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Adam Smith sobre a escravidão nas colônias da América e do Caribe

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ECONOMIA

ANA PAULA LONDE SILVA

ADAM SMITH SOBRE A ESCRAVIDÃO NAS COLÔNIAS DA

AMÉRICA E DO CARIBE

CAMPINAS 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ECONOMIA

ANA PAULA LONDE SILVA

ADAM SMITH SOBRE A ESCRAVIDÃO NAS COLÔNIAS DA

AMÉRICA E DO CARIBE

Prof. Dr. Mauricio Chalfin Coutinho – orientador

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Ciências Econômicas.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA ANA PAULA LONDE SILVA E ORIENTADA PELO PROF. DR. MAURICIO CHALFIN COUTINHO.

CAMPINAS 2018

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Economia

Mirian Clavico Alves - CRB 8/8708

Londe Silva, Ana Paula,

L845a LonAdam Smith sobre a escravidão nas colônias da América e do Caribe / Ana Paula Londe Silva. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

LonOrientador: Mauricio Chalfin Coutinho.

LonDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia.

Lon1. Smith, Adam, 1723-1790. 2. Escravidão. 3. Dependência. 4. Colônias. I. Coutinho, Mauricio Chalfin, 1952-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Economia. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Adam Smith on American and Caribbean colonies' slavery Palavras-chave em inglês:

Smith, Adam, 1723-1790 Slavery

Dependence Colonies

Área de concentração: Ciências Econômicas Titulação: Mestra em Ciências Econômicas Banca examinadora:

Mauricio Chalfin Coutinho [Orientador] Hugo Eduardo Araújo da Gama Cerqueira Eduardo Barros Mariutti

Data de defesa: 21-03-2018

Programa de Pós-Graduação: Ciências Econômicas

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ECONOMIA

ANA PAULA LONDE SILVA

ADAM SMITH SOBRE A ESCRAVIDÃO NAS COLÔNIAS DA

AMÉRICA E DO CARIBE

Defendida em 21/03/2018

COMISSÃO EXAMINADORA

Prof. Dr. Mauricio Chalfin Coutinho – Presidente Universidade Estadual de Campinas

Prof. Dr. Hugo Eduardo Araujo da Gama Cerqueira Universidade Federal de Minas Gerais

Prof. Dr. Eduardo Barros Mariutti Universidade Estadual de Campinas

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina Quiloa, Rebolo

Aqui onde estão os homens Há um grande leilão

Dizem que nele há uma princesa à venda Que veio junto com seus súditos

Acorrentados num carro de boi

Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver Angola, Congo, Benguela,

Monjolo, Cabinda, Mina Quiloa, Rebolo

Aqui onde estão os homens De um lado cana-de-açúcar Do outro lado cafezal Ao centro senhores sentados

Vendo a colheita do algodão branco Sendo colhido por mãos negras

Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver Quando Zumbi chegar

O que vai acontecer

Zumbi é senhor das guerras É senhor das demandas Quando Zumbi chega É Zumbi é quem manda

Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver

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Agradecimentos

Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento desta pesquisa.

Às funcionárias e funcionários do Instituto de Economia, especialmente aos da Secretaria de Pós-Graduação, pela presteza e auxílio com as formalidades institucionais.

Ao Prof. Dr. Mauricio Chalfin Coutinho, pela orientação, apoio, dedicação e por acreditar no meu trabalho. Por estar presente durante todas as etapas de elaboração desta dissertação, sempre à disposição. Pelos incontáveis ensinamentos, não apenas sobre Adam Smith. E pelas longas e agradáveis conversas, das quais sempre saí mais motivada com a pesquisa e com a vida acadêmica.

Aos membros da banca de qualificação, Prof. Dr. Alex Wilhans Antonio Paludetto e Prof. Dr. Eduardo Barros Maritutti, pela leitura atenta do trabalho e por terem contribuído para o seu desenvolvimento.

Ao Prof. Dr. Hugo Eduardo Araújo da Gama Cerqueira, pela disponibilidade, atenção e por ter indicado referências muito importantes para esta pesquisa.

Às professoras e professores do Instituto de Economia, pela interlocução e por terem contribuído para a conclusão desta etapa.

Ao Pedro, companheiro de pesquisa desde o início da graduação e grande amigo, que sempre esteve disponível para conversas longas sobre História do Pensamento Econômico, Iluminismo Escocês, dentre muitos outros temas.

À Julia, uma das gratas surpresas que esta pesquisa me trouxe. Pela amizade construída a partir de Adam Smith, pela interlocução e por apontar questões fundamentais para o desenvolvimento desta dissertação.

Ao Henrique, pelas visitas a Campinas, pela amizade, pelas longas conversas sobre as inseguranças na vida de um pós-graduando e por estar perto mesmo estando longe.

Às minhas queridas Gabriela, Ana Tereza e Laura, pelo apoio e amizade desde o primeiro ano da graduação.

A todas as amigas e amigos que fiz no Instituto de Economia, que não arrisco nomear por correr o risco de deixar de citar alguém importante. Por fazerem parte da minha vida ao longo desses dois anos conturbados, mas também repletos de coisas boas. Guardo com muito carinho cada desabafo, café e conversa.

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À minha mãe, Maria Antônia, pelo apoio incondicional. Por ter me ensinado que nós, mulheres, temos um caminho difícil pela frente e que precisamos ser fortes. Por ter ouvido meus lamentos em ligações intermináveis. Por acreditar em mim mais do que eu mesma, aceitar minhas escolhas e, não menos importante, pelo auxílio financeiro durante todos esses anos.

Ao meu pai, Célio, por me ensinar que humildade é uma virtude. Por me lembrar de onde eu venho e que, mesmo longe de Pains, não devo deixar de ter aquela simplicidade característica da cidade onde nasci. Pelo apoio financeiro desde a graduação e por sempre ter priorizado minha educação.

Ao Daniel, pelo companheirismo. Por estar comigo em todos os momentos importantes desde o início do mestrado. Por segurar minha mão quando as coisas ficavam difíceis, mas também por compartilhar cada alegria e conquista.

A todas essas pessoas agradeço pelo apoio e suporte, fundamental para que esta pesquisa fosse concluída.

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Resumo

Esta dissertação procura mapear, organizar e contextualizar os principais argumentos de Adam Smith sobre a escravidão nas colônias da América e do Caribe (escravidão atlântica). Smith era conhecido, em sua época e posteriormente, como um dos principais proponentes da crítica econômica à escravidão. Essa crítica econômica, além de ecoar no movimento abolicionista britânico, influenciou economistas políticos que debateram escravidão colonial no século XIX. Em suas obras publicadas, assim como nas “Lectures on Jurisprudence”, Smith assume uma postura contrária à escravidão. As referências à escravidão nesses escritos evidenciam duas questões centrais. Em primeiro lugar, a discussão sobre escravidão atlântica está relacionada ao debate mais amplo sobre outras formas de escravidão e servidão. No pensamento de Smith, a escravidão e outros tipos de trabalho forçado teriam características universais e atemporais. Sob muitos aspectos, a escravidão atlântica não seria muito diferente da escravidão na Roma Antiga ou dos regimes de servidão na Europa Feudal. No entanto, ainda que alguns dos aspectos atemporais e universais da escravidão estejam subjacentes à escravidão atlântica, eles não são suficientes para explicar o emprego de escravos nas colônias. Surge, assim, uma segunda questão: a colonização moderna tem características particulares que determinam o emprego de escravos nas colônias. As políticas mercantilistas relativas à colonização moderna também são fundamentais para entender a escravidão atlântica no pensamento de Adam Smith.

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Abstract

This master’s thesis aims to map, organize, and contextualize Smith’s arguments about the American and Caribbean colonial slavery (Atlantic slavery). Smith was known, in his time and later on, as one of the main proponents of the economic critique of slavery. This economic critique, besides echoing on the British abolitionist movement, also influenced political economists who debated colonial slavery in the 19th century. Smith, in his published

works and in his “Lectures on Jurisprudence”, was against slavery. Smith’s references to slavery in his writings highlight two central issues. First, the discussion of Atlantic slavery is related to the broader debate about other forms of slavery and servitude. In Smith’s thought, slavery and other forms of forced labor have universal and timeless characteristics. In several aspects, Atlantic slavery would not be significantly different from slavery in Ancient Rome or from Feudal Europe serfdom. However, the timeless and universal aspects of slavery are not enough to explain the employment of slaves in the colonies. Then, a second question arises: modern colonization has particular features that determine the employment of slaves in the colonies. Mercantilist policies concerning modern colonization are also crucial to understand the Atlantic slavery in Adam Smith’s thought.

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Abreviaturas

TMS Theory of Moral Sentiments (Teoria dos Sentimentos Morais) WN The Wealth of Nations (Riqueza das Nações)

LJ Lectures on Jurisprudence

ED Early Draft’ of part of The Wealth of Nations

Sobre as referências à obra de Adam Smith

As referências à “Teoria dos sentimentos morais” e à “Riqueza das Nações” seguem o padrão estabelecido pela Edição de Glasgow das obras completas de Adam Smith:

TMS I.i.1.1 corresponde à parte I, seção i, capítulo 1, parágrafo 1 da “Teoria dos Sentimentos Morais”.

WN I.i.1 corresponde ao livro I, capítulo i, parágrafo 1 da “Riqueza das Nações”. Além disso, WN Intr.1 corresponde à Introdução e Plano da Obra, parágrafo 1.

Nas referências às “Lectures on Jurisprudence” e ao “Early Draft’ of part of The Wealth of Nations” foram utilizadas as abreviaturas definidas acima seguidas do número da página em que o trecho aparece na Edição de Glasgow: LJ, p. 187; ED, p. 563.

Sobre as citações diretas da obra de Adam Smith

Nas citações diretas de trechos da “Teoria dos Sentimentos Morais” e da “Riqueza das Nações” foi usado o seguinte padrão: (TMS.I.i.1.1, Trad. Lya Luft, p. 5) ou (WN I.i.1, Trad. Luiz João Baraúna, p. 65, vol.1). Nas citações diretas de passagens das “Lectures on Jurisprudence”, que não estão traduzidas para o português, o padrão utilizado foi: (LJ, p. 187, tradução nossa).

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Sumário

Introdução ... 12

1. A escravidão como uma relação de dependência estrita: do caráter antieconômico às possibilidades de abolição ... 22

1.1. Escravidão como uma relação de dependência estrita ... 24

1.2. A questão da dependência: a mudança nas relações agrícolas na Europa após a Queda do Império Romano ... 26

1.3. Dependência estrita e o caráter antieconômico da escravidão ... 37

1.4. Possibilidades de abolição: amor pelo domínio e escravos como parte da riqueza de uma sociedade ... 43

1.5. Notas conclusivas ... 46

2. Smith sobre a escravidão nas colônias da América e do Caribe ... 49

2.1. O contexto da discussão de colônias na teoria econômica de Smith ... 50

2.2. Lucratividade como condição para manifestação do “amor pela dominação” nas colônias ... 57

2.3. O tratamento e a condição dos escravos nas diferentes colônias ... 63

2.3.1. O tratamento segundo a proporção entre escravos e pessoas livres ... 64

2.3.2. O tratamento dos escravos segundo a proximidade com os mestres ... 65

2.3.3. O tratamento e a administração dos escravos nas colônias açucareiras ... 67

2.4. Reprodução e comércio de escravos nas colônias ... 70

2.5. Notas conclusivas ... 73

Considerações Finais... 76

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Introdução

Adam Smith (1723-1790), filósofo e economista político escocês que ficou conhecido como o fundador da ciência econômica, escreveu em um contexto histórico no qual o debate sobre colônias e escravidão atlântica era praticamente incontornável. Sua famosa “Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações” foi publicada no dia 9 de março de 1776, poucos meses antes da Declaração de Independência dos Estados Unidos.

Estando em Londres entre 1773 e 1776, período crítico do embate entre a Grã-Bretanha e suas colônias norte-americanas, Smith acompanhou de perto o debate político sobre a questão colonial britânica (Ross, 2010, pp. 255-56). Mais que isso, a discussão empreendida ao longo da “Riqueza das Nações” evidencia a preocupação de Smith com a questão colonial britânica1, a qual, por sua vez, não podia ser debatida sem referências à

escravidão atlântica.

Os negócios escravistas e, no caso da Escócia, especialmente o comércio de tabaco, ocuparam um lugar importante na economia britânica setecentista. O comércio de tabaco, cultivado nas colônias britânicas do continente através de trabalho escravo, expandiu-se rapidamente a partir de meados do século XVIII, adquirindo importância crescente na economia escocesa (Devine, 2015a; Devine, 2015b; Whyte, 2015).

Na segunda metade do século XVIII, os mercadores escoceses (principalmente de Glasgow) assumiram progressivamente o controle do comércio de tabaco com as colônias. Em 1765, os escoceses eram responsáveis por 40% das importações de tabaco do Reino Unido e, entre 1773-74, passaram a dominar o comércio desse produto com as colônias. O tabaco importado das colônias era, na Escócia, reexportado para os demais países do mundo. O negócio de importação e reexportação de tabaco tornou-se uma das principais atividades da economia escocesa no período (Devine, 2015a).

Adam Smith, além de ter acompanhado os debates sobre a situação colonial britânica em Londres, esteve em contato nas décadas anteriores com importantes mercadores de Glasgow envolvidos no negócio de importação e reexportação de tabaco (Ross, 2010, p.255-57). O autor, informado das questões relativas à colonização britânica, insere-se no debate com uma postura marcadamente contrária ao monopólio do comércio colonial e à escravidão nas colônias da América e do Caribe (escravidão atlântica).

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Smith, contudo, não ficou conhecido como crítico da escravidão atlântica apenas a partir da “Riqueza das Nações”. Desde a publicação da “Teoria dos Sentimentos Morais”, em 1759, o autor vinha posicionando-se publicamente contra o tratamento dos africanos escravizados nas colônias. Smith integrava o grupo de iluministas escoceses2 que, ao longo do

século XVIII, romperam com a aceitação majoritária da escravidão comum ao século anterior (Doris, 2011).

Os literati escoceses – Francis Hutcheson, David Hume, John Millar, James Steuart e Adam Smith –, além de romperem com a condescendência em relação à escravidão comum aos círculos intelectuais do século XVII, desenvolveram críticas morais e econômicas à instituição antes que o movimento abolicionista ganhasse força na Grã-Bretanha (Webster, 2003). A crítica ao tráfico de escravos3 e à escravidão nas colônias apenas ocupou lugar de

destaque no debate público britânico nas décadas finais do século XVIII e início do século XIX.

As primeiras propostas concretas para a abolição da escravidão nas colônias (Brown, 2004), assim como a maior agitação em torno da crítica ao comércio de escravos (Webster, 2003), surgiram apenas nas décadas finais do século XVIII. Esse movimento britânico antiescravidão teria sido influenciado, pelo menos em parte, pelos escritos dos iluministas escoceses. Ainda que esses literati não fossem genuinamente abolicionistas, ou inteiramente comprometidos com o abolicionismo, seus escritos parecem ter fornecido uma importante base intelectual para as campanhas abolicionistas futuras (Webster, 2003; Watkins, 2013; Devine, 2015b).

Uma das características importantes da discussão sobre a escravidão no iluminismo escocês foi a preocupação com os aspectos econômicos do emprego de escravos. A maioria desses pensadores defendia que o trabalho livre era mais vantajoso para a sociedade (Webster, 2003). A ideia de que o trabalho livre era preferível ao escravo – ou seja, de que a escravidão é economicamente desvantajosa – foi uma das bandeiras do movimento abolicionista britânico.

Brown (2004) argumenta que as primeiras propostas concretas de abolição partiam do pressuposto da maior produtividade do trabalho assalariado. Os primeiros planos

2 Para uma discussão da obra de Smith no contexto do iluminismo escocês, ver Cerqueira (2006), Haakonssen (2006); Berry (2013). Para uma revisão do contexto histórico e teórico do iluminismo escocês, ver Emerson (2003).

3 No século XVIII, a Grã-Bretanha teve um papel muito importante no tráfico. Entre 1680 e 1807, os navios britânicos carregaram aproximadamente três milhões de africanos para serem escravizados nas colônias da América e do Caribe (Morgan, 2004). O auge desse negócio, segundo Devine (2015), aconteceu na década de 1760, quando os navios britânicos transportaram em média 42 mil pessoas escravizadas por ano.

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ou esquemas para a abolição, tendo forte inspiração iluminista, normalmente assumiam que os trabalhadores eram mais produtivos quando movidos pelo interesse e não pela coerção. Partindo de verdades consideradas universais sobre o emprego de escravos, como aquelas apresentadas por Adam Smith na “Riqueza das Nações”, muitos “abolicionistas” associaram o aumento da produtividade nas colônias ao emprego de trabalhadores livres e assalariados. (Brown, 2004)

Adam Smith argumenta na “Riqueza das Nações” que o trabalho feito por um escravo é sempre mais caro que aquele feito por um empregado livre assalariado (WN I.viii.41; III.ii.9). Estimado pelos abolicionistas (Griswold, 1999, p.198), Smith era um dos expoentes mais enérgicos da crítica econômica à escravidão e acabou consolidando a ideia de que o emprego de escravos tem um caráter inerentemente antieconômico (Webster, 2003). Para o autor, a escravidão seria sempre menos rentável que o trabalho livre e, por isso, escravizar outras pessoas seria inconsistente tanto com o interesse dos empregadores quanto com o progresso econômico da sociedade como um todo (Griswold, 1999, p.199).

Essa crítica econômica influenciou os debates sobre escravidão colonial no século XIX. Os argumentos de Smith ecoaram, por exemplo, na discussão de escravidão feita pelo economista político luso-brasileiro José da Silva Lisboa (Coutinho, 2017). Ecoaram também na França, no debate de Jean-Baptiste Say sobre escravidão colonial4 (Plassart, 2009). Em

suma, a crítica econômica de Smith ao emprego de escravos influenciou diversos economistas políticos que debateram escravidão colonial no século XIX.

Sob todos os aspectos mencionados nesses parágrafos introdutórios, a crítica de Adam Smith à escravidão adquire grande relevância história. Ainda assim, poucos economistas que se apropriam do autor levam em conta sua discussão da escravidão e/ou a articulação dessa discussão com seu pensamento econômico. Em suma, a despeito da importância histórica do tema, poucos trabalhos enfatizaram o tratamento dado pelo pensador escocês ao fenômeno da escravidão atlântica.

Nas últimas décadas o pensamento de Smith sobre escravidão tem sido revisitado por alguns comentadores e, por isso, surgiram trabalhos muito relevantes que abordam o

4 De acordo com Plassart (2009), na primeira edição do “Tratado de Economia Política” (1803) Say argumenta que seus predecessores na economia política – James Steuart, Turgot e Smith – estavam errados ao dizer que o trabalho escravo era menos rentável que o trabalho livre. No entanto, a autora ressalta que essa posição foi sendo atenuada ao longo das edições seguintes do “Tratado”. Na quinta edição, por exemplo, o autor se mostra convicto que o sistema colonial e a escravidão teriam deixado de ser lucrativos. O economista político francês, no final da década de 1820, acaba retornando à posição de Smith e concordando que a escravidão era um fardo muito grande para os mestres.

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tema5. No entanto, essa literatura não é extensa e, principalmente, não especifica o tratamento

dado pelo autor à escravidão atlântica. Nesse cenário, esta dissertação busca mapear, organizar e contextualizar a discussão de Adam Smith sobre a escravidão nas colônias da América e do Caribe.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que o pensador escocês desenvolveu importantes críticas à escravidão não apenas através da perspectiva econômica, mas também no âmbito moral (Pack, 1996). Comentários críticos à escravidão são encontrados tanto em suas obras publicadas, “Teoria dos Sentimentos Morais” (1759) e “Uma Investigação sobre as Causas e a Natureza da Riqueza das Nações” (1776), quanto nas “Lectures on Jurisprudence” (1762-64, sem tradução para o português).

Smith não discute extensamente o tema da escravidão atlântica na TMS, ainda que um comentário nessa obra evidencie o descontentamento do autor com a instituição:

“A esse respeito [autodomínio], não existe um único negro na costa da África cuja magnanimidade a alma de seu sórdido senhor consegue conceber. A fortuna nunca exerceu mais cruelmente seu império sobre os homens do que quando sujeitou essas nações de heróis ao rebotalho das masmorras da Europa, a pobres-diabos [colonizadores] que não possuem nem as virtudes do país de onde vem nem as daqueles para onde vão, e cuja leviandade, brutalidade e baixeza os expõem tão justamente ao desdém dos vencidos.” 6 (TMS V.2.9, Trad. Lya Luft, p. 255, grifos nossos)

Glen Doris (2011, pp. 36-47) argumenta que esse breve comentário evidencia o descontentamento de Smith com o tratamento imposto aos africanos que, sendo escravizados pelos europeus, tornam-se mão de obra nas plantações coloniais. Esse comentário foi fortemente rejeitado por proponentes da escravidão e inspirou a escrita de um panfleto anônimo intitulado An Essay in Vindication of the Continental Colonies of America from a Censure of Mr. Adam Smith, in his Theory of Moral Sentiments (1764), que buscava refutar as acusações feitas por Smith e justificar a continuidade da escravização de africanos pelos europeus (Doris, 2011, p. 47). Em suma, essa breve passagem foi suficiente para marcar a postura crítica à escravidão de Smith à época.

5 Dentre os trabalhos que revisitam a discussão de Smith sobre escravidão estão Pack (1991), Pack (1996), Salter (1992), Salter (1996), Griswold (1999), Perelman (2000), Vivenza (2001), Webster (2003), Doris (2011), Shiliam (2012), Coutinho (2015).

6 “There is not a negro from the coast of Africa who does not, in this respect, possess a degree of magnanimity which the soul of his sordid master is too often scarce capable of conceiving. Fortune never exerted more cruelly her empire over mankind, than when she subjected those nations of heroes to the refuse of the jails of Europe, to wretches who possess the virtues neither of the countries which they come from, nor of those which they go to, and whose levity, brutality, and baseness, so justly expose them to the contempt of the vanquished.” (TMS, V.2.9)

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Esta seria, contudo, a única referência direta à escravidão nas colônias da América e do Caribe presente na TMS. O debate sobre escravidão atlântica concentra-se, então, na “Riqueza das Nações” e nas “Lectures on Jurisprudence”, livro composto por dois relatórios das aulas de Smith sobre Jurisprudência, que integravam seu curso de Filosofia Moral na Universidade de Glasgow.

Adam Smith foi professor na Universidade de Glasgow entre 1751 e 1764. Em 1752 assumiu a cátedra de Filosofia Moral, na qual permaneceu até deixar a Universidade em 1764. John Millar, um dos alunos de Smith, relata que seu curso de Filosofia Moral era dividido em quatro partes: na primeira o autor discutia teologia natural, na segunda ética, na terceira justiça e na quarta os regulamentos políticos que, estando fundados no princípio da utilidade (expediency), visavam aumentar a riqueza, poder e prosperidade de um Estado (Stewart, I.18-20).

As “Lectures on Jurisprudence” corresponderiam às duas últimas partes do curso de Filosofia Moral (Meek, Raphael e Stein, 1978). Jurisprudência, para o autor, seria a teoria dos princípios gerais da lei e do governo (LJ, p. 398). Dessa forma, as LJ podem ser entendidas como parte do projeto anunciado na TMS de escrever uma espécie de teoria e história das leis e formas de governo (Haakonssen, 2006).

Publicadas na Edição de Glasgow das Obras Completas de Smith, as LJ contêm dois relatórios das aulas de Smith sobre Jurisprudência que integrariam o curso de Filosofia Moral. Meek, Raphael e Stein (1978), na introdução a essa edição, comentam que um dos relatórios, encontrado e publicado por Edwin Cannan no final do século XIX, corresponderia às aulas sobre Jurisprudência ministradas entre 1763-64. O manuscrito encontrado em 1895 seria uma cópia, feita por um copista profissional, de uma versão reescrita das notas de aula tomadas por um estudante (Meek, Raphael & Stein, 1978). O outro relatório, encontrado apenas em meados do século XX e publicado pela primeira vez na Edição de Glasgow, corresponderia a uma versão reescrita de notas tomadas por outro estudante entre 1762-63 durante as aulas de Smith sobre o tema (Meek, Raphael & Stein, 1978).

Esses dois relatórios contêm uma discussão extensa sobre escravidão, especialmente na parte dedicada à análise do Direito Doméstico (Domestic Law). Smith, nessa parte, estaria discutindo a lei que trata das três relações possíveis de um homem como membro de uma família: marido e esposa, pai e filho, mestre e servo (LJ, pp. 141-99; 438-58). O tema da escravidão (inclusive atlântica) aparece quando o autor comenta a relação entre mestre e servos em diferentes sociedades. Ao longo dessa discussão, Smith aborda uma

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grande quantidade de temas: origem da escravidão nos primórdios da sociedade, possibilidades de abolição, inconvenientes da escravidão do ponto de vista do escravo e do mestre, tratamento dos escravos em diferentes sociedades e diferentes formas de aquisição dos escravos (LJ, pp. 175-99; 450-56).

Como mencionado anteriormente, o debate sobre escravidão também aparece na “Riqueza das Nações”. Nessa obra, segundo John Millar, teriam sido publicados muitos dos temas discutidos naquela quarta parte do curso de Filosofia Moral de Smith (Stewart, I.20). Na sexta edição da TMS, de 1790, Smith argumenta que parte da promessa de escrever um comentário sobre os princípios gerais da lei e do governo foi cumprida na “Riqueza das Nações”, pelo menos no que tange à parte da Jurisprudência que aborda “police, revenue, and arms” (TMS, Adv.2).

Na “Riqueza das Nações”, obra extensa que continua tendo um estatuto canônico entre os economistas, Smith intercala a exposição de seu sistema teórico com “longas digressões sobre a história e as práticas de diferentes sociedades” (Cerqueira, 2005, p. 183). Esse livro, que se tornou um grande tratado de economia política, contém a exposição mais completa e sistemática da “teoria econômica” de Smith (Berry, 2013; Pack, 1991).

Além disso, a WN contém também a versão mais completa e desenvolvida da crítica econômica de Smith à escravidão (Webster, 2003; Doris, 2011). No entanto, o debate sobre escravidão na WN não se encerra na apresentação dos inconvenientes econômicos dessa instituição. Smith, por exemplo, discute também o “amor pela dominação” (WN III.ii.9) – disposição tirânica da natureza humana que explicaria a preferência pelo emprego de escravos –, tema que havia sido bastante abordado em seus cursos sobre Jurisprudência. A preferência natural pelo emprego de escravos parece contrastar com o auto-interesse (self-interest) dos mestres, ou seja, com seus interesses econômicos de empregar trabalhadores livres.

Em suma, a “Riqueza das Nações” não contém apenas a discussão mais desenvolvida sobre os inconvenientes econômicos do trabalho escravo, mas também aborda outros temas muito relevantes para o debate de Smith sobre escravidão. Essa discussão relativamente abrangente de escravidão, contudo, não está concentrada em um capítulo ou parte específica da WN. Os argumentos estão espalhados ao longo da obra e fundem-se com o debate sobre temas diversos. Não podem, então, serem discutidos sem uma referência ao contexto em que aparecem.

No entanto, a literatura secundária sobre o tema não costuma ressaltar suficientemente o contexto teórico em que os comentários sobre escravidão aparecem na WN.

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Esta dissertação busca, então, dar especial atenção à estrutura da WN, ao conteúdo específico de cada um de seus livros, aos temas em debate e ao contexto dos argumentos.

Contudo, a fim de mapear e organizar o pensamento de Smith sobre escravidão atlântica recorre-se também aos comentários presentes em outros escritos do autor, como as “Lectures on Jurisprudence” e mesmo o “Early Draft of Part of The Wealth of Nations”. Assim, ainda que a atenção esteja voltada para a “Riqueza das Nações”, as referências explícitas à escravidão nos demais textos de Smith também serão discutidas. Não se pretende, com isso, empreender um estudo comparativo entre seus escritos ou buscar uma abordagem total de sua obra. Essas questões, embora muito relevantes do ponto de vista da história do pensamento econômico, fogem ao escopo desta dissertação. A revisão da obra de Smith, neste trabalho, tem como propósito apenas permitir que a abordagem do pensamento do autor sobre escravidão seja tão completa quanto possível.

A partir do mapeamento das principais referências de Smith à escravidão, assim como da atenção ao contexto e estrutura da WN, surgem duas questões centrais a serem desenvolvidas nesta dissertação. Em primeiro lugar, o pensamento de Smith sobre escravidão atlântica não está descolado de seu debate mais amplo sobre outras formas de escravidão e servidão. O autor, ao analisar a experiência de todas as épocas e territórios, encontra características que seriam comuns a todos os tipos de escravidão e mesmo a outras formas de trabalho forçado (servidão, vilania, etc.). A escravidão possui, então, aspectos universais e atemporais, observáveis em todas as épocas e territórios. Em suma, sob diversos aspectos, a escravidão atlântica não seria muito diferente da escravidão na Roma Antiga ou dos regimes de servidão na Europa Feudal.

A escravidão, e mesmo outros tipos de trabalho forçado (servidão), sempre estariam fundamentados em relações muito grandes de dependência. As relações de trabalho pautadas na dependência pessoal, e não em termos contratualmente definidos, seriam economicamente desvantajosas tanto para quem emprega quanto para o progresso da sociedade como um todo. A escravidão, pautada em relações extremas de dependência, seria uma forma de trabalho muito inconveniente do ponto de vista econômico.

As desvantagens econômicas comuns às relações de trabalho pautadas na dependência, contudo, vão sendo atenuadas à medida que os trabalhadores vão adquirindo liberdade e independência. Essas questões evidenciam-se ao longo do comentário de Smith da história europeia contido no Livro III da WN. O debate de Smith sobre os inconvenientes universais da escravidão acaba, então, relacionando-se com seu relato da história europeia

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como uma trajetória que parte da escravidão/servidão e culmina da independência e liberdade dos trabalhadores.

As referências à Europa Feudal ou ao mundo antigo grego e romano, ou seja, às ilustrações históricas, são fundamentais no tratamento dado por Smith à escravidão atlântica, um fenômeno contingente. Essa questão remete, contudo, à discussão sobre o papel da história no pensamento do autor. Esta dissertação não tem qualquer pretensão de contribuir para esse debate e, por isso, recorre aqui a alguns comentários bem conhecidos sobre o uso da história em Smith a fim de contextualizar o problema de pesquisa.

Dugald Stewart, em “Account of the Life and Writings of Adam Smith”, cunha o termo “história conjectural ou teórica” para se referir a uma forma específica de investigação filosófica. Na discussão de determinados temas, como o progresso da sociedade no tempo, faltam evidências históricas diretas. Diante dessa falta de evidência direta, o filósofo pode substituir os fatos por conjecturas apoiadas nos princípios da natureza humana (II.46-48; 52). Smith, segundo Stewart, teria aplicado esse tipo de investigação em diversos de seus escritos (II.52). Na WN, a investigação do Livro III seria compatível com essa “história conjectural ou teórica”.

John Pocock (2006) argumenta que a história conjectural descrita por Stewart, estando associada à história da natureza humana, apenas existiria na ausência de uma história civil, i.e., na ausência de evidências capazes de apresentar as circunstâncias particulares e datadas nas quais os fatos realmente aconteceram. No entanto, ainda segundo o comentador, existe nos escritos de Smith uma espécie de interação entre essas duas histórias – natural e civil. A história civil pode distorcer o curso natural da história. No entanto, ainda assim, a história (ou curso) natural é muito importante para o entendimento da história civil. Essa interação entre as duas “histórias” poderia ser observada no relato do progresso da sociedade europeia, presente no Livro III da WN.

Campbell e Skinner (1976), em um sentido parecido, argumentam que podem existir dois tipos de “história” em Smith. Uma história ortodoxa, que se ocupa de reunir as melhores evidências factuais e documentadas, e uma história especulativa ou filosófica, que busca desenvolver uma interpretação ideal de um processo histórico. Novamente, a tensão/interação entre essas duas histórias ficaria evidente no terceiro livro da WN, onde Smith contrasta o progresso especulativo (ou filosófico) da opulência com o progresso histórico “ortodoxo” da Europa. O uso dessas duas histórias, contudo, não seria inconsistente com o “sistema smithiano”.

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Smith tinha como objetivo delinear um relato ideal da evolução histórica e, por isso, partia do sistema para os fatos históricos e não dos fatos para o sistema (Campbell e Skinner, 1976). As evidências históricas eram, então, usadas para ilustrar e sustentar o sistema teórico desenvolvido por Smith. Se os fatos históricos não fossem compatíveis com a explicação ideal, como no relato do progresso da sociedade europeia, Smith se empenhava em explicar as causas da divergência. Campbell e Skinner (1976) concluem, então, que os relatos históricos em Smith só adquirem sentido quando interpretados como parte de um sistema intelectual em que os fatos históricos são usados como fonte de ilustração e confirmação.

Essas questões sobre o uso das evidências histórias, e mesmo a existência de duas histórias em Smith, perpassam os temas a serem debatidos nesta dissertação. Ainda que não se tenha uma pretensão de aprofundar nesse debate, é importante enfatizar que o autor faz constante uso das ilustrações históricas ao longo de sua discussão sobre escravidão.

No entanto, como argumentado anteriormente, a partir do mapeamento das referências de Smith à escravidão surge ainda um segundo ponto a ser desenvolvido neste trabalho. Ainda que alguns aspectos universais e atemporais da escravidão estejam subjacentes à escravidão atlântica, esta última insere-se no contexto específico da sociedade comercial e da colonização moderna. Adam Smith, como mencionado nos parágrafos iniciais desta introdução, estava bastante envolvido no debate sobre a colonização moderna, especialmente no que tange à experiência britânica.

Smith acreditava que um dos traços importantes da colonização moderna, e desse estágio comercial da sociedade, era a predominância das práticas mercantilistas que impunham toda sorte de restrições ao comércio colonial e garantiam monopólio a mercadores e produtores. O autor, no entanto, é muito crítico dessas e de outras práticas oriundas do sistema mercantil.

A crítica de Smith ao mercantilismo encontra-se, em sua versão mais desenvolvida, no Livro IV da WN. Em meio a essa crítica aparece o capítulo “On Colonies”, no qual a moderna colonização da América e do Caribe é extensamente debatida. Assim, a discussão do autor sobre a colonização moderna, e também sobre escravidão atlântica, tem como pano de fundo a crítica ao sistema mercantil. Essa associação entre o debate sobre colônias e a crítica ao mercantilismo é fundamental para entender o pensamento de Smith sobre escravidão atlântica.

O autor argumenta que o emprego da dispendiosa mão de obra escrava apenas se sustenta nas colônias que auferem lucros muito altos com o cultivo, como aquelas produtoras

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de açúcar nas Antilhas. Assim, em Smith, o cenário típico da escravidão atlântica seriam as lucrativas plantações de cana-de-açúcar. Esses lucros altos, contudo, seriam oriundos do monopólio garantido pelas práticas mercantilistas que regulavam o comércio colonial.

Em suma, a existência da escravidão atlântica está, em alguma medida, subordinada à garantia de monopólio pelo sistema mercantil. A associação entre o debate de Smith sobre o escravismo colonial e sua crítica ao sistema mercantil, contudo, não foi ressaltada pela maior parte da literatura que aborda escravidão em Smith.

A escravidão atlântica aparece, então, como um fenômeno moderno e correlacionado à sociedade comercial, mas que também conserva características universais e atemporais comuns aos regimes de escravidão e servidão que a precederam. Diante dessas questões, esta dissertação será dividida em dois capítulos, além desta introdução e das considerações finais. O primeiro capítulo abordará as características da escravidão que seriam observáveis em todas as épocas e territórios. Essa discussão é muito importante para contextualizar os comentários específicos de Smith sobre a escravidão nas colônias da América e do Caribe, que serão apresentados e debatidos no segundo capítulo.

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1. A escravidão como uma relação de dependência estrita: do caráter antieconômico às possibilidades de abolição

A escravidão atlântica, no pensamento de Smith, não pode ser desconectada do debate mais amplo sobre os inconvenientes da escravidão no geral, ou seja, em diversas sociedades e períodos históricos. Ao analisar a experiência de todas as épocas e territórios, Smith encontra traços comuns aos diversos regimes de escravidão – seja no mundo antigo ou moderno7. Assim, no pensamento do autor, a escravidão pode ser entendida como um

conceito abstrato (Doris, 2011, p. 50), mas que se refere a diferentes experiências particulares. Smith, em seus escritos, apresenta alguns traços que seriam comuns a todos os regimes de escravidão – seja na Grécia e Roma Antigas, na Europa Feudal ou nas colônias da América e do Caribe. A escravidão, em todas essas sociedades, constituiria uma relação absoluta ou extrema de dependência. Estando pautada na dependência estrita, a escravidão possuiria um caráter inerentemente antieconômico.

A experiência de todas as épocas e nações, para Smith, comprova que o trabalho feito por um escravo acaba sendo o mais caro dentre todos (WN III.ii.9). A escravidão não seria, então, economicamente vantajosa para a sociedade. No entanto, essa desvantagem econômica não levaria necessariamente à libertação dos escravos e à contratação de trabalhadores livres.

Smith acredita que as pessoas preferirão empregar escravos a pessoas livres sempre que a lei autorizar e a natureza do trabalho permitir o maior gasto com a mão de obra. Essa preferência pelo trabalho escravo decorreria de uma disposição natural à humanidade, o amor pelo domínio e autoridade. A disposição ao domínio explicaria, em parte, a persistência da escravidão ao longo da história

No entanto, há também uma restrição econômica para a libertação dos escravos. Os mestres nunca aceitarão abrir mão dos escravos quando estes constituírem uma parte considerável de sua riqueza. Nas sociedades escravistas, onde os escravos representam uma parte grande da propriedade das pessoas livres, a abolição causaria uma insurreição generalizada.

7 Essa busca por regularidades é compatível com o método de investigação filosófica discutido na “História da Astronomia. Esse ensaio, além de conter um estudo dos princípios que “conduzem e direcionam” a investigação filosófica, também seria um importante exercício em história filosófica ou teórica (Campbell e Skinner, 1976; Raphael e Skinner, 1982). Para uma introdução à discussão da Astronomia e do método smithiano, ver Campbell e Skinner (1976), Raphael e Skinner (1982).

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Em Smith, essas seriam as características da escravidão observáveis em todas as épocas e territórios, desde a Roma Antiga até a moderna colonização da América e do Caribe. Este capítulo tem como objetivo discutir essas características “gerais” da escravidão. Para tanto, serão retomados e contextualizados argumentos apresentados por Smith tanto na WN quanto em seus outros textos.

Nas duas primeiras seções se discute a questão da dependência como fundamento da escravidão e de outras formas de trabalho forçado. Na primeira seção se argumenta que Smith entende diferentes relações de trabalho (livre ou não) em uma “escala” ou “gradação” de dependência. A escravidão, e mesmo outras formas de trabalho forçado comuns à Europa Feudal (vilania, servidão, etc.), corresponderiam aos graus mais elevados dessa escala de dependência.

Como mencionado, as relações de trabalho pautadas em níveis muito grandes de dependência e sujeição seriam ineficientes do ponto de vista econômico. Essa ineficiência, entretanto, é atenuada à medida que os trabalhadores vão adquirindo independência.

A segunda seção discute, então, como essa gradação de dependência aparece ao longo do comentário de Smith sobre a história europeia no Livro III da WN. Neste terceiro livro, o relato da mudança das relações de ocupação da terra na Europa após a Queda do Império Romano evidencia que, em Smith, os diferentes graus de dependência engendram menores ou maiores níveis de desenvolvimento no campo. A escravidão aparece, então, como uma relação de dependência estrita à qual corresponde um baixíssimo nível de desenvolvimento agrícola.

Nesse estágio antigo da Europa, o caráter antieconômico da escravidão relaciona-se ao fato de os escravos não terem incentivos para produzir mais. Os incentivos têm um papel central na crítica econômica de Smith à escravidão, cujos principais elementos serão apresentados na terceira seção. Enquanto a segunda seção está circunscrita ao contexto do Livro III, a terceira retomará passagens espalhadas pela WN a fim de discutir como o caráter antieconômico da escravidão aparece em Smith.

A quarta seção, por sua vez, discute porque as desvantagens econômicas do emprego de escravos não levam necessariamente à abolição. Oamor pelo domínio aliado a uma restrição econômica à abolição - o fato de os escravos representarem uma parte muito grande da propriedade e riqueza das pessoas livres - explicariam a persistência da escravidão no tempo. Por fim, a quinta seção apresenta algumas conclusões da discussão empreendida ao longo do capítulo.

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1.1. Escravidão como uma relação de dependência estrita

A escravidão, em Smith, está fundada em relações de dominação e dependência. O autor, nas LJ, argumenta que a escravidão teria existido nos primórdios de todas as sociedades (LJ, p. 187). A fraqueza do governo explicaria essa existência quase universal da escravidão nos estágios primitivos da sociedade (LJ, pp. 143-44, 187). O governo não tinha, então, poder para interferir em assuntos privados (LJ, p. 187). Além disso, a existência de um governo muito fraco tendia a intensificar o poder dos chefes de família (ou mestres privados) na sociedade (LJ, p. 187).

Essa discussão sobre origem da escravidão nos primórdios da sociedade tem como pano de fundo o tema clássico das diferentes formas de dominação no interior do domus. Nos primórdios das sociedades, os chefes de família adquirem um poder quase absoluto sobre seus dependentes: esposa, filhos e servos (LJ, pp. 143-44). A autoridade do chefe de família sobre sua esposa e seus filhos, ainda que permaneça muito grande, pode ser consideravelmente restringida em alguns casos (LJ, p. 176).

No entanto, nesses tempos antigos, ninguém tinha poder para impor qualquer restrição à autoridade dos chefes de família sobre seus servos. Sob o poder absoluto e arbitrário do mestre, os servos tornam-se escravos8 (LJ, p. 176). Em outras palavras, Smith

argumenta que os servos se tornam de fato escravos quando estão inseridos em situações estritas de sujeição. A servidão extrema, nos primórdios da sociedade, equivaleria à escravidão9.

O avanço da sociedade e a constituição de outras formas de governo, em Smith, não garantiriam a restrição da autoridade dos mestres sobre seus escravos. A persistência da escravidão na história é explicada, em parte, por uma disposição natural da humanidade: o “amor pela dominação” (LJ, p. 187). Além disso, o autor argumenta que nenhum tipo de governo, por mais avançado, teria poder para abolir a escravidão em um território em que esta fosse uma instituição generalizada. Essas questões serão retomadas na quarta seção.

A escravidão, que teria sido quase universal nos primórdios da sociedade, persistira ao longo do tempo pelas razões mencionadas acima. Além disso, persistiria como

8 Montesquieu, cuja discussão de escravidão teria influenciado Smith e outros escoceses, argumenta n’O Espírito das Leis que “a escravidão propriamente dita é o estabelecimento de um direito que torna um homem tão próprio de outro homem, que este é o senhor absoluto de sua vida e de seus bens” (Livro XV, cap.1, p.253).

9 John Millar (2006, p. 246), em The origin of the distinction of ranks, argumenta que ser um servo nos tempos antigos era quase universalmente a mesma coisa que ser um escravo.

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uma relação fundada na dependência absoluta da pessoa escravizada em relação ao mestre. Um escravo estaria, então, em condições de extrema sujeição. Sua vida e liberdade pertencem ao mestre (LJ, p. 176). Além disso, ele apenas tem acesso à subsistência estrita e o fruto de seu trabalho não lhe pertence (LJ, p. 177). O mestre dispõe de tudo aquilo que o escravo produzir ou conseguir poupar ao longo da vida e, por isso, pessoas na condição de escravidão não são capazes de adquirir propriedade (LJ, p. 177). A impossibilidade de ter acesso ao produto do trabalho, i.e., de dispor do excedente, é um ponto central da crítica econômica de Smith à escravidão que será retomada nas seções seguintes.

Em Smith, a dependência e sujeição também estariam subjacentes a outras formas de trabalho forçado. O autor, em seus textos, normalmente alterna entre o uso de slave (escravo), servant (servo), villain (vilão) e bondman (alguém subordinado a um mestre).10

Algumas passagens da WN ilustram essa alternância entre os termos.

No décimo primeiro capítulo do Livro I, Smith menciona que antes da colonização espanhola os poucos artesãos existentes no Peru provavelmente estavam em estado de escravidão ou servidão (WN I.xi.g.26). No quarto capítulo do Livro III, o autor afirma que quando os habitantes das cidades na Europa Feudal livraram-se das condições características à vilania e à escravidão tornaram-se realmente livres (WN III.iii.5). Smith também atribui quase equivalência aos termos escravos e vilões na passagem do Livro III em que comenta a abolição da escravidão na Europa Ocidental (WN III.ii.12).

O uso alternado desses termos por Smith sugere que distintas manifestações de trabalho forçado (servidão, vilania, escravidão, etc.) teriam um fundamento comum – a dependência. Recorrendo ao conhecido dicionário de Samuel Johnson (3ª ed., 1768), slave seria uma pessoa não livre, alguém subordinado a um mestre, um dependente. Ainda nesse dicionário, o termo dependency (dependência) é definido como o estado de estar subordinado a outrem; villanage corresponderia a um tipo pior de servidão; bondman seria um homem escravo; e servant seria aquele que está em um estado de sujeição.

Sem a pretensão de um estudo etimológico aprofundado, as referências ao dicionário de Johnson são feitas apenas para suportar a ideia de que o uso desses termos, na linguagem comum ao século XVIII, remeteria a situações de dependência ou subordinação. Assim, o padrão de alternância entre o uso de escravo, servo, vilão, etc. presente nos textos de Smith encontra alguma correspondência com o sentido atribuído a essas diferentes formas de trabalho forçado à época: constituem relações de dependência.

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A dependência, contudo, seria uma questão de grau. Como discutido, a escravidão corresponderia ao grau mais elevado, de dependência estrita ou subordinação extrema. Smith também confere a outros tipos de trabalho forçado comuns à história europeia e inglesa (vilania, bondage, servidão, etc.) um nível muito alto de dependência e sujeição, ainda que esses regimes de trabalho não correspondam à escravidão típica (chattel slavery). Essas questões também ajudam a entender o uso alternado dos termos mencionados acima: Smith parece aproximar a condição dos vilões, bondmen, servos, etc. à escravidão sempre que eles estiverem inseridos em relações de dependência estrita em relação aos mestres.

O extremo oposto aos escravos nessa “gradação de dependência” seria o pequeno proprietário rural: “um agricultor que cultiva sua própria terra, auferindo sua subsistência do trabalho de sua própria família, é realmente um mestre, independente de todo o mundo” (WN III.i.5, Trad. Luiz João Baraúna, p. 376, vol.1, com modificações nossas). Esse agricultor, que vive do cultivo de sua própria terra, seria verdadeiramente independente. Entre os extremos (dependência estrita e independência absoluta) existiriam muitas outras relações fundadas em graus maiores de dependência ou independência11.

Essa “gradação de dependência” evidencia-se quando Smith discute, no Terceiro Livro da WN, o desenvolvimento das relações de trabalho na agricultura europeia após a Queda do Império Romano: do trabalho escravo (dependência estrita) aos arrendamentos de longo prazo (independência). A descrição dessa trajetória traz à tona uma questão central para entender a crítica econômica de Smith à escravidão: as relações de trabalho fundadas na dependência pessoal possuem um caráter inerentemente antieconômico. Esse caráter antieconômico vai sendo atenuado à medida que aqueles que cultivam a terra vão se tornando mais independentes. Essas questões serão discutidas na próxima seção.

1.2. A questão da dependência: a mudança nas relações agrícolas na Europa após a Queda do Império Romano

Adam Smith descreve o desenvolvimento das relações agrícolas na Europa no Livro III da WN12, intitulado “Sobre o diferente progresso da opulência em diferentes

11 Essa gradação de dependência não se aplica apenas ao trabalho agrícola. O aprendiz de uma corporação de ofício é “um servo obrigado a trabalhar em uma determinada ocupação em benefício de um mestre.” (WN I.x.c.15, Trad. Luiz João Baraúna, p. 167, vol.1). Um manufator, por outro lado, é dependente de todos os seus clientes para garantir sua subsistência, ainda que não dependa individualmente de nenhum um deles (WN III.i.5, III.iv.11).

12 A discussão sobre a mudança das relações de trabalho na agricultura na Europa também aparece, ainda que menos desenvolvida, nas LJ (pp.521-24) e no ED (pp. 579-81).

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nações”. Pocock (2006) argumenta que Smith, nesse livro, empenhou-se no debate sobre a história do governo na Europa, i.e., no estudo da substituição da sociedade feudal por uma sociedade comercial13. Esse debate, muito caro aos contemporâneos de Smith, também

apareceria em David Hume, William Robertson, John Millar, dentre outros (Pocock, 2006). O comentário de Smith sobre a história europeia tem como ponto de partida a Queda do Império Romano e culmina na constituição da sociedade comercial. Esse comentário seria guiado principalmente pela história inglesa (Pocock, 2006). Smith, segundo Pocock (2006), acreditava que a história da Inglaterra mostrava com profundidade e detalhe os princípios que nortearam a trajetória da sociedade europeia.

A preocupação de Smith com a história inglesa fica evidente no relato da evolução das relações de trabalho na agricultura. Salter (1996) argumenta que a descrição do gradual desaparecimento da escravidão e sua substituição por trabalhadores livres, que culmina no surgimento de agricultores com arrendamentos de longo prazo, seria uma referência à história inglesa. Assim, o debate sobre as desvantagens econômicas da escravidão em Smith teria como pano de fundo a comparação entre os regimes de trabalho forçado no campo e a yeomanry inglesa, classe de produtores rurais independentes (Salter, 1996).

Embora inserida em uma espécie de comentário à história inglesa e, em certos aspectos, de outros países da Europa, a descrição da mudança gradual das relações de trabalho no campo também tem profunda relação com a teoria econômica de Smith. O ponto de partida para esse relato da história da Europa, ou do progresso da sociedade europeia, está na discussão sobre a aplicação de capital entre os diferentes setores da economia – manufatura, comércio e agricultura – desenvolvida no Livro II da WN.

Smith, no Livro Segundo, argumenta que capitais iguais empregados na agricultura, comércio ou manufatura, movimentam quantidades diferentes de trabalho produtivo (WN II.v). O trabalho produtivo é aquele que acrescenta valor ao objeto sobre o qual é empregado (WN II.iii.1) e, consequentemente, aumenta o valor da produção anual da terra e do trabalho da nação ou território (WN II.iii.13). Dessa forma, a mão de obra produtiva empregada em uma nação ou território dá origem à riqueza e renda de todos seus habitantes (WN II.iii.13).

O capital empregado na agricultura, por movimentar uma quantidade maior de mão de obra produtiva em relação à manufatura e ao comércio, constitui a aplicação mais

13 O tema da substituição da sociedade feudal pela sociedade comercial engendra interpretações ainda em disputa sobre o pensamento de Smith. Sobre o contraste entre as interpretações “materialistas” de Smith apoiadas na “teoria dos quatro estágios” e aquelas que insistem na centralidade da política e da jurisprudência, de Knud Haakonssen e Donald Winch, ver Salter (1992). Esse debate, embora relevante, não é tema desta dissertação.

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vantajosa para a sociedade (WN II.v.12-19). Embora acrescente maior valor à produção da terra e do trabalho, a agricultura não constituiu o principal destino do capital acumulado ao longo da história europeia (WN II.v.19).

Smith, no parágrafo que encerra o Livro Segundo, argumenta que a política europeia historicamente tem dado vantagem aos negócios da cidade (comércio exterior e manufatura) em detrimento daqueles do campo (agricultura) (WN II.v.37). O Livro Terceiro discute, então, as razões pelas quais a agricultura foi desestimulada no estágio Antigo da Europa e como o progresso no campo foi introduzido pelo desenvolvimento dos negócios da cidade14.

Smith, no primeiro capítulo do Livro Terceiro, discute como se dá o progresso natural da riqueza em uma sociedade. Segundo o curso natural das coisas, o capital se direciona inicialmente para a agricultura, depois para a manufatura e, por fim, para o comércio externo (WN III.i). Em outras palavras, é o progresso do campo que leva ao desenvolvimento dos negócios da cidade (WN III.i).

Smith argumenta que essa “ordem natural” teria sido invertida na Europa: o comércio exterior introduziu as manufaturas e os dois juntos fizeram surgir os principais melhoramentos na agricultura (WN III.i.9). Esse tema, segundo Pocock (2006), ilustraria a interação entre história natural e civil em Smith: a história civil pode distorcer o curso que a história natural teria seguido caso não existissem interferências15.

Os hábitos e costumes introduzidos na Europa após a Queda do Império Romano forçaram essa “ordem antinatural” do progresso da opulência (WN III.i.9). O progresso do campo, i.e., o cultivo e melhoramento das terras, foram fortemente desestimulados nesse Estágio Antigo da Europa (WN III.ii). Apenas a partir do desenvolvimento dos negócios da cidade introduziu-se ordem e bom governo no campo, o que permitiu o cultivo e melhoramento das terras (WN III.iv).

A trajetória do progresso da riqueza na sociedade europeia, ainda que “invertida” em relação à “ordem natural”, culmina na liberdade e independência dos indivíduos (WN III.iii-iv). Em Smith, a mudança gradual das relações de trabalho na agricultura da Europa

14 No Livro Quarto, que será retomado no segundo capítulo desta dissertação, Smith discute porque os negócios da cidade continuaram a ter privilégio sobre os do campo na Europa moderna. Em suma, a “teoria do capital” exposta no Livro II está subjacente à discussão de Smith nos livros seguintes da WN.

15 Como mencionado na introdução desta dissertação, Pocock (2006) argumenta que à história natural ou conjectural corresponderia uma investigação sistemática com o propósito de classificar, sistematizar e explicar. O propósito da história civil, por outro lado, seria narrar eventos em sua ordem sequencial e apresentá-los em termos de suas causas e consequências. Essas histórias, ainda que discrepantes, interagem nos escritos de Smith (Pocock, 2006). Campbell e Skinner (1976), sobre o uso da história no Livro III da WN, separam a existência de uma “história filosófica” e de uma “história ortodoxa”.

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pode ser interpretada como a descrição de uma trajetória que parte de relações estritas de dependência (escravidão) e culmina na independência do ocupante de terra em relação ao proprietário16. Esse caminho longo em direção à independência, contudo, teria sido marcado

por diversos acontecimentos fortuitos, resultados não intencionais e, principalmente, apenas corresponderia à história da parte Ocidental da Europa.

Como mencionado anteriormente, essa discussão tem como contexto amplo os comentários de Smith sobre o governo feudal e sobre as circunstâncias que explicariam seu fim. As relações de dependência pessoal aparecem, então, como o fundamento da sociedade feudal. No campo, as relações de produção estariam alicerçadas na dependência dos ocupantes da terra em relação aos grandes senhores. Os rendeiros que cultivavam a terra sob o sistema feudal, mesmo quando eram livres, dependiam dos grandes senhores para a sua subsistência. Eram também obrigados a prestar toda sorte de serviços e favores para esses senhores de terra, que podiam comandar seu trabalho em tempos de paz e exigir seus serviços em tempos de guerra (WN II.iii.9). O lento progresso da agricultura nesse período pode ser explicado, em parte, pelo fato de as relações de trabalho no campo estarem fundadas na dependência pessoal.

Smith, no segundo capítulo do Livro Terceiro, mostra como o emprego de capital no cultivo e melhoramento da terra foi desestimulado após a invasão das províncias ocidentais do Império Romano por povos bárbaros (germânicos e citas). A forma de organização da sociedade então instituída introduziu naturalmente hábitos e costumes que retardariam o desenvolvimento da agricultura na Europa durante muitos séculos (WN III.i.9; III.ii.1).

À Queda do Império Romano do Ocidente seguiram tempos de contínua desordem. O comércio previamente existente entre campo e cidade foi interrompido, “as cidades foram abandonadas e os campos deixados incultos” (WN III.ii.1, Trad. Luiz João Baraúna, p. 379, vol. 1). Os principais líderes das nações bárbaras invasoras tomaram para si enormes porções de terras (WN III.i.1), cuja posse, nesse contexto, tornou-se instrumento de poder e proteção (WN III.ii.3). Esse grande senhor de terras adquiriu, então, enorme autoridade e tornou-se um príncipe em ponto menor (petty prince), responsável pela defesa da propriedade e daqueles que a habitavam contra as invasões e violência dos vizinhos (WN III.ii.3).

16 John Millar (2006), na terceira seção do capítulo IV, “Causes of the freedom acquired by the labouring people in the modern nations of Europe”, discute a evolução das relações de trabalho na agricultura europeia após a Queda do Império Romano. Ao longo dessa seção, Millar também associa liberdade e independência ao fim da sujeição pessoal e, por isso, descreve uma trajetória que vai da dominação extrema à liberdade dos ocupantes da terra.

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Nesses tempos em que a posse de grandes porções de terra constituía instrumento de poder e proteção, foram sendo criados mecanismos para garantir que as propriedades não fossem divididas – seja por herança ou por alienação. Ao longo desse processo foi instituído o Direito de Primogenitura e se convencionou que as terras fossem herdadas por um único filho, geralmente o homem mais velho (WN III.iii.3). O Direito de Primogenitura introduziu naturalmente os entails, que tinham o objetivo de preservar a sucessão linear contra possíveis doações, transferências ou alienação de parte da propriedade de terra (WN III.ii.5).

A instituição do Direito de Primogenitura, e sua preservação através dos entails, seriam contrárias à lei natural de sucessão, que estabelece que a terra deve ser dividida entre todos os filhos, sem distinção de gênero (WN III.ii.3). Ainda que não concorde com essas “leis bárbaras” – a Primogenitura e os entails –, Smith acredita que elas seriam justificáveis naquele contexto de desordem e violência que seguiu a Queda do Império Romano, no qual a posse de grandes porções de terra tornou-se instrumento de poder e proteção (WN III.ii.4-6).

Essas instituições bárbaras, que apenas eram razoáveis sob as circunstâncias que lhes deram origem, continuaram vigentes por muito tempo (WN III.ii.4-6). Quando a contínua desordem foi controlada a “lei natural de sucessão” não foi restabelecida. Smith argumenta, então, que a persistência dessas instituições no tempo engendrou grandes obstáculos para o progresso do campo. Sob o direito da primogenitura e entails se excluiu a possibilidade de que as grandes propriedades fossem divididas (WN III.iii. 2-7).

Foi assegurada, então, a posse de imensas propriedades rurais por um número pequeno de pessoas. Isso representaria um grande obstáculo ao desenvolvimento da agricultura. Os senhores dessas imensas propriedades rurais raramente estariam empenhados no cultivo e aprimoramento da terra (WN III.ii.7). Como a terra era instrumento de poder nesse momento de desordem ou “anarquia feudal”, o grande proprietário normalmente se ocupava com a proteção ou conquista de territórios e tinha pouco tempo livre para o cultivo ou melhoramento da terra (WN III.ii.7).

Quando dispunha de tempo, ele não possuía capital para aplicar na agricultura, pois frequentemente suas despesas igualavam ou superavam sua renda (WN III.ii.7). Caso conseguisse poupar algum capital, normalmente preferiria empregá-lo na compra de outras terras em detrimento do aprimoramento de sua antiga propriedade (WN III.ii.7). Em suma, durante o sistema de governo feudal, os senhores de terra não estavam inclinados a promover o desenvolvimento da agricultura.

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Ainda menos inclinados ao desenvolvimento da agricultura eram aqueles que efetivamente ocupavam a terra sob o comando do grande proprietário (WN III.ii.8). Smith argumenta, em diversas passagens, que grande parte dos ocupantes da terra nesse estágio antigo da história europeia estava em situações muito próximas à escravidão (WN II.iii.9, III.ii.8; LJ, pp. 187-88, 523). Esses ocupantes podiam ser escravos, bondmen (pessoas em estado de servidão), tenants at will (rendeiros a títulos precários) ou vilões (WN II.iii.9, III.ii.8-12; LJ, pp. 187-88, 523).17

No segundo livro da WN, Smith argumenta que durante o governo feudal quase todos os ocupantes da terra eram bondmen18, indivíduos em estado de servidão ou escravidão,

“cujas pessoas e pertences também eram propriedade do dono da terra” (WN II.iii.9, Trad. Luiz João Baraúna, p. 336). Ao introduzir o tema da escravidão no Livro III, o autor argumenta que na época antiga da Europa todos os ocupantes da terra eram tenants at will e que a grande maioria deles eram escravos (WN III.ii.8). Ainda na discussão sobre escravidão antiga no terceiro livro, Smith emprega os termos “vilões” e “escravos” quase como sinônimos19 (WN III.ii.12).

Em suma, esses diferentes regimes de trabalho agrícola (tenancy at will, vilania, servidão) são aproximados da escravidão. Smith, como mencionado na seção anterior, tende a atribuir o caráter de “escravidão” a quaisquer relações de trabalho pautadas em níveis muito elevados de dependência ou sujeição. O autor, entretanto, reconhece que os “escravos” no estágio Antigo da Europa não eram escravos típicos:

“Nas antigas condições da Europa, os ocupantes de terras (...) todos ou quase todos eram escravos, embora sua escravatura fosse de um tipo mais mitigado que a conhecida entre os antigos gregos e romanos, ou mesmo em nossas colônias das Índias Ocidentais. Os escravos pertenciam mais diretamente à terra do que ao mestre. Podiam, portanto, ser vendidos juntamente com a terra, mas não independentemente dela. Podiam casar-se, desde que com o consentimento do mestre, o qual não podia, posteriormente, dissolver o casamento, vendendo marido e mulher a pessoas diferentes. Se mutilasse ou assassinasse algum deles, estava sujeito a alguma penalidade, embora geralmente pequena. ” (WN III.ii.8, Trad. Luiz João Baraúna com modificações nossas, p. 382, vol.1)

17 Vilões, tenants at will, tenants by steelbow (espécie de meeiros) são relações trabalho/ocupação da terra concretas na história inglesa.

18 De acordo com o dicionário de Samuel Jonhson (3ª ed., 1768), bondman é um homem escravo. De acordo com o dicionário de Nathan Bailey (20ª ed., 1763), bondage significa escravidão/servidão.

19 Smith, ao discutir a mudança das relações agrícolas nas LJ (p. 523), argumenta que os vilões eram uma espécie de escravos. Ao comentar a introdução do governo feudal na Europa, também nas LJ (p. 418), o autor comenta que os vilões que cultivavam a terra nesse período eram adscripti glebae.

Referências

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