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V RAM REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL Antropologia em Perspectivas

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Academic year: 2021

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V RAM

REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL

Antropologia em Perspectivas

ASPECTOS DE GÊNERO: KARIRI-XOCÓ FEMALE EMBODIMENT

Sílvia A. C. Martins sac@fapeal.br

GRUPO DE TRABALHO XII

Sentidos do Gênero : Masculinidades, Feminilidades, Sexualidades

Coordenação Fabíola Rohden Flávia de Mattos Motta

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Aspectos de Gênero: Kariri-Xocó Female Embodiment

Sílvia Martins Ph.D. em Antropologia, Universidade Federal de Alagoas

Resumo

Esse artigo baseia-se em estudo etnográfico conduzido entre os Kariri-Xocó (grupo indígena do Nordeste do Brasil) durante nove meses de pesquisa de campo em 2001. Especialistas xamânicos Kariri-Xocó explicam que o “corpo abre” durante relação sexual e quando a mulher vivencia fluxo sangüíneo menstrual e pós -parto. Significados e experiências etnofisiológicas foram investigados como dados fundamentais para a compreensão da incorporalidade feminina (female embodiment).

Dados analisados sobre gênero e incorporalidade feminina revelam como mulheres Kariri-Xocó resistem a dominação masculina num contexto onde a heterossexualização do desejo é produzido. Gênero foi pesquisado a partir da sua materialidade, considerando contextos e aspectos fenomenológicos, simbólicos, políticos, e culturais.

Nesse estudo discuto incorporalidade feminina e de gênero Kariri-Xocó através das quais o corpo feminino caracteriza-se por diferença sexual culturalmente codificada. Incorporalidade feminina aqui é abordada considerando o corpo feminino enquanto materialidade aberta para inscrições culturais, dentro de irredutíveis especificidades, através de experiências e processos corporais (Grosz 1994). A noção de incorporalização de gênero (gender embodiment) é utilizada dentro de um domínio discursivo a partir da articulação do sexo biológico e gênero, na qual a dicotomia discursiva (entre feminino e masculino) tem coerência através de representações (Butler 1990). Assim, através dessa noção de gênero utilizada quando pesquisei experiências e percepções que os especialistas xamânicos e mulheres Kariri-Xocó têm, focalizei o que está implícito em assumpções lógicas através de discursos sobre gênero referentes ao corpo.

O foco no sujeito perceptivo enquanto sujeito corporal proporciona a possibilidade de abordar a incorporalidade subjetiva através de um terreno existencial (Grosz 1994). Butler (1990) discute como gênero, prática sexual e desejo foram estabelecidos e argumenta que é através da instauração da “matriz heterossexual” que a inteligibilidade de gênero naturaliza corpos, gêneros e desejos. Assim, a noção de incorporalização de gênero demarca um domínio discursivo, enquanto que

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incorporalidade feminina refere-se ao domínio existencial de experiências vividas através da qual minha pesquisa focaliza a incorporalização da subjetividade feminina Kariri-Xocó.

Etnofisiologia e processos reprodutivos foram considerados domínios culturais. O método de entrevista etnográfica de Spradley (1979) foi utilizado, procurando diretamente por conhecimento cultu ral associado com esses domínios, para explorar incorporalidade feminina como um tema cultural.1

Entre os Kariri-Xocó, dados etnográficos demonstram como as diferenças entre o corpo masculino e feminino estão baseadas nas suas percepções dentro de domínios relacionados a corporalidade e processos corporais, que inclui processos fisiológicos reprodutivos. A partir das minhas observações e a partir de dados etnográficos coletados, entendo que apesar de existir ampla percepção entre os Kariri-Xocó que o corpo masculino é mais forte que o feminino, as mulheres têm demonstrado um grande poder sobre seus corpos. Apesar do contexto cultural ser de dominação masculina, quando relacionamentos conjugais patriarcais são estabelecidos entre homens e mulheres, encontrei evidências, como decisões que especialistas xamânicas tomaram em ficar sem cônjuge, que demonstra como mulheres tomam decisões e têm controle sobre seus próprios corpos. Esse controle se relaciona também ao corpo reprodutivo feminino, uma vez que as mulheres têm conhecimento a partir do qual elas controlam sua fertilidade (através do controle do fluxo menstrual) e seu prazer sexual. O poder feminino Kariri-Xocó é evidente também através dos discurso dos especialistas xamânicos.

Aprendi entre os Kariri-Xocó que o sangue menstrual é considerado uma substância concebida como parte da natureza do corpo feminino e relacionada com a “força.” Assim, fluidos corporais menstruais (sangue menstrual e do pós -parto), bem como fluidos corporais da relação sexual para ambos, homens e mulheres, estão diretamente associados as concepções e percepções que os Kariri-Xocó têm da permeabilidade do corpo frente a diferença sexual. Os fluidos corporais menstruais femininos não determinam que as mulheres Kariri-Xocó não possam se tornar xamãs,

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Spradley (1979) define tema cultural como “any cognitive principle, tacit or

explicit, recurrent in a number of domains and serving as a relationship among subsystems of cultural meaning” (Spradley 1979, 186).

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mas eles demarcam o fato que as mulheres não se tornam “curandeiras” ou “mestres,” que abrem o ritual de mesa (utilizado para práticas de cura). Isso não determina que somente homens entre os Kariri- Xocó possam se tornar xamãs, como Mota (1987) sugeriu. Fluidos corporais que “abrem” o corpo são um impedimento para práticas xamânicas rituais.

Os Kariri-Xocó têm um conhecimento sobre o corpo a partir do qual a ‘abertura’ e o ‘fechamento’ de corpos que possuem gênero proporciona uma base para diferença sexual. É através desse conhecimento sobre o corpo que diferenças sexuais entre o corpo feminino e o masculino são culturalmente demarcados. Esse conhecimento que os Kariri-Xocó têm sobre o corpo relaciona-se com características de corpos que possuem gênero a partir do qual o sexo biológico tem coerência com percepções dos corpos masculinos e femininos. A corporalidade de corpos femininos e masculinos esta intrinsecamente ligada a incorporalização de gênero.

Entendo que fluidos corporais masculinos e femininos demarcam fronteiras sobre diferenças sexuais (Grosz 1994; Scheper- Hughes e Lock 1987). Não é o sangue menstrual per se e sua qualidade, enquanto um fluido corporal feminino, que abre o corpo quando transgressa seu limite. Similarmente, o encontro dos fluidos corporais sexuais masculinos e femininos também caracterizam permeabilidade sobre corpos sexualmente diferentes durante relação sexual, através do qual o prazer sexual relacionado ao orgasmo feminino (“a sensação,” “gozo”) antes do masculino, proporciona a possibilidade de concepção.

Os conceitos etnofisiológicos Kariri-Xocó relacionados aos fluidos corporais masculinos e femininos estão situados dentro de um domínio cultural onde um órgão êmico chamado a “Dona do corpo” e sintomas de “dor de mulher” proporcionam evidência de incorporalidade feminina bem como contribuem para uma subjetividade incorporalizada feminina. O que é interessante sobre “a Dona do corpo” é que “ela é como uma mulher,” “ela é feita de sangue” e “ela não gosta de homem.” Então, “a Dona do corpo” pertence a um domínio de gênero essencialmente feminino/fêmeo. Esse órgão êmico feminino localizado dentro do corpo das mulheres Kariri-Xocó, que provoca dor quando quer que “ela” esteja deslocada, atesta incorporalidade feminina e de gênero.

Comentário: This needs to be

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A “Dona do corpo” provoca “dor de mulher” quando “ela” está deslocada ou induz menstruação. As mulheres Kariri-Xocó frequentemente mencionam que sentem “dor de mulher.” Apesar de muitas mulheres não sentirem a “Dona do corpo,” geralmente elas ouviram falar sobre “ela” e/ou elas a associam a “dor de mulher.” Esses conceitos (“Dona do corpo” e “dor de mulher”) relacionados ao domínio da etnofisiologia feminina Kariri-Xocó atestam incorporalização de gênero e incorporalidade feminina. Considero que esses conceitos etnofisiológicos demarcam a especificidade que caracteriza o corpo feminino, que é marcado por sangue (embrião feminino, ciclo menstrual e pós -parto) e dor (através da “dor de mulher”). Esses conceitos etnofisiológicos demonstram uma subjetividade feminina incorporalizada através da corporalidade feminina e diferença sexual.

Dados etnogáficos registrados durante trabalho de campo confirmam a formulação de Butler (1990) sobre a “matriz heterossexual” (Butler 1990, 151) a partir da qual a inteligibilidade da identidade de gênero segue o sexo biológico (ou sexo biológico e gênero) “through the compulsory practice of heterosexuality” (Butler 1990, 151). No contexto cultural Kariri-Xocó, a identidade de gênero (de ser mulher ou ser homem) tem coerência dentro de relacionamentos assimétricos entre gêneros que são entendidos e produzidos a partir do sexo biológico e da prática heterossexual de desejos. Dados etnográficos sobre o prazer e prática sexual demonstram que existe entre os Kariri-Xocó uma “heterosexualization of desire” (1990, 17) onde a prática heterossexual do desejo segue o sexo biológico.

É num contexto de restrições femininas que uma ‘verdade sobre o sexo’ tem coerência através relacionamentos assimétricos entre gêneros onde uma “matriz heterossexual” (Butler 1990, 151) naturaliza corpos, gêneros e desejos. Os especialistas xamânicos Kariri-Xocó e as explicações das mulheres sobre o prazer sexual (“a sensação”), ilustram como a naturalização de corpos (fluidos corporais masculinos e femininos), gêneros (homem e mulher), e desejos (prática heterossexual de desejos e de prazer) estão associados a um domínio cultural de processos fisiológicos reprodutivos. Os discursos dos especialistas xamânicos Kariri-Xocó e das mulheres revelam que a

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“sensação” feminina (prazer sexual) durante relação sexual relaciona-se aos fluidos corporais durante a relação sexual dos corpos reprodutivos masculinos e femininos.2

É após a menopausa que o desejo sexual feminino e o corpo caracterizado pelo gênero feminino mudam entre os Kariri-Shoco, porque o corpo feminino se torna menos, ou ausente, para a prática e desejo heterossexual. Isso acontece através da incorporalidade feminina, através da qual a falta de produção de fluidos corporais femininos do ciclo menstrual, proporciona uma ‘masculinidade’ ao corpo feminino, uma vez que as mulheres se tornam “fechadas” como os homens (não menstruando ou inaptas para se tornarem grávidas). Dessa forma, a assimetria entre as oposições entre gêneros muda e as mulheres se tornam ‘iguais’ aos homens. Observei, apesar de não dispor de dados etnográficos suficientes para corfirmação, que uma incorporalização inversa de gênero acontece com os homens. É percebido que o corpo masculino a medida que envelhece se torna mais fraco.3 Então, a forma como a menopausa (expressão utilizada é “amarrar o

facão”) é vivenciada entre as mulheres Kariri-Xocó implica em mudanças de gênero e de incorporalidade feminina. Num contexto de relacionamento conjugal patriarcal, mesmo com a falta de desejo sexual as mulheres Kariri-Xocó continuam a praticar relação sexual para “servir” seus maridos. Essa decisão, que não é somente tomada por mulheres Kariri-Xocó após a menopausa em relação a prática do coito, relaciona-se com a naturalização do corpo feminino. Essa naturalização é expressa através da percepção de que a partir da corporalidade feminina “as mulheres estão sempre já preparadas” para a relação sexual. Por outro lado, a naturalização da corporalidade masculina, através da qual o homem tem de “se preparar” ou “estar preparado” (ter ereção) para o coito, proporciona a percepção de que é mais difícil para o homem ter prazer sexual. Essas percepções (“já preparadas” e “se preparar”) expressam incorporalização de gênero para práticas sexuais. São

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Considero que quando uma mulher Kariri-Xocó evita sentir “a sensação” antes do homem durante relação sexual, para não “pegar uma gravidez,” evidencia uma forma de resistência a naturalização de seu corpo para função prolífera bem como trata-se de uma resistência ao prazer sexual num contexto de prática compulsória da heterossexualidade, onde elas têm de sexualmente “servir” seus maridos. Essa é uma visão particular minha.

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Durante uma entrevista etnográfica D. Maria Velha explicou sobre os problemas sexuais masculinos que quando o corpo masculino envelhece o fica debilitado para práticas sexuais, daí o homem já está “na faqueza.”

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percepções que também ilustram como corpos, gêneros e desejos são naturalizados num contexto onde uma “matriz heterossexual” é produzida.

Na minha pesquisa entre os Kariri-Xocó constatei que uma percepção sobre sexo foi historicamente produzida através de uma imposição decorrente do processo de dominação colonial, no qual um deslocamento da posição sócio -política da mulher se deu e uma incorporalidade feminina foi produzida. Nantes ([1706] 1979) descreveu informação sobre dois momentos que povos Kariri estavam em seu aldeamento missionário no Vale do rio São Francisco. Nantes (op.cit.) primeiro menciona que as mulheres “costumavam dominar seus maridos,” e, que as crianças “não respeitam” seus pais e que “nunca eram castigados” (op.cit., 4). Mais adiante, indicando conseqüências de ações missionárias observa: “As mulheres estão agora submissas aos maridos e as crianças aos pais, que os castigam com chibatas, o que antes não acontecia ” (op.cit., 17). Considero que essas citações referentes aos costumes indígenas e mudanças ilustra como as relações de gênero, bem como o relacionamento parental, se caracterizava antes da ação missionária através da ausência do patriarcalismo. Mesmo se as observações de Nantes (op.cit.) forem consideradas como um produto de sua percepção sobre o comportamento de povos indígenas enquanto um missionário europeu do século XVIII, suas observações revelam que tradições indígenas não eram caracterizadas por dominação masculina sobre mulheres, pelo menos a partir de uma perspectiva do sistema patriarcal Ocidental. Assim, aqueles dois momentos contrastantes que Nantes ([1706] 1979) descreveu, quando mulheres indígenas se tornaram submissas aos seus maridos, ilustra um testemunho da mudança cultural radical que povos indígenas vivenciaram num processo histórico através do qual a dominação masculina e desigualdade de gênero caracterizaram uma nova ordem sócio -política enquanto sistema patriarcal.

Foi através da pesquisa com mulheres selecionadas como estudos de caso que encontrei relatos de experiências de relacionamentos conjugais que ilustram uma ordem patriarcal. Foi a partir desses relatos sobre experiências de sofrimento dentro de relacionamento entre gêneros que observei como a dominação masculina tem caracterizado suas experiências conjugais.

Na minha pesquisa a tensão entre representação e experiência (vivenciada) Kariri-Xocó é marcada por uma fronteira tênue, uma vez que o que descrevi e analisei é

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caracterizado por uma mistura entre o que é concebido pelos especialistas xamânicos e o que é vivenciado pelas mulheres Kariri-Xocó. Esse estudo enquadra-se num grupo de feministas que focaliza a diferença sexual, mas também traz novas luzes a discussão sobre patriarcalismo e falogocentrismo, uma vez que reconheço um processo histórico onde o corpo indígena feminino foi mergulhado dentro de uma história Ocidental de opressão masculina.

BIBLIOGRAFIA: Butler, J.

1990 Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity. London, New York: Routledge.

Grosz, E.

1994 Volatile Bodies. Toward a Corporeal Feminism. Bloomington, Indianapolis: Indiana University Press.

Scheper-Hughes, N., e M. Lock.

1987 The Mindful Body. A Prolegomenon to Future Work in Medical Anthropology. Medical Anthropology Quarterly 1(1):6-41.

Mota, C. N.

1987 As Jurema Told us: Kariri-Shoco Mode and Utilization of Medicinal Plants in the Context of Modern Northeastern Brazil. Ph.D. diss. University of Texas.

Nantes, B. M. de

[1706] 1979 Relação de uma Missão no Rio São Francisco. São Paulo Ed. Nacional.

Spradley, J. P.

1979 The Ethnographic Interview. New York, Chicago, San Francisco, Dallas, Montreal, Toronto, London, Sydney: Holt, Rinehart and Winston.

Referências

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