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Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico

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(1)Revista de Direito Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010. Cleber Pereira Medina Centro Universitário Anhanguera de São Paulo - unidade Brigadeiro medina_cleber@yahoo.com.br. FATOS JURÍDICOS: UM ENFOQUE SOBRE O ATO-FATO JURÍDICO. RESUMO Este trabalho visa descrever de maneira simples o panorama geral da teoria geral dos fatos jurídicos, bem como identificar e apontar suas espécies. Procurou-se classificar e elaborar uma análise didática e breve sobre o tema, com o intuito de simplificar a compreensão para os estudantes que começam a tomar contato com os primeiros passos do Direito Civil. Além disso, neste trabalho há destaque para uma espécie de fato jurídico que decorre de ato humano, mas cujo elemento vontade é desconsiderado pela legislação. Essa espécie é definida e tem sua importância comentada dentro do ordenamento jurídico vigente, com exemplos e situações práticas para facilitar a compreensão dos institutos objeto de estudo. Palavras-Chave: introdução ao Direito; Direito Civil; fato e ato jurídico.. ABSTRACT This paper aims to describe in simple overview of the general theory of legal facts, and identify and discuss their species. We tried to sort and prepare a training analysis and brief on the subject, in order to simplify the understanding for students who begin to make contact with the first steps of civil law. Furthermore, this work emphasis is given to a kind of legal fact that arises from human action, but whose will is overlooked element in legislation. This species is defined and its importance has commented in the legal code, with examples and practical situations to facilitate understanding of the institutes under study. Keywords: introduction to law; civil law; fact and legal act.. Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Informe Técnico Recebido em: 01/10/2009 Avaliado em: 29/05/2011 Publicação: 10 de junho de 2011. 119.

(2) 120. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. 1.. INTRODUÇÃO O presente estudo procura analisar a teoria geral dos fatos jurídicos, expondo de forma didática e científica suas espécies, com relevo especial para uma delas: o ato-fato jurídico. Justifica-se a pesquisa em razão da necessidade de difundir e procurar fundamentar a autonomia da categoria acima mencionada, amplamente tratada no Direito pátrio na obra de Pontes de Miranda e de Marcos Bernardes de Mello. Elaborou-se uma exposição do fato jurídico em sentido amplo, sua definição e espécies. Os fatos naturais que contam com relevância jurídica receberam tratamento, tanto os de ocorrência comum como os extraordinários, com destaque para o caso fortuito e a força maior. Na seqüência, restou colocado o conceito de ato jurídico, que envolve o ato humano e o elemento volitivo em sua estrutura, do qual são espécies o negócio jurídico, os atos jurídicos em sentido estrito e os atos ilícitos. Entre os dois primeiros (atos e negócios jurídicos) estabeleceu-se a diferença, especialmente no que se refere aos seus efeitos, que nos primeiros aparecem preestabelecidos pela lei e nos segundos fica a cargo das partes disporem, conforme composição de vontades. Quanto. aos. atos. ilícitos,. além. de. sua. importância. no. campo. das. responsabilidades (civil, penal, administrativa), indica posicionamento no sentido de que o ato ilícito é ato jurídico. Enfim, cuidou-se dos atos-fatos jurídicos e seu conceito, além de analisar o elemento volitivo, que o ordenamento jurídico desconsidera nesta espécie. Apresentou-se a classificação doutrinária, tendo apontado ainda o tratamento dado pelo ordenamento. Tudo isso para demonstrar especialmente a importância dessa categoria para o estudo dos fatos jurídicos e, conseqüentemente, das relações jurídicas e tudo que dela decorre. Por fim, como aspecto a ser elevado no presente trabalho, o desenvolvimento deste campo de estudo em especial aos iniciantes no estudo do Direito.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(3) Cleber Pereira Medina. 2.. 121. FATOS JURÍDICOS EM SENTIDO AMPLO Entender algumas noções básicas sobre este tema mostra-se de grande importância especialmente em dois momentos no estudo do Direito: no início dos estudos das relações jurídicas e ao tratar dos negócios jurídicos. As relações jurídicas merecem tratamento logo nos primeiros passos do estudioso do Direito, ou seja, quando ele recebe as primeiras noções correlatas de Introdução ao Direito. E justamente com os fatos jurídicos é que nascem as relações jurídicas, dentro das quais se identificam: os sujeitos dessa relação (ativo e passivo), as espécies de obrigações daí decorrentes (dar, fazer ou não fazer alguma coisa), a natureza dos direitos envolvidos (pessoais e reais) etc. Das palavras de Maria Helena Diniz é possível extrair a relevância da teoria geral dos fatos jurídicos. Para ela, “realmente, do direito objetivo não surgem diretamente os direitos subjetivos; é necessária uma ‘força’ de propulsão ou causa, que se denomina ‘fato jurídico’” (2003, p. 321). Evidente que não basta a existência de normas abstratas, haja vista emergir efetivamente a importância do direito objetivo tão somente quando os fenômenos hipotéticos previstos ocorrerem no plano concreto. Quanto aos negócios jurídicos, não obstante seja espécie do gênero fato jurídico, o tema mereceu especial atenção dentro do Direito Civil, principalmente diante do atual Código Civil, assunto a ser melhor desenvolvido oportunamente. Postos estes comentários, obrigatório apresentar-se uma breve e simples definição dos fatos jurídicos. Num primeiro momento, mister esclarecer a importância de o adjetivo jurídico acompanhar o substantivo fato. Relevante, pois nem todo fato é jurídico. José Abreu Filho traça o liame para que o fato seja ou não considerado jurídico, observando que “um mesmo acontecimento poderia ser jurídico ou material, diferenciando-se um do outro pela produtividade de efeitos jurídicos, peculiar ao primeiro e inexistente no segundo” (1997, p. 4, grifado no original). O fato jurídico é justamente qualquer acontecimento que tenha amparo no ordenamento jurídico, ou seja, tudo aquilo que ocorre e que de certo modo se encaixa em uma hipótese prevista em abstrato no ordenamento. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(4) 122. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. Ou ainda, como definem de forma mais específica Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, fato jurídico em sentido amplo é “todo acontecimento natural ou humano capaz de criar, modificar, conservar ou extinguir relações jurídicas” (2007, p.294). Essa definição merece elogio (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 413) na medida em que traz como característica do fato jurídico o potencial de provocar tais conseqüências, ao contrário de parte da doutrina clássica que o conceitua como “os acontecimentos em virtude dos quais nascem, subsistem e se extinguem as relações jurídicas” (MONTEIRO, 2005, p. 201) – o que não se concretiza necessariamente. O equívoco está no fato de condicionar a existência do fato jurídico à ocorrência de efeitos na órbita jurídica, quando na verdade basta a capacidade, o potencial para criar, modificar, conservar, extinguir relações jurídicas. Ao tratar desse aspecto Roberto de Ruggiero, acertadamente, outrora definiu fatos jurídicos “como aqueles aos quais o ordenamento atribue a virtude de produzir efeitos de direito, ou seja: eventualidades capazes de provocar a acquisição, a perda e a modificação de um direito” (1934, p. 240, grifo nosso). Essa situação fica evidente diante do exemplo doutrinário clássico da simples chuva que cai no meio do oceano atlântico. Esse fato isolado não tem importância para o Direito – basta observar as definições acima. Isso em oposição ao que ocorre com uma forte chuva que destrói uma plantação de soja. Deste evento podem surgir, por exemplo, obrigações entre uma seguradora e um agricultor (caso haja um contrato de seguro); pode tornar aceitável pelo Direito o descumprimento do prazo para entrega da soja aos compradores da safra etc. Portanto, um fato só será jurídico se relevante para o respectivo ordenamento. Estabelecida noção básica e necessária de fato jurídico para o presente trabalho, importante apresentar as espécies de fatos jurídicos. Aliás, fazendo uso das palavras de San Tiago Dantas, inevitável concluir que “a noção de fato jurídico é amplíssima; tão ampla que não se pode trabalhar com ela sem submetê-la a uma minuciosa classificação” (1979, p. 252) – o que acontecerá a seguir. Apenas para ilustrar a gama de classificações, apresenta-se a visão do saudoso Vicente Ráo, para quem [...] o conceito de fato jurídico três categorias compreende, a saber: os fatos ou eventos exteriores que da vontade do sujeito independem; os fatos voluntários cuja disciplina e cujos efeitos são determinados exclusivamente por lei; os fatos voluntários (declarações de vontade) dirigidos à consecução dos efeitos ou resultados práticos que, de conformidade com o ordenamento jurídico, deles decorrem. (1981, p. 20).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(5) Cleber Pereira Medina. 123. Percebe-se que dois critérios foram utilizados: a) a existência ou não de intenção na prática do ato; b) a disposição dos efeitos previstos para cada ato (uns determinados na lei; outros criados pelas partes, observada a autonomia privada e os limites postos pelo ordenamento). A questão é que o desenrolar das situações leva a uma classificação mais completa e necessária.. 3.. FATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO (STRICTO SENSU) Conforme anteriormente mencionado, fato jurídico pode tanto decorrer de ação humana, quanto da natureza. E aos eventos decorrentes da natureza, ou para os quais a ação humana concorre de forma indireta, é que deverá ser reservada a expressão fato jurídico stricto sensu1 ou simplesmente fato jurídico natural. “Todo fato jurídico em que, na composição do seu suporte fático, entre apenas fatos da natureza, independentes de ato humano como dado essencial, denomina-se fato jurídico stricto sensu” (MELLO, 2003, p. 127, grifo nosso). Note-se que no nascimento, na morte, na maioridade, o evento natural é que é significativo e não a atuação humana. Assim, aos atos humanos relevantes para o ordenamento jurídico, reservar-se-á o termo ato jurídico. Ressalte-se que, conforme outrora ponderou Clóvis Beviláqua, “as declarações de vontade não são os únicos elementos capazes de produzir efeitos na vida jurídica” (1929, p. 224). Por seu turno, os fatos jurídicos naturais dividem-se em ordinários e extraordinários.. 3.1. Fatos jurídicos ordinários e extraordinários Existem acontecimentos naturais de ocorrência regular e, portanto, freqüentemente esperados.. 1 Nenhuma classificação é unânime e para ilustrar isso, interessante trazer à baila posicionamento de peso de Miguel Maria Serpa Lopes (1989, p. 367), que classificou a descoberta de tesouro (art. 607 CC/16) e a invenção (encontro de coisa perdida – art. 603 CC/16) como fatos e não atos jurídicos, anotando que no primeiro caso “a propriedade é adquirida sem que intervenha a vontade como elemento preponderante”, havendo “a mesma ausência de intencionalidade” no segundo fato, o que já põe em relevo a controvérsia sobre as classificações e considera o elemento volitivo como inerente ao ato jurídico.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(6) 124. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. Nestes casos, estamos diante dos fatos jurídicos ordinários, como o nascimento, maioridade (civil, penal, eleitoral etc.), a morte, a condição de idoso nos termos da lei (cf. Estatuto do Idoso, por exemplo), o decurso do tempo, do qual decorre diretamente a prescrição, a decadência etc. Por. outro. lado,. alguns. acontecimentos. possuem. freqüência. incomum,. imprevisíveis ou apenas inevitáveis. Neste caso, apresentam-se os fatos jurídicos extraordinários. É importante destacar estes últimos, na medida em que importam muitas vezes na exclusão da responsabilidade, por exemplo. Enfim, não se pode deixar de considerar que a lei não tem como prescrever como ocorrerão esses fatos, mas tão somente estipula qual a postura que devem tomar as pessoas por ele envolvidas. “Por essa razão, a norma jurídica que regula o abandono de álveo pelo rio, não o proíbe, não o determina, nem estabelece regras de como se deve processar, apenas prescreve como se devem comportar as pessoas afetadas por ele” (MELLO, 2003, p. 129, grifado no original).. 3.2. Diferença (tradicional e atual) entre caso fortuito e força maior Tradicionalmente, muitos autores definiam esses fatos como eventos extraordinários e inesperados, sendo a força maior decorrente da natureza e o caso fortuito decorrente da ação humana. Como exemplos, respectivamente, podem-se citar uma tempestade e uma greve. Essa forma de distinção aparece inclusive na doutrina estrangeira, mostrando-se útil expor palavras de Manuel A. Domingues de Andrade, in verbis: “quanto à distinção entre o simples caso fortuito e o caso de força maior, diremos que aquele é qualquer risco natural das coisas ou maquinismos empregados pelo responsável; e esta é uma força da natureza estranha a essas coisas ou maquinismos” (1998, p. 7, grifado no original). Contudo, essa diferença não é unânime na doutrina, inclusive há opiniões no sentido de que ambos sequer correspondem a institutos distintos (GOMES, 2001, p. 421). A legislação também não cuidou de diferenciar, ora apresentando uma denominação ora outra, não utilizando as duas expressões com clareza de sentido ou mesmo de modo sistematizado, donde se pudesse extrair suas diferenças.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(7) Cleber Pereira Medina. 125. O próprio artigo 393, do Código Civil, em seu parágrafo único, define: “o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir” (g.n.). E dessa definição não é possível concluir pela distinção entre os dois fenômenos. Ademais, com a leitura de outros dispositivos legais, a controvérsia continua, pois ora aparecem juntas e ora isoladas nos dispositivos, sem diferença significativa. Não obstante a polêmica, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona ensinam que “a característica básica da força maior – em que pese ser decorrente, em regra, de um fato natural – é a sua absoluta inevitabilidade, enquanto o caso fortuito tem como nota essencial a imprevisibilidade, para os parâmetros do homem médio” (2007, p. 300-301, grifado no original). Em razão dessas características conclui-se que correspondem a causas de excludentes de responsabilidade – e isso é que dá maior importância ao estudo inicial desses institutos dentro da teoria dos fatos jurídicos.. 4.. ATO JURÍDICO EM SENTIDO AMPLO Os fatos jurídicos quando não decorrem da natureza (fato jurídico em sentido estrito), tem origem com a atuação humana. E aos fatos envolvendo diretamente a ação humana, reservar-se-á a expressão “ato”. Propositalmente o substantivo acima não está acompanhado do adjetivo “jurídico”. Isso porque existem duas posições doutrinárias básicas em relação às suas características. Uma delas sustentando que o ato jurídico é sempre lícito e a outra admitindo também o ato ilícito como espécie de ato jurídico. A discussão não parece imprescindível não obstante interessante para a compreensão da matéria, seja considerando o ato ilícito somente como espécie de ato humano ao lado do ato jurídico, seja compreendendo-o como espécie de ato jurídico. Ora, suas conseqüências serão as mesmas, especialmente a constatação de que nos ilícitos “os efeitos jurídicos produzidos representam uma sanção para o autor do facto”, conforme destacado por Manuel A. Domingues de Andrade (1998, p. 2).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(8) 126. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. Enfim, partindo do pressuposto de que o ato ilícito é jurídico, cumpre desse modo definir o ato jurídico como aquele fato jurídico decorrente de ação humana acompanhada (somada) de uma vontade que dirige essa conduta (elemento volitivo). A licitude, portanto, não se mostra essencial ao conceito de ato jurídico, o que poderá ser oportunamente discutido. Por outro lado, a presença da vontade (que por sinal é característica humana e por isso não caracteriza o fato jurídico natural) sim é essencial para caracterização do ato jurídico. Assim, o sujeito pratica uma conduta com consciência e essa conduta deverá estar prevista na norma jurídica. Partindo desse conceito, é possível identificar três espécies de atos jurídicos: os atos não negociais, os atos negociais e os atos ilícitos.. 4.1. Ato jurídico em sentido estrito Os atos jurídicos em sentido estrito (ou stricto sensu) correspondem àqueles atos jurídicos praticados tão somente de acordo com o ordenamento jurídico, ou seja, nos termos prescritos nas normas jurídicas, na medida em que se consegue identificar regramento que regule aquela conduta, sem a presença do intuito negocial. E um exemplo apontado por Silvio Rodrigues (2002, p. 156) é o do pai que reconhece um filho havido fora do casamento e todas as relações jurídicas daí decorrentes, como o dever de alimentos. Para estas condutas humanas o sistema jurídico confere previamente efeitos próprios, independentemente da composição de interesses entre dois sujeitos (como ocorre nos negócios jurídicos). Tais atos têm como espécies os atos materiais (ou reais) e as participações, sendo os primeiros “simples atuação humana, baseada em uma vontade consciente, tendente a produzir efeitos jurídicos previstos em lei” e os segundos “atos de mera comunicação, dirigidos a determinado destinatário, e sem conteúdo negocial”. São exemplos: dos primeiros a despedida sem justa causa de empregado não estável; dos segundos: a intimação e a notificação (2007, p. 305-306). Interessante notar que nos atos jurídicos em sentido estrito não ocorre composição de interesses, mas é considerável a atuação da vontade ou, ao menos, da consciência no momento da conduta. Isso porque mais à frente constatar-se-á que há atos. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(9) Cleber Pereira Medina. 127. humanos nos quais este elemento psíquico é irrelevante (atos-fatos jurídicos), o que também não é unânime da doutrina. Ao tratar dos negócios jurídicos, Washington de Barros Monteiro pondera que nestes as ações humanas são praticadas “justamente para obter os resultados desejados”, como o casamento, o contrato, etc. No entanto, ao tratar dos atos jurídicos lícitos (sentido estrito), comenta: [...] outras ações humanas produzem também efeitos jurídicos, mas sem qualquer atenção àquele elemento interno, psíquico, que é a vontade do agente. Os efeitos produzidos acham-se previamente delineados na lei como conseqüência fatal da prática daquela ação. (2005, p. 201).. Para Orlando Gomes, a distinção entre os atos humanos nos quais a vontade (ou consciência) é considerável e os atos nos quais o elemento volitivo não tem a menor relevância “não tem a menor utilidade” (2001, p. 255). Ousa-se discordar dos dois ilustres juristas, na medida em que o elemento volitivo não pode ser deixado de lado. Ora, o reconhecimento de um filho concebido fora do casamento deve ocorrer sem vícios de vontade, sob pena de nulidade. Ademais, o próprio mestre acima citado descreve o ato jurídico como sendo o “acontecimento voluntário, fruto da inteligência e da vontade, querido e desejado pelo interessado” (MONTEIRO, 2005, p. 202, grifo nosso). Conclui-se, pois, que nos atos jurídicos o ordenamento tem por relevante a vontade, tanto nos negócios jurídicos quanto nos atos jurídicos em sentido estrito. Porém, nos últimos, além da manifestação da vontade, existe uma prescrição legal da qual o sujeito não pode escapar, não havendo mobilidade para estipulação de seus efeitos como nos negócios jurídicos. Analisada sua estrutura, nada mais coerente do que trazer uma definição completa do ato jurídico stricto sensu, como sendo [...] o fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fáctico manifestação ou declaração2 unilateral de vontade cujos efeitos jurídicos são prefixados pelas normas jurídicas e invariáveis, não cabendo às pessoas qualquer poder de escolha da categoria jurídica ou de estruturação do conteúdo das relações jurídicas respectivas. (MELLO, 2003, p. 159).. Por outro lado, não se pode deixar de mencionar que a eles também pode ser atribuída a denominação atos meramente lícitos ou, nos termos do artigo 185 do Código Civil, atos jurídicos lícitos.. 2 Infere-se da lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que a exteriorização da vontade ocorre através da declaração ou da manifestação, sendo a primeira uma forma mais explícita, às vezes até formal, uma “manifestação qualificada”; já a manifestação é extraída de um comportamento, como o sujeito que joga fora um tênis – manifesta, assim, que não mais o quer (op. cit., p. 423).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(10) 128. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. A expressão atos jurídicos lícitos parece útil aos atos humanos não negociais, haja vista achar-se empregada no sentido de indicar a aplicação aos atos jurídicos não negociais todas as disposições cabíveis e previstas para os negócios jurídicos. E confirmando o que a maioria dos doutrinadores coloca, o artigo 185 do Código Civil limita-se a estabelecer que “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior”. Essas disposições referidas correspondem ao título que trata dos negócios jurídicos. Através dessa disposição legal, portanto, constata-se que os atos jurídicos lícitos não negociais tiveram importância secundária em relação aos atos negociais, inclusive os atos-fatos jurídicos.. 4.2. Negócio jurídico O contexto no qual se insere o negócio jurídico já foi exposto, mas para facilitar a compreensão, necessário dizer que é espécie do gênero ato jurídico, assim como o ato jurídico em sentido estrito (atos meramente lícitos) e os atos ilícitos (neste caso, se considerados como tal). Inicialmente, uma definição merece apresentação e assim o faz Flávio Tartuce, de forma técnica e didática: “esse instituto pode ser conceituado como sendo toda ação humana, de autonomia privada, com a qual os particulares regulam por si os próprios interesses, havendo uma composição de vontades, cujo conteúdo deve ser lícito” (2007, p. 313). Ou nas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho é a “declaração de vontade, emitida em obediência aos seus pressupostos de existência, validade e eficácia, com o propósito de produzir efeitos admitidos pelo ordenamento jurídico pretendidos pelo agente” (2007, p. 315). Interessante expor que nos atos jurídicos em sentido estrito o sujeito age de forma lícita e a lei prevê e determina os efeitos daquela ação (como no pagamento de uma dívida). Enquanto que no caso dos negócios jurídicos, os efeitos deste ato jurídico, que também devem ser lícitos são determinados pelas partes próprias através da composição de seus interesses para um fim por eles escolhido. Mais uma vez, utilizamo-nos das palavras de Flávio Tartuce para aclarar os dizeres acima: “diante de uma composição de vontade de partes, que dita a existência de efeitos, há a criação de um instituto próprio, visando regular direitos e deveres” (2007, p. 310, grifo nosso). Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(11) Cleber Pereira Medina. 129. E o exemplo clássico de negócio jurídico que sempre deve ser lembrado é o contrato. Compreendida essa categoria de ato jurídico, um breve comentário acerca da mudança ocorrida entre o Código de Clóvis Beviláqua (de 1916) e o de Miguel Reale (de 2002). O antigo diploma civil tratava dos negócios jurídicos em um capítulo intitulado “dos atos jurídicos”, quando tecnicamente seria mais adequada a expressão “negócios jurídicos”, como fez o novo Código Civil, que não deixou de tratar dos atos jurídicos em sentido estrito, determinando que se aplicasse, no que coubesse as regras atinentes aos negócios, conforme anteriormente mencionado3. Evidentemente mais regulados especificamente os negócios. No entanto, não haveria que se esperar outra coisa, na medida em que é nessa categoria de ato jurídico em que os sujeitos da relação jurídica podem utilizar a criatividade para nortear os efeitos, o que não ocorre nos atos jurídicos em sentido estrito. Nestes, os efeitos necessariamente estarão previstos em lei, bastando que o sujeito atue. Ora, se dependem da criatividade das partes, conseqüentemente a lei deverá estabelecer os limites para o exercício da autonomia privada.. 4.3. Ato ilícito O ato ilícito é antijurídico, ou seja, uma ação humana que ocorre em desacordo com a harmonia do ordenamento jurídico. No entanto, se é antijurídico, se contraria o ordenamento, de alguma forma ele faz parte do mundo jurídico, haja vista receber amparo no conjunto de regras que orientam a vida em sociedade. Neste caso, recebe uma negativa do ordenamento e impõe, via de regra, uma sanção ao sujeito atuante, mas isso não o retira do ordenamento4. Confirmando esse entendimento, Marcos Bernardes de Mello ressalta que não há que se confundir jurídico com ilícito, considerando o seguinte:. 3 Esclareça-se que o uso da expressão negócios jurídicos ganhou força na doutrina ocidental a partir da metade do século XX. Apenas o BGB alemão utilizava-se da expressão. Isso em virtude da forte influência da escola francesa da Exegese, com exagerado apego aos textos legais, limitou-se a difundir a expressão ato jurídico (acte juridique), constante do Código Napoleônico, mitigando a expressão negócio jurídico (Marcos Bernardes de Mello, op.cit., p.150-151). 4 No mesmo sentido: Maria Helena Diniz (2003, p. 323); Pontes de Miranda (2000, p. 222); Miguel Reale (2005, p. 206). Para este último, “os atos lícitos e os atos ilícitos são espécies de atos jurídicos, ficando, assim, superada a falsa sinonímia entre jurídico e lícito” (grifado no original). Com opinião eclética, Silvio de Salvo Venosa afirma ser o ato ilícito uma espécie de ato jurídico em razão de seus efeitos, entretanto, pondera não considerar “o sentido intrínseco da palavra, pois o ilícito não pode ser jurídico”; sugere, então, a expressão atos humanos ou atos jurígenos (2005, p. 362).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(12) 130. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. [...] jurídico tem um sentido que abrange tudo aquilo, e somente aquilo, que, por força da incidência da norma jurídica, entra no mundo jurídico. Para ser jurídico é preciso que o fato esteja previsto como suporte fáctico de uma norma jurídica juridicizante e receba a sua incidência (...) a ilicitude (= contrariedade a direito) constitui, exatamente, elemento nuclear do suporte fáctico de uma série de atos e fato que estão regulados (previstos) por normas jurídicas.. Rubens Limongi França apresenta mesma linha de raciocínio, pois para ele “os atos jurídicos podem ser lícitos ou ilícitos”, sendo que a estes últimos “convencionou-se chamar apenas ato ilícito” (1996, p. 124). De qualquer modo essa classificação (como ato jurídico ou não), não obstante tenha importância, não tem tanta relevância quanto o tratamento que lhe é dado pelo Código Civil (1997, p. 11). Isso porque recebe atenção especial do legislador (até maior do que os atos jurídicos em sentido estrito), na medida em que tanto o artigo 186 define o que é ato ilícito e o artigo 187 estabelece que o abuso de direito também caracteriza ato ilícito. Assim, segundo o artigo 186, comete ato ilícito aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. Destaque para o fato de que o novo Diploma Privado corrigiu equivoco do artigo 159 do Código Civil de 1916, que mencionava violar de direito ou causar dano a outrem (GONÇALVES, 2007, p. 450). Realmente devem ocorrer os dois fatores juntos para configurar o ilícito. Assim, se houver somente a violação de direito ou a ocorrência de dano sem atitude antijurídica não há ato ilícito. Ora, basta imaginar o sujeito que viola um direito sem causar dano ou o sujeito que causa dano sem violar direito. Como exemplo desta última hipótese é possível citar a situação de legítima defesa: neste caso, o sujeito causa dano em razão da defesa de um direito próprio, o que não é antijurídico. Outrossim, o Código Civil reconhece e dá maior amparo para coibir o abuso de direito, estabelecendo que essa conduta também consiste em ilícito. Mais que isso, o artigo 187 faz com que se perceba uma característica muito forte da nova lei civil: a concretude. Esse aspecto decorre da presença das chamadas cláusulas gerais, ou seja, expressões abertas à interpretação dos operadores do Direito, inclusive os magistrados, que aplicarão tais conceitos ao caso concreto, permitindo interpretação mais ampla e de acordo com os valores existentes na sociedade e observando todo o sistema jurídico (especialmente a Constituição Federal).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(13) Cleber Pereira Medina. 131. Referido dispositivo aponta que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Note-se que as expressões “fim econômico ou social”, “boa-fé” e “bons costumes” exigem interpretação diante do caso concreto, e isso deverá acontecer sob a orientação dos princípios mencionados pelo saudoso Mestre Miguel Reale, quais sejam: eticidade, socialidade e operabilidade. Percebe-se, portanto, que também cometerá ato ilícito aquele que contar com um direito, mas extrapolar o seu exercício, o que deixa evidente que o aspecto individualista da legislação de 1916 perdeu terreno para o aspecto coletivo. Por outro lado, o legislador não desamparou o sujeito que atua em legítima defesa e em exercício regular de direito, além daquele que age para remover perigo iminente, mas que causa dano à coisa alheia ou lesão a uma pessoa. Nestes casos, não há que se falar em ato ilícito, nos termos do artigo 188. Mister que se reconheça que não seria possível deixar de tratar do ato ilícito com a devida atenção, uma vez que dele surge a obrigação de indenizar, ou seja, é a base de estudo para a responsabilidade civil, penal, administrativa.. 5.. ATO-FATO JURÍDICO. 5.1. O elemento volitivo O elemento volitivo está presente quando se fala em ato jurídico, seja ele lícito (ato jurídico em sentido estrito e negócio jurídico) ou ilícito. Entretanto, em alguns casos, o ordenamento jurídico desconsidera a vontade e toma por relevante tão somente o evento (fato), ou seja, a atuação humana independentemente da vontade ganha relevância no sistema de normas jurídicas. Observe-se que a ação humana, chamada de ato, é sempre acompanhada de vontade. No entanto, essa vontade poderá ser ou não juridicamente relevante. Isso porque no campo fático ela pode até existir, mas não possuir importância para o Direito. E o exemplo de um sujeito louco ilustra bem a questão. Ora, eventualmente, se ele celebrou um negócio, esse negócio não é válido, por faltar-lhe capacidade. No entanto, é evidente que de fato ele manifestou sua vontade – vontade esta que não recebe consideração legal. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(14) 132. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. Como tratar os atos jurídicos em relação aos quais a lei desconsidera o elemento volitivo? Para responder à questão, ninguém melhor do que Pontes de Miranda, que divulgou e desenvolveu essa doutrina no Brasil: Ato humano é o fato produzido pelo homem; às vezes, não sempre, pela vontade do homem. Se o direito entende que é relevante essa relação entre o fato, a vontade e o homem, que em verdade é dupla (fato, vontade-homem), o ato humano é ato jurídico, lícito ou ilícito, e não ato-fato, nem fato jurídico stricto sensu. (2000, p. 421-422, grifado no original).. Simplificando a questão, nos dizeres de Pablo e Pamplona, “o ato-fato jurídico nada mais é do que um FATO JURÍDICO qualificado pela atuação humana” (2007, p. 301, grifado no original). Enfim, no ato-fato jurídico, a vontade não é considerada pelo ordenamento jurídico e, por isso, não se trata de ato jurídico5, mas de simples fato jurídico, que terá como característica a simples ação humana. Portanto, nestes casos, para análise será questionado somente se houve ação humana e não necessariamente se essa ação esteve acompanhada de vontade.. 5.2. Conceito e importância dessa categoria de fato jurídico Trata-se do fato jurídico que, não obstante decorrente de ação humana, tem o elemento vontade desconsiderado pelo ordenamento jurídico, que se preocupa tão somente o fato ocorrido. “Como o ato que está à base do fato é da substância do fato jurídico, a norma jurídica o recebe como avolitivo, abstraindo dele qualquer elemento volitivo que, porventura, possa existir em sua origem” (MELLO, 2003, p. 130). Da definição pode-se inferir que não é ato jurídico, pois não tem o elemento volitivo em sua definição, apenas a atuação humana. Portanto, não se orienta chamá-lo de ato, mas sim de fato jurídico. No entanto, para identificar esse fato jurídico que conta com a ação do ser humano (cuja vontade não é considerada), utiliza-se a expressão ato-fato jurídico (ação humana por si só relevante para o direito é fato e não ato jurídico). A título de exemplo: a caça e pesca permitidas; o desforço incontinenti para manter ou reaver a posse (art. 1210, § 1º, CC).. 5 Para Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 305), que destaca doutrina de Moreira Alves, o ato-fato jurídico é espécie de ato jurídico (este subdividido em: negócio jurídico, ato jurídico em sentido estrito e ato-fato jurídico).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(15) Cleber Pereira Medina. 133. Aliás, (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 422), o indivíduo que encontra uma concha na praia e a joga no mar pratica abandono (perda da propriedade por ato voluntário do titular do direito – cf. art. 1275, III, CC). Anteriormente, ao colher a concha, adquiriu a propriedade da “res nullius”, praticando ocupação (art. 1263, CC). Uma observação sumária, menos profunda, talvez não tenha o condão de destacar a importância da análise do instituto, especialmente aos que iniciam no estudo do Direito. Ora, compreender caso a caso se a existência da vontade mostra-se ou não relevante parece de fundamental importância para o desenrolar de inúmeras situações práticas. A título de exemplo, interessante lembrar dos institutos do dolo e da culpa. Nestes casos, estabelecer se existe ou não a vontade e qual sua relevância é fundamental, inclusive a ponto de se concluir que a presença ou não da vontade é irrelevante. Basta mencionar que na responsabilidade objetiva a existência de dolo ou culpa é irrelevante para fazer surgir a obrigação de indenizar. Portanto, não só do ponto de vista didático e acadêmico, mas também sob o aspecto prático existe evidente necessidade de se destacar e sub-classificar as situações em que a vontade não tem relevância jurídica.. 5.3. Classificação Para melhor ilustrar, cumpre apresentar classificação (GONÇALVES, 2007, p. 306) observada nas obras de Pontes de Miranda e Marcos Bernardes de Mello, donde extrai-se que os atos-fatos jurídicos podem ser assim classificados: a) atos reais; b) atos-fatos jurídicos indenizativos; c) atos-fatos jurídicos extintivos ou caducificantes. Os atos reais ou atos materiais correspondem àqueles eventos considerados apenas em seu resultado, independentemente da vontade direcionada a esse referido resultado. É o caso, por exemplo, do louco que pinta um quadro e adquire-lhe a propriedade (art. 1270, § 2º, CC), cuja vontade independe para que esse fenômeno ocorra (o surgimento do direito de propriedade). Situação semelhante caso o mesmo louco ou qualquer incapaz encontrasse um tesouro enterrado – ocorreria a aquisição da propriedade móvel, sem considerar a vontade ou não de descobri-lo, pois só o fato descoberta unido à tomada de posse daquele bem encontra amparo no artigo 1264 do Código Civil.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(16) 134. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. Na tomada, na transferência, no abandono de posse, nas ocasiões em que a vontade não tem relevância, há ato-fato. O mesmo ocorre com a ocupação, na qual existe apenas um suporte fático para constatação de sua existência. Com a criação intelectual também ocorre aquisição de propriedade sem análise nenhuma sobre a vontade. Portanto, com o ato-fato jurídico criação já surge a relação de propriedade entre o sujeito e a coisa, não havendo que se falar em qualquer nulidade sobre o consentimento. Por outro lado, os atos-fatos indenizativos referem-se às hipóteses em que existe obrigação de indenizar sem a existência sequer da ilicitude, ou seja, sem culpa e muito menos dolo. Nestes casos, haverá atuação humana, que até pode ser lícita, mas que causa prejuízo a terceiro (dano) e dá ensejo à indenização. O estado de necessidade encaixa-se perfeitamente nessa hipótese. O sujeito age amparado pelo direito, destruindo ou deteriorando coisa alheia, sem cometer ato ilícito, pois a lei lhe permite (art. 188, II). Contudo, mesmo não cometendo ato ilícito, deverá indenizar, nos termos do que dispõem os artigos 929 e 930 do Código Civil. Assim, conforme exemplo de Pontes de Miranda (2000, p. 445-446), poderia um sujeito ao transportar penicilina para entrega a um credor (contratual) deparar-se com um acidente e utilizar o medicamento para socorro das vítimas. Nessa hipótese, não estaria sujeito às sanções pela quebra de contrato, haja vista tratar-se de estado de necessidade. Entretanto, responderia pelo fato mesmo atuando de forma lícita, uma vez que o ordenamento determina que indenize, independentemente da existência do ilícito. É hipótese, portanto, de ato-fato jurídico. Caso análogo (de estado de necessidade) ocorre com o locatário que está prestes a desocupar o imóvel quando uma doença em sua família retarda sua saída. Não sofrerá as conseqüências da inadimplência contratual, mas responderá pelos dias em que retardou a entrega do imóvel por assim determinar a legislação. Isso porque, não obstante a inexistência de ilícito, há dever de indenizar previsto na legislação civil. Nesses casos, nos quais não há caracterização de ilícito, percebe-se a aplicação do princípio do interesse mais relevante, conforme doutrina ponteana (2000, p. 440). Assim, o risco iminente, a doença grave, o interesse público em alguns casos legitimam a atuação humana, sem que seja considerada ilícita. Como o interesse que prevalece é o mais relevante, o ato não é ilícito, mas mesmo assim haverá obrigação de indenizar.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(17) Cleber Pereira Medina. 135. Pode-se dizer que nesses casos aplica-se também equidade para determinar a responsabilidade civil – ora, o risco justifica o ato, mas por outro lado o terceiro não deve arcar com seu prejuízo: é justiça no caso concreto. Outrossim, Pontes de Miranda trata do que chama de princípio do perigo correlativo ao interesse e aponta como exemplos a responsabilidade das estradas de ferro a terceiros, a responsabilidade do dono da coisa, a responsabilidade do sujeito que “explora indústria de explosivos ou gases mortíferos”. Em termos contemporâneos, é possível dizer que se trata de casos de responsabilidade objetiva e no último caso (especialmente) da aplicação da teoria do risco da atividade, presente e norteadora do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90) – todos os casos hoje de responsabilidade sem análise de culpa. Esses princípios, de uma forma ou de outra ou por outras denominações, podem ser aplicados no ordenamento jurídico atual. Por fim, os atos-fatos extintivos ou de caducidade, dos quais decorre a extinção de um direito em razão do decurso do tempo e, em conseqüência, a pretensão dele decorrente, sem que a lei considere qualquer vontade envolvendo esse fato jurídico. Essa espécie refere-se não só à decadência, mas também à prescrição6, à preclusão, ou seja, em quaisquer situações em que haja o decurso de lapso de tempo (fato) e a inação do titular do direito (ato), conforme leciona Marcos Bernardes de Mello (2003, p. 135). O mesmo autor ressalva que esses fenômenos podem ser considerados atos-fatos jurídicos quando não constituírem atos ilícitos, observando que a prescrição nunca decorre de ato ilícito (sempre de inação), mas a decadência sim. Esta última pode decorrer de ilícito como nos casos em que o pai pratica atos contrários à moral e aos bons costumes (ilícito implica em culpa), podendo perder o poder familiar (art. 1638, III CC). Outro exemplo é a usucapião, nos caso em que a lei exige apenas suporte fático, inclusive independente de boa-fé, como na usucapião extraordinária (art. 1238, CC).. 5.4. Controvérsias doutrinárias e reconhecimento no ordenamento jurídico Durante toda a explanação do presente trabalho, apresentaram-se variadas divergências, principalmente quanto à classificação.. Recomenda-se a leitura do artigo “Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis”, de Agnelo Amorim Filho. In RT 300/7 e 744/725.. 6. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(18) 136. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. Nesse aspecto, a doutrina pátria e estrangeira é muito rica e isso parece imprescindível para o desenvolvimento de todos os institutos anteriormente estudados. Questão a não passar em branco refere-se ao tratamento do ato-fato jurídico como categoria de fato jurídico autônoma. Não se trata de ato jurídico, eis que neste o elemento volitivo é da sua estrutura, o que não ocorre no ato-fato. Outrossim, não cabe chamá-lo de fato jurídico em sentido estrito, uma vez que neste eventualmente existe ação humana, mas de forma indireta e no ato-fato a ação humana é da estrutura do fato jurídico – mas não a vontade. Inexiste confusão ainda com o negócio jurídico, o qual traz a vontade como fundamental para sua validade. No entanto, o ordenamento ampara alguns fatos jurídicos em que havia um aspecto extrínseco de negócio jurídico. É o caso em que existe incapacidade absoluta, mas mesmo assim o ordenamento não pode virar as costas para os efeitos dele decorrentes, como no caso da criança que compra um doce em uma padaria. Aliás, com relação à eficácia, todos os fatos jurídicos, independentemente de sua validade têm potencial para produzir efeitos no plano concreto. Em suma, a eficácia só dependerá da existência do fato. Todavia, os fatos jurídicos stricto sensu, os atos-fatos jurídicos e os fatos ilícitos não passam pelo plano da validade. É que somente os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos passarão pelo crivo da validade, uma vez que, derivando da vontade humana, poderão produzir efeitos em conformidade ou desconformidade com o ordenamento jurídico. As demais categorias, como não têm a vontade humana no cerne de seu suporte fático, por conseguinte, não passarão pelo plano da validade (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 416-417).. Por fim, além de não haver confusão entre essas categorias e os atos-fatos jurídicos, apenas para ilustrar, há ainda outras denominações doutrinárias para essa espécie. Em capítulo destinado a tratar do papel da vontade nos negócios jurídicos, José de Abreu Filho aponta a existência dos “fatos do homem”, considerados por ele fatos jurídicos em sentido estrito, pois em relação a eles não interessa a capacidade do sujeito ou mesmo o elemento de ordem psíquica (“vontade ou consciência da ação”), citando como exemplo a descoberta de um tesouro e as plantações. A expressão tem inspiração na doutrina italiana e corresponde ao ato-fato jurídico, a qual foi adotada no presente estudo.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(19) Cleber Pereira Medina. 6.. 137. CONCLUSÃO De todo o estudo elaborado sobre as diversas categorias de fatos jurídicos, apresenta-se frutíferas e ricas conclusões. De início, que a análise e o entendimento da teoria geral dos fatos jurídicos mostram-se imprescindíveis para melhor compreensão das relações jurídicas e resolução dos casos concretos. Ademais, interessa para deslinde das controvérsias o entendimento de cada espécie de fato jurídico, as quais se distinguem conforme suas estruturas e nem sempre por seus efeitos. Em razão do entendimento da estrutura das referidas categorias, parece evidente a existência dos atos-fatos como categoria autônoma e relevante, os quais não se confundem com as demais. Visualizando com distinção e destacando a irrelevância com que o ordenamento trata o elemento volitivo nessa espécie, fácil concluir que os atos-fatos não passam pelo plano da validade, cumprindo apenas observar sua existência e eficácia. Por outro lado, entre os variados exemplos mencionados, destaque para o tratamento da teoria do risco da atividade e da responsabilidade objetiva como fenômenos em relação aos quais a legislação afasta a questão da intenção, da vontade, da simples consciência, para considerar apenas fato (plano da existência), conseqüência (plano da eficácia) e nexo de causalidade. Tais situações, buscadas na doutrina de Pontes de Miranda, envolvem casos de indenização sem culpa, ou seja, sem que se analise esse elemento psíquico, inclusive podendo surgir responsabilidade de atos lícitos. Frise-se que essas teorias já estão amplamente desenvolvidas no Brasil, especialmente através da legislação posterior à Constituição Federal, como o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil. Enfim, por se tratar de espécie do gênero fato jurídico, conclui-se que às vezes é confundida com as demais espécies, na medida em que, por óbvio, traz em sua estrutura elementos de outras espécies. Entretanto, nunca se confundem, haja vista contar com elementos particulares que o distingue dos demais.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

(20) 138. Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico. REFERÊNCIAS ABREU FILHO, José. O negócio jurídico e sua teoria geral. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 1997. ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria Geral da Relação Jurídica. 8ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 1998, vol. II. BEVILÁQUA, Clóvis. Theoria Geral do Direito Civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929. DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, vol. 1. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2003. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – Teoria Geral. 6.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de Direito Civil. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 1996. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Parte Geral. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, vol. 1. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18.ed. atualizada por Humberto Theodoro Júnior, Rio de Janeiro: Forense, 2001. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Parte Geral. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, vol. 1. MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico – Plano da existência. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2003. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado – Parte Geral. 2.ed., atualizada por Vilson Rodrigues Alves, Campinas: Bookseller, Tomo II, 2000. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Parte Geral. 40.ed. atualizada por Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto. São Paulo: Saraiva, 2005. RÁO, VICENTE. Ato jurídico. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1981. REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Parte Geral. 32.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 1. RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. Tradução da 6.ed. italiana, por Ary dos Santos, com notas remissivas aos Códigos Civis brasileiro e português. São Paulo: Saraiva, 1934, vol. 1. TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Lei de introdução e parte geral. 3.ed. São Paulo: Método, 2007, vol. 1. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005. Cleber Pereira Medina Especialista em Direito Processual Civil com ênfase na docência (2005) pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 119-138.

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