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A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas

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Academic year: 2021

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(1)Encontro. Revista de Psicologia Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010. A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO CONTEXTO ESCOLAR: DAS QUESTÕES INDIVIDUAIS ÀS PROPOSTAS COLETIVAS The work of the psychologist in the school context: the individual issues to collective proposals. Daniela Altoé Fundação Hermínio Ometto - Uniararas dani.altoe@bol.com.br. Salete Moreno Marques Fundação Hermínio Ometto - Uniararas falecomsalete@hotmail.com. Raquel Pondian Tizzei Fundação Hermínio Ometto - Uniararas tizzuca@hotmail.com. RESUMO O presente artigo objetiva relatar uma experiência de estágio na área de Psicologia e Educação realizada com alunos do ensino fundamental de uma escola estadual de uma cidade do interior paulista. A experiência de estágio se baseou no modelo teórico denominado bioecológico que é uma proposta de compreensão do desenvolvimento humano segundo a perspectiva de seu principal expoente: Bronfenbrenner. Ao invés de relatarmos toda a experiência de estágio, optamos por um recorte de um caso específico vivenciado. Através do acompanhamento de um aluno que, podemos considerar ter sido terapêutico, propomos a reflexão sobre a possibilidade de atuação do psicólogo no coletivo, sem negligenciar aspectos de natureza mais afetiva e pessoal da criança neste contexto. Este trabalho trouxe como resultados o reconhecimento da limitação da atuação do psicólogo na escola e junto à rede de apoio educacional ainda que tenha trazido a possibilidade de melhor integração do aluno na escola. Palavras-Chave: psicologia educacional; desenvolvimento humano; prática da psicologia.. ABSTRACT. Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@aesapar.com. This article is to report an experience in Psychology graduation and Education area held on elementary public school in SP. The experience was based on the theoretical model called bioecological, which is a proposal for understanding human development from the perspective of its main exponents: Bronfenbrenner. Instead of reporting the whole experience of this school’s student, we opted for a cut of a particular case lived. Through the monitoring of a student, that can be considered therapeutic, we propose a reflection on the possibility of the psychologist collective work, not neglecting most aspects of the emotional and personal nature of the child in this context, though. This work has brought as results the recognition of the limitation of the role of the psychologist in school and with the educational support institutions; nevertheless it has also brought the possibility of a better integration of the student in school. Keywords: psychology educational; human development; practice psychology.. Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 20/5/2010 Avaliado em: 28/3/2011 Publicação: 10 de agosto de 2011. 83.

(2) 84. A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas. 1.. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO PSICOLOGO ESCOLAR Diversas têm sido as publicações acerca de práticas realizadas por psicólogos da educação e que envolvem formas bastante diferenciadas tanto de realização dessas práticas quanto ao modelo teórico que as respaldam. As discussões realizadas no Congresso Nacional de Psicologia Escolar e Educacional (CONPE) em São Paulo no ano de 2009 apontaram que esta área vem buscando perspectivas que superem modelos tradicionais de compreender o contexto educacional e tem buscado formas de aproximação da instituição educacional coerentes com concepções teóricas de homem e de mundo que considerem a escolarização um bem universal e um direito a ser efetivado com qualidade (SOUZA, 2009). Este relato apresentado a seguir parte de um contexto tradicional de atuação do psicólogo escolar – uma escola pública estadual de ensino médio – mas que, no entanto, por meio do contato com alunos em sala de aula, possibilitou o acompanhamento mais especificamente de um estudante e de sua família e que exigiu do serviço de psicologia oferecido em forma de estágio na escola, grande diversidade em suas práticas: visitas domiciliares, conversas na praça em frente à escola, passeios de ônibus, denuncias ao Conselho Tutelar além das atividades dentro da própria escola. Tudo isso ocorreu para possibilitar o acompanhamento do desenvolvimento deste estudante e sua família e a nossa tentativa enquanto profissionais de cuidar de seu desenvolvimento. Conforme aponta Cecconello e Koller (2003) um dos modelos teóricos que estão contribuindo para compreensão do desenvolvimento de indivíduos e a interação entre seus contextos de desenvolvimento, é a proposta de Urie Bronfembrenner (1996) denominada abordagem bioecológica do desenvolvimento. Este modelo propõe que o desenvolvimento seja estudado através da interação entre os diferentes contextos de desenvolvimento do sujeito e as autoras apontam a carência de publicações na área que envolva o trabalho de um profissional comprometido com a busca da compreensão dessa dinâmica entre os contextos de desenvolvimento. Assim, entendemos que este artigo possa colaborar em parte para que uma articulação dessa teoria a partir de uma intervenção na escola possa acontecer e contribuir para a construção do conhecimento científico. Para isso, descreveremos brevemente alguns pressupostos dessa teoria e dados acerca da realidade educacional citada para que o leitor possa acompanhar nossa proposta de reflexão. Além disso, dentre tantos modelos teóricos, o modelo bioecológico de desenvolvimento humano tem influenciado muitos estudos acerca do tema (POLLETO; KOLLER, 2008; KOLLER, 2004; DESSEN; COSTA JR., 2005; LORDELO; CARVALHO;. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(3) Daniela Altoé, Salete Moreno Marques, Raquel Pondian Tizzei. 85. KOLLER, 2004), isso devido o seu potencial em trazer a tona os efeitos construtivos que ambiente e organismo exercem um sobre o outro. Por esse pressuposto, o adotamos como referencial teórico para reflexões sobre a prática em Psicologia Escolar que será trazida neste artigo. De acordo com Bronfrenbrenner (1996, p.191) o desenvolvimento humano é definido como “o conjunto de processos através dos quais as particularidades da pessoa e do ambiente interagem para produzir constância e mudança nas características da pessoa no curso de sua vida”. O desenvolvimento é entendido como um processo dinâmico, determinado por múltiplas relações e, sendo assim, a compreensão dos indivíduos perpassa pela compreensão desse processo de interação do sujeito com contextos de desenvolvimento do qual ele participa e, neste contexto, a escola vem desempenhando papel importante, pois é instituição de passagem obrigatória para todos os brasileiros conforme pressupõe a LDB – Leis de diretrizes e Bases da EducaçãoNacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. D.O.U. de 23 de dezembro de 1996, e portanto, desempenha papel importante para compreender e agir sobre o desenvolvimento de todos. O contexto escolar, além de abranger uma gama de pessoas com características diferenciadas, inclui um número significativo de interações contínuas e complexas. Refere-se também, segundo Oliveira (2000, citado por DESSEN; POLÔNIA, 2007) a um ambiente multicultural que envolve a construção de laços afetivos e preparo para a inserção social. Concomitante a essa questão, outros autores (MARQUES, 2001; ALEMRIDA, 2000, citados por DESSEN; POLÔNIA, 2007) enfatizam a importância das tarefas desempenhadas em sala de aula, que favorecem as formas superiores de pensar e aprender, como exemplo a memória seletiva, criatividade, raciocínio abstrato, pensamento lógico, tendo o professor um papel importante como mediador. Nessa ótica, Bronfenbrenner (1996) afirma que o único lugar que serve como um contexto abrangente para o desenvolvimento humano a partir dos primeiros anos de vida, após o ambiente familiar, é a instituição de educação infantil que, no Brasil, é tradicionalmente conhecida como creche ou pré-escola. Essa instituição é um espaço em que se priorizam as atividades educativas formais amalgamadas a um campo de desenvolvimento e aprendizagem, ou seja, voltada bastante para aspectos de escolarização, brincadeiras, interações bastante diversificadas. Pode-se considerar que a escola contribui no desenvolvimento do indivíduo, bem como na obtenção do saber culturalmente organizado em suas diversas áreas de conhecimento e que, de acordo com Cury (2008): [...] a educação escolar, mercê de sua natureza conatural ao desenvolvimento das faculdades intelectuais do ser humano, graças ao potencial de sua vertente socializadora,. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(4) 86. A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas. veio se constituindo como um dos direitos mais importantes da cidadania (CURY, 2008, p.208).. No entanto, de acordo com o autor, em que pesem os avanços conquistados na educação escolar nos últimos séculos no Brasil, como a universalização do ensino fundamental, a ampliação dos ensinos médio e universitário e a discreta abertura na educação infantil, ainda há muito que se fazer para avançarmos em termos educativos no Brasil e isso vem sendo descrito pelas estatísticas do governo em termos de escolarização, acesso à escola, permanência, continuidade do ensino, formação, dentre outros fatores. É nesse contexto que a aproximação da Psicologia com a Educação se sedimenta ainda mais. A aproximação dessas duas áreas data o período colonial, quando preocupações com a educação e a pedagogia traziam em seu bojo elaborações sobre o fenômeno psicológico. A partir de então, as duas áreas percorrem caminhos intrinsecamente relacionados até o momento em que, na segunda década do século passado, a Psicologia se constitui enquanto ciência e profissão e passa a delimitar seu campo de conhecimento e atuação Contudo esse percurso fora marcado por movimentos antagônicos de tentativa de explicação dos problemas escolares e, ao mesmo tempo, a rotulação dos sujeitos como portadores de problemas emocionais ou cognitivos intrínsecos e incapazes de aprender. A partir de então, a psicologia no contexto educacional ficou marcada pelas explicações de fundo psicológico que dava às queixas escolares e, como tal, propagava uma forma de estigmatização e por conseqüência de exclusão dos sujeitos que apresentavam dificuldades escolares conforme debatido por Machado (2002), Patto (1981/1984/1990), Guzzo (1999), Guzzo, Costa e Sant’Anna (2009), Tanamashi, Souza e Rocha (2000), dentre outros. Um exemplo disso é uma atuação distante da realidade escolar e focada no indivíduo, no caso no aluno com problemas de aprendizagem ou de comportamento. Dentro dessa perspectiva, a atuação do psicólogo se limitaria à aplicação de testes de inteligência e na emissão de laudos atestando a veracidade de uma concepção que situa o lócus exclusivamente no aluno, sem relevar o contexto em que tal queixa é produzida. Essa concepção tem como modelo de atuação dominante a psicologia clínica aplicada ao contexto escolar. Tal proposta partilha de uma visão de psicologia escolar, vinculada com a área de saúde mental, a qual divide a problemática escolar em dois pólos: saúde x doença, o que na escola acaba por refletir como problemas de aprendizagem e de inadequação comportamental (ANDALÓ, 1984, p. 130). Além da divisão citada acima, outra separação possível decorrente do modelo clínico, segundo Reger (1981), se dá na seguinte dimensão: comportamento x educação. Dessa divisão artificial, resulta uma forte tendência em não implicar os professores e Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(5) Daniela Altoé, Salete Moreno Marques, Raquel Pondian Tizzei. 87. outros agentes educativos no processo de determinação dos comportamentos, das ações, das transformações que vem ocorrendo na escola, dentro das salas de aula. Pelo fato de o comportamento ser considerado como um elemento à parte da educação, ou seja, é fruto do que o individuo é na família, algumas crianças passam a ser vistas como portadoras de problemas e por isso tendem a ser rejeitadas pelos educadores, ficando dessa maneira à margem do processo educacional. Quando um psicólogo através da atuação calcada num modelo que foca a queixa escolar como sendo um problema do indivíduo, ele por um desdobramento conceptual acaba por desconsiderar todo o contexto em que tal queixa é produzida. Conseqüentemente, tal profissional acaba também favorecendo um perverso processo que rejeita a criança do sistema educacional, o qual lhe é de direito, constitucional inclusive. Essa concepção que coloca o lócus da problemática nos alunos, cabendo a esses a sua resolução, se mostra ultrapassada e demasiadamente reducionista (REGER, 1981). Não é de se estranhar que as intervenções que têm por base tal concepção estão fadadas ao fracasso, pois geralmente concentram-se apenas em psicoterapias e na transferência dos alunos considerados “problemas” para a classe especial. Assim, de um paradigma que idealiza um padrão de normalidade, construído socialmente, resultam soluções fáceis e superficiais para problemas complexos e multifatoriais. Na verdade não se tratam de soluções, já que em nada contribuem para a melhoria dos processos de ensinoaprendizagem. Não há possibilidade de atingir a raiz dos problemas desencadeados no âmbito escolar, sem uma análise cuidadosa das condições em que estes são produzidos. A história da psicologia escolar e educacional no Brasil deve ser pensada a partir de raízes históricas centrada na teoria da carência cultural, conforme apontada por Patto (1990) que se traduziu a partir de uma formação apoiada em preceitos clínicos, ou seja, na realização de práticas individualizantes dentro de espaços educacionais que propagam a idéia, especialmente para os educadores, de que questões educacionais centram-se em problemas dos alunos. Importante salientar que de nada adianta criticar o modelo hegemônico, sem propor outras possibilidades. Por isso, optamos por discorrer acerca de uma experiência prática, com o objetivo de ilustrar uma proposta que de fato possa refletir mais profundamente acerca de um desenvolvimento integral do educando, tentando romper com a patologização das queixas escolares e a pretexto de uma intervenção institucional, não negligenciar uma subjetividade que clama por uma acolhida. Retomando o papel do psicólogo, através de uma proposta mais efetiva, destacase na atualidade o papel do psicólogo escolar como um agente de mudanças, nas palavras. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(6) 88. A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas. de Andaló (1984, p. 130) em que consiste “como um elemento catalizador das reflexões, um conscientizador dos papéis representados pelos vários grupos que compõem a instituição”. Segundo Patto (1990) o modelo mais apropriado para a atuação do psicólogo na área da educação é o modelo deste profissional enquanto educador, pois assim como seus colegas educadores, o psicólogo enfatizaria mais o crescimento e desenvolvimento das crianças, diferentemente do modelo clínico que enfatiza mais à “patologia”. Segundo a autora em questão, o propósito central do psicólogo escolar é ajudar a planejar programas educacionais. Sendo assim, o psicólogo escolar pode exercer o papel de consultor, pois procura utilizar o sistema educacional de forma mais efetiva para cada criança; orientador já que orienta os demais profissionais da instituição a lidarem com as situações educacionais; professor e pesquisador, pois tem relação como o modelo acadêmico, já que deve buscar a superação do descompasso existente entre educação e a aplicação de resultados de pesquisa, bem como encorajar atividades de pesquisa em sala de aula. De acordo com Reger (1981) delimitar o papel básico do psicólogo escolar evitaria a ocorrência de inúmeros problemas que atualmente não podemos focalizar. Algo importante segundo o autor, é que o psicólogo escolar não deve de forma alguma, alimentar a idéia de que assumirá pelo professor as responsabilidades pelos problemas ocorridos em sala de aula. Cabe ao professor o enfrentamento diário dos problemas que surgem no contexto escolar. Os professores não podem ter seus processos de pensamento e de julgamento interditado por uma crença de que outros profissionais assumirão suas responsabilidades e pensarão por ele. Seguindo a mesma linha de pensamento, Andaló (1984) destaca que não cabe ao psicólogo assumir a responsabilidade de lidar com o aluno em sala de aula, pois esta continua sendo responsabilidade do professor. Por sua vez, o psicólogo, através de seus conhecimentos da área psicológica, pode colaborar com os demais agentes educativos a lidarem melhor com as situações educacionais. Guzzo (1996) também argumenta sobre a necessidade do psicólogo escolar em dar suporte aos professores, alunos e instituições escolares nas questões sobre o desenvolvimento humano, destacando que a atuação deste profissional é bem mais ampla, não se limitando nos diagnósticos classificatórios e nem nas famosas psicoterapias individualizadas, mas que para ir além, este profissional precisa se atualizar constantemente e desenvolver uma proposta de trabalho que tenha um maior envolvimento com a comunidade educacional e sua dinâmica. Nesse sentido o psicólogo pode ser considerado uma espécie de “catalisador” de reflexões dos diversos grupos que. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(7) Daniela Altoé, Salete Moreno Marques, Raquel Pondian Tizzei. 89. compõem a instituição. Lembrando que se necessário ele pode fazer um enfoque clínico, mas sem perder o ponto de vista institucional. Com base na afirmação acima, apresentaremos o relato de um caso específico que acompanhamos durante o Estágio Curricular de Psicologia, Educação e Comunidade ocorrido durante o ano de 2006, que contou com a presença de outros 8 estagiários além de duas das autoras deste artigo. A vivencia no ambiente escolar; as conversas com educadores e alunos, escutar suas angústias e dificuldades nos colocou diante de intensos questionamentos sobre a prática do psicólogo, bem como nos proporcionou ter que lidar com uma atuação do psicólogo pouco definida tecnicamente, praticamente. É através da prática e da produção de pesquisa, que entendemos ser possível criarmos uma concepção mais crítica sobre as diversas teorias estudadas e com isso, repensar o papel do psicólogo no contexto escolar. No presente artigo, optamos por um recorte de um caso específico, sem perder o enfoque de uma intervenção com a família, a instituição e a comunidade, o qual propõe uma reflexão sobre a possibilidade de atuação no coletivo, sem negligenciar aspectos de natureza mais afetiva e pessoal da criança neste contexto, conforme o destaque do pressuposto teórico bioecológico.. 2.. O ENCONTRO COM FÁBIO Fábio (O nome Fábio, assim como, outras informações que eventualmente possam remeter a identidade do aluno em questão, foram alteradas com a intenção de preservar a imagem deste), 14 anos, aluno da sexta série do ensino fundamental monopoliza a atenção de toda a escola pela sua forma diferenciada de se relacionar. Através de objetos o aluno expressa seus conflitos emocionais, estes por sua vez relacionam-se em grande medida ao seu contexto familiar, porém não restrito a ele, pois também questões que envolvem as relações presentes no âmbito escolar emergem como demandas para possíveis intervenções. Muitas das atitudes do aluno, tais como, pintar as unhas, imitar bebê, gesticular de forma caricata como homossexual, interromper constantemente as aulas, dar trotes no comércio da cidade, mais freqüentemente em estabelecimentos de moto-táxi (uma mototáxi refere-se a um tipo de transporte individual na qual os passageiros têm ampla escolha de local de embarque ou desembarque; é semelhante ao taxi, no entanto, utilizando uma moto ao contrário de um carro), lhe renderam na escola o rótulo de louco e/ou esquisito. Nosso primeiro contato se deu a partir de uma visita na sala de aula onde tínhamos como objetivo conhecer os alunos, nos apresentar, colocando-nos a disposição Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(8) 90. A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas. da turma, bem como identificar possíveis demandas. Essa primeira forma de contato também se baseia no pressuposto da abordagem bioecológica na medida em que essa pressupõe o vínculo afetivo como forma importante de contato com o sujeito. (BRONFENBRENNER, 1996). Pensamos que, conforme apresentando, o papel do psicólogo na escola, por muito tempo, foi o de rotular os sujeitos o que fez com que esse profissional acabasse sendo temido dentro do contexto escolar. Para tentar romper com essa visão, buscamos sempre um contato inicial, um vínculo sem intenções prévias de julgamento de uma dificuldade ou a busca pelo aluno problema, e sim um contato mais informal, por meio do acompanhamento das atividades escolares, o que, de acordo com o autor citado acima, é denominada de díade, ou seja, uma interação formada sempre que duas pessoas prestam atenção nas atividades uma da outra ou delas participam. Para Bronfenbrenner (1996), uma díade por si só já tem sua importância, enquanto elemento favorecedor de desenvolvimento do sujeito e do seu contexto na medida em que favorece essa interação positivamente. Acreditamos que esse feito não rotulador tenha ocorrido no encontro com Fábio, pois logo após a apresentação das estagiárias em sala, solicitou que estas se sentassem perto dele e a partir deste momento, iniciou uma interação que foi sendo fortalecida durante o ano e que a denominamos como uma díade. Vale ressaltar que o vínculo criado foi essencial para que Fábio conseguisse se expressar, bem como elaborar seu sofrimento. Tal sofrimento em grande medida se relaciona com o seu temor de estar contaminado pelo vírus da AIDS. Interessante destacar que no ano anterior da atuação aqui apresentada, foi realizado em sua classe um projeto de “Orientação a Sexualidade”, onde temas como prevenção, DST, entre outras informações referentes ao assunto foram discutidos. Nessa ocasião o aluno mostrou um forte incomodo relacionado ao tema da AIDS. Ao tentar entender sobre esse incomodo, nos deparamos com questões de uma sexualidade exacerbada, a qual entendemos como algo que vai além da simples curiosidade e do interesse natural dos mecanismos de prazer obtidos com o próprio corpo e/ou de outrem. Nesta situação, isso significa que sua relação com a sexualidade parece se inserir numa ordem marcada por algum tipo de abuso. Sobre tal questão há um conteúdo expresso no discurso do aluno, nas brincadeiras, em seus desenhos, em cartinhas, que podem nos remeter a indicativos de fatores de abuso. A partir de tais indicativos foi tentado averiguar a veracidade do fato com o próprio aluno. Ao longo deste artigo esse processo de averiguação será melhor explicitado.. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(9) Daniela Altoé, Salete Moreno Marques, Raquel Pondian Tizzei. 3.. 91. SOBRE AS INTERVENÇÕES Nosso primeiro contato com a escola foi através de uma reunião com a direção e com os professores, na qual a supervisora de estágio apresentou o grupo de estagiários no ano anterior (2005) e, já nessa reunião, as queixas referentes às dificuldades do aluno Fabio, predominavam sobre qualquer outra. No ano seguinte, em outra reunião de avaliação do estágio e apresentação para continuidade, alguns assuntos foram retomados - Aqui se usou o termo “retomado” porque o Projeto de Estágio apresentado no presente artigo não é novo na escola em questão, pois está sendo implantado desde o ano de 2005 - por exemplo, sobre o papel do psicólogo na escola e sobre a necessidade de se trabalhar em parceria a fim de tornar possível a construção de um projeto coletivo que contribua para o desenvolvimento de um processo educativo mais eficaz. Inicialmente nossa atuação na escola consistia em participar das aulas com os professores, com objetivo de compreender a dinâmica das relações existentes nesse contexto, bem como o funcionamento da própria instituição, suas normas, seus valores e sua cultura. A partir desse momento iniciou-se também o processo de vinculação entre as estagiárias, os alunos e os funcionários da escola. O projeto de estágio caracteriza-se, fundamentalmente, por uma proposta preventiva, por isso, o foco se daria especialmente em quintas e sextas séries, porém não restrita a estas. Num primeiro momento, fez-se um o levantamento da demanda, em seguida uma análise dessa e, por conseguinte estruturava-se um plano de intervenção. Cabe no presente artigo explanarmos as intervenções realizadas ao caso específico que nos propomos a ilustrar. Vale ressaltar que em nossas atuações, em nenhum momento perdeu de vista o contexto institucional, o qual não configura apenas como pano de fundo onde problemáticas mais específicas são encenadas, mas também apresentam-se como contribuintes no desenvolvimento emocional, social e intelectual de uma criança. Para melhor entendermos a concepção de desenvolvimento proposta por Bronfenbrenner (KOLLER; NARVAZ, 2004), precisamos entender a dinâmica dos sistemas, visto que tal desenvolvimento ocorre de acordo com a interação entre características biopsicossoais (fatores genéticos, cognitivos, de personalidade, entre outros) e ambientais, o qual compreende os seguintes níveis: microssistema (ambiente mais imediato da criança, por exemplo, a família), mesossistema (conjunto de dois microssistemas, por exemplo, família – escola), exossistema (ambiente que afeta a criança ainda que de forma indireta, por exemplo, trabalho dos pais, programas sociais) e macrossistema (nível mais geral dos sistemas, por exemplo, regime político). Faz-se. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(10) 92. A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas. necessário o entendimento destes, para defesa da proposta do trabalho em redes de apoio para um acompanhamento mais efetivo da criança. Tendo em vista um modelo de atuação do psicólogo escolar, que não concentra o lócus do problema no aluno, mas que faz uma análise sobre as relações institucionais, bem como as condições que tal queixa se formula (KOLLER; NARVAZ, 2004), desenvolvemos um plano de atuação que envolve uma múltipla teia de relações representadas pelo contexto escolar, que inclui os agentes educativos e os educandos; o grupo familiar; a comunidade e as redes de apoio (As redes de apoio citadas nesse artigo referem-se ao PSF – Programa de Saúde Familiar e Conselho Tutelar). Cabe ressaltar que tal paradigma sistêmico está em consonância com a teoria bioecológica do desenvolvimento humano conforme proposto por Bronfenbrenner, uma vez que não cristaliza a queixa e nem as possibilidades de atuação num único sistema, considerando a integração e as multideterminações desde os ambientes imediatos (microssistemas, mesossistemas) até os contextos mais amplos (exossistemas, macrossistemas,), nos quais os ambientes estão inseridos. Destaca-se ainda no que concerne ao modelo bioecológico do desenvolvimento, a importância do “vínculo” na dinâmica das interações sociais, caracterizado pela reciprocidade, equilíbrio de poder e afeto (KOLLER; NARVAZ, 2004) o qual pautou a proposta de atuação das estagiárias na escola e comunidade. Na escola, a intervenção iniciou-se aos poucos, trabalhando-se com grupos pequenos de alunos em sala de aula com os quais o vínculo já havia se constituído. Formava-se com esses alunos rodas de conversa, geralmente no horário do intervalo, nestas o aluno Fábio sempre fazia questão de participar. A partir do que os alunos traziam, alguns temas foram sendo paulatinamente discutidos, tais como: o que o psicólogo pode fazer na escola, o que significa ser “louco” ou ser “normal”, o que significa ser “diferente”. Inicialmente em tais debates, os alunos apontavam para Fábio, referindose a este como o louco, ou como aquele que tem problema e por isso precisaria de nossa ajuda. Com o avançar das discussões e à medida que desconstruíamos junto com os alunos, alguns de seus preconceitos e idéias equivocadas, o aluno Fábio deixava de representar o “problema” da classe ou mesmo da escola. Com isso, também os demais alunos começaram a se implicar em suas relações. Nesse sentido, desenvolvemos um Projeto direcionado para a melhoria das relações, sendo este organizado em encontros semanais dentro do período de uma aula. Participavam desse encontro, todos os alunos da sexta série e o professor responsável pela aula no momento do projeto. Alguns professores em algumas ocasiões contribuíam com a. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(11) Daniela Altoé, Salete Moreno Marques, Raquel Pondian Tizzei. 93. organização do grupo, já que trabalhávamos com cerca de 30 alunos, porém outros professores se retiravam da sala. Com relação a este fato, algumas hipóteses referem-se ao não comprometimento de alguns professores com a proposta, ou ainda pode relacionar-se com uma falha no processo de formação do vínculo com esses educadores. A proposta do trabalho envolvia dinâmica e atividades que possibilitava aos alunos e professores reflexões sobre o tema da inclusão; das diferenças e do preconceito e, a partir deste trabalho, percebíamos a implicação dos resultados dessas discussões em seus relacionamentos. Como exemplo, podemos destacar um encontro sobre o tema da inclusão que possibilitou ao grupo refletir que além de Fábio, outros alunos se sentiam excluídos, seja devido sua etnia, cultura ou simplesmente por morar num bairro distante do Centro, onde localiza-se a escola. Sobre nossa intervenção, buscamos apoio nas teorizações de Pichón Rivière. É sabido que o psicanalista começou a pensar o trabalho com grupos à medida que observou em seus pacientes a influencia do grupo familiar. O teórico fundou seus conceitos a partir da leitura da psicologia social e foi por meio desta, que afirmou que o homem desde seu nascimento encontra-se inserido em grupos, sendo o primeiro deles a família e mais tarde se ampliando para a escola, amigos e sociedade. Introduziu em seus conceitos uma nova maneira de intervir em diversos grupos de trabalho. Constituiu o conceito de grupo operativo e define que este não se refere a uma técnica específica de coordenação de grupos, mas sim uma forma de pensar e operar em grupos. Esses grupos podem ser: de aprendizagem, de reflexão, terapêutico, entre outros. Nesse sentido, grupo operativo refere-se a um conjunto de pessoas com um objetivo comum o qual tentam abordar operando como equipe. Nessa tarefa ocorre uma organização dos processos de pensamento, comunicação e ações que se dão entre os membros do grupo (PICHÓN-RIVIÈRE, 2005). O processo grupal é visto por esse autor como o “estruturando” do grupo, isso quer dizer, como uma estrutura em movimento, ao contrário de uma organização rígida. A própria ação do grupo é responsável por sua existência e organização. Assim, foi possível observar nossas intervenções atravessadas por essa leitura de grupo. Buscou-se esclarecer junto aos profissionais e alunos inseridos no contexto escolar, os conflitos estereotipados, seja do aluno considerado problema ou louco como é o caso aqui citado, seja do professor. Acreditamos que com isso, proporcionamos a esses profissionais e alunos uma reflexão sobre o lugar da escola: seria esse um lugar de correções ou uma instituição de educação?. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(12) 94. A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas. Retomando aos encontros com alunos, estes foram fundamentais também para realçar as potencialidades de Fábio, pois o aluno já estava marcado por uma representação social vinculada à figura “do” louco, e a partir desses encontros, foi possível uma resignificação desse lugar ocupado pela criança. Assim, tal intervenção foi importante porque possibilitou o reconhecimento da multiplicidade de outros aspectos, tais como, ser um grande amigo, companheiro, engraçado e habilidoso em matemática. Com relação a essa intervenção, trazemos a tona uma reflexão sobre as relações cristalizadas. Para Machado e Souza (1997) esse tipo de relação não possibilita certa movimentação no que diz respeito às queixas, uma vez que estas permanecem as mesmas há muito tempo. Uma pessoa cristalizada, normalmente, transforma-se num personagem: “o” aluno especial, “o” aidético, “o” excluído, “o” louco, “o” tímido, “o” irritante, impossibilitando desta forma, que este venha ser reconhecido, pelas suas potencialidades. Ainda do ponto de vista das autoras citadas acima, esses personagens cristalizados, são objetivações de uma série de práticas. É possível perceber essas práticas quando, afastando o olhar destes alunos considerados “aluno-problema”, observa-se uma série de práticas que os objetivaram, como exemplo: a prática de encaminhamento de crianças com problema de aprendizagem ou disciplina para psicólogos. Em tal prática, pode-se perceber uma série de outras práticas paralelas, isto é: psicólogos realizando avaliação psicológica para encaminhamento; educadores entendendo o problema da criança vinculado a questão individual ou familiar; a exigência de um laudo psicológico para a criança; entre outras. No trabalho com os professores, estes aconteciam quando tais profissionais encontravam-se na escola no dia da semana em que cumpríamos o estágio, foram realizadas algumas conversas sobre as dificuldades encontradas em sala de aula para lidar com certas situações. Nestas ocasiões a queixa dos professores em relação aos alunos com problemas de aprendizagem e/ou de comportamento era constante, principalmente no que tange a dificuldade com Fábio. Percebemos nessas ocasiões, grande resistência por parte destes profissionais em aceitarem o nosso papel na escola, pois embora, este já tivesse sido discutido, predominava ainda a crença que deveríamos retirar o aluno da sala de aula e realizar um atendimento individualizado que produzisse o efeito “quase mágico” de devolvê-lo para a sala bem ajustado às normas da escola. Nossas tentativas de romper com essa visão parece ter suscitado frustração em alguns profissionais. Nas discussões com os professores, foi problematizado sobre certas atitudes, pois conforme os próprios estavam testemunhando, colocar o aluno para fora da sala de aula, Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(13) Daniela Altoé, Salete Moreno Marques, Raquel Pondian Tizzei. 95. ou mesmo mantê-lo excluído dentro dela, não estava contribuindo para seu aprendizado. Buscamos problematizar tais atitudes e assim, possibilitar reflexões sobre como lidar com a situação. Além das atividades grupais, foi necessário realizarmos um acompanhamento mais específico com o aluno. Este acompanhamento não significava, contudo, um acompanhamento de natureza clínica dentro da escola, pois por mais que existissem no discurso de Fábio problemáticas que pareciam transcender o âmbito escolar, estas eram ouvidas no sentido de acolher sua angústia, bem como pensar possíveis intervenções no contexto institucional. Entretanto, fomos entendendo o quanto era necessário escutar Fábio num outro contexto que não caberia aos propósitos do psicólogo escolar. Por esse motivo estudamos a possibilidade em supervisão, de encaminhar o aluno para o serviço de Psicologia da Faculdade. Assim buscamos num primeiro momento estabelecer um vínculo com a família, a fim de garantir a efetividade de um possível encaminhamento. A partir de um pressuposto teórico que compreende o desenvolvimento a partir da interrelação de sistemas de desenvolvimento, ampliamos nosso contato para além da escola e iniciamos o contato com a família dele. Com relação a esta, inicialmente mandamos convite para que os pais viessem para a escola, pois nestas poderiam conversar conosco, expor suas necessidades, receber orientações e contar com suporte. Num nível mais profundo queríamos conhecer a dinâmica de funcionamento desta família, da qual tanto Fábio se queixava. Tentamos também contato por telefone, porém nunca conseguimos por esse meio, da mesma forma que também não conseguimos via bilhetes enviados pelo próprio aluno. Assim, depois de diversas tentativas em chamar esses pais para a escola, sem conseguirmos a participação dos mesmos e diante do fato das queixas do aluno se mostrarem cada vez mais graves, isto é, envolvendo situações de violência, negligencia e conflitos familiares, decidimos diretamente fazer uma visita à casa. Essa dificuldade de acesso às famílias vem sendo apontada pela literatura na área (PATTO, 1984/1990; LORDELO; CARVALHO; KOLLER, 2004) como sendo um dos grandes desafios para o trabalho não só dos educadores, mas também dos psicólogos que trabalham em instituições educativas. As famílias sentem-se impotentes diante das demandas apresentadas a elas e, por isso, tendem a não responder aos chamados das instituições. Por isso optamos pela visita domiciliar. Numa primeira visita conhecemos a mãe e o que mais nos impressionou em tal ocasião foi a identificação desta mãe com seu filho. Além de semelhanças físicas, nos. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(14) 96. A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas. trejeitos, no modo de olhar, no ritmo da fala, percebemos também um modo de funcionamento psíquico parecido, marcado fundamentalmente pela fantasia. Na segunda visita encontramos com o pai, porém quase não conversamos com o mesmo. Ele nos cumprimentou não ostensivamente enquanto estávamos no portão e entrou na casa com uma garrafa de cerveja na mão. Mais tarde, retornou ao portão, onde lá tivemos a chance de dialogar com ele, ainda que superficialmente. Nesta conversa o pai se queixava do “mino” excessivo da mãe pelo filho e responsabilizava este pelo comportamento inquieto e desobediente de Fábio. As visitas domiciliares tiveram um efeito positivo, pois contribuíram para aproximação entre mãe e escola. O afastamento da família em relação à escola foi sempre apontado pelos educadores como um dos focos da problemática que envolvia a situação com ele. Ainda que tal aproximação ocorresse mediante nosso contato, ela repercutiu na concepção dos funcionários da escola, que pelo simples fato de verem a mãe toda semana, sentiram com isso um interesse da família em relação ao processo educativo da criança. No segundo semestre, após as férias, encontramos Fábio junto com sua mãe e seu avô materno na frente da escola no horário que cumprimos o estágio. O garoto estava com o olho esquerdo roxo, como se tivesse levado um soco. Além do hematoma no olho, Fábio não estava com características de uma criança bem cuidada. Apresentava-se com o cabelo ensebado, unhas cumpridas e sujas. Imediatamente nossa intervenção foi tentar levar o garoto para o posto de saúde mais próximo da escola, no entanto, no contato com a mãe, não foi possível, uma vez que esta insistia que o filho estava bem e não precisava de médico algum. Inicialmente a mãe resiste em contar o que de fato havia ocorrido, contudo, depois de firmemente pontuarmos nossas impressões, ela acaba assumindo a violência cometida pelo marido, bem como seu medo em relação às conseqüências de uma possível denúncia. Algo que nos chamou à atenção é que, se por um lado a mãe se recusava terminantemente, a procurar por um atendimento médico, ou seja, parecia não querer explicitar a situação de violência a qual ela e o filho estavam submetidos. Por outro lado, a presença desta mãe, exatamente no local e horário em que realizamos a estágio, nos mostra o quanto à questão do vínculo foi estabelecido e também pode ser interpretado como um pedido de ajuda diante do ocorrido. Perante este fato, em discussão com o grupo de supervisão e também com a direção da escola, decidimos encaminhar o caso ao Conselho Tutelar, visto que, levando em consideração as leis de proteção à criança descritas no ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) Fábio teve muitos de seus direitos violados. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(15) Daniela Altoé, Salete Moreno Marques, Raquel Pondian Tizzei. 97. Antes mesmo de eclodir tal episódio de violência, preocupávamos que a despeito do temor constante de Fábio em relação à sua saúde, este não freqüentava um atendimento médico há anos. Isto foi averiguado através de visitas que realizamos ao Posto de Saúde do município. Em conversa com a enfermeira chefe, o prontuário de Fábio foi levantado e de fato confirmamos que há tempos não era realizado nenhum tipo de atendimento médico. Diante de tal revelação, sem contar os detalhes do caso, mas enfatizando a necessidade que identificamos de um acompanhamento médico, solicitamos que este fosse feito. Contudo, não obtivemos apoio no que tange aos serviços de saúde disponibilizados pelo município. Tentamos também com o PSF – Programa de Saúde da Família, o qual realiza um acompanhamento domiciliar, entretanto fomos informadas que este também não seria possível em virtude da localização geográfica da residência de Fábio. No que tange o encaminhamento ao Conselho Tutelar, as providências tomadas por este órgão consistiram em: uma entrevista com os pais, no encaminhamento de Fábio para o Psiquiatra e para o Psicólogo Clínico. No entanto tais providências deram margem para alguns questionamentos, pois estas se voltaram para intervenções somente com a criança, até o momento, não se soube de nenhum trabalho que abrangesse todo o contexto familiar, bem como nenhuma investigação mais apurada sobre as denúncias encaminhadas. Vale ressaltar que o fato de buscarmos a rede de apoio, em nenhum momento nos fez considerar a possibilidade da diminuição de nossa implicação e/ou responsabilidade diante da experiência relatada. Até porque, a prática cotidiana na escola sempre nos coloca diante de grandes desafios, dos quais para enfrentar, não contamos com manuais de orientação que sirvam de bússola para nossa atuação. Não há receitas prontas. O que vale em tais situações é a ética e o respeito para com as pessoas que necessitam do nosso profissionalismo.. 4.. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo foi fruto de nossa inquietação no contexto escolar, quando nos deparávamos com questões de natureza tão específicas que nos pareciam distantes da realidade da escola. Contudo vimos que por mais que houvesse conflitos familiares, também existem no contexto escolar produções que podem contribuir tanto para o equilíbrio emocional e o desenvolvimento integral da criança, como também outras que podem contribuir para o seu isolamento e exclusão.. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(16) 98. A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas. O caso Fábio nos possibilita refletir como o psicólogo escolar pode atuar a partir do conhecimento de uma realidade singular, sem perder de vista a proposta de um projeto no coletivo, pois conforme vimos o papel do psicólogo enquanto atuante na instituição de ensino, visa um trabalho complexo, incluindo à escola e suas hierarquias como um todo. O marcante dessa experiência de estágio não é o psicólogo trabalhar sozinho, mas sim poder contar com uma equipe multidisciplinar de apoio, a qual pode ser composta por Profissionais da Educação, Conselheiros Tutelares e Agentes de Saúde. No relato apresentado, pudemos vivenciar o quanto tudo isso por mais que necessário, ainda permanece numa esfera quase utópica, isto é, ainda que existam serviços de redes de apoio, bem como programas sociais, o funcionamento destes na prática tende à inoperância. Partindo dessa constatação, torna-se compreensível a desistência de muitos profissionais em relação às demandas levantadas durante suas atuações. Compreensível, mas não justificável, visto que não podemos nos deixar capturar pelo comodismo ou pela desesperança. Retomando a noção do psicólogo como agente de mudanças, torna-se necessário a criação de estratégias que mobilizem todas as dimensões implicadas no desenvolvimento da criança. Enquanto atuantes, sentimo-nos instigadas a refletir sobre os limites e possibilidades de trabalho. Durante a graduação muito se discutiu sobre o papel do psicólogo escolar e do quanto este é diferenciado de outros contextos, como clínico, por exemplo, no qual predomina um atendimento mais individualizado. No entanto é somente na prática que podemos desenvolver uma concepção mais crítica sobre as teorias estudadas e repensar o papel do psicólogo nesse contexto. Embora a presente experiência de estágio tenha se mostrado de grande valia para o nosso futuro exercício profissional, também encontramos dificuldades em nossa atuação oriundas do próprio processo de formação, o qual se mostrou demasiadamente teórico e empobrecido de conteúdos significativos no que concerne às práticas efetivas no âmbito escolar. A distância entre teoria e prática, acabou por suscitar contradições, descrença e angústia quando colocávamos em análise diversas situações vivenciadas na escola. Por tal motivo, é mister pensar que o processo de formação ocorre desde os primeiros anos de graduação através de matérias como: Psicologia Escolar, Psicologia do Desenvolvimento, Técnicas de Avaliação Psicológica, entre tantas outras, as quais ao invés das “contraindicações” sobre o que “não fazer” deveriam comportar em seus constructos teóricos,. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(17) Daniela Altoé, Salete Moreno Marques, Raquel Pondian Tizzei. 99. possibilidades de atuação e diretrizes mais consistentes para uma prática comprometida com a realidade de nosso país e com o respeito às singularidades. Destacamos, nesse artigo, apenas um recorte dentre uma ampla experiência de estágio curricular, o que nos suscita a seguinte questão: Quantas outras crianças passam por experiências similares a de Fábio? Provavelmente encontraremos inúmeros outros casos. Os quais permanecem ainda negligenciados, ou mesmo camuflados através de projetos que ao proporem um trabalho coletivo, resistem a uma escuta que considere certas especificidades e sofrimentos. Como conclusão final do presente artigo, respaldamos na teoria bioecológica do desenvolvimento humano de Urie Bronfenbrenner, a necessidade da implementação de políticas públicas voltadas para o fortalecimento do trabalho em redes, visto que, estas podem ser entendidas como níveis ambientais, especialmente o mesossistema e o exossistema, os quais a partir da adequada articulação poderia contribuir não apenas para a melhoria da qualidade de vida da criança, mas também de sua família, a qual por sua vez constitui o microssistema, ou seja, o ambiente mais próximo e de maior influencia na vida da criança (KOLLER; NARVAZ, 2004).. REFERÊNCIAS ANDALÓ, C.S.A. O papel do psicólogo escolar. Rev. Psicologia, Ciência e Profissão, v.1, p.43-46, 1984. CECCONELLO, A.M.; KOLLER, S.H. Inserção ecológica na comunidade: Uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco [Ecological engagement in the community: A methodological approach for studying families in risk situations]. Psicologia: Reflexão e Crítica, v.16, p.515-524, 2003. BRONFENBRENNER, U. A Ecologia do Desenvolvimento Humano: Experimentos naturais e planejados. (Trad. Maria Adriana Veríssimo Veronese). Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. CURY, J. A Educação Escolar, a exclusão e seus destinatários. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 48, p. 205-222, dez. 2008. DESSEN, M.S; COSTA JR., A.L.C. e cols. A ciência do desenvolvimento humano: tendências atuais e perspectivas futuras. Porto Alegre: Artmed, 2005. DESSEN, M.A.; POLÔNIA, A.C. A Família e a Escola como contextos de desenvolvimento humano. Paidéia, v.17, p.21-32, 2007. GUZZO, R.S.L. Formando psicólogos escolares no Brasil, dificuldades e perspectivas. In: WECHESSLER, S.M. (Org.). Psicologia Escolar: Pesquisa, formação e prática. Campinas: Alínea, 1996, 75-92. GUZZO, R.S.L. (Org.). Psicologia Escolar: LDB e Educação Hoje. Campinas, SP: Átomo e Alínea. 1999. GUZZO, R.S.L; COSTA, A.S.; SANT´ANNA, I.M. Formando Psicólogos Escolares: problemas, vulnerabilidades, desafios e horizontes. In: MARINHO-ARAÚJO, C.M. (Org.). Psicologia Escolar: novos cenários e contextos de pesquisa, prática e formação. Campinas, SP: Alínea Editora, 2009. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

(18) 100. A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas. KOLLER, S.; NARVAZ, M.G. O Modelo bioecológico do desenvolvimento humano. In: KOLLER S. H. (Org.). Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil. Casa do Psicólogo, São Paulo/SP, 2004, 437p. LDB - Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. D.O. U. de 23 de dezembro de 1996. LORDELO, E.R.; CARVALHO, A.M.A.; KOLLER, A.H. Infância Brasileira e Contextos de Desenvolvimento. São Paulo/SP: Casa do Psicólogo e EDUFBA, 2004. MACHADO, A.M.; SOUZA, M.P.R. As crianças excluídas da escola: um alerta para a Psicologia. In: ______. (Orgs.). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo/SP: Casa do Psicólogo, 1997, p.35-50. MACHADO, A.M. (2002). Avaliação psicológica na educação: Mudanças Necessárias. In: ROCHA, M.; TANAMACHI, E.; PROENÇA, M. (Orgs.). Psicologia Escolar: Desafios teórico-práticos, (p.143168). São Paulo: Casa do Psicólogo. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 48, p. 205-222, dez. 2008. PATTO, M.H.S. Psicologia e Ideologia: Uma introdução crítica à Psicologia Escolar. São Paulo: T.A. Queiroz, 1984. ______. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T.A., Queiroz, 1990, 385p. PATTO, M.H.S. (Org). Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: T.A. Queiroz, 1981. PICHÓN-RIVIÈRE, E. Técnica dos grupos operativos. In: PICHÓN-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.119-134. POLETTO, M.; KOLLER, S.H. Contextos ecológicos: promotores de resiliência, fatores de risco e de proteção = Ecological contexts: furthering resilience, risk and protection factors. Estudos de Psicologia, Campinas, v.25, n.3, p.405-416, jul./set. 2008. REGGER, R. Psicólogo escolar: educador ou clínico. In: PATTO, M. H. S. (Org.). Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: T.A. Queiroz, 1981, p.142-148. SOUZA, M.R.S. Atuação do Psicólogo na Rede Pública de Educação Frente à demanda escolar: Concepções, Práticas e Inovações. 2009. Disponível em: <http://www.abrapee.psc.br>. Acesso em: 20 abr. 2011. ISSN 1981-2566. TANAMASHII, E.R.; SOUZA, M.P.R.; ROCHA, M.L. (Org.). Psicologia e Educação: desafios teórico práticos. São Paulo/SP: Casa do Psicólogo, 2000. Daniela Altoé Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Hermínio Ometto (2006). Desenvolve atividades como Psicóloga da Associação de Amigos da Criança de Araras - AMCRA - instituição que atende pessoas com demanda ao HIV/AIDS. Salete Moreno Marques Graduação em Psicologia pelo Universitário Herminio Ometto (2006).. Centro. Raquel Pondian Tizzei Graduação em Psicologia (2002) e mestrado em Psicologia Escolar pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2004) e é doutoranda (bolsista CAPES) do mesmo programa no grupo de pesquisa.. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100.

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