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Blackface : Otelo nas faces de Orson Welles e Laurence Olivier.

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Academic year: 2021

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THAÍS LIMA E SENA

BLACKFACE: OTELO NAS FACES DE ORSON WELLES E LAURENCE OLIVIER

Mariana 2017

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Thaís Lima e Sena

BLACKFACE: OTELO NAS FACES DE ORSON WELLES E LAURENCE OLIVIER

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos da Linguagem do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos da Linguagem. Linha de Pesquisa: Linguagem e memória cultural Orientadora: Profa. Dra. Maria Clara Versiani Galery

Mariana 2017

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Aos meus pais, Sávio e Miriam; ao meu irmão Vinícius; meu porto seguro.

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AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos relacionados com a produção deste trabalho:

À minha orientadora, Professora Dra. Maria Clara Versiani Galery, pelos conhecimentos compartilhados, por sua dedicação, e imensurável contribuição durante a elaboração dessa pesquisa.

À Professora Dra. Kassandra da Silva Muniz pela importante contribuição no tocante ao escopo teórico deste trabalho que embasou parte da seção teórica desta dissertação.

À Universidade Federal de Ouro Preto e à CAPES por concederem-me a bolsa favorecendo a conclusão desse trabalho.

À minha família, meu pai, minha mãe e meu irmão, pela paciência e apoio durante essa empreitada. Por terem facilitado meus caminhos de sempre, e por terem alegrado muitos dos meus dias. Obrigada por acreditarem que eu venceria mais essa etapa em minha vida. À vovó Cristina, meu exemplo de sabedoria e fortaleza. À Elka pelo apoio e companheirismo de todos os dias.

À Philippa, minha irmã de coração, e companheira de vida. Razão principal que me motivou a desenvolver essa pesquisa. Obrigada pelo amor e o incentivo de cada dia. Obrigada por ter me dado o Nikkai, que há quase dois anos enfeita e colore os meus dias.

À minha amiga Lídia, por estar comigo desde 2003, obrigada pela companhia, apoio, e nossas boas risadas.

Às minhas amigas, presentes que ganhei na academia, Alessandra, Érica e Juliana, obrigada pelo companheirismo de todas as horas. Pelas discussões acadêmicas, risadas, e conversas intermináveis.

Enfim, agradeço a Deus pela graça de mais uma realização pessoal alcançada, meu companheiro de todos os dias. Nunca estive só.

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RESUMO

The Tragedy of Othello, the Moor of Venice, uma das grandes tragédias de Willian Shakespeare, foi encenada pela primeira vez em 1604. Do mesmo modo que Shakespeare bebeu de várias fontes para escrever sua obra, as peças são alvo das mais variadas formas de adaptação. As questões abordadas pelo dramaturgo na peça Otelo e os motivos que o levaram a abordá-las tornam-se claros no momento em que entendemos o contexto social e cultural em que ele estava inserido. A obra de Shakespeare passa a ser disseminadora de significados culturais a partir de sua produção e, posteriormente, através de suas adaptações em outros tempos em outras sociedades. A estrutura do nosso trabalho tem como foco central as questões raciais desenvolvidas por Shakespeare na peça Otelo a partir da caracterização do mouro. Ademais, é sabido que no teatro elisabetano o personagem Otelo era representado através da prática do blackface. Ou seja, um ator branco que se pintava de negro para desempenhar o papel do mouro. Assim sendo, observamos que a prática conhecida como blackface — termo que tomamos emprestado dos blackface minstrel shows americanos — na representação do personagem do mouro ocorre tanto nas encenações renascentistas da peça, quanto nas adaptações fílmicas que foram escolhidas para serem analisadas neste trabalho, a saber, o filme Othello de 1952, dirigido e estrelado por Orson Welles, e o de 1965, protagonizado por Laurence Olivier. O cerne de nossa pesquisa se concentra na análise do personagem Otelo a partir das formas de representação dele, o que implica nas construções do negro no meio social. Assim sendo, examinaremos como essas representações do personagem foram elaboradas dentro do contexto histórico de cada adaptação tendo em vista a prática do blackface.

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ABSTRACT

The Tragedy of Othello, the Moor of Venice, one of William Shakespeare's great tragedies, was performed for the first time in 1604. In the same way that Shakespeare drew from various sources to write his work, the plays are targets of the most varied forms of adaptation. The issues addressed by the playwright in the play Othello and the reasons that led him to address them become clear when we understand the social and cultural context in which he was immersed. Shakespeare's work ends up being a disseminator of cultural meanings based on its production and, subsequently, undergoes its adaptations in other times in other societies. The structure of this work has as its main focus racial issues addressed by Shakespeare in the play Othello based on the characterization of the Moor. Moreover, it is known that in Elizabethan theatre the character Othello was performed with the practice of blackface. In other words, a white actor that would paint himself black, to play the role of the Moor. Thus, we observe that the practice known as blackface — a term that we borrow from the American blackface minstrel shows — in playing the role of the Moor, occurs as much in Renaissance enactments of the play, as in the film adaptations which were chosen to be analyzed in this paper, namely, the film Othello from 1952, directed and performed by Orson Welles, and the 1965 film performed by Laurence Olivier. The core of our research focuses on the analysis of the character Othello based on how he is performed, which implicates how black people are perceived in society. Therefore, we will examine how these representations of the character were drawn up within the historical context of each adaptation bearing in mind the practice of blackface.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 – Billy B. Van caracterizado através do blackface...55

FIGURA 2 – Nigger - minstrel money boxes………...57

FIGURA 3 – Laurence Olivier caracterizado como Otelo em 1964/1965...72

FIGURA 4 – Orson Welles se caracterizando como Otelo em 1951...84

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 10

2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA PEÇA ... 16

2.1. OTHELLO POR HUGH QUARSHIE ... 16

2.2. O MOURO DE VENEZA – CINTHIO ... 25

2.3. GEOGRAPHICAL HISTORIE – LEO AFRICANUS ... 33

3. SHAKESPEARE ENTRE O TEATRO E O CINEMA ... 38

3.1. TRADIÇÕES/CONVENÇÕES TEATRAIS E FÍLMICAS ... 38

3.2. A PRÁTICA DO BLACKFACE ... 44

3.2.1. Blackface minstrel shows ... 53

3.2.2. Manifestações do blackface na cultura popular contemporânea ... 59

4. OTELO NAS FACES DE LAURENCE OLIVIER E ORSON WELLES ... 64

4.1. OTELO NA FACE DE LAURENCE OLIVIER ... 64

4.1.1. Representando Othello 1965 ... 67

4.2. OTELO NA FACE DE ORSON WELLES ... 79

4.2.1. Representando Othello 1952 ... 83

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 90

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Foi roubado, senhor, vista o casaco. Seu coração partiu, sua alma foi-se; Neste momento um bode velho e preto Cobre a sua ovelhinha; venha logo. Vá despertar com o sino os que dormiam, Senão o demo vai fazê-lo avô. Levante logo [William Shakespeare]

Se um ator negro fizesse o papel de Otelo será que ele não correria o risco de fazer os estereótipos raciais se legitimarem e até mesmo se tornarem reais? Quando um ator negro faz o papel que foi escrito para um ator branco que utiliza uma maquiagem negra, e um papel que foi escrito para uma audiência predominantemente branca, ele não estaria reforçando a maneira branca, ou até mesmo a maneira errônea de se olhar para um homem negro? Dizendo que homens negros ou mouros são extremamente emocionais, nervosos e instáveis, deste modo justificando a fala de Iago, “Esses mouros são instáveis em seus desejos” (1.3.346)? De todas as partes do cânone, talvez Otelo seja o único personagem que definitivamente não deve ser representado por um ator negro. [Hugh Quarshie]

Da parte mais negra de minha alma, através da zona de meias-tintas, me vem este desejo repentino de ser branco. Não quero ser reconhecido como negro, e sim como branco. Ora — e nisto há um reconhecimento que Hegel não descreveu — quem pode proporcioná-lo, senão a branca? Amando-me ela me prova que sou digno de um amor branco. Sou amado como um branco. Sou um branco. Seu amor abre-me o ilustre corredor que conduz à plenitude... Esposo a cultura branca, a beleza branca, a brancura branca. Nestes seios brancos que minhas mãos onipresentes acariciam, é da civilização branca, da dignidade branca que me aproprio. [Franz Fanon]

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1. INTRODUÇÃO

The Tragedy of Othello, the Moor of Venice, uma das grandes tragédias de Willian Shakespeare, foi encenada pela primeira vez em 1604. Para a análise da peça, é necessário pensar Othello a partir de discussões globais que antecederam a escrita de Shakespeare e que ressoavam em textos do século XVI e XVII. Do mesmo modo que Shakespeare bebeu de várias fontes para escrever sua obra, as peças são alvo das mais variadas formas de adaptação1. Othello é uma obra que foi adaptada diversas vezes para o cinema. A título de exemplificação, temos Othello (1922), dirigida por Dimitri Buchowetzki; Othello (1952), por Orson Welles; Othello (1955), por Sergei Yutkevich; Othello (1965), por Stuart Burge; Othello (1981), por Jonathan Miller; Othello (1995), por Oliver Parker; e Othello (2001), por Geoffrey Sax. Além de fazer parte da indústria de entretenimento, algumas dessas adaptações são consideradas realizações artísticas e são classificadas como “adaptações conservadoras” dentro da indústria cinematográfica dos filmes shakespearianos.

Encontramos em todas as sociedades uma série de conflitos, ideologias e contradições que são inerentes ao seu corpo estrutural. Shakespeare, por meio de adaptações de histórias já existentes, compôs a peça Othello, em que questões tais como nacionalismo, orientalismo, colonialismo, militarismo, raça e gênero estão presentes. Sabemos, no entanto que, no meio acadêmico, uma das questões mais escolhidas para análise da peça é a questão racial. Faz-se necessário explicar que não podemos desvincular o conceito racial de outros aspectos abordados na peça, como o colonialismo e as questões de gênero, por exemplo. Mais adiante, faremos algumas reflexões sobre o conceito de raça, ponto fundamental para o desenvolvimento da nossa pesquisa.

A introdução do livro Post-colonial Shakespeares, de Ania Loomba e Martin Orkin, assinala a importância da análise de questões históricas como ponto de partida aos estudos shakespearianos. Para Loomba e Orkin, a interação histórica existente entre a obra de Shakespeare e o colonialismo delineia questões importantes para a análise das peças. A

1 No compêndio Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare, compilado por Geoffrey Bullough em 1973, encontram-se algumas fontes que Shakespeare utilizou como inspiração para escrever suas peças. Virginia Mason Vaughan destaca que o dramaturgo, através desses textos, desenvolveu elementos como enredo, caracterização dos personagens, e a linguagem de suas peças.

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expansão do império britânico, por meio do colonialismo, é um fator relevante para a obra de Shakespeare ter alcançado diversas culturas, tendo até mesmo sido imposta a elas.

O trabalho teórico de Virginia Vaughan dialoga com as ideias de Ania Loomba e afirma a importância de demonstrar Othello não somente como produto de um determinado ambiente cultural, mas também como obra disseminadora de significados culturais. Para a autora, “historicizar Othello no âmbito de uma geração em particular e de uma cultura, com sua moldura histórica, é uma ferramenta crucial para a compreensão das adaptações da peça como produções que substancialmente alteram o texto de Shakespeare”2 (VAUGHAN, 1994, p.7).

As questões abordadas pelo dramaturgo na peça Othello e os motivos que o levaram a abordá-las tornam-se claros no momento em que entendemos o contexto social e cultural em que ele estava inserido. A obra passa a ser disseminadora de significados culturais a partir de sua produção e, posteriormente, através de sua recepção em outros tempos por outras sociedades. Essa interface entre passado e presente é imprescindível para a compreensão da peça original e de suas adaptações. Nas palavras de Greenblatt: “A obra de arte é um produto da negociação entre um criador, ou classe de criadores, equipados com um complexo repertório de convenções comunais compartilhadas, instituições e práticas da sociedade” (GREENBLATT, 1989, apud, VAUGHAN, 1994).

Antes de darmos continuidade aos caminhos que tomaremos para desenvolver a presente dissertação, é importante salientar que Lewis R. Gordon, no prefácio de Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, explica que o autor ressalta inicialmente em seu livro que “racismo e colonialismo deveriam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele. Isto significa, por exemplo, que os negros são construídos como negros” (FANON, 1998, p.15). Assim, abordando a estrutura do nosso trabalho, tendo como foco central as questões raciais desenvolvidas por Shakespeare na peça Othello, chegamos a um ponto importante, que consiste na análise do personagem Otelo a partir das formas de representação dele, o que implica nas construções do negro no meio social. Ademais, é sabido que no teatro elisabetano, o personagem Otelo era representado através da prática do blackface. Ou seja, um ator branco se pintava de negro para desempenhar o papel do mouro. Assim sendo, observamos que a prática conhecida como blackface — termo que tomamos emprestado dos blackface minstrel shows

2 In Stephen Greenblatt’s words, “The work of art is the product of a negotiation between a creator or a class of creators, equipped with a complex, communally shared repertoire of conventions, and the institutions and practices of society” (VAUGHAN, 1994, p.3).

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americanos — na representação do personagem do mouro, ocorre tanto nas encenações renascentistas da peça, quanto nas adaptações fílmicas que foram escolhidas para serem analisadas neste trabalho, a saber, o filme Othello de 1952, dirigido e estrelado por Orson Welles, e o de 1965, em que o personagem que dá título à obra é vivido por Lawrence Olivier. A partir dessa constatação, interessa-nos analisar o processo de transmutação da peça The Tragedy of Othello, the Moor of Venice, de Shakespeare, para as duas adaptações fílmicas citadas anteriormente.

Levaremos em consideração as abordagens utilizadas na elaboração das adaptações - com o foco na caracterização do personagem Otelo, alinhando-as aos estudos coloniais e pós-coloniais, observando as questões raciais que foram propostas pelo dramaturgo a fim de analisar as possíveis maneiras que elas ressoam nas adaptações fílmicas em questão. Acreditamos que assim poderemos contribuir para a fortuna crítica da peça por meio de novas leituras da obra, visando o amplo leque de sua recepção.

Ao analisarmos a obra de Shakespeare, é necessário ratificar, no entanto, que os termos “raça” e “colonialismo”, bem como a prática do blackface e as questões análogas a essa prática, que serão discutidas nesse trabalho, utilizadas pelos atores na época renascentista, enquanto conceitos históricos que adotamos hoje, passaram por diversas mudanças e foram problematizados. As questões relacionadas à negritude, que permeiam nossa sociedade, por exemplo, não são as mesmas questões marcantes para as definições de raça no século XVI. Para chegarmos, portanto, a essa formulação, nos atemos à explicação de Ania Loomba (1988), a autora afirma que os termos “raça” e “colonialismo” estão conectados, pois as definições raciais se tornaram mais presentes e estruturadas a partir do colonialismo. Essas questões implicam no “outro racial”, conceito que trabalharemos de maneira mais aprofundada ao decorrer do nosso trabalho. Desse modo, é relevante observar que o “preconceito racial” em relação ao negro já existia antes do colonialismo, porém a maneira do homem branco abordar essa questão, e seus efeitos, foram transformadas com o tempo através das relações coloniais.

“Shakespeare é o espaço onde se encontram as questões coloniais e pós-coloniais, mas esses encontros não podem ser compreendidos sem fazer referência a questões específicas como: questões sociais, políticas e histórias institucionais”.3 (LOOMBA; ORKIN, 1988, p.17). Dessa maneira, através da análise e comparação das diferentes visões de Othello, tendo em vista a prática do blackface, examinaremos como

3 Shakespeare is the site for colonial and post-colonial encounters, but these encounters cannot be understood

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essas representações do personagem foram elaboradas dentro do contexto histórico de cada adaptação. A prática teatral do blackface resume-se, como já pontuamos anteriormente, à representação de um personagem negro por um ator branco por meio de maquiagem. Essa prática, ao ser analisada de forma detalhada, nos permite identificar, em certos contextos, uma representação estereotipada e caricatural do negro. Para ilustrarmos essa questão, faremos, portanto um breve panorama histórico sobre a prática do blackface que, enquanto conceito histórico, começou a ser construído durante a Revolução Industrial, nos Estados Unidos, a partir do século XIX. Voltando à afirmação que “os negros são construídos como negros” (FANON, 1998, p.15), podemos dizer que as convenções utilizadas na caracterização do personagem Otelo, através da prática do blackface nas adaptações fílmicas escolhidas para análise, podem ser caracterizadas como “racistas”. Ou seja, a forma que os atores e diretores brancos escolheram para caracterizar o personagem central das adaptações resume-se à imagem que o homem branco construiu de um personagem negro. Buscaremos, portanto, tecer uma reflexão sobre o colonialismo e sua confluência na transmutação da peça para os dois filmes, a fim de problematizar a construção racial do personagem nos filmes, levando em conta a prática do blackface e comparando a forma como Welles e Olivier a utilizaram na representação do personagem Otelo. A contextualização dos filmes possibilitará a discussão não só de determinados elementos da peça Othello enfatizados nas adaptações, mas também daqueles que são omitidos nas adaptações, a partir de razões e justificativas pertinentes.

É verdade que nós não devemos nivelar o passado, enxergando-o somente através das lentes de nossas próprias premissas e imperativos. No entanto, não é desejável, ou talvez não seja possível, desapegar totalmente o passado do presente. A idade moderna europeia foi a época fundamental para a gênesis de diversas instituições e práticas dessa época, e depois, através dos regimes coloniais, ela foi importante para a gênesis de sociedades não europeias. Nós lemos o passado para entender nossas próprias vidas, e igualmente, nossos próprios compromissos nos direcionam para a “verdade” sobre o passado. A relação entre sociedades separadas pelo tempo é tão complexa quanto a relação entre as sociedades que estão espacialmente e culturalmente separadas — nos dois casos “a diferença” é a categoria que não deve ser nem apagada nem valorizada.4

(LOOMBA; ORKIN, 1988, p.5, 6, tradução nossa).

4“[…] It is certainly true that we must not flatten the past by viewing it entirely through the lens of our own

assumptions and imperatives. However, neither is it desirable, or even possible, entirely to unhook the past from the present. Early modern Europe was the crucible for the genesis of many modern European institutions and practices, and later, via colonial regimes, of many non-European ones as well. We read the past to understand our own lives, and equally, our own commitments direct us to the “truth” about the past. The relationship between societies separated in time is as complex as the one between societies that are spatially and culturally apart - in both cases “difference” is a category that should be neither erased nor valorized” (LOOMBA; ORKIN, 1988, p.5, 6).

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Assim sendo, no primeiro capítulo, faremos um percurso teórico no que se refere à contextualização da peça Othello. Para tanto, achamos pertinente abordarmos em um primeiro momento a visão do teórico negro, Hugh Quarshie, no que se refere à análise da peça, pois acreditamos ser de imensa importância suas colocações. Quarshie explica de forma particular, como Shakespeare, um autor branco, construiu seu personagem, o mouro de Veneza, um homem negro. O autor avalia também quais são as implicações da recepção desse personagem pela sociedade vigente, além do que significaria a seu ver, um ator negro representar o personagem Otelo. Em seguida, ao definirmos a peça como um drama político, exploraremos alguns textos que Shakespeare pode ter tido acesso e que ressoam em Othello. A partir desses textos, daremos ênfase na caracterização do personagem principal da peça, ilustrando algumas possibilidades de abordagem das questões raciais, e dos estereótipos que eram atribuídos aos mouros na época renascentista.

No segundo capítulo, iremos demonstrar alguns aspectos da peça Othello the Moor of Venice, no teatro elisabetano e pontuaremos algumas convenções, e tradições teatrais e fílmicas, demonstrando alguns conceitos teóricos dentro da teoria da adaptação, para em seguida darmos continuidade aos estudos e análise da caracterização do mouro.

No terceiro capítulo, faremos um panorama histórico do conceito de blackface, a partir dos blackface minstrel shows nos Estados Unidos no século XIX. Observaremos também como o conceito racial começou a ser construído no período colonial, e como foi moldado e estruturado através do capitalismo, durante a Revolução Industrial nos Estados Unidos. Achamos relevante para nossos estudos, mostrar o poder simbólico do conceito de “branquidade”: espaço de prestígio construído e ocupado pelo homem branco dentro da sociedade que, a nosso ver, caminha lado a lado com as relações de dominação colonial. Assim, poderemos ilustrar outras questões análogas à prática do blackface que serão discutidas nesse trabalho.

Sabemos, no entanto, quão complexo seria abordar as forças históricas, que abraçam a variedade de questões teóricas referentes à raça, colonialismo e branquidade. É importante salientar, portanto, que esses estudos estão em constante desenvolvimento no âmbito da crítica cultural pós-colonial. E que, para desenvolver nosso trabalho, escolhemos uma abordagem “relativamente” nova, que implica em colocar o espaço da branquidade em evidência para o desenvolvimento da análise do corpus desta pesquisa. Desse modo, como uma pesquisadora branca, foi inevitável que me deparasse com diversos questionamentos relacionados ao meu lugar de fala durante o desenvolvimento desse trabalho. Gostaria de elucidar que desenvolvi essa pesquisa me atentando sempre ao

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espaço de privilégio que ocupo em nossa sociedade. Meus caminhos para a escrita foram pautados em tecer um olhar teórico sobre as questões raciais com a consciência de estar tratando de questões que não foram vivenciadas por mim. Assim, justifico aqui mais uma vez, o quão pertinente foi analisar a visão de Othello por Hugh Quarshie, para o desenvolvimento de nossa pesquisa.

Por fim, observaremos o processo de transmutação da peça para as adaptações fílmicas Othello de 1952 e Othello de 1964, com o objetivo de identificar na representação do personagem principal, traços semelhantes àqueles que foram intensificados no que tange a questões raciais relacionadas ao mouro no texto de Shakespeare. É importante ratificar, porém, que nossa pesquisa será pautada nas palavras de Virginia Mason Vaughan: “Como deve ter ficado aparente até aqui, não existe nenhum resultado final – não ainda, e talvez nunca haverá – ao uso de Othello” (VAUGHAN, 1994, p. 237).5 Nosso objetivo será, portanto, verificar de que forma o teatro, a literatura e o cinema podem ter disseminado questões raciais, transformando-as, no contexto pós-colonial, em um discurso que pode ser entendido como racista.

5As should be apparent by now, there is no final result – not yet, and almost certainly never – to the uses of Othello (VAUGHAN, 1994, p. 237).

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2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA PEÇA

2.1. OTHELLO POR HUGH QUARSHIE

A Universidade do Alabama, nos Estados Unidos, é conhecida por ter sido palco de conflitos entre brancos e negros, devido à segregação racial que foi característica da instituição. Em diversas áreas do país, brancos e negros não se misturavam, não frequentavam as mesmas escolas e viviam em regiões distintas. Na década de 1930, o governo americano instituiu uma prática que facilitou a segregação, ao oferecer financiamento imobiliário para a população, com a finalidade de impulsionar o crescimento econômico. No entanto, esse financiamento não era permitido às famílias negras, e até 1948 era proibido que uma pessoa negra comprasse uma casa em alguns estados dos Estados Unidos. Portanto, houve o crescimento da população branca vivendo nas áreas nobres das cidades, enquanto os negros habitavam locais menos favorecidos. Nesse período, também era muito comum casos de violência contra os negros.

O movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos que iniciou em 1955, teve como principal líder Martin Luther King. Esse movimento visava acabar com a discriminação e com a segregação racial. King influenciou vários grupos de negros e brancos que se uniram para viajar até as cidades segregadas do sul do país, mobilizados pelo desejo de não violência contra os negros. Esses grupos integracionistas ocupavam espaços públicos reservados aos brancos como forma de protesto contra a segregação racial. Em 1964, foi aprovada a legislação conhecida como Civil Rights Act, que considerava ilegal a discriminação relacionada à cor, à raça, ao sexo e à religião. Tal legislação abriu espaço para a integração racial no território norte-americano.

George C. Wallace, político que nasceu em Clio, cidade do Alabama, trabalhou de 1960 até 1980, como governador de seu estado. Wallace apoiava a segregação racial nos Estados Unidos, atuando de forma expressiva no estado do Alabama. O governador tinha apoio político do KuKluxKlan e uma de suas mais famosas falas é: “Segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre”. Em 1963, Wallace se posicionou, em frente à porta da Universidade do Alabama, a fim de impedir que dois alunos negros, Vivian Malone e James Hood, entrassem no prédio da universidade. O político foi opositor à integração durante todo seu mandato.

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Hugh Quarshie, conceituado intelectual e ator negro, nascido em Gana, em 1954, e naturalizado inglês, inovou as convenções de casting na Royal Shakespeare Company (RSC), tornando-se, em 1980, o primeiro ator negro a interpretar importantes papéis, tais como os de Hotspur em Henry VIII, Teobaldo em Romeo and Juliet, Antônio em The Merchant of Venice e Banquo em Macbeth, até então destinados apenas à interpretação de atores brancos no âmbito da RSC. Convidado, em 1998, proferiu uma palestra na Universidade do Alabama chamada Hesitations on Othello, em que fez colocações sobre a peça a partir de um novo olhar crítico, ou seja, a visão de Otelo por um ator negro. Essa apresentação foi considerada um marco histórico nos Estados Unidos, uma vez que o teatro da universidade estava tomado por estudantes – uma audiência formada por negros e brancos, juntos em um mesmo ambiente – para ouvir um intelectual e ator negro falar sobre um dos mais canônicos escritores brancos. Uma curiosidade interessante é que George C. Wallace havia falecido duas semanas antes da palestra de Quarshie e, durante o ano de sua morte, um sexto dos novos alunos integrantes na Universidade do Alabama era negro. Portanto, pode-se dizer que, em 1998, a Universidade do Alabama havia se tornado uma universidade relativamente integrada.

A respeito da palestra de Quarshie, pontuaremos as três questões principais discutidas pelo ator. A primeira é que Shakespeare, ao tomar emprestado o conto Gli Hecatommithi e adaptá-lo para o palco, endossa um caráter racista à peça; a segunda é que as performances e interpretações da peça continuam a reforçar visões racistas; e a última, que Shakespeare, ao desenvolver as características do personagem Otelo, justifica o comportamento do mouro através da cor de sua pele, ou seja, seu comportamento está relacionado ao fato de ele ser negro. Portanto, na visão de Quarshie, não há como classificar a peça sem julgá-la racista.

Quarshie acreditava que a língua inglesa precisava de uma palavra para descrever a representação dos negros através da ótica dos brancos e propôs o termo negrobilia. Ao usar a palavra negrobilia, o ator afirma que, inevitavelmente, toda leitura que é feita de um texto traz à tona muito sobre o sujeito interpretante. Shakespeare, ao adaptar Gli Hecatommithi, revela muito sobre si mesmo, ou seja, a intolerância racial introduzida em sua peça revela, na visão de Quarshie, a intolerância racial do próprio autor, devido aos acréscimos que Shakespeare introduziu ao conto italiano:

Em sua adaptação para o teatro, Shakespeare introduziu a intolerância racial de Brabâncio, fazendo com que Otelo e Desdêmona se casassem escondido. O personagem Rodrigo foi desenvolvido como descrente no amor. E o autor também acrescentou à peça a invasão turca. Ele inventou

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a tempestade violenta, a convulsão epiléptica e a diferença de idade entre Otelo e Desdêmona. Ele criou Emília como uma personagem ingênua em relação à trama e a seu marido Iago. E fez com que Otelo estrangulasse Desdêmona com suas mãos negras, com o intuito de fazer com que o seu assassinato não parecesse um acidente6 (QUARSHIE, 1999, p.7, tradução

nossa).

É preciso ratificar, portanto, que algumas mudanças foram necessárias na adaptação de Othello para que Shakespeare obtivesse o efeito dramático; já outras foram efetuadas para que a peça fosse representada especificamente pelos atores da companhia teatral do dramaturgo. É possível que a diferença de idade entre Desdêmona e Otelo tenha sido algo intencional, pois o ator que fazia o papel de Otelo, na companhia de Shakespeare, deveria ser mais velho do que aquele que representava Desdêmona, provavelmente um jovem adolescente. Entre essas questões, na visão de Quarshie, um dos maiores efeitos adicionados à peça foi a ênfase atribuída à questão racial.

Na versão de Shakespeare, a raça de Otelo e sua cor não determinam simplesmente as reações que os outros personagens tinham para ele, elas também se desenvolvem de uma maneira que explicam suas ações. Em outras palavras, Shakespeare sugere que Otelo se comporta de certa maneira pelo fato de ser negro. E ao sugerir que o comportamento de alguém se dá através de uma raça determinada é ser racista por definição.7 (QUARSHIE, 1999, p.7, tradução nossa).

Alguns estereótipos da literatura na época de Shakespeare relacionados aos mouros já haviam sido estabelecidos na Europa e essas convenções podem ter permitido que Shakespeare desenvolvesse o personagem Otelo justificando a mudança de seu temperamento, seu descontrole emocional, sua agressividade e sua fúria, não por questões psicológicas, mas por questões “raciais”. Quarshie explica que, quando o mouro entrava em cena, a audiência elisabetana já poderia imaginar o que estava por vir; as concepções que tinham sobre os mouros faziam com que eles esperassem algo relacionado ao sexo, à violência, à mutilação, ao assassinato ou à blasfêmia. Para Quarshie, Shakespeare, na primeira parte da peça, desenvolve o personagem Otelo colocando-o em uma posição

6“In his adaptation for the stage, Shakespeare introduces the racially intolerant Brabâncio, making it

advisable, if not necessary, for Othello and Desdêmona to elope; he introduces the credulous and lovelorn Roderigo; and he introduces the Turkish invasion. He invents the violent storm, the epileptic fit and the age-gap between Othello and Desdêmona. He makes Emilia ignorant of her husband Iago’s plot; and makes Othello strangle Desdêmona with his bare, black hands, thereby making it difficult if not impossible to pass off her death as an incident” (QUARSHIE, 1999, p.7).

7“In Shakespeare’s version, Othello’s race and colour do not simply determine the reactions of the other

characters to him; they also go some way toward explaining his actions. In other words, Shakespeare suggests that Othello behaves as he does because he is black. And to suggest that a person’s behaviour is racially determined is, by definition racist” (QUARSHIE, 1999, p.7).

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inferior à dos outros personagens. Por mais que o mouro ocupasse uma posição de respeito, como militar, ele era visto como o outro, o negro, o que não fazia parte da sociedade veneziana.

Para o ator africano, não existe dúvida de que o comportamento de Otelo, que culmina no desejo de vingança — a intenção de matar Cassio — e de preservação da honra — o estrangulamento de Desdêmona, “com suas mãos negras”8—, leva a peça a ser

entendida como uma espécie de texto didático (moral tale) sobre questões raciais de miscigenação e características sexuais. Quarshie explica que “Shakespeare poderia ter contado uma história sobre ciúmes, traição e vingança sem utilizar referências raciais. Eu sugiro que ele escolheu o conto de Cinthio, pois tinha a intenção de dar ênfase à figura do mouro”9 (QUARSHIE, 1999, p.11). O estereótipo do mouro, marcado pela cor e outras

características que culminavam na diferenciação racial visada no período elisabetano, foi impresso a Othello. Essa imagem persistiu durante algum tempo na imaginação do público da época e na obra de outros autores. Atualmente, diversos papéis shakespearianos são problematizados por atores, diretores e outros estudiosos. Isso ocorre não apenas em relação às questões raciais, mas também àquelas de gênero.

Os papéis de Desdêmona, Emília e Bianca foram escritos por Shakespeare para ser interpretados por homens. Quarshie explica que é diferente quando esses mesmos papéis são encenados por atrizes. Um homem atuando como mulher, naquela época, através das falas propostas pelo dramaturgo, poderia produzir um efeito de ironia e zombaria. No entanto, uma mulher não atingiria o mesmo efeito, pois sua imagem, o fato de ser mulher, só confirmaria, através de suas falas na peça, as concepções relacionadas à inferiorização das mulheres que estavam enraizadas na sociedade da época. A representação por mulheres dos papéis femininos na peça, hoje em dia, pode ser problemática, corroborando certa visão que aparece na peça, em que ela é objetificada. A mulher precisava servir e seguir as ordens dos homens e, portanto, era colocada em um patamar inferior. Uma passagem interessante, que exemplifica essa questão, é a visão que Iago tem das mulheres.

Eu sei. Na rua são como retratos; Na sala, sinos; na cozinha, feras. Santas se ofendidas, demos na ofensa.

8Nas palavras de Quarshie “[...] with his bare black hands.” (QUARSHIE, 1999, p.10, ênfase nossa). 9“The point is that Shakespeare, had he wanted, could have done something similar: he could have told a tale of jealousy, betrayal and revenge without racial references. I suggest that he chose the Cinthio story because he wanted to capitalize on the figure of the Moor” (QUARSHIE, 1999, p.11).

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Na casa brincam, o ofício é na cama.

(SHAKESPEARE, trad. HELIODORA, 1999, p.53)10

Logo, é evidente que o mesmo ocorre em relação às questões raciais abordadas por Shakespeare quando transportarmos esses conceitos para os dias de hoje. Otelo era visto, pelos personagens da peça, como o estrangeiro, “o outro”, o mouro, o turco, o negro: consequentemente, o demoníaco, o repugnante - na fala de Iago: “[...] terá sua filha coberta por um garanhão da Barbaria; terá netos que relincham, terá corcéis por primos e ginetes por consanguíneos” (SHAKESPEARE, trad. HELIODORA, 1999, p.18). Como aponta Vaughan, “desde a época de Shakespeare ‘o turco’ significava tudo de bárbaro e demoníaco, em contraste com as diretrizes morais e civis do cristianismo” (VAUGHAN, 1994, p.13)11. No início da peça, por exemplo, Rodrigo descreve Otelo como um “lascivo

mouro”, um “estranho errante e extravagante” (SHAKESPEARE, trad. HELIODORA, 1999, p.19). E por ser estrangeiro, e querer fazer parte da sociedade veneziana, ao conviver dentro do contexto europeu, o personagem concorda, de certo modo, com as denominações atribuídas à sua identidade. Shakespeare teve a intenção de que Otelo aceitasse sua condição de inferioridade em relação aos outros personagens e criou o discurso da peça apoiado nessas questões raciais (QUARSHIE 1999, p.12). Na época de Shakespeare, não havia problema para um ator branco fazer o papel de um negro, utilizando uma maquiagem negra e proferindo um discurso em que sua própria cor estava relacionada ao repugnante, ao pecado. Otelo, no momento que desconfia que Desdêmona realmente o traiu, compara sua esposa à sua própria face negra, relacionando sua cor à desonestidade e ao pecado.

Pois lhe juro,

Por vez a creio honesta, por vez não; Por vez sei que é correto. Por vez não; Quero prova: meu nome era tão claro Como o de Diana casta; e ora é tão negro Quanto ao meu rosto: havendo corda ou faca, Fogo, veneno ou rio que sufoca,

Não vivo assim; quem me dera saber!

(SHAKESPEARE, trad. HELIODORA, 1999, p.107)

Quarshie acredita que a ingenuidade de Otelo tira dele a designação de um herói trágico e também diminui o efeito trágico na peça. A ingenuidade de Otelo o aliena de nossa compreensão e simpatia; sua cor o aliena da sociedade veneziana. E Shakespeare

10 As citações da peça utilizadas nesse trabalho serão da versão traduzida por Bárbara Heliodora em 1999.

11 By Shakespeare’s day “The Turk” represented all that was barbaric and demoniac, in contrast to the

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insiste em dizer que a ingenuidade de Otelo, seu ciúme e seu comportamento violento estão relacionados tanto à sua cor quanto a sua raça (QUARSHIE, 1999, p.14).

Torna-se importante salientar, no entanto, que Shakespeare desenvolveu o personagem Otelo como um general forte, honrado e virtuoso. Ele é um homem importante e respeitado pela sociedade veneziana, pois é o general responsável pela segurança do estado veneziano. Ao ser questionado por casar-se escondido com Desdemona, Otelo afirma diante do senado que conquistou o amor de sua esposa contando a ela suas aventuras e triunfos como um militar. “Desdemona ama Otelo pelas suas narrativas heróicas, pelos perigos que ele passou. Ele a ama, pois ela sente piedade em relação a ele. A piedade dela, por sua vez, confirma a existência dele como um herói trágico” (VAUGHAN, 1994, p.47)12. Podemos afirmar, portanto que a ingenuidade de Otelo não retira dele a denominação de herói e tão pouco diminui o efeito trágico da peça. Vaughan acredita que:

E como percebemos com frequência hoje, Othello representa o pessoal como o político. A desconfiança e o ciume de um marido contra uma esposa de uma raça e cultura diferentes destrói sua vida pública como general e sua vida privada como um homem honrado (VAUGHAN, 1994, p.234, tradução nossa).13

Para Quarshie, a cor de Otelo na peça é intencional e os outros personagens reagem a ele devido a essa característica; a cor é determinante no caráter do personagem e isso é algo que está presente na imaginação de Shakespeare e de seu público. Explica que o personagem Otelo é uma criação do autor e da sociedade que demonstra o homem negro a partir de uma ótica branca, carregada de preconceitos raciais.

Ademais, o ator reforça que junto a esse estereótipo e outras presunções relacionadas ao personagem Otelo — sejam elas sobre a cor dele, ao fato de ele ser um mouro, sejam elas sobre seu comportamento —, as diversas reinterpretações e adaptações da peça reforçam os preconceitos raciais em que foi baseada. Quarshie exemplifica seu ponto de vista através de comentários de alguns críticos tradicionais, tais como A.C. Bradley, Antony Storr e Norman Sanders. Segundo Quarshie, Bradley reproduz a visão de Shakespeare justificando o comportamento de Otelo pelo fato de ele ser negro, comparando-o a um africano selvagem. Antony Storr reproduz o mesmo discurso no

12 Desdemona loves Othello for his heroic narrative- for the dangers that He had passed. He loves her because she pities him. Her pity, in turn, validates his existence as a romantic hero (VAUGHAN, 1994, p.47).

13And as we realize so often today, Othello represents the personal as the political. A husband’s jealous

suspicious against a wife from a different race and culture destroy his public role as a general and his private role as an honorable man (VAUGHAN, 1994, p.234).

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ensaio Othello and the Psychology of Sexual Jealousy, no qual tenta definir Otelo sem relacioná-lo à sua raça até o momento em que diz que “Otelo, por ser um estrangeiro, está mais inclinado a desconfiar da fidelidade de sua esposa, do que um homem branco”14 (QUARSHIE, 1999, p.15).

Já Norman Sanders, como afirma Quarshie, discursa sustentando sua aversão à miscigenação: para ele, não importa se Otelo é um africano ou um indiano, contanto que o personagem seja definido como estrangeiro. Sanders elogia o desempenho do ator Laurence Olivier no teatro ao interpretar Otelo pintando-se de negro, ou seja, recorrendo-se à prática do blackface. Ele escreve sobre o desempenho do ator branco, elogiando-o pela sua maquiagem negra, pela sua capacidade de reproduzir a voz característica de um negro, a caminhada de um negro, a forma como ele representa a face de um estrangeiro, um bárbaro, um negro, um indiano. Quarshie conclui que a fascinação que os críticos tinham pelo Otelo de Olivier se resumia na capacidade do ator representar e dar corpo a um personagem construído por uma convenção social preestabelecida, ou seja, a visão estereotipada que o homem branco tinha em relação ao homem negro. “Quando um ator negro representa Otelo, ele corre o risco de seguir essa convenção ao personificar a caricatura de um homem negro, reforçando essa situação”15 (QUARSHIE, 1999, p.18).

Vaughan explica que:

Assim como mostra a história do desempenho de Othello, a manipulação de Shakespeare do branco e do negro nunca perdeu seu encanto na bilheteria. A peça permitiu desfrutar de diversas interpretações e ênfases através dos séculos, com seus termos raciais abafados durante o período da restauração e no século dezoito e que foram acentuados no século vinte. O confronto retratado entre o negro e o branco continua a tocar nossos mais profundos preconceitos, medos e esperanças. (VAUGHAN, 1994, p.70, tradução nossa).16

Assim, Quarshie explica que Othello é uma peça com diversos problemas, tanto no que tange à sua estrutura quanto na caracterização de seus personagens. Para o ator, Shakespeare teve a intenção de destacar a ingenuidade de Otelo por ser um homem negro; no entanto, argumenta que todos os outros personagens, bem como a audiência

14 […] “Othello is inevitably more prone to suspect his wife’s fidelity than if he had been white” (QUARSHIE, 1999, p.15).

15“When a black actor plays Othello, he risks following in that tradition and, by personifying a caricature of a

black man, giving it credence” (QUARSHIE, 1999, p.18).

16As the performance history of Othello shows, Shakespeare’s manipulation of white and black has never lost box-office appeal. The play has admittedly enjoyed varied interpretations and emphases through the centuries, with its racial themes muted in the Restoration and eighteen century, accentuated in the twentieth. The confrontation it portrays between black and white continues to touch our deepest prejudices, fears, and hopes (VAUGHAN, 1994, p.70).

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elisabetana, são tão ingênuos quanto ele. “Cássio, que convivia com o casal, não reconheceu que o lenço que ganhara de Iago para presentear Bianca pertencia à Desdêmona; Emília, presenciando todo o ciúme de Otelo, não contou em momento algum que havia roubado o lenço a pedido de seu marido” (QUARSHIE, 1999, p. 18). De acordo com o ator, essas cenas exemplificam que a ingenuidade do público - o fato de não questionarem o comportamento dos outros personagens - tinha um motivo, pois o comportamento desses personagens na trama não era questionado. Mas como Otelo era visto como um mouro, um turco, o público ligava seu comportamento ao fato de ele ser negro. É sabido que a peça Othello foi escrita por Shakespeare para a atuação de atores brancos.

[…] se um ator negro fizesse o papel de Otelo será que ele não correria o risco de fazer os estereótipos raciais se legitimarem e até mesmo se tornarem reais? Quando um ator negro faz o papel que foi escrito para um ator branco que utiliza uma maquiagem negra, e um papel que foi escrito para uma audiência predominantemente branca, ele não estaria reforçando a maneira branca, ou até mesmo a maneira errônea de se olhar para um homem negro? Dizendo que homens negros ou mouros são extremamente emocionais, nervosos e instáveis, deste modo justificando a fala de Iago, “Esses mouros são instáveis em seus desejos” (1.3.346)? De todas as partes do cânone, talvez Otelo seja o único personagem que definitivamente não deve ser representado por um ator negro.17

(QUARSHIE, 1999, p.5, tradução nossa)

Pelos motivos expostos acima, Quarshie se recusou a interpretar o personagem Otelo inúmeras vezes. Observou que a análise da peça sob o ponto de vista de um homem negro não significa desconsiderar a peça como obra de arte, mas, no momento em que essa obra de arte diminui ou subjuga alguém por suas características raciais, ela apenas poderá ser desfrutada por um público que não se sinta diminuído ou não tenha sua identidade distorcida. Por outro lado, considera que não pode falar por outros atores negros, e acredita que atores negros devam encarar o papel de Otelo como um desafio. Acredita que é possível construir uma interpretação não racista da peça, fazendo alguns cortes em que o foco nas questões raciais seja retirado, desenvolvendo a trama somente através das características psicológicas dos personagens.

17“[…] if a black actor plays Othello does he not risk making racial stereotypes seem legitimate and even

true? When a black actor plays a role written for a white actor in black make-up and for a predominantly white audience, does he not encourage the white way, or rather the wrong way, of looking at a black man, namely that black men or Moors, are over-emotional, excitable and unstable, thereby vindicating Iago’s statement, “These Moors are changeable in their wills” (1.3.346)? Of all the parts in the canon, perhaps Othello is the one which should most definitely not be played by a black actor” (QUARSHIE, 1999, p.5).

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Em 2015, Quarshie aceitou, pela primeira vez, o papel de Otelo. Greg Doran, diretor artístico da RSC, havia sugerido que o momento era propício para que Quarshie aceitasse o papel, pois ele havia alcançado a idade perfeita para interpretá-lo. O diretor ainda acrescentou que, se o ator não aceitasse o papel naquele momento, talvez jamais o faria e sugeriu que, mesmo se decidisse não interpretar Otelo, ele deveria assumir então a direção da peça. Quarshie dirigiu a obra e interpretou o mouro a partir dos preceitos que havia desenvolvido. Evitou, portanto, que um homem branco conseguisse enganar tão facilmente um homem negro, já que o personagem de Iago também era um ator negro.

Seu objetivo mais específico era demonstrar como no relacionamento entre Desdêmona e Otelo o casal havia se encantado um pelo outro apesar da diferença de idade. Pretendia também transformar o digno mouro em um assassino magnânimo. Em seguida, fazer com que Iago tivesse muitas dificuldades para manipular Otelo e os outros personagens. Para tal, a fúria de mouro seria relacionada a seu ciúme exacerbado, o que o colocaria em perigo e, a partir disso, Iago também correria grandes riscos. Outro objetivo era relacionar o sentimento de traição de Otelo à convicção de que ele havia sido explorado pelo mercantilismo do estado veneziano no qual fora inserido e que possuía valores falsos e irreais. Portanto, a produção não era focada em questões raciais, mas, sim, em questões políticas. Quarshie conclui que produziu a peça a partir de seu contexto — portanto, sua adaptação dizia muito sobre ele — e questiona: “Mas você poderia dizer: essa é outra peça, não Othello de Shakespeare. Mas essa que é a questão, não é mesmo?”18 (QUARSHIE, 1999, p.23).

Iniciamos nossa discussão com a análise de Quarshie que serão aprofundadas neste trabalho, pois acreditamos que os pontos levantados pelo teórico são extremamente enriquecedores, tratando-se do ponto de vista de um homem negro, uma vez que o cerne de nossa pesquisa é trabalhar com as questões raciais relacionadas ao personagem Otelo.

Para a compreensão do corpus deste trabalho, torna-se necessário, no entanto, tecermos uma breve contextualização da peça e para tal feito, usaremos o livro Othello: A Contextual History, de Virginia Mason Vaughan. Optamos em citar alguns caminhos percorridos pela autora ao historicizar The Tragedy of Othello, the Moor of Venice, classificando-a como um drama político, com o objetivo de trazer novos questionamentos relacionados às diversas possíveis interpretações da peça. Vaughan observa que algumas questões são importantes em uma primeira análise de Othello, por exemplo, os quatro

18“But, you my say, that’s another Othello, not Shakespeare’s. That’s rather the point, isn’t it?” (QUARSHIE, 1999, p.23).

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campos discursivos que, a seu ver, ressoam no texto: o discurso global, o discurso militar, o discurso racial, e o discurso marital. É importante ratificar, no entanto, que todos esses campos estão conectados e que de certo modo, eles são intrínsecos às questões raciais. Vaughan afirma que:

Othello é certamente multivocal, e os termos que aborda são

complicados. Até mesmo os quatro campos discursivos relativamente mais claros, os quais eu selecionei aqui, compreendem em uma vasta gama de visões – algumas delas contraditórias – que se sobrepõem e se interpenetram. Para discuti-las em termos de quatro categorias é necessário simplificar. (VAUGHAN, 1994, p.6, tradução nossa).19

Sabemos, portanto que não seria possível trabalhar todas as possibilidades de análise que os campos discursivos propostos por Vaughan nos oferecem, tanto em relação à peça, bem como nas adaptações fílmicas em questão. O caminho que escolhemos foi trabalhar com o discurso racial. Porém, não deixamos de considerar os outros campos discursivos propostos pela autora. Desse modo, para dar continuidade aos nossos estudos, verificaremos a seguir alguns textos que julgamos importantes para o desenvolvimento do nosso trabalho. Textos que serviram de possível inspiração para que Shakespeare desenvolvesse a peça Othello.

2.2. O MOURO DE VENEZA – CINTHIO

No livro Othello: A Contextual History, identificamos que Geoffrey Bullough, em Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare, argumenta que o dramaturgo utilizou como fonte principal de inspiração para The Tragedy of Othello, the Moor of Venice um dos contos de Giovanni Battista Giraldi, autor italiano conhecido como “Cinthio”. A novela de Cinthio, Gli Hecatommithi, publicada em 1566, em Veneza, é composta por dez partes, com dez contos referentes a diferentes relacionamentos amorosos. Shakespeare se baseou no conto encontrado sob a seção A Infidelidade de Maridos e Esposas, chamado O mouro de Veneza. É sabido que Cinthio baseava seus contos em fatos reais, o que pode ter aguçado a curiosidade e o interesse de Shakespeare para a produção de sua peça. É importante salientar, no entanto, que não se sabe se o dramaturgo teve acesso à obra

19Othello is, of course, multivocal, the issues it embodies complicated. Even the four fairly straightforward discursive fields I have selected here comprehend a wide array of views – some of them contradictory – that overlap and interpenetrate. To discuss them in terms of four categories is necessary to oversimplify.

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original de Cinthio ou a alguma de suas traduções, como a versão francesa de Gabriel Chappuys, de 1584.

De modo sucinto, classificamos a peça Othello como um hipertexto, uma vez que ela advém de uma série de outros textos. O conto de Cinthio é classificado como um dos hipotextos que Shakespeare pode ter tido acesso para escrever sua peça. Resta-nos, portanto, comentar que Shakespeare emulou alguns elementos do conto de Cinthio e desenvolveu o conto do escritor italiano, trabalhando aspectos de sua linguagem e enriquecendo as características psicológicas de cada personagem. Há, na novela de Cinthio, várias referências raciais ao mouro, desse modo, faremos a diante, alguns apontamentos que achamos relevantes para o desenvolvimento do nosso trabalho.

O editor de The Arden Shakespeare, E. A. J. Honigmann, demonstrou os paralelos existentes entre o trabalho de Cinthio e a peça de Shakespeare, colocando os dois textos lado a lado, e apontou alguns questionamentos relacionados às semelhanças e diferenças entre os dois. Honigmann disponibiliza, em Arden, a tradução do conto de Cinthio feita por J. E. Taylor. Nas palavras de Honigmann, Shakespeare mudou alguns detalhes do conto, mas basicamente a trama é a mesma (HONIGMANN, 2005, p.218).

Segundo Honigmann, uma relação importante entre o conto e a peça, é que o dramaturgo apropriou-se da maioria dos personagens do conto e criou os personagens Brabâncio e Rodrigo. Em Cinthio, porém, os personagens não tinham nomes: eles eram tratados por suas posições sociais, como o mouro, o alferes, o capitão; a única personagem que possuía um nome era Disdemona. A novela O mouro de Veneza retrata um mouro que se casou com uma mulher branca veneziana e, ao analisarmos o conto de Cinthio, pudemos notar que o autor enfatiza, no decorrer da trama, o amor existente entre Disdemona e o mouro. Disdemona admirava e amava seu marido perdidamente. Assim que se casaram, Cinthio diz que o casal viveu muito feliz em Veneza. Ele explica que os dois viveram em tanta harmonia que nenhuma palavra era usada entre o casal que não fosse de afeto e carinho. Cinthio começa seu conto descrevendo o personagem principal, o mouro:

Uma vez viveu em Veneza um mouro que era muito valente e tinha uma personalidade bela. E por ter dado provas de ter grandes habilidades e prudência na guerra, era muito estimado pelo governo da república veneziana. Por ter atos de valor recompensadores, lutava pelos interesses do estado (HONIGMANN, 2005, p.218, tradução nossa).20

20There once lived in Venice a Moor, who was very valiant and of a handsome person; and having given proofs in war of great skill and prudence, he was highly esteemed by the Signoria of the Republic, who in rewarding deeds of valor advanced the interests of the State.

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Cinthio descreve o mouro como um homem valente e honrado. Shakespeare, por sua vez, manteve essas qualidades bem como a admiração e respeito que o senado veneziano tinha por ele. Em Othello, Desdemona se apaixona por Otelo pelos mesmos motivos que Disdemona se apaixona pelo mouro: ela o admira por suas histórias de glória em batalhas, pela posição militar respeitada que ocupava e por todo prestígio que ele havia conquistado durante sua vida.

No conto, o personagem do alferes era um homem belo, mas de natureza duvidosa, que vivia para servir o mouro. No início do conto, Cinthio explica que o alferes não tinha conhecimento das fraquezas do mouro, mas mesmo assim era um personagem de coração malicioso. Seu discurso era coberto de orgulho e ele era um homem maléfico. O alfares se apaixonou por Disdemona e, a partir disso, todos os seus pensamentos foram voltados para conquistá-la. Sua intenção inicial não era declarar seu amor pela jovem donzela, porquanto tinha medo de que, se o mouro descobrisse, pudesse se vingar e até mesmo matá-lo. O Alferes era casado e sua esposa era a dama de companhia de Disdemona. Os dois tinham uma filha de três anos que se dava muito bem com a esposa do mouro.

Ao compararmos o alferes de Cinthio com o personagem Iago, de Shakespeare, identificamos que o alferes não tinha um papel muito relevante no conto. O mouro começa a desconfiar de sua esposa e procura o alferes para se aconselhar, já que ele era um de seus homens de confiança. O alferes, ao notar as inseguranças do mouro, começa a alimentar esses sentimentos de dúvida sugerindo que Disdemona o havia traído. Já em Othello, o papel de Iago é crucial em toda a peça. De todas as peças escritas por Shakespeare, Iago é um dos vilões mais fascinantes, que possui mais falas e solilóquios. A trama gira em torno das manipulações e armações de Iago e grande parte dos acontecimentos se desenvolvem a partir de suas atitudes. No conto, ao contrário do que é apresentado na peça, a trama não se desenvolve a partir das armações e manipulações do alferes, ou seja, são outros fatores que levam o alferes a iniciar seu jogo de traição e manipulação.

Dando continuidade ao conto, havia um capitão na tropa ao qual o mouro era muito afeiçoado. Disdemona, sabendo o quanto seu marido o estimava, tratava-o com carinho e cordialidade. O alferes não acreditava que Disdemona amava o mouro, pois ele pensava que, pelo fato da donzela ser muito próxima ao capitão, o que existia entre os dois ultrapassava uma relação cordial de amizade. Como o alferes não conseguiu êxito em suas investidas com Disdemona, começou a articular uma maneira de matar o capitão e tentou encontrar uma forma de fazer com que o mouro perdesse a afeição por sua esposa. Mas

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como sabia que o mouro amava Disdemona acima de tudo e era muito amigo do capitão, ele percebeu que teria que articular um plano muito convincente para convencer o mouro de que sua esposa e seu amigo não eram o que ele pensava. O alferes decidiu então esperar pelo momento certo de agir já que não gostaria de correr o risco de seu plano fracassar.

O mouro resolveu, em seguida, perguntar a Disdemona por quais motivos ela tinha tanta afeição ao capitão. A donzela percebeu o ciúme de seu marido e disse a ele que os mouros possuem uma natureza tão explosiva que qualquer problema os fazem sentir raiva e lutar por vingança. Essa passagem do conto demonstra a visão estereotipada que os europeus tinham em relação aos mouros durante a época da renascença, já que eles eram vistos como bárbaros que, ao contrário dos europeus civilizados, tinham temperamento explosivo e eram descontrolados em seus sentimentos. Em Othello, por outro lado, toda desconfiança do mouro começa a partir de Iago. É ele quem manipula Otelo e desperta no mouro os sentimentos de desconfiança e ciúme.

No conto de Cinthio, o mouro, revestido de ciúme, diz a Disdemona, sem a interferência do alferes, que ele encontrará provas para confirmar sua desconfiança. E, ao observar mais atentamente a relação de Disdemona com o capitão, ele procura o alferes e o induz a dizer tudo o que ele poderia saber sobre a relação dos dois. O alferes se aproveita dessa situação e começa a manipular o mouro contra sua esposa e o capitão, confirmando todas as suspeitas que ele já tinha. Nesse momento do conto, Cinthio faz uma referência a raça do mouro. O alferes diz ao mouro:

Eu não posso negar que dói a minha alma ser forçado a dizer o que deve ser muito mais difícil de escutar do que qualquer outra coisa. Mas desde que você precise escutar, e cabe a mim por dever a ti a minha honra, eu preciso dizer a verdade, eu não vou me recusar em satisfazer suas perguntas e o meu dever. É sabido, no entanto, que sua esposa insiste em ver o capitão, por nenhuma outra razão, mas pelo prazer que sente com a companhia dele, quando quer que seja que ele vá até sua casa. E tudo isso aconteceu depois que ela criou aversão à sua cor negra (CINTHIO, apud, HONIGMANN, 2005, p.222, tradução nossa).21

O alferes nessa passagem sugere ao mouro que Disdemona pode ter se relacionado com o capitão a partir do momento em que ela criou uma aversão a sua cor negra. Percebemos ainda que o alferes mencionou a cor do mouro somente por essa ser a

21I can’t deny it pains me to the soul to be thus forced to say what needs must be more hard to hear than any other grief; but since you will it so, and that the regard I owe your honor compels me to confess the truth, I will no longer refuse to satisfy your questions and my duty. Know, then, that for no other reason is your lady vexed to see the Captain in disfavor than the pleasure that she has in his company whenever he comes to your house, and all the more since she has taken an aversion to your blackness.

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única maneira que ele tinha para atingi-lo, já que o mouro era homem virtuoso, íntegro e estimado pelo governo de Veneza. O alferes precisava tocar os sentimentos do mouro em sua fragilidade, precisava inventar um motivo convincente que justificasse a suposta traição de sua esposa. O fato do personagem não ser um cidadão veneziano, mas um mouro, logo, um negro, fazia-o diferente dos outros personagens, e a visão estereotipada que os europeus tinham em relação aos mouros o tornava inferior ao capitão.

Em Othello, por outro lado, desde a cena inicial da peça, é perceptível que Shakespeare teve a intenção de intensificar as características raciais do personagem principal. Ademais, a trama se desenvolve em torno dessa visão estereotipada que os europeus tinham em relação aos mouros. Portanto, concordamos com a fala de Hugh Quarshie quando este afirma que Shakespeare, ao adaptar o conto de Cinthio, desenvolve as características de Otelo vinculando-as à sua cor. Em outras palavras, o seu comportamento violento e explosivo, o ciúme que o personagem sente por sua esposa, suas inseguranças e até mesmo o assassinato de Desdemona são justificados pelo dramaturgo por ele ser um homem negro.

Cinthio exalta as características negativas da personalidade do alferes em vários momentos de sua história. Nessa passagem, ele o descreve como um homem vil e o chama de traidor. Acreditamos que, ao exaltar essas características, Cinthio tinha a intenção de que o leitor continuasse a enxergar o mouro como um homem íntegro e virtuoso. Após o roubo do lenço, o alferes o entrega ao capitão para que este presenteasse sua esposa. O mouro, ainda mais desconfiado, procura o alferes mais uma vez para se aconselhar e ele, aproveitando da situação, explica ao mouro que o capitão tinha ganhado o lenço de Disdemona e afirma que ele fazia visitas à sua esposa nos momentos em que ele não estava em casa. A partir disso, o mouro passa a desconfiar cada vez mais de sua esposa e, tendo quase certeza de sua traição, torna-se extremamente agressivo e amargurado. Observamos, nesse ponto do texto, mais uma referência ao “outro”, ou seja, à forma estereotipada de se enxergar o mouro. Cinthio sugere que o mouro é diferente dos demais personagens e por não ser veneziano, tem um comportamento imprevisível, passando de um marido amoroso para um homem agressivo.

Disdemona estranha o comportamento de seu marido e justifica a mudança de seu comportamento por ele ser um mouro. Ela demonstra arrependimento por ter contrariado o desejo de seus pais, e ter se casado com um homem que não fazia parte da sociedade veneziana. Essa passagem ainda pode sugerir um mau pressentimento por parte

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da donzela, uma vez que ela manifesta o desejo de orientar as mulheres jovens venezianas a não cometerem o mesmo erro que cometeu.

Para que o mouro tivesse certeza da traição, o alferes o leva até a casa do capitão e mostra a ele, através da janela de vidro, que a esposa do capitão estava em posse do lenço de Disdemona. O mouro, furioso, implora para que o alferes mate o capitão. O alferes, no entanto, por saber que o capitão era um homem forte e habilidoso em lutar com sua espada, temia astutamente as ordens de seu superior.

De tocaia, o alferes então esperou o capitão durante a noite e quando ele se aproximou, tentou matá-lo, mas não conseguiu e apenas cortou sua perna com a espada. Por estar escuro, o capitão não viu quem o havia atacado e, sangrando, começou a gritar. Várias pessoas que passavam pela rua no momento se aproximaram para ver o que havia acontecido. O alferes fingiu que tinha sido atraído pelos gritos do capitão e disse a todas as pessoas presentes que estava muito feliz que seu amigo estava vivo apesar de ter tido sua perna amputada. Desse modo, ninguém suspeitaria que o próprio alferes houvesse atacado o capitão. Quando Disdemona soube o que havia acontecido com o capitão, ficou muito abalada, o que fez com que o mouro confirmasse mais uma vez sua suspeita. O mouro, novamente desconfiado e buscando pela confirmação de seu ciúme, procurou o alferes e perguntou por que sua esposa havia ficado tão abalada com o acontecido. O alferes, demonstrando mais uma vez sua astúcia, só dizia ao mouro aquilo que ele queria ouvir e disse a ele que eles não poderiam esperar outro comportamento da donzela, já que o capitão era a própria alma de Disdemona.

Em Othello, em contrapartida, Iago manipula o mouro para que ele desconfiasse de Desdemona mesmo sabendo que ela é inocente e não nutre nenhum sentimento por Cássio, a não ser amizade e admiração. Esse é um dos fatos que faz de Iago um personagem maquiavélico, ele é capaz de qualquer coisa para conseguir o que quer. É sabido que existem diferentes interpretações, no que motivaria Iago a ser tão perverso. Estudiosos questionam que não se sabe se era apenas uma disputa por poder. Seria Iago apaixonado por Desdemona ou por Otelo? As tramas do personagem seriam articuladas apenas para enaltecer seu ego? Não temos o intuito de decifrar essas questões, julgamos importante comentar que em Othello, o comportamento de Iago é responsável pelo desfecho da trama da peça.

Em Cinthio, ao contrário, ao observarmos essa passagem, podemos confirmar que o alferes acredita que Disdemona ama o capitão. Portanto, as motivações do alferes são relacionadas ao amor que ele sente por Disdemona. Logo, o mouro e o alferes, certos do

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