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Introjeção das figuras parentais nos transtornos alimentares: Relação entre sintomas e funcionamento da personalidade

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Academic year: 2021

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Introjeção das figuras parentais nos transtornos alimentares: Relação

entre sintomas e funcionamento da personalidade

Élide Dezoti Valdanha-Ornelas¹ Valéria Barbieri¹; Sabrine Chetioui²;

Claire Squires²;

Erika Arantes de Oliveira-Cardoso1 Manoel Antônio dos Santos¹

Resumo: Os transtornos alimentares (TAs) são psicopatologias de etiologia multifatorial, dentre os quais

se destacam anorexia nervosa (AN) e bulimia nervosa (BN). São reconhecidos como fatores desencadeadores e mantenedores dos TAs o meio sociocultural, características de personalidade e relações familiares. Ainda é escasso o conhecimento sobre a interação dos aspectos da personalidade e a dinâmica familiar em pessoas com sintomas alimentares em diferentes culturas. Este estudo de caso teve como objetivo investigar o modo como jovens pacientes com TAs de diferentes contextos culturais introjetaram as figuras parentais e explorar as possíveis relações com a ocorrência do transtorno. Participaram uma jovem brasileira com diagnóstico de AN e uma jovem francesa com BN. Os dados foram coletados por meio de um roteiro de entrevista semiestruturada e o Procedimento de Desenho de Família com Estórias (DF-E). Os dados foram analisados de acordo com o referencial teórico psicanalítico. Os resultados mostraram que, na representação psíquica que as participantes elaboram acerca de seus pais e das relações familiares, a mãe emerge como uma figura forte e intrusiva, enquanto que a figura paterna aparece apagada e fragilizada, incapaz de exercer sua função interditora sobre a díade. As duas jovens, apesar dos quadros clínicos “contraditórios” (restrição versus compulsão alimentar), utilizam inconscientemente o corpo como via de escape de seu sofrimento e como tentativa de conseguir o cuidado parental. A produção de ambas as participantes no DF-E evidencia o sentimento de solidão e as vivências de invisibilidade que experienciam dentro do núcleo familiar. As histórias produzidas destacam pessoas tristes e relacionamentos familiares conflituosos, com pouca possibilidade de serem elaborados. Espera-se que os achados possam fornecer subsídios para que os profissionais que cuidam de pessoas com TAs desenvolvam estratégias que sejam culturalmente sensíveis e que possam auxiliar pacientes e famílias a desenvolverem seus recursos potenciais para lidarem com conflitos de forma amadurecida.

Palavras-chave: Transtornos alimentares; técnicas projetivas; estudo transcultural.

Introdução

Entre os principais transtornos alimentares (TAs) da contemporaneidade destacam-se a anorexia nervosa (AN) e a bulimia nervosa (BN). De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª revisão (DSM-5) (American Psychiatric Association, 2013), a AN é caracterizada por restrição da ingesta alimentar e acentuada distorção da imagem corporal. Já os critérios diagnósticos da BN abrangem comportamentos periódicos de compulsão alimentar, seguidos de comportamentos compensatórios, tais como autoindução de vômitos, uso abusivo de laxantes e diuréticos, jejuns e prática de atividades físicas em excesso. Os dois quadros __________________________

1. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP).

2. UFR d'Études Psychanalytiques, Université Paris-Diderot (Paris 7). Apoio: FAPESP (Processo nº 2014/18615-4)

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têm em comum o medo intenso de ganhar peso (mesmo em situação de desnutrição, como no caso da AN) e a preocupação excessiva com alimentação e aspectos corporais.

A etiologia dos TAs é considerada pela literatura científica (nacional e internacional) como multifatorial. Atuam como fatores disparadores e mantenedores dos quadros: (1) o meio sociocultural, em que há grande pressão por um corpo magro e esguio, livre de gorduras; (2) as relações familiares, consideradas disfuncionais, com problemas de vinculação, perda de papéis e funções, e muitos conflitos; (3) as características de personalidade, como a fragilidade e imaturidade egóica e insegurança no contato com o mundo externo (Oliveira & Santos, 2006).

A teoria psicanalítica sugere que o sintoma alimentar pode incidir como uma solução de compromisso, na qual há um confrontamento com os padrões vinculares disfuncionais dessas famílias. As mães são internalizadas como figuras intrusivas e os pais são percebidos como frágeis e ausentes no cenário familiar. Essas famílias ainda evidenciam dificuldades para proporcionar suporte à criança em seu processo de separação-individuação que se acentua na transição para a adolescência. Os laços de dependência afetiva entre mãe e filha são intensos, o que não encorajaria as tentativas de emancipação necessárias para a constituição da autonomia genuína (Lane, 2002).

Considerando os pressupostos explicitados anteriormente, este estudo teve como objetivo investigar o modo como jovens pacientes com TAs de diferentes contextos culturais introjetaram as figuras parentais e explorar as possíveis relações com a ocorrência de graves transtornos do comportamento alimentar.

Método

O princípio metodológico que fundamentou a elaboração deste estudo foi o estudo de caso. De acordo com Yin (2001), o estudo de caso pode ser utilizado para descrever uma intervenção e o contexto da vida real em que os fatos ocorrem. No presente estudo serão apresentados dois casos, referentes a duas jovens diagnosticadas com TAs. Esses casos foram extraídos de uma casuística arregimentada em dois ambulatórios especializados no tratamento dos TAs, do Brasil e da França.

Todos os nomes próprios utilizados neste estudo são fictícios, com o propósito de preservar a identidade das participantes. Estas assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, formalizando o aceite em participar da pesquisa.

Os dados foram coletados por meio de um roteiro de entrevista semiestruturada e o Procedimento de Desenho de Família com Estórias (DF-E) (Trinca, 2013). Esse

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material foi submetido à Análise de Conteúdo na modalidade temática (Bogdan & Biklen, 1994) e foram analisados de acordo com o referencial teórico psicanalítico.

Participantes

Agda, a jovem brasileira, tem 25 anos e diagnóstico de AN. Belle, a jovem francesa, tem 13 anos e diagnóstico de BN. Ambas residem com seus pais e irmãos.

Resultados e Discussão

Para o presente estudo serão apresentadas as seguintes categorias levantadas na análise de dados: (1) o transtorno alimentar, que descreve alguns sintomas da participantes, bem como o início do quadro; (2) características de personalidade; (3) as relações familiares; e (4) DF-E, em que constarão a descrição e análise dos dados coletados através deste procedimento.

O transtorno alimentar

Os sintomas de Agda se iniciaram por volta dos 13 anos de idade, quando sua mãe teve uma grave doença e precisou fazer repouso intenso e extenso. A jovem passou a ser a responsável por todos os afazeres domésticos, sentindo-se muito sobrecarregada com as responsabilidades. Na mesma época, a mãe engravidou e Agda também assumiu os cuidados do irmão mais jovem. Ela desenvolveu um quadro de AN restritiva, que já dura 12 anos. É emagrecida e fala de muito temor em ganhar peso.

Os sintomas de Belle se iniciaram por volta dos 12 anos, quando sua avó materna adoeceu. Ela iniciou comportamentos de compulsão alimentar e teve rápido ganho de peso em curto período de tempo. Como comportamentos compensatórios, a adolescente pratica atividades físicas em excesso, muitas vezes às escondidas de seus pais.

Ambas as participantes relatam que os sintomas alimentares pioram nos momentos de tristeza ou frente a situações de frustração.

Características de personalidade

Agda é uma jovem que se mostra tímida ao contato, fala pouco, praticamente apenas quando é interpelada, sugerindo intensa inibição. Também tem poucos relacionamentos interpessoais e apresenta dificuldade em manter-se em empregos.

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Assim, percebe-se que não é apenas sua alimentação que é restrita, mas toda sua vida funcional também se mostra tolhida pela ação de mecanismos restritivo-inibitórios.

Quando Belle está se sentindo triste ou sozinha, não consegue parar de comer. O agir impulsivo prevalece sobre o pensar ou o sentir. Tem medo da própria agressividade, que se expressa em explosões emocionais que, algumas vezes, terminam em episódios de violência física.

A literatura mostra que pessoas diagnosticadas com TAs tendem a ser introvertidas e inseguras, o que torna suas redes de apoio social muito restritas e empobrecidas. Os relacionamentos são marcados por diversos conflitos e dificuldades de resolução dos problemas (Leonidas & Santos, 2013). As duas participantes evidenciam tais dificuldades, tanto no âmbito social, como no âmbito familiar.

Relações familiares

Assim como preconizado na literatura (Fernandes, 2006; Lane, 2002), Agda e Belle, a despeito de estarem inseridas em contextos socioculturais distintos, apresentam convergências na dinâmica de funcionamento da personalidade. Em ambas a figura materna parece ter sido internalizada de forma rígida e controladora, em contraponto com a figura paterna enfraquecida, por vezes sem espaço relevante no cenário familiar e nas tomadas de decisão. A introjeção da figura materna intrusiva e da figura paterna fragilizada prejudicam o desenvolvimento psicossocial a partir da adolescência e travam o processo de separação-individuação. Com isso o ego fica debilitado, sem coesão suficiente para fazer frente aos desafios da transição adolescente. As participantes sentem-se frágeis e pouco preparadas para enfrentar os novos desafios da vida, seu senso de autoeficácia é precário e por isso o desenvolvimento estanca e toma um curso regressivo.

Ambas são percebidas nos núcleos familiares como a pessoa doente, aquela que precisa de cuidados especiais. No caso de Agda, por sua extrema magreza. No caso de Belle, pelo ganho de peso e pela compulsão alimentar. As famílias esboçam pouca compreensão de que são protagonistas no adoecimento das filhas e, assim, também precisam de cuidados emocionais para que possam reassumir seu papel de apoiar o desenvolvimento das filhas (Ramos, 2015).

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Procedimento Desenho de Família com Estórias

As produções das duas participantes se mostram imaturas. Agda diferencia os caracteres sexuais dos personagens, mas não desenha componentes faciais (olhos, nariz, boca). Já Belle, que é mais jovem, faz desenhos em palito e a única diferença entre os sexos das figuras humanas são os cabelos curtos ou longos. Ambas evidenciam muita dificuldade na contação de hitórias. As narrativas produzidas são pobres e muito breves, com pouca expressão da criatividade, mais parecidas com o relato da situação atual.

Os desenhos de Agda se referem ao tempo futuro (possível formação de sua própria família) em detrimento da situação passada/atual com sua família de origem. Ela evidencia o desejo de pertença a uma família (um casal, não necessariamente com filhos), em que há justa divisão das tarefas dentro do lar. E expressa muito ressentimento por, ainda muito jovem, ter que ser a responsável pela manutenção da casa da família.

Agda e Belle representam no papel e nas histórias figuras entristecidas e pouco satisfeitas com a realidade circundante. A principal diferença em suas produções é evidenciada no terceiro desenho (“uma família em que há alguém que não está bem”). Agda, que já estava em tratamento especializado havia três anos e já era adulta, apresenta a compreensão de que não há apenas um membro na família que não está bem, mas sim todo o grupo. Já Belle sente que ela é a pessoa da família que não está bem, reclamando proteção por parte dos adultos, enquanto os outros membros vivem uma “vida normal”.

Considerações Finais

O presente estudo teve como objetivo investigar o modo como jovens pacientes com TAs de diferentes contextos culturais introjetaram as figuras parentais, bem como explorar as possíveis relações dessas imagos parentais com a ocorrência do transtorno. Em relação às diferenças culturais, pouco pôde ser observado, considerando que os instrumentos abordaram primordialmente as características de personalidade e as relações familiares internalizadas.

Em relação às características de personalidade, foi possível detectar diferenças principalmente no que tange ao funcionamento mental, que estão ligadas também a características dos quadros “opostos” de TA: AN (restrição) Vs BN (compulsão/exagero). As duas participantes têm diferença de idade considerável, sendo

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possível dizer que a mais velha (Agda) se mostra mais madura em suas relações e na compreensão de sua psicopatologia.

Sobre as relações familiares, foi possível perceber dificuldade nos vínculos e na resolução dos conflitos, de acordo com os relatos de ambas as participantes. A internalização das figuras parentais parece ter acontecido de forma fragilizada. Os dados colhidos com a entrevista e com a técnica projetiva evidenciam figuras parentais entristecidas, emocionalmente debilitadas. Na percepção das participantes, os pais se mostram pouco afetuosos e muito focados nos problemas/sintomas alimentares, e não em suas necessidades e dificuldades emocionais.

Referências

American Psychiatric Association (2013). Diagnostic and statistical manual of eating disorders (5th ed.). Arlington, VA. American Psychiatric Publishing.

Bogdan, R., & Biklen, S. (1994). Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora.

Fernandes, M. H. (2006). Transtornos alimentares: Anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Leonidas, C. & Santos, M. A. (2013a). Redes sociais significativas de mulheres com transtornos alimentares. Psicologia: Reflexão e Crítica, 26(3), 561-571.

Oliveira, E. A., & Santos, M. A. (2006). Perfil psicológico de pacientes com anorexia e bulimia nervosas: A ótica do psicodiagnóstico. Medicina (Ribeirão Preto), 39(3), 353-360.

Ramos, M. (2015). As famílias das anoréxicas. In: M. Ramos e M. P. Fuks (Orgs.), Atendimento psicanalítico da anorexia e bulimia (pp. 121-140). São Paulo: Zagodoni.

Trinca, W. (2013). Procedimento de Desenhos de Família com Estórias. In: Trinca, W. (Org.), Formas compreensivas de investigação psicológica. São Paulo: Vetor.

Yin, R. K. (2001). Estudo de caso: Planejamento e métodos (2ª ed) (D. Grassi, Trad.). São Paulo: Bookman.

Referências

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