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Enfrentamento e rupturas: o percurso da mulher em suas vicissitudes com a maternidade

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Academic year: 2021

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(1)Encontro. ENFRENTAMENTO E RUPTURAS. Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012. O percurso da mulher em suas vicissitudes com a maternidade. Revista de Psicologia. Sara Andreia Turcatto Elias Faculdade Anhanguera de Sertãozinho sara.turcatto@aedu.com. RESUMO Notadamente em nosso país, são escassos os trabalhos sobre as mães que não conseguem exercer o papel da maternagem, tendo como consequência comum a entrega de seu filho para instituições de acolhimento. Desta forma, faz-se objetivo deste artigo conhecer a situação da mulher, cujos filhos passaram a maior parte do tempo sob os cuidados de outras pessoas ou em situações de acolhimento institucional provisório, levando-se em conta sua história de vida e seu contexto de vida. O artigo tem início com a compreensão dos aspectos históricos sobre o papel da mulher na sociedade seguindo a consulta da literatura especializada sobre o tema proposto e termina com considerações sobre o processo de luto como norteador do processo de rupturas afetivas. Contrariando o que muitos profissionais da área dizem, essas mulheres não esquecem logo a criança e tudo o que lhes aconteceu. O remorso e a tristeza permanecem presentes. Parece vir acompanhada de um luto sem fim. Muitas desenvolvem problemas de relacionamento com o futuro parceiro ou com os demais filhos. Palavras-Chave: maternidade; abandono; mulher.. ABSTRACT Notably in our country, there are few studies on mothers who can not play the role of motherhood, and as a consequence common to deliver his son to the host institutions. Thus, it is purpose of this article know the situation of women whose children have spent most of the time under the care of other people or situations of temporary residential care, taking into account their life history and its context life. The article begins with an understanding of the historical aspects of the role of women in society following the consultation of the literature on the proposed topic and ends with considerations about the grieving process as a guide to process emotional disruptions. Contrary to what many professionals say, these women will not soon forget the child and everything that happened to them. The remorse and sadness remain present. It seems to be accompanied by an endless grief. Many relationship problems develop with the future partner or with other children. Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 4266 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@aesapar.com. Keywords: motherhood; abandonment; women.. Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 29/07/2012 Avaliado em: 30/09/2012 Publicação: 5 de novembro de 2012. 93.

(2) 94. Enfrentamento e rupturas: o percurso da mulher em suas vicissitudes com a maternidade. 1.. INTRODUÇÃO “A adoção afetiva é a verdadeira relação parental” (SCHETINI, 1999). O motivo que justifica a realização deste artigo, diz respeito à nossa trajetória acadêmica ao longo da graduação em Psicologia, na qual, desde meados de 1996, iniciamos pesquisa exploratória sobre o perfil de crianças “adotáveis” e o perfil de adotantes nos cadastros do Fórum da cidade de Assis (SP) e atualmente a experiência na prática cotidiana junto às crianças em situação de acolhimento institucional, desde o ano de 2002. Após esta sondagem inicial, participamos de uma pesquisa intitulada: “Segredos da Adoção: estudo exploratório do processo de revelação em famílias com filhos adotivos”1, e ali visualizamos dificuldades surgidas com a adoção de crianças; todo o drama familiar calcado na desestabilização e remodelação do lugar dos personagens familiais e da própria família, drama que ultrapassa o âmbito pessoal ou os casos de famílias adotivas e expressa, no fundo, as transformações das relações familiais, das relações afetivas, das instituições sociais que estão se reconfigurando na sociedade contemporânea. Portanto, o tema abandono e adoção fazem parte de nosso percurso no entendimento multifacetado das relações humanas. Atuando em instituição de acolhimento para crianças e adolescentes, órfãos e/ou vítimas de risco psicossocial, pudemos perceber a complexidade do tema, pois nos deparamos não apenas com as famílias adotantes, mas com o outro lado: as famílias que não conseguem manter seus filhos no seio familiar ou que não o desejam. O contato frequente com os profissionais que desenvolvem trabalhos nesta área, ainda nos revela que há falta de informação sobre a vida pregressa da criança, ou seja, existe uma carência de estudos sistematizados sobre os motivos desencadeadores dos acolhimentos, de modo que compreendêssemos com profundidade as causas, percursos e negociações que geram a perda do poder familiar. O trabalho em instituição de acolhimento é disparador de muitas sensações, dentre elas o medo, a ansiedade, a dúvida, o sofrimento, a alegria e o prazer. Sempre estaremos nos encontrando com pessoas que se julgam apaixonadas pelo tema e outras que evitam os encontros com o abandono. No entanto, andar por essas sensações é tentar promover encontros possíveis e sem dúvida uma aprendizagem que carregaremos para a vida. Segundo Giberti (1997) “Com relação às mulheres que entregam seus filhos e suas famílias, conhecemos pouco porque lhe escutamos pouco e lhes perguntamos mal.” A autora refere que as indagações acerca da vida destas mulheres nascem de um. Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(3) Sara Andreia Turcatto Elias. 95. julgamento negativo feito a priori, advindas de nossos estereótipos classificatórios, que ao invés de nos levar a novos sentidos de construção de uma configuração familiar, nos protegem de informações nem sempre fáceis de serem entendidas, compreendidas e aceitas. Ao conhecer o contexto social, bem como as histórias de vidas das mães biológicas de crianças acolhidas, interessou-se compreender se o abandono de seus filhos por repetidas vezes estava sendo utilizado a serviço das vivências pessoais passadas, de lutos não elaborados. Motta (2001) revela a escassez de trabalhos referidos à mãe biológica que deixa o filho em adoção, pois esta “personagem” não tem sido objeto de estudo em nosso meio, como se não tivesse importância, contrariando mais tarde a possível busca de origens pelas crianças adotadas e pelo desenvolvimento comum das fantasias comuns no que diz respeito aos motivos do suposto “abandono”, tais como: eu deveria ter sido muito ruim mesmo, pois nem minha mãe quis ficar comigo. Raramente sabemos quem são essas mulheres, seu nível sócio-econômico, os motivos para deixarem seu filho, sua idade, se entregou outras crianças, seus familiares, sua história de vida (possíveis abandonos vivenciados), tentativas ou não de permanecer com a criança, entre outras. Nem sempre os profissionais que encontram com esta mulher estão preparados o suficientemente para acolhê-la, orientá-la e resgatar informações importante para o futuro desta criança, pois esta não “nasce” quando é inserida na instituição, há uma história pregressa, repleta de intenções e dados que ajudarão na formação do psiquismo da criança e da dinâmica com futuros pais adotivos e com sua história pessoal. Para Motta (2001) ainda é comum ouvir dos profissionais da área: “é muito mais fácil quando a mãe chega e diz que não quer a criança, daí a gente prepara os documentos e fim”. Muitos profissionais da área agem precipitadamente, justificando sua atitude nos interesses da criança, apressando o processo de entrega em adoção, não oferecendo caminhos para que ela possa manter a criança junto de si, ou ainda que tenha possibilidade de repensar sua decisão ou de vivenciar seu luto. Se por um lado, a literatura especializada aponta que quanto mais cedo a criança encontrar uma família para cuidar de suas múltiplas necessidades, a mãe biológica necessitará de um tempo maior para digerir sua decisão. Muitos opinam que não devemos nos preocupar com a mãe, pois esta é “adulta” e “sabe se cuidar”, “dispõe de livre-arbítrio em suas decisões”. No entanto, nos. Pesquisa de Iniciação Científica financiada pela Fapesp, sob a orientação do Dr. Mario Sergio Vasconcelos, durante a graduação em Psicologia na Unesp de Assis, no ano de 1998.. 1. Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(4) 96. Enfrentamento e rupturas: o percurso da mulher em suas vicissitudes com a maternidade. perguntamos: o quanto sabem se cuidar? E quanto ao seu livre-arbítrio, no momento de decisão de entregar a criança, muitas o fazem logo depois do parto, em pleno estado puerperal (MOTTA, 2001). Essa autora ainda ressalta que, no entanto, o fato da mãe permanecer com a criança sem ter ciência dos motivos e das consequências de sua decisão pode ser igualmente desastroso. Se a mulher assume a criança sem realmente desejá-lo, poderá vir a engrossar as estatísticas das mães que maltratam seus filhos, que os ignoram, chegando às situações graves de abandono.. 2.. EM BUSCA DE UM MARCO HISTÓRICO “Não é exagero afirmar que a história de abandono de crianças é a história secreta da dor feminina...” (PINTO, 1997, apud MELLO, 2002). Onde se iniciou a história do abandono infantil? A resposta dos historiadores é de que as pessoas casadas em todas as épocas geralmente esperavam ter filhos, mas não muitos. A igreja, embora não ocultasse sua preferência pela castidade, valorizava o casamento e as crianças nascidas dele. Os puritanos da Inglaterra e da Nova Inglaterra dos séculos XVI E XVII levaram tudo isso ao pé da letra, considerando-as como uma prioridade na promoção do amor matrimonial (HEYWOOD, 2004). Entretanto, nem todos os nascimentos eram bem vindos no âmbito do casamento. Famílias mais pobres sempre lutavam para alimentar bocas extras que surgiam, e as mães costumavam se sentirem desgastadas por dar à luz repetidas vezes. As sociedades também tinham formas de alterar os níveis de fertilidade conjugal. Mesmo cerca de 15 anos durante os quais as mulheres casadas na Europa Ocidental tinham condições de ter filhos, havia limitações à fertilidade no continente, nas épocas medieval e moderna. O direito canônico exigia que os casais evitassem o ato sexual em vários momentos, incluindo domingos, quartas e sextas e durante a quaresma, embora a maioria do campesinato devesse estar ciente desses tabus, ou os ignorasse. Um período prolongado de lactação tendia a criar um espaço maior entre cada gravidez (HEYWOOD, 2004). O período moderno trouxe outras iniciativas para prevenir nascimentos, ao invés de apenas adiá-los. Contudo, apenas no final do século XIX na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, e o início do século XX na Europa Oriental, é que ocorreu a diminuição da fertilidade. Suas razões não são claras, mas uma de suas possibilidades é a de que os pais da classe média houvessem concluído que tinham mais chances de corresponder às expectativas elevadas na criação e educação dos filhos com uma família menor. Quando Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(5) Sara Andreia Turcatto Elias. 97. os pais começaram a considerar os filhos importantes, passaram a tê-los em menor quantidade (HEYWOOD, 2004). O parto era um momento penoso para as mulheres, como se tal provação lhes provocasse um “temor ancestral”. No século XVI, quando as parteiras falhavam, cirurgiões, curandeiros e barbeiros tinham de “desmembrar a criança e tirá-la para fora aos pedaços, e as vezes, abrir a pobre mãe inocente viva, inserir ferramentas de ferro em seu corpo, até mesmo assassiná-la, para obter seu fruto” (HEYWOOD, 2004). No entanto, houve muita indiferença com relação à infância nos períodos medieval e moderno. Os bebês abaixo de 2 anos, sofriam de descaso, pois os pais não consideravam aconselhável investir esforço e tempo, para alguém com tantas probabilidades de morrer com pouca idade. As taxas de mortalidade infantil eram altas até o final do século XIX e início do século XX. Os descasos se caracterizavam por deixar os bebês em seus excrementos durante horas, deixá-los aos cuidados de amas-de-leite “mercenárias”, além do abandono propriamente dito. Em muitas partes da Europa, especialmente nos séculos XVIII e XIX, as famílias abastadas recorriam frequentemente à amas-de-leite. Tal prática contrariava o que se propagava desde o século XIII, acreditando-se que o leite materno era uma forma de sangue, em que a mãe transmitia naturalmente suas qualidades para o filho por esse meio. Alguns historiadores da época partiam das escrituras para justificar que era vontade de Deus que as mulheres amamentassem seus pequenos, outros se voltavam à natureza, observando que as bestas e os pássaros eram alimentados por suas mães (HEYWOOD, 2004). Os contemporâneos acusavam as mães de se recusar a amamentar porque estavam preocupadas com sua beleza, de dormir toda noite e de manterem relações sexuais, já que até então se acreditava que o ato sexual estragava o leite. Já as amas-de-leite enganavam os pais em seus relatórios sobre as condições do bebê, ofereciam o leite para seus próprios filhos antes e suplementavam seu estoque sobrecarregado com leite animal ou com papas feita de farinha ou migalhas de pão misturadas à água. (HEYWOOD, 2004, p.89). A década de 1860 trouxe consigo uma onda de infanticídio na Inglaterra. O direito no Ocidente foi lento para reconhecer o ato de matar um bebê recém-nascido como crime, e, com certeza, para igualá-lo ao homicídio de um adulto. No caso de filho ilegítimo, deformado ou com cujo sustento a família não fosse capaz de arcar, o pai tinha o direito de ordenar que fosse morto ou exposto.. Por fim, a começar no século XVI, o. infanticídio passou a ser visto como uma questão de mães solteiras se livrando de filhos ilegítimos.. Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(6) 98. Enfrentamento e rupturas: o percurso da mulher em suas vicissitudes com a maternidade. 3.. DA EXCLUSÃO SOCIAL À EXCLUSÃO DA MATERNAGEM “Pensar o pensamento de um outro é uma maneira de render-lhe homenagem e reconhecer o seu valor...” (Aulagnier). Santos (1998) traça um novo prisma para nossas reflexões: Nem todas as mulheres que entregam seus filhos, o fazem por razões, exclusivamente, de natureza sócio-econômica, ou seja, porque são pobres ou excluídas. Nem todas as mulheres que entregam seus filhos em adoção o fazem sofrendo intensamente a dor da perda e da impossibilidade de materná-los2. Julgar essas mulheres como vítimas absolutas de um sistema perverso que as obriga a doar os filhos ou condená-las como irresponsáveis, desumanas, anormais, etc, é a partir de uma perspectiva de análise que, adotando um determinado padrão de comportamento considerando normal, discrimina e exclui o diferente ou julga-o com base em valores e escolhas que são próprias do universo sócio-cultural burguês dominante, não considerando a diversidade presente nesta realidade e a dimensão subjetiva como um dos determinantes possíveis nas decisões tomadas por essas mulheres. (Santos, 1998). Neste sentido, a autora nos chama a atenção ao fato de que essas mulheres ao se sentirem julgadas por seu ato e pressionadas pelo “mito do amor materno”, precisam apresentar justificativas socialmente aceitas. Diante disto, recorrem à inquestionável justificativa da falta de recursos, apoio familiar, e recebimento de prestações assistenciais. Ela verificou em sua prática profissional que, em vários casos, a tentativa para que essa mãe continuasse com seus filhos, mesmo que acolhendo-o institucionalmente provisoriamente, obteve recusa imediata de algumas delas, seguindo de abandono posterior da criança com terceiros ou novo acolhimento institucional. Santos (1998) salienta que é compreensível que essas mulheres procurem apresentar justificativas socialmente aceitas e enfatizem o sofrimento pelo gesto, pois a sociedade exige delas, no mínimo, tal procedimento. No entanto, vivemos em um país fortemente marcado pela desigualdade social, não possibilitando à população o uso de bens e serviços básicos. Entretanto, seguindo essas reflexões, essa realidade não é tão determinante a ponto de impossibilitar movimentos de enfrentamento. Relata que em sua prática, o fato de pertencer às classes excluídas da sociedade não tem impossibilitado mulheres que desejam maternar seus filhos, mesmo que necessitem acolhê-los provisoriamente, ou com terceiros, mas deixam, desde o início, o desejo explícito de reavê-los o mais breve possível (SANTOS, 1998; MOTTA, 2001). Ainda aponta outros tipos de mulheres que, além de enfrentar reais dificuldades materiais, também não desejam efetivamente manter seus filhos e não estão dispostas a buscar estratégias de enfrentamento. Preferem oferecê-los a outros, geralmente conhecido. 2 Maternagem: termo segundo Motta (2001) que se estabelece no universo relacional/interacional entre mãe e filho. Inscreve-se no âmbito socioafetivo da criação dos filhos, enquanto que a maternidade pertence à esfera biológica.. Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(7) Sara Andreia Turcatto Elias. 99. e aceito por elas. Alegam que poderão ver a criança quando desejarem e, assim, minimizam o sentimento de perda ou sentimento de fracasso em materna-los. Destaca a pluralidade deste universo e focaliza a subjetividade desta mulher na decisão de entregar seu filho. Questiona a existência, ou não, do desejo de maternar a criança gerada, a existência do amor incondicional, presente em algumas mulheres, mas não em outras. Diante de tais questionamentos, sobre o papel econômico na resultante entrega de crianças e do desejo em maternar, a autora leva-nos a refletir: O que pensar das mulheres que mesmo pertencentes às classes privilegiadas abandonaram seus filhos em diferentes contextos históricos, porque eram frutos de relacionamentos proibidos, passageiros etc? O que pensar das mulheres que nunca desejaram ter filhos e não os tem. Das mulheres das classes privilegiadas que os abortam em clínicas sofisticadas, longe do julgamento público? (SANTOS, 1998, p.03). Para Andrei (2000): a maneira como as pessoas designam quem é o pai ou a mãe, quais são as regras que possibilitam ou impedem um casamento, como as pessoas geram seus filhos, como os filhos são educados para se tornarem adultos é que, enfim, determina as visões de mundo e a especificidade da cultura analisada. (ANDREI, 2000). Então, essa construção simbólica e coletiva é refletida nas atitudes humanas. Desta forma, para a autora, que vê na antropologia a compreensão para o comportamento das pessoas, as formas de famílias, os processos aceitos de filiação e a construção do conceito de pessoa, na verdade, são tão variados e possíveis quanto o são as culturas humanas. “Não existe uma regra ‘natural’ que determine o que é ou não um filho – e, com certeza, não podemos considerar os nossos usos e costumes a este respeito como modelo universal, sob pena de incorrermos num erro crasso de etnocentrismo ou de anacronismo.” (ANDREI, 2000, p.02). Giberti et al. (1997) nos revelam que o destino de uma mulher que entrega seu filho para adoção é o de desaparecer, não apenas da vida da criança, mas também de sua história. Poucas são as informações contidas nos documentos pessoais das crianças institucionalizadas, sobre sua história anterior ao acolhimento, e, consequentemente, as crianças são levadas às instituições, quase sempre, vazias de acontecimentos e vivências que marcassem sua trajetória, fundamentais, a nosso ver, ao desenvolvimento sadio de sua personalidade. Até mesmo sobre seu desenvolvimento físico, as informações inexistem, ou seja, a saúde da criança é desconhecida e os caminhos para a busca de respostas nem sempre são encontrados. Contrariando o que muitos profissionais da área dizem, essas mulheres não esquecem logo a criança e tudo o que lhes aconteceu. O remorso e a tristeza permanecem. Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(8) 100. Enfrentamento e rupturas: o percurso da mulher em suas vicissitudes com a maternidade. presentes. “Parece vir acompanhada de um luto sem fim. Muitas desenvolvem problemas de relacionamento com o futuro parceiro ou com os demais filhos.” (MOTTA, 2001). As histórias das mulheres que entregam seus filhos em adoção revelam um espaço contraditório. Constituem uma denúncia de desamparo e, por outro lado, o produto dessa situação, a criança, atrai o amparo de uma instituição como a adoção. E para que a adoção possa existir, é preciso que essa mulher desamparada autorize a si mesma, perante a lei, a entrega da criança. Dessa forma, a lei poderá determinar a guarda e adoção. Mas, esse tramite, ao mesmo tempo, a exclui, novamente, como sujeito. (GIBERTI; GORE; TABORDA, 1997) As indagações acerca dos acontecimentos que levaram a entrega da criança em adoção suscita esforço na compreensão dos fatos e deveriam gerar pensamentos críticos sobre as situações que envolvem as atitudes destas mulheres, no entanto, ao tentarmos minimizar as razões dos acolhimentos, bem como sobre a vida das mulheres que não conseguem realizar a maternagem, provoca em nós a perpetuação do silêncio. Se aceita a ideia de que a criança foi abandonada sem vasculhar os registros, como se o passado não fosse importante, não existisse.. 4.. A EXPERIÊNCIA DO LUTO: LUTO NORMAL OU LUTO NÃO COMPLICADO O interesse em compreender as várias “faces” da mulher que repetidas vezes não permaneceu com seu filho, nos leva a uma busca na compreensão de seus possíveis processos de luto, no sentido de definir as condições de enlutamento. Conceituando-o como um processo normal e esperado de elaboração de qualquer perda, importante para a saúde mental, propõe uma reconstrução de recursos e novas adaptações às mudanças. Somos lançados a dar sentido ao que nos aconteceu e precisamos retomar controle sobre nós mesmos e especialmente sobre as relações afetivas (CASELATTO, 2005). Para Casselatto (2005) o processo de luto implica duas mudanças psicológicas: o reconhecer e aceitar a realidade e experimentar e lidar com os sentimentos provenientes da perda. Vale lembrar que esse autor estudou a formação dos vínculos afetivos e ressaltava que um vínculo ansioso é causado por uma série de separações e provocador de dependência. No entanto, um vínculo seguro permite o desenvolvimento de autoconfiança e de auto-estima. Portanto, quando um vínculo é rompido, os recursos de que o indivíduo dispõe para elaborar o processo de separação devem ser buscados na qualidade de vínculo anteriormente existente. É difícil acreditar que algumas pessoas sobrevivem a algumas experiências de intenso sofrimento. Mas elas sobrevivem e, às vezes, alcançam. Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(9) Sara Andreia Turcatto Elias. 101. isto de forma saudável. Segundo Franco (2006), a razão para que isto aconteça é devido ao fato de que a natureza psíquica nos muniu de ciclos de criatividade e reparação que nos capacitam a exercer a possibilidade de mudança. Chamou este ciclo de Reparador (de enlutamento), ou seja, a reparação para o trauma. Não se trata de um processo para chorar e prantear, e sim, muito mais que isso. Os momentos básicos atravessados pela pessoa são: Evento traumático: o choque físico e emocional galvaniza o corpo e o psiquismo. É esperada uma reação imediata, como gritos ou chorar compulsivamente. Não é freqüente que a pessoa fique “anestesiada”, pois a exaustão física a lançará para as seguintes fases. Entorpecimento: ocorre a perda de sensações e sentimentos, muitas vezes trazendo consigo sentimento de profunda depressão. Descrença: a reação mais comum é negar o evento traumático. Quando falamos de abuso sexual como evento traumático, a vítima será a primeira a negar uma experiência que ponha a culpa em alguém que ela mantém vínculo afetivo, embora difuso e com pinceladas de sentimentos contraditórios. Busca: toma-se a forma da crença de que se pode reencontrar o objeto de amor pedido em algum lugar. No caso de pessoas mortas, a fantasia é de reencontrá-la andando na rua ou em algum lugar familiar. No caso de abuso sexual, pode ser a procura pela pessoa idealizada que, como é imaginada, protege e cuida. Nos pais que abandonam, o encontro com outros, desprovidos de sentimentos ruins ou negativos. Idealização: Dá-se quando o lado ‘bom’ da pessoa perdida é relembrada e idealizada. No caso de abuso sexual, o agressor é idealizado. Mesmo no caso de pais que abandonam, há um enorme pressão social para “amar pai e mãe”, bloqueando o processo de luto, deixando em seu lugar um sentimento de não ter sido bom, justificando o abandono. Chorar e se lamentar: esta é a fase mais fácil de ser compreendida, mas muitas vezes, impedida pelo adulto que não sabe o que fazer com os sentimentos do outro que sofre. Quando acontece com vítimas de abuso sexual, a vítima consegue sentir o que lhe ocorreu, a gravidade e pode enfim, externalizar sua tristeza. Raiva enfurecida: com frequência esse sentimento vem à tona quando conseguimos atravessar as outras. No entanto, novamente mal compreendida pelas pessoas que tentam, mais uma vez, reprimi-la. Percepção da Realidade: conseguimos aceitar a realidade, as perdas, os lados bons e ruins de cada personagem envolvido. Relembrando: Há um tempo para se lembrar de todos os tipos de experiências traumáticas. Síntese: as partes perdidas e que sofreram experiências dolorosas são internalizadas na pessoa. Continuando: o luto caminha para sua resolução, deixando marcas, mas possibilitando novos arranjos para se viver a vida.. Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(10) 102. Enfrentamento e rupturas: o percurso da mulher em suas vicissitudes com a maternidade. 4.1. Luto não-franqueado, luto não reconhecido No entanto, quando falamos de perda geralmente pensamos em situações em que a perda é concreta em decorrência da morte de um ente e cujo sofrimento é aceito e reconhecido na sociedade. Encontramos, na literatura especializada, alguns autores que se propõem a pesquisar outros tipos de perdas, ou melhor, o rompimento dos vínculos afetivos e suas expressões na sociedade quando não se trata apenas da perda por morte. Caselatto (2005) ressalta cinco aspectos que dificultam o processo de enlutar-se: 1) O relacionamento não é reconhecido. Exemplos: homossexuais, amantes, amigos, vizinhos, parentes distantes, colegas, filhos adotivos (pela perda dos pais biológicos), pais adotivos (pela perda dos filhos biológicos/infertilidade), pacientes e terapeutas, parceiros separados, animais de estimação. 2) A perda não é reconhecida. Exemplos: abortos, perdas perinatais, neonatais, abandono, rompimento de vínculos amorosos, adoecimento, incapacitações físicas, situações de institucinalizações, perda de status ou aposentadoria, mudança para outro país, mutilações. 3) O enlutado não é reconhecido. Exemplos: doentes mentais, casos de infertilidade, mães biológicas que deixam seus filhos em adoção, médicos, assistentes sociais, enfermeiros, psicólogos, ou aqueles que tomam a atitude de se separar da (o) parceira (o) de um relacionamento amoroso. 4) A morte não é reconhecida. Exemplo: suicídio, homicídio, morte por Aids ou outra doença com importante estigma social 5) Modo de enlutar-se e o estilo de expressão de pesar não são validados socialmente. Exemplo: espera-se que uma mãe enlutada expresse seu lt de forma intensa e prolongada. Quando uma mãe expressa seu luto de forma contida, há um desconforto da rede de suporte, julgando-a “fria”. A autora explica que há regras sociais que determinam quais as perdas são passíveis de luto, como devemos nos enlutar, quem tem legitimidade para enlutar-se pelas perdas e quais as reações adequadas e passíveis de apoio e aceitação. É certo, que as regras sociais do luto também são validadas pela cultura que também influencia a interpretação subjetiva do significado cultural dado aos eventos vividos. A realidade é uma coisa diferente e muito mais rica do que aquilo que está codificado na lógica e na linguagem os fatos [...] O pensamento corresponde à realidade somente na medida em que transforma ao captar e decifrar sua estrutura contraditória [...] Compreender a realidade significa, portanto, compreender o que a coisas verdadeiramente são, e implica, por sua vez, na recusa de sua simples facticidade. (MARCUSE apud BRANDÃO, 1999, p.26). Motta (2001) pensando nas mulheres que deixam seus filhos em adoção, refere-se ao luto não franqueado, como sendo o luto vivenciado por esta mãe, mas que não pode ritualizar essa vivencia de perda, adequadamente como fazemos em momentos de conflitos. No entanto, essa mulher, num esforço intrapsíquico para não reconhecer abertamente seu sofrimento, nega para si mesma seus próprios enlutamentos, em um julgamento sobre si de que não é digna de tais sentimentos já que a decisão foi de entregar Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(11) Sara Andreia Turcatto Elias. 103. seu filho. A falta de elaboração adequada da entrega de um filho talvez explique os casos nos qual o ciclo abandono-adoção tende a se repetir. Não raro, após a entrega de um filho decorrem sucessivas gravidezes que parecem, grosso modo, objetivar preencher o vazio de um luto não elaborado, talvez até aplacar a culpa decorrente de tal fato. Tudo o que essas mulheres conseguem é aprofundar cada vez mais o fosso, contribuindo para o abandono sucessivo de crianças. Motta (2001) trata-se de vivenciar uma perda em completo isolamento.. 4.2. Os perigos do luto não-reconhecido O fato do luto não-reconhecido torna-se um fator de risco para o estabelecimento do luto complicado, não só por não ser validado socialmente, mas porque na pode ser revelado o manifestado. Traz como consequências (CASELATTO, 1998, p.2005) estigma social, segredo, falta de rituais de luto, pesar não é expressado no momento da perda, problemas legais e econômicos e problemas emocionais. No luto complicado os sintomas podem ser psicológicos, comportamentais, sociais e físicos e se expressa por luto inibido, luto adiado, luto inexistente, luto distorcido, luto ambivalente, luto não-antecipado, luto crônico. A falta de expressão dos sentimentos pode levar a um adiamento do processo de luto, o que, em primeira instância, implica uma dificuldade de aceitar a realidade, na buscando por outras e novas figuras de apego. O enlutado quer evitar a dor e o sofrimento do luto que a perda e o seu reconhecimento implicam. Pode inclusive inibir seu processo de luto por receber mensagens que o luto é desnecessário (ex: mãe que abandona o filho). Segundo (CASELATTO, 1998) a Teoria do Apego desenvolvida por John Bowlby (década de 50), o comportamento de vínculo tem valor para a sobrevivência das espécies e que o luto, visto como um aspecto negativo do vínculo, é uma resposta à separação e ao rompimento deste vínculo.. 5.. CONSIDERAÇÕES FINAIS Há uma tendência de acreditarmos que a infância focou para trás, e que está guardada em nossas lembranças. De certa forma, isso acontece, no entanto, as vivências infantis são ativadas em vários momentos da nossa vida adulta, sem nos darmos conta disso. Há ainda um outro lado desta infância que nem sempre é fácil de ser relembrada, referindo-se aos medos, tristezas e de outros sentimentos que são muitas vezes insuportáveis para o adulto. Não raro, o adulto se afasta de tais sentimentos, sentindo que precisa de sua distância para sobreviver.. Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

(12) 104. Enfrentamento e rupturas: o percurso da mulher em suas vicissitudes com a maternidade. A “voz interna”, se não for ouvida pelo self do adulto, “fala”pelas linguagens do inconsciente, por meio de sensações ou sintomas físicos, sonhos e comportamentos repetitivos nos relacionamentos, este último, muitas vezes perturbador para nossa vida. Assim, no contato com o tema proposto, compreendemos que a rede de relações sociais que constitui a sociedade, imprimem um dinamismo permanente, explorando as brechas e contradições que abrem caminho para as rupturas e mudanças, e tais experiências e situações vividas engendram novas condutas nas relações familiais.. REFERÊNCIAS ANDREI, Helena. Adoção: mitos e preconceitos. In: Uma família para uma criança: reintegração, guarda e adoção. Boletim Associação Brasileira Terra dos Homens. Ano III, n.26, ago.2000. CASELLATO, Gabriela (Org.). Dor silenciosa ou dor silenciada? Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e sociedade. Editora Livro Pleno, 2005. FRANCO, Maria Helena Pereira. A criança perdida dentro de nós. Disponível em: <http://www.4estacoes.com.br>. Acesso em: 20 jan. 2006. GIBERTI, E.; GORE, S.C.; TABORDA, B. Madres excluídas. Grupo Editoral Norma. Buenos Aires/Argentina, 1997. In: FREIRE, Fernando (Org.). Abandono e adoção: contribuições para uma cultura da adoção. Curitiba: Terra dos Homens / Vicentina, 2001. HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da idade média à época contemporânea no ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004. MELLO, I.S.P.B. Um estudo acerca da mulher que doa um filho. 2002. Dissertação (Mestrado) Universidade Católica de Pernambuco. Recife (PE). MOTTA, Maria A.P. Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção. São Paulo: Cortez, 2001. SANTOS, L. Mulheres que entregam seus filhos para adoção: os vários lados dessa história. Boletim “Uma família para uma criança”, n.9, out. 1998. Sara Andreia Turcatto Elias Graduada em Psicologia pela UNESP da cidade de Assis (SP). Mestrado na mesma instituição em Psicologia Social. Atua na cidade de Sertãozinho como psicóloga clínica, como psicóloga escolar no Colégio Educar Dom Bosco, como psicóloga institucional na casa-abrigo Nosso Lar e é docente na Faculdade Anhanguera de Sertãozinho.. Encontro: Revista de Psicologia š Vol. 15, Nº. 23, Ano 2012 š p. 93-104.

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