especial,  pelos  militares;  anticomunismo,  expresso  numa  visão extremamente negativa das classes subalternas e de sua mobilização política e social; 

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política das massas populares (SAES, 1985, p. 151‐195), num mix autocrático‐burguês próprio  dos  setores  militares  de  direita.  No  seu  corporativismo  insere‐se  uma  perspectiva  que  poderíamos  definir  como  desenvolvimentista  “nacionalista  instrumental”,  pois  enxerga  no  Estado o agente fundamental do desenvolvimento econômico nacional e concebe a presença  do capital externo na economia como positiva, desde que sob controle estatal e restrita aos  setores  não‐estratégicos.  Neste  ponto  revela‐se  ainda  a  uma  visão  desconfiada,  para  não  dizer  negativa,  da  ação  empresarial,  tida  como  meramente  individualista  e  não‐ comprometida  com  o  interesse  nacional.  Veremos  agora  como  estas  idéias  se  articulam  na  concepção politico‐ideológica de Geisel. 

Já no período de sua formação, no Colégio Militar de Porto Alegre e na Escola Militar  do  Realengo,  Geisel  posiciona‐se  contrário  à  orientação  sugerida  pelos  alemães  e  pela  Missão  Francesa,  e  adotada  por  parte  dos  próprios  militares  brasileiros,  que  defendiam  a  “neutralidade” do Exército, o “grande mudo”, diante dos conflitos sociais e políticos em favor  de  sua  profissionalização.  Ao  contrário,  Geisel  adota  a  concepção  de  que  os  militares  deveriam se posicionar e atuar politicamente. Porém, por sua posição os militares deveriam  atuar  não  em  favor  de  um  grupo  ou  outro,  mas  em  defesa  da  nação  e  de  seu  progresso  e  desenvolvimento, adotando uma posição cesarista, particularmente nos momentos de crise,  como viria a ocorrer durante a Ditadura Militar. Para ele: 

Os  militares  devem  ficar  fora  da  política  partidária,  mas  não  da  política  geral.  (...)  o  militar  não  deixa  de  ser  um  cidadão  e,  individualmente, tem o direito de ter pensamento político. Não deve,  é claro, prevalecer‐se da força que a nação lhe confiou para atender  sua posição política, que é necessariamente individual. Contudo, em  ocasiões de crise, quando o país está ameaçado por graves dissensões  internas, fomentadas por dirigentes políticos  que se desviam de seu  encargo  de  conduzir  o  país  à  realização  das  aspirações  nacionais  e  utilizam o poder para satisfazer seus interesses e ambições pessoais e  de  seus  apaniguados,  a  nação  fica  em  perigo,  e  os  militares,  em  conjunto,  poderão  ter  que  atuar  com  suas  forças  para  afastar  drasticamente  o  perigo  manifesto  (D’  ARAÚJO  e  CASTRO,  1997,  p.  111). 

 

Tal  postura,  que  Geisel  manterá  por  toda  a  vida,  desenvolveu‐se  originalmente  no  ambiente das revoltas militares dos anos 20, quando o tenentismo se postava contra o poder  político  das  oligarquias  em  nome  da  modernização  econômica  e  política  do  país.  Segundo  Geisel: 

Achávamos  que  o  país  vivia  entregue  ao  regime  dos  coronéis  do  interior,  que  dominavam.  No  Rio  Grande  do  Sul  havia  uma  estagnação,  o  governo 

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era  imutável,  o  prefeito  de  Bento  Gonçalves  durante  30  anos  havia  sido  o  mesmo.  Era  um  homem  ronceiro,  vivia  no  dia‐a‐dia  despachando  papel  e  não  se  preocupava  com  a  cidade,  com  a  vida,  com  o  progresso,  com  o  desenvolvimento (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 42).    Esta posição faz Geisel aderir à aliança civil‐militar que levou Getúlio Vargas ao poder  em 1930, integrando os setores militares que lhe deram sustentação e apoiando ativamente  o novo governo, seja ocupando cargos administrativos, contribuindo assim para fortalecer a  intervenção federal nos estados e quebrar o poder político das oligarquias; seja defendendo‐ o de armas na mão, tanto em 1932, quanto em 1935 (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 42, 45‐ 50). Em sua avaliação, a Revolução de 1930 foi um episódio positivo e necessário, pois abriu  caminho  para  a  superação  do  atraso  e  da  dependência  comercial,  apesar  do  fracasso  em  formar um “cidadão mais patriota e independente”. Em suas palavras: 

O Brasil depois de 30 é outro, não é mais o Brasil de antes. Oque era o Brasil  de antes? Era um Brasil que produzia café. Quase tudo de que se precisava  era  importado.  Importava‐se  manteiga!  Em  Bento  Gonçalves  comia‐se  manteiga francesa. Quando se queria uma água mineral, para tratar de um  doente, era água de Vichy. Cimento vinha em barricas importadas. Era tudo  assim.  Fazenda,  carretel  de  linha,  agulha,  botão,  tudo  isso  era  importado.  Depois  de  30  o  Brasil  passou  a  ser  outro.  Mas  a  revolução  fracassou  na  formação  do  povo,  na  conscientização  política,  na  formação  do  cidadão  mais patriota, mais preocupado com as coisas públicas, mas independente  (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 46). 

 

Esta  postura  negativa  acerca  da  consciência  política  popular  é  uma  característica  importante de sua concepção política, manifesta em diversos momentos de sua intervenção  política  e  militar,  pois  coloca‐se  no  centro  de  sua  concepção  autocrática.  Afinal,  como  o  cidadão  comum  não  se  formou  como  patriota  e  independente,  ou  seja,  só  pensa  em  seus  interesses  particulares  e  quando  atua  politicamente  o  faz  conduzido  por  lideranças  demagógicas e/ou subversivas, então a participação política do homem comum, das massas,  deve ser nula, ou, no máximo, rigidamente controlada e limitada.   É em nome desta posição  que Geisel atua na repressão ao Levante Comunista de 1935, desenvolvendo um arraigado  anticomunismo a partir de então, pois, segundo ele, “nas Forças Armadas, desde a Revolução  de  1935,  passamos  a  considerar  o  comunismo  o  principal  problema  de  segurança  interna”  (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 141). 

Para  Geisel  o  comunismo  é  nada  mais  do  que  o  fruto  da  situação  de  atraso  econômico  e  social  do  país,  da  qual  se  aproveitam  as  forças  demagógicas  para  iludir  as  classes populares com promessas irrealizáveis e conquistar apoio para a conquista do poder.  Pior  do  que  isto,  o  comunismo  é  uma  espécie  de  doença,  de  patologia  social,  por  fundamento irracional, pois contrária à natureza humana. Em suas palavras: 

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Há  vários  fatores  que  explicam  essa  influência  do  comunismo  no  Brasil.  É  resultado da situação do país, do seu atraso, das doenças, do analfabetismo,  do problema social, do egoísmo das classes dominantes, da má distribuição  de renda. O clima interno é favorável à doutrina porque ela favorece o céu  na terra e muita coisa mais. É uma utopia que, para o indivíduo descontente  e  sofredor,  ou  para  o  sujeito  desligado  da  realidade,  para  o  sonhador,  é  considerada  possível.  É  uma  utopia  principalmente  por  que  não  considera  as  peculiaridades  da  natureza  humana,  que  fazem  do  homem  um  eterno  insatisfeito,  querendo  sempre  mais  e,  na  generalidade  das  situações,  não  levando  em  conta  o  bem  dos  seus  semelhantes.  Muitos  não  pensavam  assim  e  se  deixavam  levar  pela  doutrina  comunista,  aparentemente  igualitária. Outros foram comunistas por recalques, por insucessos da vida,  por  frustrações.  Quando  o  comunista  está  convencido  do  acerto  da  sua  doutrina,  não  há  ninguém  que  o  convença  do  contrário.  É  uma  doença  incurável (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 145‐146). 

 

Nesta  crítica  ao  comunismo  sintetiza‐se  toda  sua  concepção  acerca  da  não‐ legitimidade da ação política e social das classes subalternas, pois quando contestadora da  ordem social e do Estado tal ação só pode ser considerada fruto de uma combinação peculiar  de fatores, sanáveis com o desenvolvimento econômico e com o avanço de uma consciência  nacional  e  patriótica,  não  uma  concepção  historicamente  constituída  pela  luta  dos  trabalhadores,  fruto  das  contradições  inerentes  à  própria  sociedade  capitalista.  Os  comunistas,  e  sob  este  adjetivo  compreende‐se  os  diversos  matizes  de  esquerda  e  a  militância  política  e  social  vinculada  às  classes  subalternas,  aproveitam‐se,  então,  da  fragilidade popular para fazer proselitismo em favor de seu projeto particular de poder, que  nada  tem  a  ver  com  os  reais  interesses  populares  e  ainda  ameaça  a  segurança  nacional.  Comentando  a  atuação  do  CGT  (Comando  Geral  dos  Trabalhadores)  na  conjuntura  de  crise  do  governo  Goulart  Geisel  revela  sua  visão  simplificadora  das  lutas  sociais  e  a  recusa  em  compreender a ação das classes subalternas num sentido ético‐político, que vá além do mero  corporativismo, de articulação política entre as diversas frações das classes trabalhadoras e  subalternas. Em sua avaliação: 

No  fundo  era  uma  organização  política  muito  de  esquerda.  Não  era  uma  organização  que  visasse  diretamente,  honestamente,  à  situação  do  trabalhador. Havia muita demagogia, muito interesse de voto partidário. Era  um  foco  comunista,  sob  a  capa  de  ser  uma  organização  de  projeção  dos  trabalhadores.  Na  realidade  seu  objetivo  era  mais  político.  Quando  os  marinheiros  se  revoltaram  em  1964,  onde  foram  se  acolher?  Onde  se  reuniram  em  assembléia?  No  sindicato  dos  Metalúrgicos.  Por  que  é  que  foram  para  o  Sindicato  dos  Metalúrgicos?  (D’  ARAÚJO  e  CASTRO,  1997,  p.  145). 

 

Diante de ameaça desta envergadura, resta apenas aos defensores da “ordem natural  das  coisas”  agir  tanto  na  eliminação  das  condições  sócio‐econômicas  que  favorecem  o 

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proselitismo de esquerda, quanto repressivamente, controlando ou mesmo eliminando sua  ação  política  e  social.  Com  base  nesta  perspectiva  Geisel  justifica  a  violência  repressiva  praticada pela Ditadura Militar, inclusive o uso da tortura. Comentando a repressão adotada  pelo governo militar em 1967‐69 Geisel afirma:  

se  houvesse  tolerância,  cada  vez  que  se  fosse  cedendo  os  subversivos  haviam  de  querer  mais  e  mais  e  acabariam  tomando  conta  do  poder.  Por  que  o  outro  lado  tinha  um  objetivo  determinado.  Grande  parte  era  da  esquerda comunista. Quer dizer, eles tinham uma ideologia e não parariam  enquanto  não  conseguissem  implantá‐la  (D’  ARAÚJO  e  CASTRO,  1997,  p.  215).  

 

Diante  deste  cenário,  a  tortura  era  um  recurso  não  só  plausível,  como  necessário.  Segundo ele: 

acho  que  a  tortura  em  certos  casos  torna‐se  necessária,  para  obter  confissões. (...) Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias  em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas  confissões  e,  assim,  evitar  um  mal  maior!  (D’  ARAÚJO  e  CASTRO,  1997,  p.225) 

 

A  perspectiva  corporativista  da  concepção  de  mundo  de  Ernesto  Geisel  expressa  a  própria  posição  político‐ideológica  dominante  no  seio  das  Forças  Armadas,  que  combinava  tanto a defesa da intervenção dos militares no processo político, quanto a valorização de sua  formação  profissional,  de  sua  capacidade  técnica  e  material  e  de  sua  organização  interna  como corpo hierárquico coeso e disciplinado.  Tal combinação só poderia se dar a partir de  uma perspectiva política cesarista, qual seja, aquela onde os militares dirigem politicamente  o bloco no poder assumindo seu papel político de avalistas da ordem interna, guardiões da  segurança  nacional  e  agentes  do  desenvolvimento  econômico  sem  se  vincular  exclusivamente  a  nenhuma  classe  ou  fração  de  classe,  ao  contrário  guardando  sua  autonomia  política  e  funcional  como  representantes  do  interesse  nacional  e  se  impondo  como árbitros últimos do conflito político e social. Em outras palavras, sem se envolver nas  disputas políticas comezinhas, na “politicagem” como diria o próprio Geisel, nem se vincular  à interesses específicos e particulares.  

Assim,  por  conta  da  ameaça  comunista,  enraizada  na  própria  realidade  nacional  de  atraso,  miséria  e  incultura,  os  militares  devem  assumir  uma  posição  preponderante  na  garantia  da  segurança  nacional,  por  meio  da  repressão  e  da  prevalência  dos  interesses  nacionais  sobre  os  interesses  políticos  particularistas,  graças  ao  seu  pretenso  compromisso  com a Nação. No plano do desenvolvimento econômico através da intervenção estatal e da  modernização  econômica  a  primazia  militar  se  legitima  em  função  do  seu  próprio 

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compromisso com a segurança nacional, num raciocínio circular em que segurança nacional  e  desenvolvimento  capitalista  se  alimentam  mutuamente.  De  acordo  com  esta  perspectiva  Geisel afirma: 

Mas  creio  que  o  problema  do  Brasil  é,  principalmente,  econômico.  Dele  derivam  os  demais,  inclusive  o  social.  A  fome  do  povo,  o  desemprego  do  povo, os assaltos, os roubos, o tráfico de entorpecentes, tem a sua raiz na  nossa  deficiência  econômica.  Seremos  uma  nação  de  maior  expressão,  se  conseguirmos desenvolver a nossa economia (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997,  p. 354‐355). 

 

Assim  o  cesarismo  militar  se  justifica  também  economicamente,  pois  se  as  classes  subalternas são incultas e manipuláveis, as classes dominantes, as burguesias, são motivadas  primeiramente por seus interesses individuais, contribuindo com o interesse nacional desde  que este se coadune com sua perspectiva de lucro e acumulação. Frente ao corpo nacional  os  militares  devem  assumir  uma  posição  arbitral,  como  representantes  desinteressados  da  vontade  nacional.  Por  conta  dos  interesses  particularistas  do  capital  o  desenvolvimento  econômico  nacional  deve  ser  conduzido  pelo  Estado,  devendo  a  colaboração  externa  ficar  sob controle e limitada aos setores não‐estratégicos, numa visão “nacionalista instrumental”  da relação com o capital internacional. Para ele: 

Relativamente à questão dos empreendimentos materiais que o Estado tem  tomado a si e que poderiam ser atribuídos às empresas de capital privado,  cabe fazer as seguintes observações. Em primeiro lugar, há os que por sua  natureza  e  finalidade,  devem  ser  da  exclusiva  atribuição  do  Estado,  tais  como  energia  nuclear,  telecomunicações,  aeroportos  internacionais  ou  empreendimentos  vinculados  a  outros  países,  como  Itaipu,  eixos  rodoviários, ferroviários, etc. O petróleo também deve ser incluído entre os  empreendimentos de atribuição exclusiva do Estado (...). Em segundo lugar,  há aqueles empreendimentos que, sendo de interesse nacional e devendo  ser atribuídos à iniciativa privada, não são por ela realizados, seja por falta  de  capital  próprio  ou  de  empréstimo,  seja  por  falta  de  interesse,  inclusive  por não terem assegurada a remuneração desejada, como se verificou nas  grandes  siderúrgicas  e  usinas  hidrelétricas.  Nesses  casos,  ou  o  empreendimento  fica  a  cargo  do  governo  ou  não  se  faz.  Finalmente,  há  atividades  da  empresa  privada  –  indústrias,  bancos,  etc.  –  que  são  malsucedidas  financeiramente  e  que,  por  débitos  com  o  fisco  ou  provenientes  de  empréstimos,  acabam  em  poder  do  governo,  o  qual  dificilmente consegue livrar‐se delas ou, liquidá‐las. (D’ ARAÚJO e CASTRO,  1997, p. 291). 

 

Para  Geisel  o  empresário  é  um  individualista,  que  não  leva  em  conta  os  interesses  nacionais, pois pensa apenas no seu lucro privado e se move em nome disto, a não ser que  seja imbuído dos objetivos nacionais, formulados pelos militares, obviamente. Os militares,  particularmente os do Exército, possuem este papel dirigente e superior à própria burguesia 

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porque  além  de  funcionarem  como  o  grande  “fator  de  coesão  nacional”  também  os  que  melhor  conhecem  a  situação  nacional  por  conta  da  própria  dinâmica  de  sua  carreira.  Segundo ele: 

O Exército é um fator de coesão nacional, porque o oficial que é originário  de  uma  região,  de  um  determinado  estado,  perde  a  sua  característica  regional, já que durante a carreira serve em diferentes lugares e aprende a  conhecer o país. Talvez o oficial do Exército seja quem melhor conhece este  país (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 461). 

 

Daí  a  importância  de  o  Estado,  de  preferência  sob  a  direção  política  dos  militares,  assumir  determinadas  iniciativas  econômicas  por  conta  do  pouco  envolvimento  do  empresariado no desenvolvimento nacional Geisel diz: 

Se o Brasil quiser ser uma nação moderna, sem o problema da fome e sem  uma  série  de  outras  mazelas  de  que  sofremos,  tem  que  se  desenvolver.  E  para  isso,  o  principal  instrumento,  a  grande  força  impulsora  é  o  governo  federal.  A  nação  não  se  desenvolve  espontaneamente.  É  preciso  haver  alguém  que  a  oriente  e  impulsione,  e  esse  papel  cabe  ao  governo.  Esta  é  uma  idéia  antiga  que  possuo,  sedimentada  ao  longo  dos  anos  de  vida  e  esposada nos cursos da Escola Superior de Guerra.  Como o país não tinha  capitais  próprios,  como  a  iniciativa  privada  era  tímida,  às  vezes  egoísta,  e  não se empenhava muito no sentido do desenvolvimento, era preciso usar a  poderosa força que o governo tem (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 287).   

Daí  a  importância  da  ESG  (Escola  Superior  de  Guerra)  como  centro  de  formação  ideológica que “eleva” a compreensão da elite empresarial acerca dos problemas nacionais  em  favor  da  segurança  nacional  e  do  desenvolvimento  integral.  Aqui  se  revela  um  componente da perspectiva cesarista de Geisel e de outros segmentos militares, qual seja, a  supremacia  política  e  ideológica  dos  militares  sobre  o  conjunto  das  frações  burguesas.  Em  sua avaliação: 

Acho que a ESG foi importante porque conseguiu transmitir para uma boa  parte  do  setor  civil,  mais  responsável,  informações  e  estudos  sobre  o  problema  da  segurança  no  país,  mostrando  que  aquele  não  era  um  problema  só  dos  militares,  mas  de  toda  a  nação.  Os  militares  são  responsáveis  em  parte  pela  segurança  nacional,  mas  numa  eventualidade  de guerra, de ameaça à segurança do país, sua ação é limitada. (...) A ESG foi  a  instituição  formuladora  de  uma  doutrina  de  segurança  nacional,  realizando uma integração doutrinária entre o meio militar e o meio civil (D’  ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 109). 

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Finalmente para Geisel, neste cenário a democracia de massas é uma impossibilidade  num  país  como  o  Brasil,  pois  dá  margem  à  agitações,  à  demagogia  e  à  prevalência  dos  interesses  particularistas  por  conta  do  pretenso  baixo  nível  cultural  da  população.  Quando  possível,  ou  seja,  nos  momentos  de  estabilidade  política,  os  mecanismos  de  representação  política  devem  ser  restritivos  e  altamente  seletivos,  recrutando  os  segmentos  mais  conscientes  das  classes  dominantes  acerca  dos  problemas  da  segurança  nacional  e  do  desenvolvimento. Segmentos que, obviamente, devem ser “educados” pelos militares, como  vimos  acima.  Aqui  emerge  o  liberalismo  conservador  de  Geisel,  ao  mesmo  tempo  antipopular,  antipopulista  e  defensor  de  uma  democracia  restrita,  viável  apenas  em  conjunturas  específicas  de  estabilidade  política,  pois  nos  momentos  de  crise  o  cesarismo  militar deve prevalecer. Para ele:  

Se você quiser adotar medidas democráticas e ao mesmo tempo garantir a  viabilidade  de  um  governo  (...)  será  necessário  verificar  o  estágio  de  civilização do povo, ver o que é esse povo, quais as suas tendências, como  se  comportam  que  nível  cultural  atingiu,  quais  as  suas  aspirações.  (...)  Eu  não posso pegar o que se usa e se faz nos Estados Unidos, ou na Alemanha,  ou na França, ou na Inglaterra, e transplantar integralmente para aqui. Não  é judicioso. O país é diferente! É muito mais atrasado! O povo é mais inculto  e de outra natureza! (D’ ARAÚJO e CASTRO, 1997, p. 395‐396).    Em síntese, a democracia, mesmo a burguesa, não combina com o Brasil!     Conclusão    Apesar de sua peculiaridade em relação aos militares de “esquerda” e à setores dos  militares de “direita”, avaliamos que a trajetória política e militar de Ernesto Geisel expressa  em  linhas  gerais  o  modo  específico  como  os  militares  foram  assimilados  como  intelectuais  orgânicos da ordem social do capital, pois ao mesmo tempo em que incorporam de maneira  integral  a  perspectiva  de  reprodução  do  capital  à  sua  própria  perspectiva  política  e  ideológica,  buscam  preservar  sua  autonomia  e  supremacia  frente  ao  bloco  no  poder,  propugnando  uma  posição  cesarista  que  em  1964  os  levou  ao  comando  do  Estado.    Neste  sentido,  ao  mesmo  tempo  em  que  emergem  como  organizadores  da  dominação  burguesa  numa  perspectiva  integral,  pois  não  apenas  no  plano  repressivo,  mas  também  nos  planos  econômico  e  administrativo,  os  militares  conseguiram  preservar  uma  considerável  margem  de  manobra  sobre  os  interesses  específicos  das  respectivas  frações  burguesas,  mesmo  aquelas  do  grande  capital  dependente‐associado,  configurando  a  posição  cesarista  de  que  falamos anteriormente. Com isto não estamos aqui negando a identidade geral de interesses  entre o grupo militar ao qual Geisel pertencia e o grande capital “multinacional e associado”, 

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como  defende  Dreiffus  (1986,  p.  71‐82);  mas  ressaltar  que  os  militares  não  atuaram  como  simples “servidores” das frações burguesas, como meros “despachantes” de suas demandas.  

Por  isto,  em  nossa  avaliação,  por  mais  que  em  sua  trajetória  como  intelectual  orgânico  da  ordem  do  capital  o  general  Ernesto  Geisel  se  vincule  aos  interesses  do  bloco  dependente‐associado, sua perspectiva cesarista, baseada na articulação político‐ideológica  entre  corporativismo,  anticomunismo,  liberalismo  conservador  e  desenvolvimentismo  nacionalista instrumental, o torna um intelectual orgânico da autocracia burguesa, com uma  visão integral dos problemas da dominação burguesa no Brasil e autonomia relativa diante  dos  interesses  burgueses  específicos.  Ernesto  Geisel  aparece  então  como  típico  representante  deste  processo  de  assimilação  específica,  apesar  de  seu  vínculo  com  os  setores  militares  que  funcionaram  como  intelectuais  orgânicos  do  bloco  dependente‐ associado,  pois  atuou  muito  mais  no  sentido  de  fortalecer  a  dominação  social  numa  perspectiva autocrático‐burguesa geral, do que no sentido dos seus interesses específicos. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

 

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