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Utopia III, de Pina Martins: a actualização da Utopia de Thomas More

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Academic year: 2021

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Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Departamento de Letras

Mestrado em Cultura Portuguesa

Vtopia III, de Pina Martins: a actualização da Utopia

de Thomas More

(2)

Dissertação de Mestrado em Cultura Portuguesa apresentada à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro por Ana Isabel Rodrigues Freire sob a orientação do professor José Eduardo Reis, para a obtenção do grau de Mestre em Cultura Portuguesa de acordo com o disposto no art. 7º do Decreto-Lei nº216 / 92 de 13 de Outubro da Lei Portuguesa.

(3)

Agradecimentos

O meu reconhecimento vai, antes de mais, para o meu professor e orientador na realização da presente tese José Eduardo Reis, pela sua ajuda na definição e circunscrição do tema a tratar no âmbito do Mestrado em Cultura Portuguesa, que sempre havia correspondido a uma orientação pessoal no sentido de aliar a cultura portuguesa à inglesa. Agradeço-lhe ainda todo o apoio prestado na escolha da melhor bibliografia a seguir e a partilha de um saber que permitiu enriquecer o produto final deste trabalho. A minha gratidão vai também para a sua exigência intelectual na forma como deslindou as minhas ideias e as consolidou, pelo seu sentido de rigor e preciosismo linguísticos e, em particular, pela sua generosidade manifestada sempre que a sua função de orientador lhe era solicitada.

Gostaria igualmente de agradecer ao meu primeiro professor, o meu pai Aldino Freire pela sua exigência e criatividade exercidas na escola de Bornes, um meio rural do nordeste transmontano pleno de bucolismo e simplicidade.

Agradar-me-ia também prestar aqui o meu tributo à professora Lia Montanha, docente de Português na Escola Secundária Miguel Torga em Bragança, pela sua capacidade de síntese, criatividade e entusiasmo pelos maiores escritores lusos, pois desde cedo intensificou o meu gosto pela língua portuguesa de uma forma que se viria a revelar decisiva na minha orientação profissional.

Aos meus professores universitários do extinto curso de Português e Inglês da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro devo também a forma como me permitiram alargar os meus conhecimentos e dotaram de ferramentas imprescindíveis para o exercício da profissão docente.

Por fim, mas não por último, gostaria de deixar o meu sincero reconhecimento à minha família mais próxima, os meus pais e irmã, pelo sempre presente incentivo quanto ao sucesso deste trabalho académico e uma palavra de agradecimento especial à minha mãe Belarmina Freire pelo seu altruísmo e auxílio em diferentes tarefas do processo de investigação e pela forma expedita como me permitiu aproximar realidades geográficas tão distantes como são Portugal e Cabo Verde. Ainda ao amigo Fernando Pereira, agradeço toda a disponibilidade e interesse.

(4)

Oscar Wilde, A Alma do homem sob o socialismo, p.35

Um mundo que não inclua a Utopia não merece nem ser

olhado, pois deixa de fora o país no qual a Humanidade está

sempre a desembarcar. E ao desembarcar ali e ver um país

melhor, a Humanidade voltará a aproar nela. O progresso é a

realização das utopias.

(5)

i

ÍNDICE

RESUMO………..……ii

ABSTRACT……….………iii

INTRODUÇÃO

... 1

CAP 1 – CONTEXTUALIZAÇÃO DE VTOPIA III NO GÉNERO LITERÁRIO UTÓPICO / UTOPISMO

... 4

1.1 Para uma definição de “utopia” ... 4

1.2 A filiação assumida de Vtopia III face à Utopia de Thomas More ... 10

1.3 O estatuto empírico e narrativo de P. Martins e Miguel Hytlodeu ... 13

1.4 Estratégias ambíguas de actualização do discurso: realidade / ficção ... 20

1.4.1 Triadismo em Vtopia III ... 28

CAP 2 – CRÍTICA DA SOCIEDADE HISTÓRICA

... 32

2.1 A motivação pedagógico-crítica da Utopia de Thomas More ... 32

2.2 O contexto histórico que motiva o surgimento de Vtopia III ... 36

2.3 A motivação pedagógico-crítica de Vtopia III ... 39

2.3.1 Política e religião movidas por interesses... 45

2.3.2 Uma economia baseada na propriedade privada e na classe social ... 50

2.3.3 Uma cultura “materializada” ... 55

CAP 3 – DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE IDEAL

... 61

3.1 Pela razão se chega às “Utopias” ... 61

3.2 Geografia e aspectos geo-morfológicos da “Nova Vtopia”... 69

3.3 Uma República democrática ... 72

3.3.1 Sistema judicial simplificado... 79

3.4 Na economia, “humildemente sós” ... 83

3.4.1 A realização do trabalho ... 86

3.5 Uma religião “natural e racional” ... 88

3.6 A família, núcleo central da vida utopiana ... 93

3.7 Uma educação universal e gratuita aliada ao culto do saber ... 97

3.7.1 O pensamento utopiano ... 101

Cap 4 – VTOPIA III COMO TEXTO DE HUMANISMO

... 105

4.1Thomas More e P. Martins, dois humanistas intemporais ... 105

4.2 Para uma definição de “Humanismo” ... 108

4.3 Oposição à escolástica (“magister dixit”) com base no ressurgir do saber clássico e num método filológico humanista ... 111

4.4 Um optimismo antropológico em que o homem se constrói a si mesmo ... 115

4.5 Espírito crítico interligado a uma religiosidade pura: o Humanismo Cristão ...120

4.5.1 Defesa de valores humanistas ... 124

4.6 Espírito irénico ou tentativa de conciliação entre múltiplas tendências ... 128

4.7 Paganismo e endemonia ou busca da felicidade aliada a uma euforia naturalista ... 132

CONCLUSÃO

... 136

(6)

ii

RESUMO

A presente dissertação intitulada “Vtopia III, de Pina Martins: a actualização da

Utopia de Thomas More” pretende ser uma abordagem à forma dialógica como a

narrativa portuguesa Vtopia III sedimentou a sua composição estrutural e semântica a partir da obra matricial Utopia, da autoria do humanista inglês Thomas More, num texto inovador, tematicamente adaptado ao contexto da realidade histórica portuguesa contemporânea, e que Pina Martins, enquanto autor e personagem, escrutina criticamente na sua qualidade de cidadão atento às vicissitudes do seu tempo.

Propomo-nos, desta forma, estabelecer relações de convergência/divergência entre as duas obras, fruto do pensamento de duas culturas europeias, a portuguesa e a inglesa, em diferentes fases do seu desenvolvimento, mas que, ainda assim, motivaram a construção de duas obras complementares entre si. Visamos, por esta via, a sistematização de nexos de semelhança e traços linguísticos, formais, temáticos e ideológicos que possam distinguir as duas obras.

Se, por um lado, a inscrição da Utopia na génese do pensamento utópico vem credibilizar a obra contemporânea em estudo, por outro, ela serve igualmente de pretexto para se dar visibilidade ao arrojado projecto de Pina Martins e clarificar as intenções desta sua narrativa apresentada como uma sucedânea da primeira Utopia. Trata-se, assim, de uma obra pioneira quanto ao género em que se inscreve na cultura literária portuguesa, e que se encontra ainda relativamente pouco estudada. O nosso estudo visa precisamente contribuir para a superação dessa lacuna.

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iii

ABSTRACT

The following dissertation, “Utopia III, by Pina Martins: the updating of Utopia by Thomas More”, intends to analyze the structural connections between this contemporary Portuguese narrative and the English Renaissance fictional masterwork.

Its focus is the different narrative strategies employed by Pina Martins to rewrite More‟s work in order to critically adapt it to the context of Portuguese contemporary historical reality. Hence, our aim is to explain how Pina Martins‟s Utopia

III and Thomas More‟s Utopia have dealt both with the critical depreciation of two

different historical societies and the ideal representations of their imaginative counterparts.

Being the founder of a new literary genre, the English Morean narrative works therefore as a textual pattern for the composition of one rare example of a Portuguese literary utopia; on the other hand, it also operates as a means to highlight the original quality of Pina Martins‟s novel. Utopia III can, therefore, be considered a pioneering literary work within the Portuguese cultural and literary scene that few scholars have yet studied and that deserves to be better known. Our work aims, precisely, to further a much broader knowledge of Utopia III.

(8)

1

INTRODUÇÃO

Toda a obra de índole utópica reflecte sobre o modo como as colectividades humanas se encontram organizadas e aponta para vias alternativas a seguir. Neste sentido, a civilização ocidental, apesar de todas as conquistas científicas e tecnológicas e de toda a maturidade alcançada no plano da sua governação, continua a ser inspirada por formulações doutrinais, políticas e sociais de cariz ideal.

Vtopia III, redigida e publicada há pouco mais de uma década pelo estudioso da

cultura portuguesa José Vitorino de Pina Martins, constitui um exemplo singular numa cultura literária em que a tradição de escrita utópica é quase inexistente, sobretudo se a compararmos com a atenção que outras culturas literárias europeias lhe devotaram.

Ainda assim, esta obra afirma-se como inovadora pelo modo como está concebida e pelo projecto de sociedade que apresenta, bem como pelo modo como renova o discurso utópico em estrito diálogo com a obra emanada do génio criativo e do influxo humanista da Utopia de Thomas More, que fixou o género literário da utopia nos longevos inícios do séc. XVI.

A razão para se proceder a uma leitura comparada entre duas obras de um mesmo género literário, uma portuguesa e outra inglesa, distanciadas por sensivelmente 4 séculos, explica-se, antes de mais, por um nexo de relacionamento intercultural entre uma produção específica da literatura inglesa seiscentista com ramificações na cultura portuguesa novecentista, e que se inscreve no horizonte de conhecimentos da nossa formação académica.

A Utopia moriana e a Vtopia III de P. Martins partilham um mesmo universo literário temático e ideológico evidente. Tanto More como P. Martins têm em vista escrutinar criticamente, tanto directa como indirectamente, as fundações instituídas da sociedade em que vivem para, em contraponto com essa análise, fazerem emergir uma representação de uma sociedade como lugar ideal que se propõe como alternativa à ordem institucional vigente.

Neste trabalho, interessa-nos fazer o estudo das duas obras cotejando-as nalgumas das suas passagens essenciais e a partir do óbvio reconhecimento de que

(9)

2

More recorreu na redacção da sua obra, de tipo linguístico, formal e temático, mas também ideotemático devidamente traduzidos para uma nova realidade histórica.

Vtopia III, obra de uma extensão considerável, baseia-se na “densa” contenção

da narrativa da obra inglesa, com o propósito de dar a ver, em finais do século XX e de milénio, e segundo a mesma matriz composicional e temática da Utopia moriana, diferentes aspectos da sociedade portuguesa nas suas mais variadas vertentes. Neste sentido, a presente tese pretende também demonstrar que, a par da crítica à sociedade portuguesa contemporânea, esta obra de Pina Martins encerra também uma perspectiva valorizada daquilo que a cultura lusa tem de meritório e positivo, assim homenageando os que, em diversas áreas, se esforçaram e se empenharam por edificar um país mais justo e mais humano.

Uma vez que a bibliografia disponível sobre a Utopia moriana é abundante, optámos por seleccionar para a orientação do tema da nossa tese, um conhecido leque de estudos de variados campos do conhecimento, essencialmente redigidos nas línguas portuguesa e inglesa. Relativamente a Vtopia III, e tratando-se de uma obra ainda relativamente pouco conhecida e muito pouco estudada, optámos por conferir especial atenção aos estudos do próprio Pina Martins em que aborda de forma analítica a Utopia moriana. E a razão por que nos ativemos a esse conjunto de fontes bibliográficas deve-se ao facto de terem sido esdeve-ses estudos de Pina Martins associados a uma vida académica dedicada ao estudo do Renascimento / Humanismo que lhe serviram de fonte de inspiração para a redacção de Vtopia III.

Assim, pela necessidade primeira de nos centrarmos na análise de um conjunto estruturado de ideias dominantemente presentes em Vtopia III, considerámos que na estrutura do presente trabalho deveria constar, de forma prioritária, uma exposição relativa à inserção desta obra a nível formal e temático no contexto do género literário e da tradição intelectual a que pertence, tornando-a como condição necessária para uma posterior incursão no que consideramos ser o nervo principal da obra, isto é, a sua vertente humanística.

O estudo está dividido em quatro capítulos distintos, neles se salvaguardando o facto de que, por vezes, se relacionam e interpenetram, à semelhança do que acontece em Vtopia III, incidindo, portanto, em aspectos complementares entre si, e que apenas por uma questão metodológica tiveram que ser tratados separadamente. As quatro partes visam os seguintes objectivos: a primeira, de cariz mais cultural, pretende, como dissemos, fornecer uma contextualização da obra integrando-a no género literário

(10)

3

utópico directamente inspirado no modelo literário moriano que serviu, aliás, de ponto de partida para outros tipos de discurso; a segunda parte analisa aspectos da crítica acutilante tecida ao “Velho Mundo”, coevo dos interlocutores de Vtopia III, nas suas mais variadas vertentes, política, económica, social, educativa e cultural; a terceira parte aborda alguns traços do desenho da “Nova Vtopia” apresentada como alternativa a todas as fragilidades anteriormente diagnosticadas no “Velho Mundo”, mediante a descrição de uma comunidade mais eficaz e justa na sua organização geral. Por fim, no último capítulo, pretendemos fazer um estudo de Vtopia III enquanto obra reveladora de um humanismo renovado com raízes no humanismo cristão que perpassa na Utopia de Thomas More.

Em suma, este trabalho aspira assim tão-somente a ser um modesto contributo de reflexão sobre um conjunto limitado de comparações e relações que se poderão estabelecer entre as duas obras, na medida do possível, e suscitar a redacção de mais estudos sobre o ainda incipiente conhecimento da utopia literária de Pina Martins. No fundo, trata-se de uma utopia composta por um grande estudioso da cultura portuguesa da época do Renascimento, talvez pensada com o duplo propósito de, por um lado, tornar o seu conhecimento académico sobre a “época de oiro” da cultura europeia mais acessível ao grande público e, por outro lado, de contribuir pedagogicamente com as suas reflexões para os que podem tomar as decisões políticas e têm a responsabilidade superior de agirem em prol de um progresso que seja apanágio de um crescimento do homem não só a nível material como também espiritual.

(11)

4

CAP 1 – CONTEXTUALIZAÇÃO DE VTOPIA III NO

GÉNERO LITERÁRIO UTÓPICO / UTOPISMO

1.1 Para uma definição de “utopia”

A Utopia1 de Thomas More caracteriza-se, sinteticamente, por comportar a representação de um modelo ideal de sociedade expresso por uma narrativa plena de jogos de significados e de alusões irónicas à realidade histórica nacional coeva do seu autor, que lhe conferem grande expressividade literária e coerência temática e que interpelam de modo lúdico e subtil a consciência crítica do leitor.

Dotado destas características, o conteúdo temático dessa obra viria a constituir-se como modelo de um “género literário com um esquema narrativo próprio que viria a afirmar a sua pujança na literatura inglesa, sobretudo em tempos de crise política e social.”2

De algum modo, esse novo género viria a relacionar-se com o progresso social e científico, inglês e europeu do séc. XVI e seguintes, moldando-se às idiossincrasias de sucessivos contextos históricos, políticos, sociais, económicos e culturais.

A narrativa utópica caracteriza-se, pois, por pertencer a um género híbrido que a um tempo, recorre a múltiplos discursos de tipo literário (epistolar, romanesco, diálogo

1MORUS, Thomas – Vtopia. Ed. Crítica, trad. e notas de comentário por Aires A. Nascimento,

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. No âmbito desta tese de Mestrado subordinada ao campo de estudos da “Cultura Portuguesa” optou-se pela apresentação das referências bibliográficas regidas pela Norma Portuguesa NP 405-1 de 1994. Relativamente à edição da Utopia de Thomas More, seguiremos a edição crítica portuguesa, cuja referência bibliográfica se encontra no início desta nota, com tradução directa do Latim e notas de comentário de Aires A. Nascimento e estudo introdutório à Utopia moriana por José V. de Pina Martins.

2

VIEIRA, Fátima - “Utopia III, de Pina Martins: finalmente o verdadeiro espírito moreano em Portugal” [Em linha]. Deptº de Estudos Anglo-Portugueses - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS ANGLO-PORTUGUESES, 1, 2001, actual. Fevereiro 2008. [Consult. Janeiro 2004]. Disponível em www: <URL:http://www.fcsh.unl.pt/congressoceap/index.htm, p.1.

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5

filosófico, satírico...) mas também devedores dos campos da sociologia, política e economia que se cruzam para construírem a originalidade e especificidade do texto ficcional utópico.

Vita Fortunati e Raymond Trousson falam de uma inter-relação que se estabelece no corpo do texto utópico referindo que “na literatura utópica existe uma relação dinâmica entre conteúdo e forma, uma construção mediada pela ficção, com a qual qualquer leitor se deve familiarizar para apreender todo o sentido do texto utópico.”3

Ambos os autores salientam uma espécie de pacto que o escritor estabelece com o leitor quando este aceita os códigos que aquele utilizou na actualização do género literário utópico: “ao contrário do texto de teor político, o texto utópico, devido à sua forma ficcionada enceta um diálogo com o seu leitor que pode ser articulado a vários níveis, [...] um pacto que radica no conhecimento e aceitação, por parte do leitor, dos códigos e convenções que ditam a construção do paradigma utópico.”4

Publicada em Lovaina, em 1516, a Utopia de More teve logo uma larga difusão em vários países da Europa e passou, pouco a pouco, a designar não só as obras de tipo utópico mas também todo um conjunto de estudos críticos sobre este novo género. A

Utopia, obra ficcional com intuitos críticos de reforma e de intervenção social foi

originalmente escrita em Latim para a classe letrada europeia, de maneira a convocá-la mediante uma espécie de exercício lúdico-retórico, para uma reflexão sobre as implicações das transformações económico-sociais ocorridas com o crepúsculo do feudalismo e do dealbar do capitalismo comercial. Seguem-se, depois da edição

princeps da Utopia a edição de Paris (1517), a edição de Basileia (1518), considerada a

mais completa e que inclui algumas cartas de Erasmo de Roterdão a Froben, de Guillaume Budé a Thomas Lupset, de Pedro Giles a Jerome de Busleyden e de Thomas More a Pedro Gilles, apresentando também alguns epigramas de More a Erasmo e a

3 As citações apresentadas em língua estrangeira serão sempre vertidas para o português no corpo

do texto e apresentados os respectivos originais em nota de pé de página, como o que a seguir se expõe: “[ I ] in utopian literature there is a dynamic relationship between content and expression, a fictional mediation which any reader must reckon with if he or she would attempt to grasp its full meaning.”

Dictionary of Literary Utopias, Edited by Vita Fortunati and Raymond Trousson, Paris: Honoré

Champion, 2000, p.635.

4 “Unlike the political treatise, a utopian text, due to its fictional form, sets up a dialogue with its

reader that can be articulated at various levels [...] a pact, which is rooted in the reader‟s awareness and acceptance of the codes and conventions that dictate the construction of the utopian paradigm.”,

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6

pintura da ilha da “Utopia” feita por Holbein. Temos ainda a edição de Florença (1519) e a edição de Veneza (1548).

A primeira tradução para a língua inglesa é feita em 1551 por Ralph Robinson sob o título On the best State of a Commomwealth and on the new Island of Utopia. A

Truly Golden handbook, No Less Benefitial than Entertaining by the Most Distinguished and Eloquent Author Thomas More Citizen and Undersheriff of the Famous City of London. No total, o conjunto de treze edições latinas, quatro inglesas,

duas francesas, duas holandesas, uma alemã e uma italiana prova como a recepção da

Utopia de More foi, ao longo do séc. XVI, muito bem acolhida por toda a Europa.

Nos séculos seguintes, a obra-prima de More configurou uma forma de pensamento utópico que haveria de se reflectir em inúmeras obras, quer ficcionais, quer de conteúdo político-filosófico, de autores ingleses e demais europeus, entre elas Nova

Atlântida (1622) de Francis Bacon, Oceana (1656) de James Harrington, os escritos de

pendor reformista de Robert Owen, consignados na sua obra principal Uma Nova Visão

da Sociedade (1813), ou Uma Utopia Moderna (1905) de H. G. Wells. Quanto aos

demais europeus temos A Cidade do Sol (1623) de Campanella ou O Organizador (1819) do socialista utópico Saint-Simon, entre muitíssimos outros.

Em Portugal, a primeira tradução completa desta obra foi feita apenas no séc. XX, em 1946, por Berta Mendes, ano em que também foi publicada uma versão parcial por Agostinho da Silva. Contudo, a Utopia moriana, apesar da Inquisição ter reprimido a sua difusão, terá sido lida e conhecida por escritores como Damião de Góis, João de Barros, Diogo de Couto, Heitor Pinto e, mais tarde, D. Francisco Manuel de Melo5. A

5

Pina Martins dedicou vários estudos à difusão de Thomas More em Portugal e, em particular, à recepção da Utopia entre nós e sua influência nas letras portuguesas. No estudo que partilha com Fernando de Mello Moser, ambos referem que Damião de Góis presta homenagem ao mártir Thomas More e fiel seguidor de Cristo. Cf. MOSER, Fernando de Mello; MARTINS, José V. de Pina – Thomas

More au Portugal. Au pays de Raphael Hytlodée dans la ville d’Ulysse. Braga, 1983.

No Catálogo que P. Martins consagra à Utopia de Thomas More e o Humanismo Utópico refere também o seguinte: “João de Barros conheceu tão profundamente a Vtopia moreana que chegou a escrever, no prefácio da Década Terceira, [1563] que com esse livro o autor se propôs ensinar aos ingleses a arte do bom governo. Frei Heitor Pinto cita Thomas More e a sua Vtopia – a cidade que i não

há – na sua famosa Imagem da Vida Cristã.[1572]” MARTINS, José V. de Pina - A Utopia I de Thomas More e o Humanismo Utópico. 1985-1998. Catálogo de uma síntese biblio-iconográfica. Lisboa:

Biblioteca Nacional, 1998, p.20.

Quanto a uma possível influência da Utopia na cultura e nas letras portuguesas, P. Martins alude ainda a algumas obras que parecem ter sido influenciadas pela Utopia de More ao nível da sua estrutura ou dos seus temas, na linha de um ideal utópico e de uma sátira de costumes. Tal é o caso do Diálogo do

Soldado Pratico que Trata dos Enganos e Desenganos da India (1790) de Diogo de Couto, onde se alude

à ilusão / desilusão que a Índia constituiu ou Hospital das Letras (1ª ed. 1721) de D. Francisco Manuel de Melo pela forma ambígua como intercepta diferentes planos e tece uma crítica coerente. Quanto à

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7

propósito da censura da Inquisição à recepção da Utopia de More em Portugal, afirmam Fernando M. Moser e P. Martins: “as interdições ao texto de Thomas More, iniciadas a partir de 1581, e expressas sobretudo no Index de 1624, onde se encontram até indicações relativas às primeiras edições da obra (de Veneza, de Lovaina, de Basileia...) provam que Thomas More e a sua obra eram bastante apreciados na pátria de Hytlodeu, uma vez que o humanista aí gozava dum grande prestígio e os seus livros, sobretudo a

Utopia de uma notável difusão.”6

De optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia Libbelus Vere Aureas é,

portanto, o título que resume o conteúdo de um livro cuja matéria narrativa em grande parte vai incidir sobre a descrição de uma república exemplar.

“Utopia” é o novo signo inventado por More, de etimologia grega, que designa uma realidade paradoxal: “u” (não) foi associado a “topos” (lugar) para referir o “não lugar”, que não existe fisicamente, mas que é um lugar imaginário, num algures literário, o que aponta para um espaço onde reina o bem-estar material e a virtude. No final da 2ª edição de Utopia publicada em Paris, More acrescentou como paratexto um poema do suposto poeta laureado Anemolio onde, pela primeira vez, se equaciona “Utopia”7

(terra que não existe) como “eutopia” (terra de felicidade). Nesse poema, em jeito de personificação, a terra que assume que antes era “nenhures” (alusão directa à cidade inventada por Platão) reclama agora a sua existência real de lugar com “homens, bens e leis maravilhosas”.8

sentido pleno, mas antes como “uma reflexão devinatória sobre os eventos futuros à luz dos eventos da história conclusa” e a “Ilha dos Amores”, inserida nos Lusíadas (1572) de Camões considera-a apenas como um “espaço místico e um tempo breve”. MARTINS, José V. de Pina - A Utopia I de Thomas More

e o Humanismo Utópico. 1985-1998. Catálogo de uma síntese biblio-iconográfica. Lisboa: Biblioteca

Nacional, 1998, pp.21, 22.

6

"les interdictions du texte de Thomas More, prononcées à partir de 1581, et précisés surtout dans l‟Index de 1624, ou l‟on trouve même des indications concernant les éditions (de Venise, de Louvain, de Bâle) prouvent que Thomas More et son œuvre étaient fort appréciés dans la patrie d‟Hytlodée, car l‟humaniste y jouissaient d‟un grand prestige et ses livres, surtout l‟Utopie, d‟une remarquable diffusion". MOSER, Fernando de Mello; MARTINS, José V. de Pina, Op. Cit., p.69.

7 Ao longo do presente trabalho iremos referir-nos à ilha utópica descrita na Utopia de More

como “Utopia” tal como ela é designada na tradução portuguesa de Aires Nascimento; a nova ilha utópica designá-la-emos por “Vtopia Nova”, tal como se apresenta grafada por José V. de Pina Martins na sua

Vtopia III para designar a sociedade utópica de finais do séc. XX. O mesmo se passa com “Hitlodeu”

escrito com “i” na Utopia moriana traduzida pelo referido por Aires Nascimento e com “y” na Vtopia III de Pina Martins, entre outros casos.

Assim, iremos manter, ao longo da presente dissertação, a grafia das palavras constante nas obras a serem analisadas, nomeadamente, na obra de Pina Martins a forma classicizante dos vocábulos, de maneira a garantir uma maior fidelidade aos textos bem como uma maior clareza e coerência textuais.

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8

J. H. Hexter refere que, “de um ponto de vista teórico, ele [More] se encontra familiarizado com a República de Platão, com Séneca e com os grandes Padres da Igreja. [...]. A originalidade de More [...] reside, pois, não na simples ideia de comunhão de propriedade ou de bens, mas sim na precisão, no detalhe com que ele implementa os seus princípios de organização social, propondo na prática todas as regras básicas de justiça ou de administração necessárias à realização do tal comunitarismo como uma das principais linhas de força de uma boa política.”9

Quem, na narrativa utópica, funda a nova ordem utopiana é uma espécie de rei filósofo, Utopos, cujas virtudes de sabedoria e de justiça na administração política, económica, social e moral da optimo Reipublicae – que Platão havia já identificado na alma humana e associado às virtudes que poderiam presidir à harmonia da pólis - foram transmitidas e decalcadas para organizar a referida ordem.

É Rafael Hitlodeu, personagem-narrador, que na economia da narrativa vai comunicar aos seus interlocutores Thomas More e Pedro Gilles a ordem social fundada por Utopos. É, pois, Rafael H., personagem identificada como sendo um marinheiro português, que na estrutura da diegese tem por função denunciar uma ideologia por si considerada inoperante, que se encontra na base de uma má organização política e social, e apresentar como alternativa, a optimo Reipublicae.

O utopismo10 de More emana de um sentido crítico em relação às condições materiais da sociedade sua contemporânea e funde-se numa tradição filosófica racional-idealista que tem no pensamento de Platão o seu mais autorizado e reputado modelo.

Thomas More, como humanista, terá bebido ensinamentos de várias fontes clássicas e cristãs, tendo contactado com o pensamento grego e romano, em particular

9

“On the theoretical side he was familiar with Plato‟s Republic, with Seneca, and with the great Latin Fathers […]. Moore‟s originality then […] lay not in the bare idea of a community of property and goods; it lay in the exactness, the precision, and the meticulous detail with which he implemented his underlying social conceptions, proposing all the basic rules of law and methods of administration necessary to make community of property and goods one of the motor forces in a going polity.” HEXTER, J.H. – More’s Utopia – The biography of an idea. New Jersey: Princeton University Press, 1952, pp.62, 63.

10 O estudioso Joyce Hertzler define assim “utopismo”: “no âmago das Utopias encontra-se o

espírito utópico, isto é, o sentimento de que a sociedade é capaz de melhorar e pode ser reinventada segundo um ideal racional da sociedade [...] a que se convencionou chamar “utopismo”, significando por conseguinte uma concepção de melhoria social, quer por meio de ideias ou ideais ou incluída em agentes

de mudança social.” (“Behind the Utopias lies the utopian spirit, that is, the feeling that society is capable

of improvement and can be made over to realize a rational ideal {…] we have called this spirit “utopianism”, meaning thereby a conception of social improvement either by ideas and ideals themselves

or embodied in definite agencies of social change.”) HERTZLER; SCUDDER, V.D.- Social Ideals in English Letters. New York: The Chatauqua Press, 1898, p.2.

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9

com a República e com as Leis de Platão, bem como com a doutrina filosófico-teológica cristã de Santo Agostinho.

Do laicismo pagão e do ascetismo cristão conseguiu formar uma síntese intelectual que tão bem se encontra expressa no ideário da Utopia, se bem que mediada por um pensamento próprio no original desenho que projecta de uma sociedade ideal.

More também colheu inspiração nas regras da vida monástica beneditina que ele tão bem conhecia, em consequência de um apelo juvenil pela vida eclesiástica que acabou por não se concretizar.

Os descobrimentos geográficos quatrocentistas e quinhentistas tiveram igualmente um papel fulcral para a invenção do seu texto, nomeadamente através do reconhecimento da “alteridade” enquanto pretexto para a ficcionalização de outras formas de ser e estar, e de imaginariamente conceber um mundo melhor. Thomas More teve conhecimento das novas realidades geográficas, nomeadamente através das cartas de Américo Vespúcio, mas também de Cristóvão Colombo11, e terá lido Angelo Poliziano, humanista e grande amigo de Erasmo que, numa carta a D. João II, elogia os feitos expansionistas dos portugueses.

O historiador Luís de Matos, na sua introdução ao Itinerarium Portugalensium, publicado em 1508 por Montalboldo também sustenta, a propósito da Utopia de More, que o humanista inglês, partindo da leitura de diversos relatos de viagens dos portugueses daí terá retirado inspiração para descrever diversos factos de ordem geográfica e comercial. Assim, as semelhanças entre os dados transcritos na Utopia e os que se encontram presentes nessas relações de viagens não são mera coincidência, sustentando que “tudo quanto Hitlodeu poderia ter contado a More se encontra por assim dizer tanto nas Quator navigationes como, sobretudo, no Itinerarium

Portugallesium”.12

11 A este propósito, P. Martins salienta que “a carta de Cristóvão Colombo [...] foi largamente

difundida em toda a Europa e Thomas More teve certamente dela notícia. Mas Colombo situava as ilhas setentrionais a que aportara um pouco ao sul do Ganges e nunca havia de saber ter sido o descobridor de um novo continente, pois morreu na convicção de ter chegado às Índias orientais.” MARTINS, José V. de Pina - A Utopia I de Thomas More e o Humanismo Utópico. 1985-1998. Catálogo de uma síntese

biblio-iconográfica. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1998, p.17.

12 MATOS, Luís de – Estudo Introdutório in MONTALBOLDO, Francanzano da - Itinerarium

Portugallensium. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, p.LIII.

Luís de Matos também refere como fontes da Utopia “as relações das viagens de Ca‟da Mosto, Gama e Cabral, o Mundus Novus e a entrevista de José Indiano.” (p.LVI)

(17)

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1.2 A filiação assumida de Vtopia III face à Utopia de Thomas More

É a partir do esquema narrativo da Utopia de Thomas More que José V. de Pina Martins vai alicerçar a sua Vtopia II, recorrendo para tal a uma subtil estratégia de composição diegética assente em constantes remissões dialógicas com o texto moriano. Nesse assumido jogo intertextual, P. Martins inferioriza sempre a qualidade literária do seu livro relativamente à de Thomas More, evidenciando até, por vezes, uma exagerada modéstia, ao declarar que, comparada com a sua Vtopia III, “Vtopia I seria sempre o monumento incomparável, elogiado não pelas mediocridades lísicas, ânglicas ou ausónicas, mas pelos maiores espíritos do passado – por Erasmo, Guillaume Budé, Francisco Bacon, pelo próprio Marx.”13

Relativamente ao estilo de enunciação utilizado em Vtopia III, é notória, ao longo da obra, a reverência de P. Martins aos grandes humanistas, tanto nas referências que lhes concede como no pensamento humanístico que com eles partilha.

P. Martins, não deixando de considerar que “narrar pode querer dizer inventar com a imaginação”14

, adopta o modo discursivo preconizado pela personagem de Miguel Hytlodeu, imaginário descendente de Rafael Hitlodeu, interlocutor do narrador personagem Pina Martins e cujo estatuto ficcional é subvertido por uma irónica atribuição de identidade civil real enquanto co-autor de Vtopia III. Assim, Miguel Hytlodeu, embora declarando-se avesso a “objecções de dialéctica lúdico-verbal”15 e a tudo o que não seja concreto, racional e natural, refere que o “relato” de P. Martins deverá ser “descritivo, narrativo, discursivo, enunciativo, explicativo, linearmente claro, racionalmente natural, naturalmente racional. Nada de paradoxos, de achadilhos verbais, de palavriado vazio, de vacuidade pseudometafísica, de digressões excursivas, de excursos digressivos... Com verdade, com objectividade [...] como se as palavras tivessem espessura racional e o razoamento densidade estrutural.”16 Trata-se, portanto, de um texto onde o narrador é participante e discursa na primeira pessoa e que, apesar de híbrido, quanto à estratégia diegética intertextual que prossegue e quanto à

13 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.20, 21. 14 Ibid., p.55.

15

Ibid., p.56.

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existência de vários modos de apresentação do discurso, se definiu por um tom de ordenada expressão clássica.

A linearidade classicizante no modo de exposição de P. Martins, revela-se no uso de uma linguagem sem artifícios retóricos que recorre, por vezes, à sabedoria do povo, expressa em conhecidos provérbios: “sete vezes peca o justo em cada dia”,17 “o véu ou a mortalha no céu se talha”,18

“não veja, pois, o argueiro, no olho alheio quando no seu tem uma trave”,19

“não queria ensinar o padre-nosso ao vigário”,20 entre outros. Tal como na obra moriana, são dois os narradores de Vtopia III, os quais se identificam como sendo os seus autores, o primeiro é Miguel Hytlodeu, suposto descendente do navegador português Rafael Hitlodeu, interlocutor de Thomas More e o segundo é José V. de Pina Martins. O nome próprio e de família “Miguel Mark Hytlodeu” assinala desde logo o espírito lúdico/sério da obra, ao jogar intertextualmente com as identidades nacionais quer da autoria (inglesa - Thomas More) quer das personagens (inglesa - Thomas More e portuguesa - Rafael) da Utopia de More. Assim, Miguel é nome português, Mark é nome Inglês e Hytlodeu remete-nos para o ambiente ficcional, do sub-texto em clara alusão ao neologismo “Hytlodeu” que significa originalmente em Grego “perito em bagatelas”.

A abrir Vtopia III deparamos com um subtítulo longo e inesperado – Vtopia III:

Relato em diálogo sobre o modo de vida educação usos costumes em finais do século XX do povo cujas leis e civilizações descreveu fielmente nos inícios do século XVI o insigne Thomas More, que estabelece desde logo a relação de parentesco com a Utopia

de Thomas More e, por se tratar de um “relato em diálogo”, adivinha-se já o tom socrático da obra. Face à estranheza provocada pelo numeral 3 aposto ao fictício nome próprio Utopia e definidor de um terceiro sucedâneo da obra de More, coloca-se de imediato a questão de saber qual teria sido o segundo, apresentando-se na página VII, mesmo antes da dedicatória que antecede o índice, o esclarecimento que faltava: Utopia

II terá sido escrita no séc. XVIII:

“As páginas deste livro foram escritas por mim, compatriota de Rafael Hytlodeu, residente na cidade de Ulisses nesta última década do século XX. Sou, portanto, o relator de Vtopia III. Theodorus Deodatus, humanista utopiano, havia concluído a redacção de Vtopia II. O texto estava já impresso por uma tipografia de Amauroto quando o terramoto de 1737 reduziu a escombros toda a cidade. Só se

17 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.68. 18 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.169. 19

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.170.

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salvou, da obra, uma folha do último caderno, contendo nove linhas da página 333. O fragmento pertence hoje à Biblioteca Délfica de Cimélios, na capital da Vtopia Nova.”21

É possível entender que Vtopia III, redigida “pelo compatriota de Rafael Hytlodeu” Pina Martins, é assim numericamente identificada por suceder a uma obra narrativa da autoria de um tal Theodorus Deodatus, descritiva do modo de vida no séc. XVIII da ilha ideal descoberta no séc. XVI pelo marinheiro português, mas cuja capital, a cidade de Amaurota, terá sido destruída por um terramoto. Daí terá surgido a necessidade de se construir uma nova “Utopia”.

A edição princeps de Vtopia III insere ainda justaposta à folha de rosto, uma reprodução de uma pintura imaginária de Pedro Girão ilustrando a amizade entre Thomas More e Erasmo de Roterdão. Como refere Fátima Vieira, “a pintura de Pedro Girão antecipa a toada da narrativa: tal como o quadro retrata uma visita imaginária de Erasmo a casa de Thomas More, ocorrida hipoteticamente em 1530, todo o livro de Pina Martins é um convite a uma revisitação do mundo utópico criado por Thomas More e a um exercício sobre a validade das posições nele assumidas pelos dois interlocutores principais.”22

Pina Martins atribui, aliás, ao longo da obra, um papel relevante à arte da pintura, como se a contemplação de uma paisagem, de um quadro ou de um busto facilitasse a invocação do próprio espírito da paisagem ou do escritor retratado. Em jeito de invocação, o narrador P. Martins chega a solicitar a More, mediante a contemplação de um retrato do mesmo, a sua intercessão para que leve a bom porto o relato de Vtopia

III. Em concreto, pede a More que lhe comunique a mesma inspiração que o assistiu na

invenção da “cidade” para que ele também possa “inventar e descrever”23

novas cidades.

21 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit.., p.VII.

22 VIEIRA, Fátima - “Utopia III, de Pina Martins: finalmente o verdadeiro espírito moreano em

Portugal” [Em linha]. Deptº de Estudos Anglo-Portugueses - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS ANGLO-PORTUGUESES, 1, 2001, actual. Fevereiro 2008. [Consult. Janeiro 2004]. Disponível em www: <URL:http://www.fcsh.unl.pt/congressoceap/index.htm, p.3.

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Para o narrador P. Martins, além da contemplação destas imagens inspiradoras, servem também de assistência à redacção da obra a posse e a consulta da edição rara dos livros dos autores nela mencionados, por propiciarem a “emanação do seu conteúdo”24

. Na contracapa há uma resenha explicativa do livro que reitera a filiação do conteúdo temático de Vtopia III relativamente ao de Utopia. Nele se dá conta do difícil processo de escrita de Vtopia III e da apresentação do modelo actual de vida na “Utopia”, descoberta no séc. XVI por Rafael Hytlodeu, e que se pretende alternativo ao padrão de vida actualmente existente na “Velha Ânglia” (Inglaterra), “Velha Ausónia” (Itália) e “Velha Lísia” (Portugal).

Na página IX encontramos uma dedicatória a Thomas More, “servidor da velha Ânglia”. Numa clara referência à Utopia de More, e para sintetizar a relevância inspiradora deste sub-texto na composição de Vtopia III, escreve P. Martins:

“Temos, assim, uma réplica moderna de Vtopia I, de algum modo complemento da sua e da nossa modernidade. Ao grande debuxo criativo de uma síntese estupenda como o texto moriano, segue-se a pintura analítica de uma realidade contemporânea em que Vtopia I está implícita e estruturalmente replicada no seu desenvolvimento evolutivo diferenciado. Vtopia III será talvez uma pintura pálida, sem a robustez e o nervo de Vtopia I, mas quem a ler acabará por ler também o imortal texto moriano. E “com a nossa, a nossa verdade de hoje!”25

1.3 O estatuto empírico e narrativo de P. Martins e Miguel Hytlodeu

Fátima Vieira considera que, à semelhança da Utopia de Thomas More, também Vtopia III assenta numa dinâmica baseada na “coexistência nem sempre pacífica de movimentos contrários e nos jogos de significados que dessa forma são gerados [...] um jogo a duas vozes que se contradizem – alter-egos do autor – visões duais de uma sociedade para a qual, no final, o leitor vem a perceber haver ainda esperança.”26

24 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.26. 25 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.83. 26

VIEIRA, Fátima - “Utopia III, de Pina Martins: finalmente o verdadeiro espírito moreano em Portugal” [Em linha]. Deptº de Estudos Anglo-Portugueses - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas -

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Na Utopia de Thomas More essas forças, aparentemente contraditórias, são protagonizadas, por um lado, por More que é um humanista com uma identidade pública bem definida, como o provam as cartas que servem de prefácio à obra e que adquire, igualmente, um estatuto literário ao tornar-se uma entidade meramente narrativa pois, além de narrador, também é personagem. O seu interlocutor é Rafael Hitlodeu, navegador e filósofo com um estatuto inteiramente ficcional, mas concebido a partir de dados concretos relativos às viagens de Américo Vespúcio e outros navegadores e às conversas que o próprio More travou com personalidades históricas como é o caso do Cardeal Morton.

Rafael Hitlodeu, conhecedor de Grego e Latim, tem o distanciamento necessário para criticar Inglaterra, personalizando, deste modo, o sentido crítico de More pois este, devido às suas funções públicas, nunca poderia subscrever os impulsos visionários e republicanos do seu interlocutor.

Para Fernando de Mello Moser e Pina Martins “Hitlodeu, heterónimo de Thomas More, exprime a visão idealista deste, por exemplo da sua concepção de serviço a um rei, que é compensada pela experiência da realidade do Tomás More personagem, que, por seu lado, exprime exageradamente a faceta conformista de More autor e dos seus contemporâneos.”27

Com efeito, Hitlodeu exprime a faceta crítica e idealista de More quanto aos problemas diagnosticados e aos valores defendidos a nível das relações sociais assentes no comunitarismo e até nas descrições de certos costumes utopianos, que têm reflexo na vida quotidiana do humanista. Contudo, tal não significa que More partilhasse na íntegra das soluções propostas, como são disso exemplo, no final da obra, as reservas que ele manifesta relativamente a uma total abolição do sistema monetário e de outros sinais exteriores de riqueza.

Assim, Rafael Hitlodeu, num ímpeto vanguardista e revolucionário, testemunha na sua qualidade de narrador a possibilidade de se edificar uma sociedade outra, mais fraterna e mais justa, regulada muito embora por um conjunto de preceitos sociais, bastante rígidos, se não mesmo totalitários. Já Thomas More narrador das circunstâncias que proporcionam a narração de Rafael, mas também personagem sua interlocutora,

Universidade Nova de Lisboa, CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS ANGLO-PORTUGUESES, 1, 2001, actual. Fevereiro 2008. [Consult. Janeiro 2004]. Disponível em www: <URL:http://www.fcsh.unl.pt/congressoceap/index.htm, p.2.

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corporiza a visão do homem do seu tempo, renitente, conservador e apreensivo perante a possibilidade de tal empreendimento.

Em jeito de súmula, gostaríamos de acentuar os seguintes pontos relativamente ao estatuto e à função das principais personagens da narrativa de Thomas More, a fim de estabelecermos um paralelo com as personagens principais de Vtopia III: Thomas More-narrador representa o homem pragmático, o político, o homem de acção, o homem de “compromisso”; Rafael Hitlodeu, por seu lado, representa o homem que, devido à sua formação filosófica de inspiração platónica e ao seu carácter aventureiro, preconiza a criação de um mundo que ele acha perfeito com base numa premissa fundamental: a abolição da propriedade privada.

As duas vozes são colocadas em situação narrativa oposta, mas não contraditória, uma relativamente à outra. Hitlodeu, pela radicalidade do seu discurso, não é completamente credível, e Thomas More narrador não se limita a reproduzir o pensamento político e social dominante na sua época. Segundo a tese de Fernando de Mello Moser: “More-personagem e Hitlodeu-personagem são, assim, tese e antítese nesta construção dialéctica em demanda da verdade, ou síntese perfeita, ou conciliação dos opostos.”28

Caberá então ao leitor procurar a síntese.

Para Fátima Vieira, “a solução para a questão poderá ser talvez uma de compromisso, ou seja, considerar que toda a situação de jogo referida (relativamente aos artifícios que criam um clima de verosimilhança, à estrutura da obra, à falácia do discurso de Rafael Hytlodeu) se estende também à utilização que o autor faz das suas duas personagens principais da obra.”29

Podemos, numa outra linha de leitura, considerar Hitlodeu como a voz crítica de Thomas More autor da organização social, económica e política de Inglaterra, crítica esta que é expressa claramente no “Livro I” e de forma camuflada no “Livro II”, visto que o panegírico à civilização utopiana contém uma implícita reprovação do modelo de sociedade inglesa. Por outro lado, Thomas More enquanto personagem-narrador não deixa de apelar à necessidade de se efectuarem reformas efectivas na sociedade Tudor inglesa, embora sem pôr em causa a ordem estabelecida. Todavia, no final do “Livro II” parece prevalecer a posição pragmática de Thomas More-narrador, posição esta

28 MOSER, Fernando de Mello – Thomas More e os Caminhos da Perfeição Humana. Lisboa:

Edições Vega, 1982, p.100.

29 VIEIRA, Fátima – “Os Jogos de Significados ou o Significado dos Jogos em Utopia de

Thomas More”. Línguas e Literaturas. Revista da Faculdade de Letras do Porto. Porto. Vol.XIII, (1996), p.62.

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aparentemente determinada pela conveniência política inerente à sua condição de estadista. Na verdade, Hitlodeu é por More considerado “como um louco” que não deve ser contrariado.

A proposta de possíveis alternativas ao modelo de sociedade Tudor, não deve ser porém descartada das possíveis intenções que presidiram à escrita de Utopia, e a mensagem de Hitlodeu não pode ser completamente ignorada pois contém algumas verdades.

No que diz respeito a Vtopia III, no quadro do projecto imaginário narrativo e intertextualmente dialogante com o texto de More, teria cabido ao próprio estudioso português do Humanismo europeu José V. de Pina Martins ser o escolhido para relator de Vtopia III. Tal justifica-se por várias razões: desde logo por ter dedicado toda uma vida ao estudo dos grandes humanistas, mas também por ser “lísico” como Rafael Hitlodeu, por nutrir uma enorme veneração por Thomas More, Desidério Erasmo e Pico della Mirandola, e ainda por ser adepto de um culto bibliófilo por edições antigas, entre as quais as que remontam ao grande impressor do Renascimento, Aldo Manuzio. Vemos então que, à semelhança do narrador-personagem Thomas More, P. Martins tem uma identidade pública e humanista bem definida, sendo, tal como Thomas More, simultaneamente, autor, narrador e personagem da obra utópica.

O narrador-personagem P. Martins também refere ser membro de um Instituto de Humanismo em Portugal com sucursais noutros pontos da Europa, o “Instituto Sikelianós-Kallierges”, possuindo ele próprio uma “Biblioteca de Estudos Humanísticos”30

.

A designação do referido Instituto de Humanismo não é arbitrária, é mais um sinal da erudição de P. Martins. De facto, deve-se compreender a designação deste Instituto como um contributo da língua siciliana no género da cultura grega. A palavra composta “Sikelianós-Kallierges” (Σικελόs, ή, ου = siciliano; καλλόs, ου = belo, formoso; ερτου, ου = acção, execução) pode ainda relacionar-se com uma época de colonização da Sicília por parte da Grécia que aí estabelece um governo de tiranos, mas em que foram fortemente estimuladas algumas actividades como a economia, cultura, filosofia, poesia e arte e em que a própria língua siciliana floresce, passando a ser contaminado pelo Grego, cujo dialecto ático era predominante. Contudo, apesar de ter constituído um estado político, económico e cultural brilhante e próspero não criou

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raízes devido ao seu carácter artificial e elitista e aos êxitos que apenas conseguiu no exterior. Poderemos então relacionar este carácter postiço com a artificialidade do próprio “Instituto” de estudos humanistas de que P. Martins é membro, pois trata-se de um organismo com existência meramente literária, sem verdadeiras ligações à cultura portuguesa e ao cidadão comum.

P. Martins assume-se não como um humanista, mas tão-somente como um “estudioso da obra de humanistas famosos”31

. É um estudioso exigente, muito autocrítico que, nos finais dos anos 90 do séc. XX, ousa aplicar na redacção de Vtopia

III a norma do Português datado de meados do mesmo século,32 norma esta que utiliza sempre nos seus trabalhos académicos, prescrição reveladora de um apego a um certo conceito erudito de fundamentação fonológica de norma ortográfica, diferente da utilizada contemporaneamente, a qual ainda lhe provoca uma certa apreensão. O uso desta norma manifesta-se, nomeadamente, através da acentuação dos advérbios de modo com acento gráfico grave, como “òbviamente”, na acentuação de outras palavras que actualmente o não são (como “sòzinho”), a grafia do “v” em vez do “u” como em “vtopia”, etc...

No texto é-nos dito que os contactos de P. Martins com Miguel Hytlodeu se terão iniciado em 1980, tendo Vtopia III ficado concluída em 1995. Miguel Hytlodeu, entidade de existência meramente literária, ao contrário de Rafael Hitlodeu, cujo estatuto ficcional é apoiado em dados concretos, é descrito como “embaixador”, “ministro plenipotenciário”, “magistro do Instituto de Ciências Políticas e Sociais de Amauroto”33

, capital de Utopia, aparentando traços fisionómicos tipicamente portugueses, falando um português cujo final das frases tem o “ressaibro sonoro de cláusulas latinas”34

embora o seu latim “não [oferecesse] dificuldades de maior pois não era verdadeiramente ciceroniano nem saborosamente moriano.”35

Os encontros entre Miguel Hytlodeu e P. Martins são, por via de regra, introduzidos por descrições bucólicas que se detêm na caracterização de ambientes

31

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.39.

32 Na obra que Edite Estrela dedica à questão ortográfica podemos constatar que a norma

utilizada por P. Martins é a que se refere ainda ao Acordo Ortográfico de 10 de agosto de 1945, sendo, aliás, a norma que utiliza também em todos os seus estudos críticos. ESTRELA, Edite – A Questão

Ortográfica – Reforma e Acordos da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Notícias, s.d., p.145.

33 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.217. 34

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.6.

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18

naturais enunciados pelo recurso a uma vasta adjectivação expressiva e ao emprego de figuras de estilo mediante as quais se procura enquadrar o encontro dos intervenientes que é normalmente harmonioso, quase profético: é disso exemplo a hipálage “tardes sonolentas”36

ou o hipérbato “mais cristalinamente azul tornavam à vista o céu imaculado”37

.

Na verdade, qualquer encontro ou passeio envolvendo as duas personagens é narrado como se se processasse num espaço ideal, tal como se pode verificar na seguinte descrição, plena de adjectivação expressiva e comportando a ideia de atribuição de uma origem divina a tão raro cenário e a tão especial encontro de duas figuras tão sábias: “não sabia que mais admirar: se a brancura imaculada das casas, se o azul do céu e do mar, se o verde oleoso dos jardins, como se o talento de um deus invisível tivesse pincelado as folhas com uma mão de verniz.”38

Quanto à atitude dos interlocutores e à natureza dos diálogos, verifica-se que Miguel Hytlodeu é muitas vezes irónico, mesmo sarcástico, nas suas apreciações em relação ao mundo contemporâneo representado pela sociedade portuguesa, é a voz que critica o “Velho Mundo” e apresenta a “Nova Vtopia” como o modelo a seguir. Contudo, as suas palavras acutilantes, de uma crítica por vezes “esmagadora”, à semelhança de R. Hitlodeu, que também era radical e idealista, são palavras acompanhadas de um sorriso benévolo e de um indiscutível amor ao “mundo poluído” do “Velho Continente”, face ao carácter monótono e exageradamente normativo, quase “vegetativo” da “Nova Vtopia”. Por seu lado, P. Martins, narrador-personagem é o interlocutor que defende a sua pátria, não escondendo os seus defeitos nem tentando camuflar a realidade da desordem dominante, manifestando-se mais indulgente e compreensivo para com os erros, as imperfeições e as injustiças referidas pelo utopiano. Os dois interlocutores em Vtopia III discorrem no espírito dos valores humanistas convocados pelo ideário cívico e pela erudição académica de P. Martins e reforçados por M. Hytlodeu. Este vigia, por assim dizer, o processo discursivo de P. Martins, incitando-o a empreender a escrita de Vtopia III: é um interlocutor com um estatuto intelectual paritário ao de P. Martins, sendo igualmente crítico e estimulante.

36 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.78. 37

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.232.

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São representantes de dois mundos diferentes, em muitos aspectos contrários, que dialogam e que tentam colher ensinamentos um do outro: um (M. Hytlodeu), comunicando o testemunho de uma ordem social onde tudo parece perfeito; o outro (P. Martins) dando conta de uma realidade humana que parece caminhar para a ruína material e espiritual. Na verdade, os debates são conduzidos de forma urbana e eloquente, abrindo espaço para um triálogo com o próprio leitor.

Miguel Hytlodeu é, de certa forma, o alter-ego de P. Martins, a voz da sua “Verdade” última, da sua consciência interior. O próprio P. Martins refere-se da seguinte forma a M. Hytlodeu: “ a sua voz tornava-se palavra dentro de mim, como se fosse uma revelação interior, mas que, sem ele, não existiria, embora só ganhasse sentido no meu entendimento. Possuía-me a ilusão de que a voz de Miguel Hytlodeu fosse a minha própria voz”.39

Essa voz silenciosa é não só de acusação mas de dúvida, partilhada com o leitor, em saber se está à altura de concretizar o desafio lançado por Miguel Hytlodeu de redigir Vtopia III.

Nesse sentido, e para dar conta da “Verdade moderna, histórica e institucional da Vtopia Nova”40

, P. Martins propõe-se transcrever os informes de M. Hytlodeu sobre essa contemporânea sociedade ideal e consultar a melhor tradição de pesquisa erudita humanista - os documentos necessários à revelação da verdade. O método desse encargo é o mesmo utilizado no objectivo da escrita de uma tese ou de um trabalho académico, isto é, o de “fazer surgir a Verdade viva”41

, Ao serviço da revelação dessa “Verdade”, o processo de escrita de Vtopia III deverá ser, portanto, fluido e natural, como salienta o próprio narrador:

“(...) nada do que dissesse respeito à Vtopia podia ser criativamente delineado através de execuções mecânicas. A Vtopia era o reino por excelência natural da existência pura. Viver significa respirar, contemplar, sonhar, amar. Nada de artificialismos convencionais e estratificados, mas a simplicidade genuína. A mais autêntica. A génese e o seu desenvolvimento no imediatismo espontâneo do ser e do existir.”42

É importante sublinhar este valor de verdade atribuído à palavra, como se, através dela, se actualizasse o mito bíblico, genesíaco, do verbo criador.43 Com efeito,

39 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.11. 40

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.19.

41 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.40. 42 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.24. 43

Este valor da palavra é proclamado no Evangelho de S. João (Jo-1.1-14) onde Deus nos é apresentado como o “Verbo” verdadeiro. É uma palavra criadora do mundo e dos seres que dá sentido à

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P. Martins, ao referir que pretende descrever de novo o “não lugar” tenta “transformar esse nulo, difuso e confuso cáos em harmonioso, ordenado e luminoso cosmos através da palavra criadora, poderosamente recriadora”.44

Ao tomar a decisão de empreender o relato sobre o modo de funcionamento da actual sociedade ideal com base nos testemunhos recorridos das conversas com Miguel Hytlodeu, a personagem P. Martins assume a função de um demiurgo, vê-se no papel de “tentar criar o universo, num tempo análogo, ainda que muito mais longo, aos seis dias do Génesis”45

, fazendo-o através da palavra criadora.46

1.4 Estratégias ambíguas de actualização do discurso: realidade /

ficção

Realidade e ficção vão-se fundindo, ao longo da obra, de forma dinâmica, pois o diagnóstico dos males que afligem a sociedade real é alternado com o apresentar de soluções que derivam do plano da sociedade ideal, isto é, que decorrem do plano da ficção. Esta situação de jogo, entre o real e o ficcional é, desde logo, apresentada na contracapa de Vtopia III onde se descreve, em síntese, o enredo narrativo. Tudo se terá iniciado no Brasil:

“Na bela cidadezinha de Dínola, a poucos quilómetros da brasílica Rocha do Mar, Miguel Hytlodeu, descendente do nauta lísico Rafael, que transmitiu a Thomas More notícias sobre a existência da Vtopia assim como acerca das suas instituições, usos e costumes, convida o autor desta obra, em nome da Gerúsia de Amauroto, a escrever Vtopia III neste final do segundo milénio post Christum natum.”

vida e é anterior a tudo o que existe: Jo-1-1-2: “Antes de o mundo ser mundo aquele que é a Palavra já existia.”

44 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., pp. 47, 48. 45

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.48.

46 Segundo Mircea Eliade, são as palavras que actualizam os mitos: “não basta conhecer o mito

da origem, é preciso recitá-lo; isto é, de certo modo, proclamar o seu conhecimento.” ELIADE, Mircea –

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De seguida, ainda neste resumo, esboçam-se, de forma clara e objectiva, os antecedentes da obra e o projecto de escrita. P. Martins é incumbido da missão de redigir Vtopia III pelo descendente de Rafael Hitlodeu, Miguel Hytlodeu. Apesar das limitações assumidas por P. Martins como escritor, este confessa o seu amor à “Verdade”, como compensação para aquela carência e como princípio para a escrita sobre a contemporânea sociedade ideal utopiana e para a crítica às instituições do “Velho Mundo”.

Também nos paratextos se verifica o espírito lúdico da obra, nomeadamente na apropriação feita pelo seu autor, Pina Martins, de uma citação do Moriae Encomium47 de Erasmo para lhe atribuir um valor de dedicatória pessoal adstrito à redacção de Vtopia III.

O mesmo procedimento de jogar com as citações é utilizado na página IX onde um texto do humanista Erasmo de Roterdão destaca o génio invulgar de Thomas More. É de assinalar que a inserção de um texto de Erasmo havia já concorrido para criar a ambiência de verosimilhança que perpassa na Utopia de More.

Na página seguinte, prossegue-se a situação de jogo na pequena nota onde, à guisa de folhetim, ou de um produto de televisão ficcionado, Pina Martins se defende de eventuais acusações de atentar contra o bom-nome de pessoas e instituições mencionadas em Vtopia III. Com efeito, em tom irónico, P. Martins esclarece que não passa de uma coincidência qualquer semelhança que essas pessoas e instituições possam ter com o plano da realidade. A este propósito, Fátima Vieira salienta que,

“(…) inerente ao género literário utópico está pois um jogo de movimentos contrários, sublinhados por uma constante interpenetração dos planos do real e da ficção e de toda uma simbologia – expressa essencialmente em neologismos – que confunde o leitor, que ora se deixa embalar pelo sonho de Hitlodeu, ora é acordado por Thomas More narrador para a realidade da sociedade e dos homens que a constituem.”48

A mesma autora, noutro contexto, e ainda a propósito da Utopia de More, fala também de uma “intencional falta de clareza na veiculação da mensagem do autor –

47 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.1.

47 VIEIRA, Fátima - “Utopia III, de Pina Martins: finalmente o verdadeiro espírito moreano em

Portugal” [Em linha]. Deptº de Estudos Anglo-Portugueses - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS ANGLO-PORTUGUESES, 1, 2001, actual. Fevereiro 2008. [Consult.Janeiro 2004]. Disponível em www:

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assente em complexos jogos de significados que ele confia ao leitor para desvendar.”49

Esses jogos de significados verificam-se em vários planos: no da estrutura da obra; na ambiguidade do discurso; no estatuto dos vários intervenientes no discurso, e que articulados entre si geram uma tensão narrativa que oscila entre alusões históricas e invenções imaginárias. É pois necessário decifrar enigmas, indícios para se compreender a obra em toda a sua profundidade.

Na Utopia de More deparamos com o discurso visionário de um navegador que nos apresenta, com provas dadas, a existência de uma sociedade-outra, “secundum natura and rationem” e que propõe soluções para a sociedade inglesa afectada pelas desigualdades sociais e pela incapacidade do seu sistema judicial em consequência de uma emergente economia capitalista.

Enquanto alguns leitores contemporâneos de More não põem em causa essa nova sociedade, e acreditam na existência real de Utopia, cuja descrição é apoiada em diversas referências que podem ser documentadas em vários relatos de viagens, outros vêem no livro de More uma espécie de meio alegórico de difusão de ideais políticos e sociais.

Recuando à primeira carta de Thomas More a Pedro Gilles, publicada logo na edição princeps de Utopia, verifica-se que esta concorre para criar um ambiente de verosimilhança em torno da invenção da ilha ideal, uma vez que o propósito da missiva é justamente de dar conta do que More - e outras testemunhas, incluindo o seu destinatário Pedro Gilles, ouviram de Rafael Hitlodeu. Nessa carta, More pede esclarecimentos sobre pormenores da exposição de Hitlodeu. Existe, portanto, a tentativa de iludir o leitor, o plano real e ficcional confundem-se, culminando com o pedido que Thomas More faz a Pedro Gilles para este voltar a falar com Rafael Hitlodeu para lhe esclarecer algumas dúvidas quanto a alguns aspectos da sociedade utopiana. More, no final da carta, assinala o hibridismo literário que caracteriza a obra e admite

49 VIEIRA, Fátima – “Os Jogos de Significados ou o Significado dos Jogos em Utopia de

Thomas More”. Línguas e Literaturas. Revista da Faculdade de Letras do Porto. Porto. Vol.XIII, (1996), p.52.

Referências

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