Hiperlexia e Síndrome de Asperger: Relato de casos clínicos
LAMÔNICA, D.A.C. FERREIRA, A.T.; GEJÃO, M.G.;Introdução
Hiperlexia refere-se à habilidade precoce para decodificar palavras impressas, manifestada antes dos cinco anos, por atração aos símbolos alfabéticos na ausência de instrução formal, refletindo habilidade muito superior para o reconhecimento de palavras escritas em relação à compreensão desta leitura e habilidades verbais(1-4). Trata-se de um fenômeno mecânico da transcodificação grafemo-fonemática, porém carente de capacidade de compreensão do material decodificado(5).
A precocidade do aparecimento da habilidade de leitura pode sugerir que a criança tenha habilidade intelectual superior, conclusão de muitos familiares, entretanto, conforme literatura(2,4,6), a criança apresenta avanços no desenvolvimento de determinadas áreas cerebrais específicas, mas com alterações em áreas de linguagem e aprendizagem.
A hiperlexia não é um fenômeno que ocorre em “super-leitores”, mas o resultado de conduta obsessiva associada ao excelente desenvolvimento de habilidades visoperceptuais em contexto de retardo lingüístico e não é, necessariamente, correlacionada a habilidades de inteligência(7). Deste modo, observa-se esta habilidade em crianças que apresentam algum grau de deficiência intelectual, com dificuldades em interação social e atraso no desenvolvimento da linguagem, além da possibilidade de desenvolver repertório de interesses restritos acompanhado de estereotipia ou respostas peculiares(2,4,7).
Segundo a American Association of Hiperlexia(8) uma criança pode ser diagnosticada como hiperléxica quando apresentar: habilidades precoces de leitura; intensa fascinação por letras e números; dificuldades nas habilidades sociais e interativas com pessoas e significativa dificuldade para compreender a linguagem falada. Déficit da linguagem expressiva, excelente memória, atraso nas habilidades lingüísticas, ecolalia, perseverações e problemas receptivos graves, dificuldade para compreensão do contexto verbal são sintomas comum em indivíduos que apresentam hiperlexia e transtorno do desenvolvimento, especificamente na síndrome de Asperger(1,3-5,7).
Estudos de hiperlexia por meio de ressonância magnética funcional têm demonstrado grande ativação do córtex temporal superior esquerdo(10), frontal inferior, e sulco temporal inferior direito(11). Estes achados sugerem que os hiperléxicos ao realizarem atividades de leitura recrutam simultaneamente as zonas corticais fonológicas do hemisfério esquerdo e as áreas relacionadas à memória visoespacial do hemisfério direito. Parece que estas crianças ativam um programa cortical bilateral desfrutando da riqueza da plasticidade neuronal para esta atividade específica(10,11).
Do ponto de vista neuropsicológico, as habilidades demonstradas por hiperléxicos remetem à ocorrência de excelente percepção, discriminação, associação e memória visual, juntamente com habilidades lingüísticas de associação de sons da linguagem com material escrito em detrimento à capacidade para processar, organizar, integrar e compreender a linguagem oral e escrita(2,4,7,9).
Diante o exposto, o objetivo deste estudo é descrever habilidades comunicativas em indivíduos que apresentam diagnóstico de Síndrome de Asperger e hiperlexia.
Método
Participaram do estudo 4 meninos com histórico do desenvolvimento da leitura antes dos 4a de idade (C1: 4a4m, C2: 4a6m, C3: 5a, C4: 4a6m). Aprovação CEP. Realizou-se os seguintes procedimentos: entrevista com familiares, Observação do Comportamento Comunicativo (OCC); Teste de Linguagem Infantil ABFW (Fonologia e Vocabulário)(14); Teste de Vocabulário por Imagens Peabody (TVIP)(15); Reconhecimento de grafemas isolados e números; Prova de Leitura e Escrita de Palavras e Pseudopalavras (PLEPP) e Teste de Repetição de Pseudopalavras para Crianças Brasileiras(16).
Resultados:
Na entrevista foram comuns as seguintes informações: gestação e parto sem intercorrências, comportamentos mal adaptativos, ausência de brincadeiras simbólicas, impulsividade, interesse por brincadeiras que envolvam leitura e dificuldade de adaptação escolar. C1 apresenta interesse
por programas de perguntas e respostas; C2 dinossauros, C3 programas de telejornalismo e C4: mapas e quebra-cabeças. Todos receberam diagnóstico de Síndrome de Asperger.
Tabela 1: Critérios diagnósticos(13) da Síndrome de Asperger
Características C1 C2 C3 C4
Bebê quieto e isolado + + + +
Não procura contato físico ou ocular + + + +
Atraso na marcha + + +
Desajeitado em atividades motoras + + + +
Desvios da interação social + + + +
Atraso do desenvolvimento da linguagem + + + +
Uso da linguagem de maneira automática + + + +
Alteração da prosódia + + +
Fala pedante ou rebuscada + + + +
Uso de expressões estereotipadas + + + +
Linguagem receptiva prejudicada + + + +
Movimentos repetitivos + + + +
Campo de interesse restrito e peculiar + + + +
Excêntricos, mantendo seu interesse + + + +
Excelente memória + + + +
Lêem e decoram conteúdos + + + +
Isolado de pessoas + + + +
Não compreendem sentimentos + + + +
Hiperlexia antes dos 4 anos + + + +
Dificuldade em mudanças de rotina + + + +
Legenda: +: apresenta a característica; sem marcação: não
Tabela 2: Resultados das avaliações
Avaliação C1 C2 C3 C4
OCC Boa interação
Interesse por leitura + + + + Linguagem receptiva adequada
Respeito de turnos Função: Protesto + + + + Função heurística + +* Ecolalia + + + Atenção adequada Narrativa +**
Uso de palavras não usuais + + + +
Vocabulário receptivo /expressivo TVIP NR ABFW NR I Ad I* Fonologia ABFW Ad I Ad I Escrita Reconhecimento de grafemas + + + + PLEPP I I I I TRPCB S NR
Legenda: OCC: Observação do Comportamento Comunicativo; TVIP: Teste de Vocabulário por Imagem Peabody; PLEPP: Prova de Leitura e Escrita de Palavras e Pseudopalavras; TRPCB: Teste de Repetição de Pseudopalavras para Crianças Brasileiras; sem marcação: não; +: sim; Ad: adequado; I: inadequado; S: superior; NR: não realizou; +*: pela escrita; +**: fatos concretos; I*: pela escrita.
Discussão:
Na tabela 1 foi possível verificar as dificuldades comportamentais, sócio-interacionais e de linguagem apontadas na literatura(2,4,5,8,12,13).
Observou-se (tabela 2) o interesse por leitura, tópicos conversacionais específicos e tempo de atenção reduzido, o que impossibilitou a realização do TVIP. Alterações nas habilidades comunicativas como dificuldades para compreender contexto verbal, para iniciar e manter contato visual e diálogos, uso palavras não usuais, além do interesse na realização de atividades que não fossem de leitura, também foram observados, conforme apontado na literatura(3,4,6,8,11,13). Todos apresentavam excelente habilidade de associação e memória visual (2,4,7,9).
Na PLEPP, todos conseguiram ler palavras regulares e familiares, com dificuldade nas pseudopalavras. Isto pode indicar que as crianças, mesmo com as dificuldades do uso de habilidades pragmáticas, usam rota semântica para a decodificação dos símbolos gráficos, entretanto, sem a compreensão do material lido(4-7,12), confirmando a literatura, quando aponta que a hiperlexia
trata-se de atividade mecânica da transcodificação grafemo-fonemática(5). No TRPCB, C1 apresentou resultados compatíveis a 10a.
Os mecanismos da hiperlexia são pouco compreendidos e necessitam de investimentos científicos(1-6,8-13).
Estes casos confirmam a presença da Síndrome de Asperger e hiperlexia nos quais demonstraram alterações graves no desempenho das atividades comunicativas e de adaptação social, interferindo na qualidade das interações pessoais e aprendizado.
Conclusão: As habilidades demonstradas por estes indivíduos hiperléxicos
com síndrome de Asperger remetem à ocorrência de uma combinação de competências para a leitura em detrimento a capacidade para processar, organizar, integrar e compreender a linguagem oral e escrita, refletindo negativamente nas habilidades comunicativas e de aprendizagem
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16. Santos, F.H.; Bueno, OFA. Validation of the Brazilian Children`s Test of Pseudoword Repetition in Portuguese speakers aged 4 to 10 years. Braz J Med Biol Res v. 36, n. 11, 2003.
