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EXPRESSÕES E IMPRESSÕES DO CORPO NO ESPAÇO

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XPRESSÕES E IMPRESSÕES DO CORPO NO ESPAÇO

URBANO

estudo das práticas de artes de rua como rupturas dos ritmos do cotidiano da cidade

Michel Philippe Moreauxi

Mestre em Geografia

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

Dissertação apresentada como requisito parcial para ob-tenção do grau de mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da PUC-Rio

Data de aprovação: 24 de junho de 2013

Orientação: Dr. Alvaro Ferreira (orientador; PUC-Rio); Dr. Luciano Ximenes Aragão (coorientador; PUC-Rio) Banca examinadora: Dr. João Rua (PUC-Rio); Dr.ª Ana Fani Alessandri Carlos (USP); Dr.ª Mônica Herz (PUC-Rio)

Resumo

Nossa inquietação se situa na linha dos estudos urbanos influenciados, em particular, pelas reflexões de Henri Le-febvre acerca da sua crítica da vida cotidiana e da produ-ção do espaço. Nós apropriamos da ritmanálise, apresen-tada com maior profundidade no livro póstumo desse autor, Éléments de rythmanalyse: introduction à la

con-naissance es rythmes. Essa abordagem nos permite

consi-derar práticas sociais específicas, as práticas de artes de rua, como impressão de ritmos singulares na polirritmia do espaço urbano. Levamos especialmente em conta a expressão dos corpos, que nos faz conceber como as inter-venções de artes de rua têm o potencial de instaurar mo-mentos de encontros e de “festa” que modificam o espaço relacional e o imaginário urbano. A ritmanálise nos permi-te, segundo nossos termos, apreender a respiração - de expectadores e artistas, às vezes de forma sincrônica - no tecido urbano e a ressonância dos ritmos. Consideramos que essas práticas constituem uma restituição momentâ-nea do urbano. Situam-se num teatro mais amplo de ações que buscam repensar a cidade e reinventar o político, agindo concretamente nas tramas do espaço social.

Palavras-chave: prática social; ritmo; espaço urbano; artes de rua.

EXPRESSIONS ET IMPRESSIONS DU CORPS DANS L’ESPACE URBAIN: ÉTUDE DES PRATI-QUES D’ARTS DE RUE COMME RUPTURES DES RYTHMES DU QUOTIDIEN DE LA VILLE

Résumé

i Endereço institucional:

Rua Marquês de São Vicente, n. 225. Edifício da Amizade, ala Frings, sl. F411. Gávea. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 22451-900.

Endereço eletrônico:

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Cette étude se situe dans la lignée des études urbaines influencées notamment par les réflexions d’Henri Lefebvre autour de sa critique de la vie quotidienne et de la production de l’espace. Nous nous approprions de la rythmanalyse, présentée plus en détail dans un ouvrage posthume de l’auteur. Cette approche nous permet de considérer des pratiques sociales spécifiques, celles reliées aux arts de rue, comme l’impression de rythmes singuliers dans la polyrythmie de l’espace urbain. Nous portons ainsi une attention spéciale à l’expression des corps, à même de concevoir comment les interventions d’arts de rue ont le potentiel d’instaurer des moments de rencontre qui modifient l’espace relationnel et l’imaginaire urbain. La rythmanalyse nous permet, selon nos termes, d’appréhender la respiration – des spectateurs et des artistes, parfois en synchronie – dans le tissu urbain ainsi que la résonnance des rythmes. Nous considérons que ces pratiques permettent la restitution momentanée de l’urbain. Elles se situent dans un théâtre plus ample d’actions qui cherchent à repenser la ville et réinventer le politique en agissant concrètement sur les trames de l’espace social.

Mots-clés: pratique sociale; rythme; espace urbain; arts de rue.

1. Introdução

Esse estudo surgiu através de perambulações pela cidade. Dobra-se a esquina de uma rua e no centro de uma praça encontramos um agrupamento de pessoas. Um dos reflexos mais naturais é de se aproximar para ver o que está acontecendo. Surpresa! As pessoas estão reunidas em volta de um “mágico”, que conta histórias incríveis, simultaneamente conta piadas e realiza pequenos truques de magia. Seu domínio da narração é perceptível: ele sabe aproveitar-se dos tempos, colocar o público na expectativa antes de finalizar seu “número” e passar o tradicional chapéu. Encontro singular.

Essas cenas se repetem: às vezes o autor desse estudo é o próprio protagonis-ta. Músico de rua ou palhaço-aprendiz, essa energia que se espalha e se comunica é apreendida concretamente, aprende-se a integrar o imprevisto que faz parte dessas intervenções de arte de rua a céu aberto, sem bilheteria, abertas a todos os que pas-sam naquele momento. Não raramente se formam momentos de um conteúdo par-ticular, onde se observa certa comunhão entre o público e os artistas de rua, às vezes

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8 transeuntes participam mais ou menos ativamente, o que não deixa de suscitar o

entusiasmo do público. Esses momentos constituem o encontro de algumas das di-versas trajetórias que atravessam o espaço urbano e estabelecem no lugar um tempo suspenso, que foge da rotina do cotidiano.

A articulação entre a prática e a teoria se esboça aos poucos. Através dos es-critos do filosofo francês Henri Lefebvre, as práticas de artes de rua aparecem então na sua virtualidade de estabelecer no espaço umas das promessas do urbano: o en-contro, a festa. Os elementos de ritmanálise (LEFEBVRE, 1992) se impõem –como proposta metodológica - gradativamente para materializá-las, distinguir melhor es-sas práticas na polirritmia ensurdecedora do espaço urbano e estimar assim sua sin-gularidade e essas possibilidades que lhes são associadas.

Concebemos assim essas intervenções de artes de rua como a impressão de um ritmo singular, que se materializa momentaneamente através de presenças e relaciona os corpos através dos afetos.

A expressão dos corpos é fundamental, pois relaciona as pessoas que pro-põem a intervenção com aquelas que colaboram através das suas contribuições (embora simbólicas) no “chapéu do artista”, param para assistir e/ ou participar des-ta. Os corpos dos artistas de rua seguem uma preparação física e emocional que faci-lita as trocas de afetos. Percebe-se, portanto, o encontro entre uma diversidade de pessoas, reunidas acerca de uma mesma intervenção, que vai se elaborando através da ação dos corpos, mesmo se essa união é real, mas permanece precária (nem sem-pre as pessoas param, principalmente no caso dos artistas individuais; sobretudo, cada um fica livre de sair da roda quando quiser, participar do chapéu ou não…). Cabe justamente aos artistas de rua suscitar o interesse dos transeuntes, formando ou não rodas ou cortejos, espalhar a energia e a habilidade necessárias para manter esse interesse ou provocar até o entusiasmo da multidão.

O corpo aparece aos poucos como a base de nossa observação sensível dessas praticas, mas também a base empírica que permite a materialização destas e sua propagação. Isso é perceptível ao nível material (no momento em que estas práticas sociais vão acontecendo), por exemplo, pela formação de uma roda ou por trocas de afetos ou participação no chapéu, mas também ao nível simbólico, onde intervém a

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9 noção de imaginário urbano. Consideramos os afetos sob diversas dimensões: a

res-piração “compartilhada”, quando o público retém seu fôlego para um número “peri-goso”, ou respira de maneira mimética junto com o acrobata, ou ainda dá gargalha-das junto com as brincadeiras do palhaço; a emoção, o riso e a reflexão relacionagargalha-das à dramaturgia exposta pelos grupos de teatro de rua, vista num sentido largo (visual, auditivo, textual…), a dança e os aplausos que acompanham os músicos de rua.

Essas práticas podem, aparentemente, parecer banais e insignificantes no complexo processo de metropolização do espaço. Aparentam ter um impacto relati-vamente reduzido frente às estratégias e dinâmicas que participam da produção do espaço, sob uma lógica formal, que visa a reprodução das relações sociais de produ-ção. No entanto, se levamos em conta a dimensão cultural desse processo de metro-polização1, a categoria do cotidiano se torna aos poucos central para fundamentar

nosso estudo. Esses momentos, oriundos das intervenções de artes de rua, aos quais assistimos no início com indolência, parecem se integrar de fato aos debates sobre a programação do cotidiano. A perspectiva é a de que estas se estabelecem potencial-mente como rupturas dos ritmos do cotidiano.

O cotidiano programado – visto sob o prisma da repetição linear, de cadên-cias rotineiras, trajetos predefinidos, e submetido às injunções da sociedade do con-sumo – se vê momentaneamente interrompido por um evento relativamente impre-visto, que suspende ou modifica (mesmo que seja por um instante) as trajetórias de numerosos transeuntes. Reconfigura, portanto, o espaço e as relações que aí se tra-mam. Deixa emergir o vivido, que é parte do cotidiano, mas cujas realizações ten-dem a ser atrofiadas pela dominação do cotidiano por lógicas normatizadoras. Essas práticas de artes de rua podem ser consideradas como residuais, mas são concretas e ganham visibilidade no espaço urbano. Baseiam-se numa realidade conjuntural do espaço urbano, afirmando-se como descontinuidades nos fluxos do cotidiano e dei-xando aparecer possibilidades de um espaço relacional.

1 De acordo com Sandra Lencioni, em comunicação oral ocorrida durante o Simpósio Internacional

Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rural (SIMEGER), na PUC-Rio, durante a conferência de abertura “Metropolização do espaço: processos e dinâmicas”, no dia 5 nov. 2012.

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10 Relacionamos essas práticas com as práticas urbanas, tais como as descreve

Henri Lefebvre (1999), pois as percebemos como práticas criativas que relacionam os corpos a diferentes escalas: corpo individual, corpo coletivo, corpo urbano. Essas práticas remetem a poiesis, pois estabelecem outra maneira de experimentar o espa-ço e instauram novas formas de relações sociais e espaciais (mesmo que momentâ-neas), ao nível do vivido, da percepção, nos convidando também a vislumbrar novas maneiras de conceber o espaço urbano. No entanto, longe de nós está a idéia de descrever essas práticas sociais como novas: são seculares, tomaram diferentes for-mas e colocaram em movimento diferentes conteúdos ao longo da historia da hu-manidade. Desejamos abordá-las no contexto urbano atual, tanto como possibilida-des de transformação do real, quanto como práticas ainda pouco estudadas nos es-tudos geográficos.

Neste estudo, nós consideramos uma ampla diversidade de artistas de rua: desde os malabaristas itinerantes, estátuas vivas, palhaços, poetas e músicos de rua, até os grupos de teatro de rua. Assim, observa-se conjuntamente diversas situações, que podem remeter a artistas autônomos que se situam mais dentro de lógicas de sobrevivência e/ou de marginalidade, até grupos ou indivíduos mais ou menos insti-tucionalizados, suscetíveis de receber verbas do poder público e articular mais poli-ticamente o movimento de artes de rua. Nos parece que existem várias pontes entre esses dois extremos, até porque a rua proporciona encontros, trocas de saberes e de informações, cria afinidades (ou não) ligadas às práticas, parcerias ocasionais, hos-pedagem solidário e convivências. Sobretudo, todos têm em comum uma prática que tem como elemento essencial o corpo e sua capacidade de afetar e ser afetado. Todas essas artes poderiam ser contempladas pela noção de artes cênicas2, pois os

artistas fazem concretamente uso do seu corpo para elaborar suas intervenções, tra-balhando nele para constituir seu saber e colocando-o em movimento para realizar suas intervenções, que supõem a troca de afetos. Portanto, não abordamos aqui as

2 Otermo “spectacle vivant”, isto é, “espetáculo vivo”, que retrata esse tipo de práticas cênicas “em

movimento”, foi um termo adotado na França para retratar práticas tais como o circo, teatro, artes de rua (mas não exclusivamente). Ele não estádivulgadanemconhecida no Brasil, por vários motivos que não precisam ser aprofundados aqui. Portanto, não adotamos aqui esse termo,entretanto,este não deixa de explicitar de outra maneira a amplitude daspráticas que pretendemos focar neste estu-do.

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11 artes plásticas e gráficas (grafiteiros, caricaturistas, pintores, artistas plásticos…),

mesmo que se organizem e tenham ações visíveis no espaço urbano.

Ao longo das perambulações e dos encontros com numerosos artistas de rua, começamos a perceber que existe certo grau de consciência por parte desses atores sociais, da maneira segundo a qual podem ser interrompidos os fluxos do cotidiano, mas também através do teor dos seus discursos e as intencionalidades relacionadas asuas práticas.

De certo modo, essas rupturas dos ritmos do cotidiano, que nosso estudo busca explicitar e inscrever numa perspectiva geográfica, têm como resultado deixar aflorar as virtualidades do urbano. Essas práticas propõem uma redefinição do ur-bano, segundo os termos lefebvrianos, como lugar da simultaneidade e do encontro. Consideramos, portanto, as intervenções de artes de rua como momentos, situações e eventos que modificam as trajetórias, os fluxos e os ritmos do cotidiano e tendem a ressignificar os lugares e os próprios sujeitos, isto é, a experiência urbana e o pró-prio urbano.

Pensar a forma urbana revelou ser complexo. Com efeito, o advento do urba-no é sujeito a múltiplas tensões. A racionalidade herdada da sociedade industrial, ainda vigente na lógica dominante, preside à planificação e à organização do espaço urbano. Precisa-se ter em mente a contradição fundamental entre o valor de uso e o valor de troca. O valor de uso não deixa de ser presente em vários conteúdos da rea-lidade contemporânea, enquanto a lógica formal que configura o espaço urbano tende a negar numerosas dimensões do vivido, notadamente este valor de uso.

Pensar a articulação entre o concebido e o vivido se torna crucial, pois enten-demos que é fácil denegrir o urbanismo dominante, ao nível da teoria, mas não po-demos negar que a operação de planificar concretamente e materialmente o espaço urbano é extremamente complexa. Sem dúvida, os urbanistas que agem diretamente sobre o real não menosprezam inteiramente a dimensão do vivido. Mas cabe questi-onar a própria lógica que orienta tais empreendimentos: é uma lógica que leva mais (ou até unicamente) em conta o valor de troca que o valor de uso do espaço concre-to. Assim, Jacques (2007, 2009) apropria-se em parte das reflexões dos situacionistas acerca do urbanismo unitário e mostra até que ponto o campo da experiência, da

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12 vivência e da corporeidade é pouco considerada pelo urbanismo contemporâneo.

Mesmo se essas dimensões nos pareçam sempre mais presentes no discurso e nas imagens que “vendem” os grandes projetos urbanísticos atuais3, acreditamos que

precisa-se desmitificar esses simulacros, pois ficam escondidas as verdadeiras estra-tégias, intencionalidades e ações concretas que tendem em constituir um espaço abstrato, que atrofia a riqueza do vivido, na fase de concepção e de realização de tais projetos urbanísticos.

Portanto, estamos convencidos que ainda é oportuno elaborar uma crítica acerca da lógica elaborada por Lefebvre. A nosso ver, as críticas de Lefebvre sobre o urbanismo do seu tempo foram em grande parte levadas em conta, aparentemente, na concepção e formalização de projetos urbanos mais recentes. Mas o que persiste, é essa lógica formal que somente tem o valor de troca como último foco. Acaba im-pondo formas que levam pouco em conta a riqueza da forma urbana. Poderíamos até argumentar, seguindo as reflexões levantadas ao longo da crítica da vida cotidia-na que formulou esse autor ao longo de quatro décadas (LEFEBVRE, 1961, 1981, 1992), que essa lógica se tornou ainda mais perversa, que está em curso mais que nunca, pois tende a mercantilizar os menores aspectos do vivido, visto que as for-mas de dominação do cotidiano se apresentam sempre mais elaboradas. Essa lógica é real, ela se materializa constantemente e se reconfigura sem parar. Estabelece-se a partir de estratégias que se apóiam notadamente sobre novas políticas dos afetos (THRIFT, 2004). Isso apresenta necessariamente entraves à plena expressão do fe-nômeno urbano, tal como estamos levados a pensar, perceber e vivê-lo concreta-mente.

Considerar o urbano, tal como o concebe H. Lefebvre, consiste em acreditar nessas possibilidades que ele enxerga, que sãoas do encontro. Isso não é especula-ção, pois essas possibilidadesestão presentes no real,e asexperimentamos, isso faz parte da nossa vivência da cidade. No entanto, vale ressaltar a importância da práxis, como mediação entre o concebido e o vivido, que considera as capacidades de

trans-3 De acordo com Alvaro Ferreira, em comunicação oral ocorrida durante o Simpósio Internacional

Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rural (SIMEGER), na PUC-Rio, durante as discussões da mesa 1, “Metropolização e planejamento estratégico: o que fazer?”, no dia 5 nov. 2012.

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13 formação presentes no real. O pensador e o pesquisador se tornam atores, não

po-dem separar seu pensamento e sua teoria da concretude do real. Temos consciência da seriedade de tais implicações numa abordagem científica, no seio da geogra-fia. Necessário se faz sempre atualizar e colocar em prática esses pressupostos. Tra-ta-se de evitar o uso de conceitos engastados, que se afastariam do movimento do real, da modificação dos conteúdos em movimento. H. Lefebvre enfrentou o mar-xismo “oficial” na França da sua época, pois este tendia a deter a fertilidade do mate-rialismo histórico, tal como Marx o desenvolveu, enquanto método. Essa corrente do marxismo, que entrou aos poucos em certo descrédito até hoje, não pode des-prestigiar as virtudes da dialética, tal como inspira nosso estudo. É fato também que Lefebvre refinou seu método, influenciado pelo contexto da sua época (HESS, 2009), mas, sobretudo, porque refletia justamente sobre o movimento do real, as evoluções do capitalismo, recuperando inclusive textos pouco citados de Marx, tendo em vista o movimento perpétuo da totalidade.

Essa noção de totalidade foi fundamental para nossa apreensão do método dialético, pois nos fez entender que o materialismo histórico consiste finalmente em prestar uma atenção particular ao vivido. Através da noção de totalidade, podemos considerar o vivido como atualização do conjunto das possibilidades existentes no “viver” (BIHR, 2009a, 2009b). O método dialético articula conceitos que levam em conta a realidade e seu movimento, ao passo que indicam a amplitude das suas pos-sibilidades. Recusa o determinismo e permite ao sujeito histórico se sentir ator da transformação. Promove o pensamento como um meio de incentivar essa transfor-mação do real, desmitificando a dominação de uma lógica que valoriza unicamente o valor de troca e tende à alienação completa dos indivíduos.

Na perspectiva da geografia, a visão que Lefebvre (1955) elabora sobre a noção de totalidade nas ciências sociaisestáde acordo com a visão que Milton San-tos(2009), desenvolve quando propõe levar em conta o movimento de totalização como atualização da totalidade. As possibilidades reais que formam a totalidade somente se realizam pela ação, que une o Universal ao Particular. Por isso nossa re-flexão geográfica almeja valorizar as ações que deixam aparecer a diferença no seio do real e permitem explorar novos modos de afirmação do urbano, como lugar de

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14 encontro e da simultaneidade. No entanto, temos em mente que as mudanças

ope-radas no seio do real não são homólogas, tem cada uma seu valor relativo. Além dis-so, o papel do simbólico e da ideologia no movimento da totalidade se aplica especi-ficamente ao âmbito desse estudo, pois consideramos notadamente o espaço públi-co e a rua públi-como objetos de luta, ao nível da sua apropriação públi-concreta e material, mas também ao nível do imaginário urbano (HIERNAUX, 2008).

A noção de ritmo se impôs aos poucos para explicitar certas possibilidades inscritas no espaço mas, no entanto, pouco levadas em conta, tais como as práticas de artes de rua. De um lado, esse conceito nos incentiva pensar com moldes novos o espaço urbano, renovar o imaginário geográfico, ao passo que o processo de metro-polização realiza uma verdadeira metamorfose do espaço e da maneira segundo a qual deve ser pensada4. Lefebvre (1992, p. 30) descreve o ritmo como capaz de

ope-rar um “pensamento da metamorfose”, unindo notadamente o natural e o social e permitindo tratar de vários objetos, se opondo justamente a certos conformismos da filosofia. O ritmo é descrito como mera ferramenta de análise, que permite articular o vivido e o concebido para que a análise crítica possa propor uma real possibilidade de transformação do real.

Com efeito, a ritmanálise permite isolar um ritmo. Foca, em particular, o “ir-redutível” presente no cotidiano, valoriza a presença frente ao simulacro do presen-te. Relativiza também os ritmos dominantes para mostrar as possibilidades inscritas no “campo cego” da racionalidade dominante (LEFEBVRE, 1999, p. 33-50). Portanto, nos pareceu um ótimo método de análise para tratar de práticas sócio-espaciais que se concretizam como apropriação da cidade e realização da vida (CARLOS, 2007, p. 11).

Na ótica do nosso estudo sobre práticas de artes de rua, a ritmanálise nos permitiu focar sobre a realização de momentos que instauram outra temporalidade, desafiando o aspecto linear das repetições inscritas no cotidiano do espaço urbano.

4 De acordo com Amélia Damiani, em comunicação oral ocorrida durante o Simpósio Internacional

Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rural (SIMEGER), na PUC-Rio, durante a conferência de abertura “Metropolização do espaço: processos e dinâmicas”, no dia 5 nov. 2012.

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15 É nesse sentido que valorizamos a idéia de impressão dos ritmos, que se opera

atra-vés de uma dissipação de energia e se inscreve nas tramas do espaço / tempo.

Pareceu-nos, então, que a ritmanálise permitia nitidamente a Henri Lefebvre sintetizar muitas das suas reflexões sobre o cotidiano. Por isso, relacionamos delibe-radamente essa noção à teoria dos momentos, que o autor elabora também ao longo da sua obra (HESS, 2009). Não resta dúvida que isso nos permitiu definir melhor o potencial que as intervenções de artes de rua têm para instaurar o encontro e a festa através da ação dos corpos.

A noção de ritmo nos levou também a tecer um diálogo com outros autores que têm bases teóricas um pouco distintas, porém, complementares para tratar do nosso objeto de estudo. Quando Massey (2004, 2008) evoca uma multiplicidade de trajetórias e declara que o espaço não é mera superfície, nos aproximamos da con-cepção de polirritmia, um conjunto de ritmos distintos, que formam um todo, mas não têm a mesma intensidade, a mesma medida, a mesma escala de ação, a mesma intencionalidade e capacidade a ser percebida e ressentida no espaço urbano. Reco-nhecer essa polirritmia vai ao encontro de conceber e experimentar o espaço como sendo aberto, rico de multiplicidades.

O ritmo nos interessa também pela evocação que permite do impacto e da “propagação” das práticas de artes de rua que abordamos. Esse conceito restitui do melhor jeito o potencial dessas práticas sociais. De um lado, almejamos retratar es-sas intervenções de artes de rua como momentos de “respiração” do tecido urbano. A unidade da presença e da ausência, que podemos apreender durante certas situa-ções ocorridas, inspiraram essa leitura da suspensão do tempo que essas práticas podem instaurar, como rupturas dos ritmos do cotidiano. De outro lado, precisamos conceber a “ressonância” desses momentos no espaço urbano, tanto em relação ao corpo urbano, quanto em relação ao corpo dos diferentes atores sociais que tomam parte, de longe ou de mais perto, em tais momentos.

Assim, a riqueza do conceito se reafirma ao longo do nosso estudo. Isso ex-plica a atenção particular que prestamos ao livro Elementos de ritmanálise –

Intro-dução ao conhecimento dos ritmos (LEFEBVRE, 1992). Ademais, desejamos colocar a

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16 de dar importância a outras categorias tais como o cotidiano, o corpo, os momentos,

o urbano e o político.

A noção de ritmo orientou também nossa abordagem da pesquisa empírica, a maneira como estudamos as práticas de artes de rua. Com efeito, H. Lefebvre (1992, p. 42) insiste sobre o fato que, antes de se analisar, um ritmo deve ser “capturado” pelos sentidos do ritmanalista. Isso nos levou a organizar uma intensa pesquisa ex-ploratória.

Assim, desenvolvemos uma pesquisa empírica através de uma prática cons-tante e variada, enquanto músico de rua e aprendiz-palhaço, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro e no Estado do Rio de Janeiro, mas também viajando por Santos, São Paulo, Recife, Salvador e João Pessoa. Tudo isso nos permitiu encontrar diversos artistas de rua, parceiros ou encontros casuais, e conseqüentemente trocar impres-sões com eles ou junto com o público que assistia. Também nos permitiu experien-ciar a essência de certos momentos, plenamente vividos ou compartilhados. Essa experiência pessoal se desdobrou numa atenção redobrada vendo muitas outras in-tervenções na rua, prestando atenção às reações do público, à receptividade e à par-ticipação que acaba acontecendo, de múltiplas maneiras.

Por outro lado, tivemos a oportunidade de participar de dois encontros da Rede Brasileira de Teatro de Rua – a RBTR5, em Teresópolis em 2011 e em Santos em 2012. Conhecemos uma rede muito interessante, pessoas envolvidas no movimento de teatro de rua pelo Brasil. Com efeito, pode se articular em várias escalas e evoca-mos regularmente a Rede ao nosso redor, ao passo que encontraevoca-mos outros articu-ladores com os quais era possível saber mais sobre as atividades concretas e a cons-ciência que o movimento da rede proporciona e o interesse que suscita. Sentimos que se exercia e se organizava um agir “político” por articulação, se nos referirmos às considerações teóricas de Pogrebinschi (2007, p. 123). Também fomos levados a

par-5 A Rede Brasileira de Teatro de Rua, na sua Carta de Teresópolis (2011), resume o sentido da sua

exis-tência e da sua atuação: “A Rede Brasileira de Teatro de Rua – RBTR, criada em março de 2007, em Salvador/Bahia, é um espaço físico e virtual de organização horizontal, sem hierarquia, democrático e inclusivo. Todos os grupos de teatro, artistas-trabalhadores, pesquisadores e pensadores envolvidos com o fazer artístico da rua, pertencentes a RBTR podem e devem ser seus articuladores para, assim, ampliar e capilarizar, cada vez mais reflexões e pensamentos, com encontros, movimentos e ações em suas localidades […].”

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17 ticipar regularmente do Grupo de Trabalho “Arte Pública”, que acontece

semanal-mente na casa do grupo de teatro de rua “Tá Na Rua” - Rio de Janeiro, dirigido pelo teatrólogo Amir Haddad. Encontramos membros do circo-teatro de rua do Rio de Janeiro; sobretudo, seguimos e participamos do processo de luta desses atores soci-ais, que tiveram, em particular, a conquista da Lei do Artista de Rua do município do Rio de Janeiro, que libera as práticas de artes de rua no espaço público.

Ao longo desses encontros todos, tivemos acesso a uma documentação valio-sa, elaborada por grupos e coletivos de teatro de rua de diversas cidades do Brasil. As considerações dramatúrgicas e espaciais contidas nesses documentos – a maioria em livre acesso na Internet – suscitaram nosso interesse. Descobrimos a pertinência e a riqueza das discussões em curso, que dialogam diretamente com nossas perspec-tivas geográficas. Por isso, decidimos valorizar esse material, colocando estes em destaque em alguns momentos do nosso estudo. Nosso intuito é, assim, mostrar que isso remete a praticar a inter-disciplinariedade, seguindo as recomendações de Le-febvre (1992) e Hiernaux (2008), e também aproveitar esse material, que é fruto de muitas reflexões conjuntas, de muitos debates e permite sintetizar vários elementos que constituem a essência dessas práticas de artes de rua. Ademais, não achamos útil citar falas de pessoas que encontramos em nosso caminho, ou ouvidas em reu-niões. Seria tirar estas do contexto, sem restituir o momento em que foram pronun-ciadas. Preferimos deliberadamente sintetizar, através da elaboração desse estudo, o teor de todos esses encontros, assim como destacar tensões que não deixam de transparecer dentro de um movimento tão diverso e de tal magnitude. Muitas vezes, algumas falas dialogavam muito com nossas indagações, ou esclareciam alguns as-pectos e fortaleciam nossa proposta.

A nosso ver, não deixa de existir uma tensão entre os grupos organizados – numa certa medida, em via de institucionalização ou já institucionalizados – e os artistas mais “autônomos” (viajantes, solitários ou mini-grupos). No entanto, exis-tem, sobretudo, muitas passarelas. Nos diversos encontros do movimento de teatro de rua, sempre houve a presença de membros autônomos. O dialogo é intenso. Al-gumas pessoas pertencem as duas “vertentes”. Sobretudo, existe muitos pequenos grupos autônomos através do Brasil, que podem ser levados a apropriar-se das

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refle-18 xões elaboradas notadamente pela RBTR, receber também o apoio dessa rede para

fortalecer suas reivindicações ou articular-se a outros grupos para desenvolver suas práticas. O limite entre profissionalismo e amadorismo nos parece até por vezes ir-relevante, pois há muita porosidade nesse aspecto também. Isso remete a considera-ções acerca da partilha do sensível (RANCIERE, 2005). Enxergamos, portanto, as práticas de artes de rua com seu potencial de práticas políticas que afirmam a cida-dania no espaço público.

Mostraremos até que ponto nossas considerações geográficas encontram um eco nas analises teóricas do movimento de teatro de rua, mesmo se as bases teóricas podem ser diferentes. Certamente a apreensão do real e o teor desses momentos concretamente vividos permitiram criar essa afinidade nos pontos de vista expostos.

No capítulo 2 desse estudo, desejamos primeiro explicitar a relação entre a programação do cotidiano e a produção do espaço. Isso remete a evocar a lógica formal que orienta a reprodução das relações sociais de produção, tema crucial já bastante tratado nos estudos urbanos. Cabe, para tratar da forma mais adequada das práticas de artes de rua, evocar mais em detalhe a dimensão corporal dessa aliena-ção e mostrar ao mesmo tempo como a escala corporal permite vislumbrar novas formas de ação, capazes de desafiar a lógica dominante. Assim, prestamos uma atenção especial às trocas de afetos e à dissipação de energia. Isso nos leva a assimi-lar as intervenções de artes de rua como momentos, na linha das reflexões desenvol-vidas por Henri Lefebvre. Destacamos certas noções que permitem entender melhor a abrangência do momento, tais como a presença, a obra e a situação. Isso nos pare-ce adequado para tratar teoricamente das práticas de artes de rua. Acabamos insis-tindo sobre o potencial de ressignificação momentâneo do espaço dessas praticas, tanto ao nível material, quanto ao nível do imaginário urbano.

Considerar, assim, o cotidiano como lugar da transformação através da ação dos corpos nos permite, no capítulo 3, introduzir a noção de ritmo. Apresentamos de maneira densa e sintética as possibilidades oferecidas pela ritmanálise, tal como Henri Lefebvre a esboça. Em seguida, construímos um diálogo direto com nosso objeto de estudo. Relacionamos, em particular, a noção de trajetórias e a polirritmia do espaço. Desejamos mostrar que as práticas de artes de rua permitem tecer um

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19 espaço relacional baseado sobre o encontro e que leva em conta as diferenças.

Ten-tamos, portanto, nos apropriar da noção de ritmo, notadamente através das idéias de ressonância e de respiração, que nos parecem poder explicitar melhor as possibi-lidades de impressão de ritmos, através dessas práticas.

Finalmente, desejamos tratar dessas práticas por um viés mais político, expli-citando o projeto inscrito nesses ritmos que definimos. Por isso, mostramos que res-significam a própria noção de espaço público, através de uma apropriação concreta da cidade por práticas artísticas. Levantamos algumas considerações sobre as especi-ficidades das práticas observadas, que colocam isso em movimento, tratando dos aspectos dramatúrgicos, que permitem uma comunhão dos afetos e uma ressignifi-cação momentânea dos lugares. Evocamos, então, a possibilidade de uma eduressignifi-cação política do espaço, que parece presente na idéia de Arte Pública, tal como está le-vantada por certos coletivos de artes de rua. O trabalho dos artistas de rua questio-na, sobretudo, a partilha do sensível no seio do espaço urbano, o que nos leva a tra-tar da relação entre arte, espaço e política. Isso conclui nossa reflexão sobre o urba-no e sobre a necessidade de unir o trabalho manual e intelectual, para estabelecer uma democracia sempre mais direta e verdadeira, que gera concretamente um espa-ço vivido, como Lefebvre o formulava (LEFEBVRE, 1986, p. 173).

2. O cotidiano é o lugar da transformação através do corpo

Todas as teorias, todos os poemas Duram mais que esta flor

Mas isso é como o nevoeiro, que é desagradável e úmido, E mais que esta flor…

O tamanho ou duração não tem importância nenhuma… São apenas tamanho e duração…

O que importa é aquilo que dura e tem dimensão (Se verdadeira dimensão é a realidade)…

Ser real é a cousa mais nobre do mundo.

Alberto Caeiro

O cotidiano muda constantemente, de acordo com sua época. Através de sua obra, dividida em três volumes sobre a crítica à vida cotidiana, Lefebvre (1981) se empenha em anotar as transformações que ele enxergou na área cultural e temporal em que vive. Isso é de grande importância para nós, já que consiste em não

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deter-20 minar características preconcebidas, a priori, do que pode ser o cotidiano. O

cotidi-ano é um conceito operacional, pois permite uma analise crítica do “real” (LEFEB-VRE, 1981, p. 27). Nos permite, antes de tudo, enxergar o vivido e trazer à tona pos-sibilidades de transformação inseridas nele: Este é o sentido da apropriação do coti-diano no nosso pensamento teórico.

2.1. A programação do cotidiano

2.1.1. A alienação do cotidiano

O cotidiano é um objeto multidimensional, que modifica-se pelas ações do conjunto dos atores sociais. Alguns têm mais poder de transformação que outros: por exemplo, a ideologia do consumo está notadamente veiculada pelas mídias do-minantes, que estendem sua teia à escala planetária, pelo viés da imagem que esva-zia o presente da sua substância e remove dele a presença, instaurando o simulacro (LEFEBVRE, 1992, p. 66). Essas mídias participam assim da dominação do cotidiano numa lógica mercantil que remove particularmente a capacidade de diálogo. A lógi-ca de produção do espaço como lugar de reprodução das relações sociais de produ-ção condiciona diretamente essa programaprodu-ção do cotidiano:

Há dominação pela lógica. É o espaço formal que impera. O cotidiano e o vivido lhe escapam. Ou melhor, programa-se o cotidiano. Lugares neutrali-zados, higiênicos e funcionais, como as avenidas, voltadas para a circulação do automóvel. Toda a racionalidade econômica e política pesa sobre o co-tidiano, enquanto vivido. (DAMIANI, 1999, p. 52)

Uma perspectiva sobre a crítica da vida cotidiana permite, em geografia, tes-temunhar as assimetrias de poder que têm como conseqüência aniquilar a liberdade de ação efetiva de numerosos indivíduos. Lefebvre (1981, p. 31) chama isso de repeti-ção linear que se impõe a eles e nos adverte também que é através de cada um de nós que se renova, se transforma e se estabelece o cotidiano, que vê incontestáveis satisfações acopladas à um profundo mal-estar. Soja (1996, p. 35) afirma que a gran-de contribuição gran-de Lefebvre ao pensamento marxista resigran-de na reorientação da re-flexão acerca do cotidiano como primeiro lugar de exploração, da dominação e da luta. Lefebvre junta isso com reflexões sobre o poder, quando declara que o poder é onipresente e se estende até o fundo da consciência de cada individuo.

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21

O Poder aparece de várias maneiras: à vezes pelo tédio, mas sempre em meio do tédio. Todavia, ele estendeu o seu domínio até o interior de cada indivíduo, até o fundo da sua consciência, até as “topias” escondidas nos recessos da sua subjetividade. (LEFEBVRE, 1977, p. 210)

Em paralelo deste cotidiano programado, nos tornamos cúmplices da perpe-tuação das relações de poder estabelecidas. Parece ainda mais difícil lutar contra essa perpetuação do Capital através dos atos cotidianos na medida em que os meno-res aspectos do cotidiano tornam-se apropriados na lógica mercantil de acumulação. Podemos citar, por exemplo, a incorporação do tempo de lazer ou também a religio-sidade à lógica consumista. Se existem dinâmicas de homogeneização do espaço, é na realidade graças à sua fragmentação que o espaço se transforma na sede do poder (LEFEBVRE, 1977, p. 208).

O espaço de lazeres constitui um bom exemplo dos espaços especializados que só contribuem para reforçar os poderes dominantes. Vaneigem alcança as mes-mas conclusões quando afirma: “uma mesma energia arrancada do trabalhador du-rante suas horas na fábrica ou nas horas de lazer faz rodar as turbinas do poder, que os detentores da velha teoria lubrificam beatamente com a sua contestação formal” (VANEIGEM, 2002, p. 31). Carlos (1999, p. 71) ressalta essa discussão, quando aponta a contradição “espaço de consumo – consumo do espaço”: lugares são requalificados como espaços de lazer / turismo, o espaço se tornando assim uma nova raridade.

Já foi muito comentado a maneira segundo a qual a sociedade do consumo ergue-se como um sistema que aliena o indivíduo, mesmo que apresente um discur-so de gozo e de libertação. Como os Situacionistas, Lefebvre elabora uma crítica contra a ideologia do consumo e contra o processo de alienação. Essa crítica foca na desilusão que acompanha o ato de consumir. Como afirma Lefebvre,

O ato de consumir é um ato imaginário (portanto, fictício) tanto quanto um ato real (sendo o próprio “real” dividido em pressões e apropriações). Ele adquire então um aspecto metafórico (a felicidade em cada bocado, em cada erosão do objeto) e metonímico (todo o consumo e toda a felicidade de consumir em cada objeto e em cada ato). Não seria grave se o consumo não se apresentasse a si mesmo como ato pleno, como atualidade, inteiro à parte, sem trapaça, sem ilusão. (LEFEBVRE, 1991, p. 100)

Vaneigem (2002, p. 94) formula também que os bens de consumo também não são alienantes em si, é a ideologia que os cerca que implica a alienação do con-sumidor, que se torna dependente e passivo. Baudrillard associa direitamente os

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22 lazeres a uma cotidianidade subserviente, que na realidade é um tempo obrigatório

que não deixa de participar da lógica da produção e do consumo.

“O tempo do consumo é o da produção. Revela-se como tal, na medida em que se reduz a simples parêntese ‘evasivo’ no ciclo da produção. Diga-se mais uma vez, esta complementaridade funcional (diversamente partilhada segundo as classes sociais) não constitui a sua determinação essencial. O lazer é forçado na medida em que, por detrás da aparente gratuidade, re-produz fielmente todos os constrangimentos mentais e práticos do tempo produtivo e da quotidianidade escravizada.” (BAUDRILLARD, 1995, p. 164)

Segundo esse autor, o mesmo processo de racionalização das forças produti-vas que aconteceu no século XIX, isto é, na época de Marx, alcança hoje seu clímax através da organização do consumo dirigido nas nossas sociedades. Portanto, a fun-cionalização do espaço e sua fragmentação para poder controlar até os menores as-pectos do cotidiano deixam aparecer, de maneira insistente, a contradição entre va-lor de uso e vava-lor de troca:

“Desse modo, mesmo no momento do lazer, o cotidiano programado pela sociedade de consumo se impõe com toda sua força. E, assim, lugares ga-nham uma centralidade saturada de objetos, logo, vazias de sentido. Neste contexto, aparece em conflito agudo uso/troca, pois quanto mais um espa-ço é funcionalizado e mais ele é dominado por agentes que o manipulam, menos ele se presta à apropriação para o uso, posto que se encontra fora do tempo vivido, mas confinado ao universo da troca” (CARLOS, 1999, p. 70)

Lefebvre (1981, p. 85-89) descreve como a programação do cotidiano se espa-lha pelo espaço. O modo de produção capitalista, já descrito por Marx, se estende à escala mundial e vê notadamente o advento da divisão planetária do trabalho e o estabelecimento de uma cotidianidade. Essa lógica instaura-se através dos usos do tempo. Lefebvre declina então a sua tríade hierarquização-fragmentação-homogeneização aplicada ao tempo:

Tempo cotidiano homogêneo: a medida abstrata do tempo determina a prática social. Tempo cotidiano fragmentado: atomizado pelas desconti-nuidades brutais, resíduos dos ciclos e ritmos rompidos pela linearidade dos procedimentos da medida, atividades desconectadas, mesmo que submetidas à um ordenamento geral, decretado de cima. Tempo cotidiano hierarquizado: desigualdade das situações e dos instantes, certos passando como muito importantes e outros comoinsignificantes, segundo aprecia-ções mal justificadas, elas mesmas em crise. (LEFEBVRE, 1981, p. 85, tradução nossa)

2.1.2. Pensar a apropriação do espaço através do conceito de cotidiano

A abertura do conceito de cotidiano nos coloca ao mesmo tempo como atores das transformações possíveis e a análise permite ressaltá-lo, observando as mesmas

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23 práticas do cotidiano, sujeitas à lógica de programação que acabamos de resumir.

Várias práticas, que De Certeau (1990, p. XLVI) chama de táticas, demonstram que no dia a dia, os atores sociais conseguem se sobrepor à estratégia hegemônica dos dominantes: praticar a arte do “desvio”, de aproveitar “ocasiões”, tratando-se de prá-ticas tão diversas como as práprá-ticas religiosas, a linguagem popular, a arte de cozi-nhar ou usar objetos diferentemente daquilo para que foram “concebidos”. Metodo-logicamente, esse autor considera que essas práticas são pouco encaradas pelos mé-todos estatísticos positivistas que fragmentam analiticamente o que eles se propõem retratar e conseqüentemente somente encontram resultados homogêneos. O cotidi-ano, por ser programado, não deixa de apresentar mais diversidades e possibilidades de práticas do que se pensa. Percebemos todas as potencialidades inscritas no coti-diano: mesmo que este possa ser considerado como um lugar central de alienação, ele contém também condições de resistência. Estas têm lugar nas brechas e nos in-terstícios do espaço dominado. Como salienta Lefebvre:

“Se o espaço se torna lugar da re-produção (das relações de produção), torna-se também lugar de uma vasta contestação não localizável, difusa, que cria o seu centro às vezes num sitio e logo noutro. Essa contestação não pode desaparecer, pois é o rumor e a sombra prenhe de desejo e de ex-pectativa que acompanham a ocupação do mundo pelo crescimento eco-nômico, pelo mercado e pelo Estado.(LEFEBVRE, 1977, p. 209)

No entanto, o mesmo autor mostra que essas táticas do cotidiano pesam, às vezes, pouco frente à lógica dominante de reprodução das relações sociais de produ-ção. Esses desvios, esses focos de resistência permanecem frágeis para afetar o fun-cionamento da lógica capitalista. Para interferir nestes ritmos dominantes, é obvio que o impacto de um único indivíduo permanece relativamente modesto. No entan-to, neste estudo retrataremos as práticas individuais e coletivas dos artistas de rua, mostrando que na verdade elas constituem práticas que tem o potencial de espacia-lizar momentos de jogo e de encontro no espaço. Um artista individual consegue isso, mas não está isolado do resto das outras práticas de artes de rua que constitu-em tantos teatros de ação pelo espaço urbano.

Lefebvre (1981, p. 32) tinha destacado que a subversão, tal como foi formulada por ele mesmo e os situacionistas nos anos 60, com seu lema “Mudar a vida!” tinha

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24 encontrado seus limites frente à complexidade das formas de dominação do capital6.

Não vamos menosprezar essas considerações. Ao contrário, tentamos sempre ter estas em mente. Mas vários elementos nos levaram justamente a tentar valorizar o olhar que as leituras de Lefebvre nos indagaram. Assim, teremos que voltar ulteri-ormente sobre a distinção entre a apropriação do espaço, que consegue se inscrever no espaço, e o desvio que somente tem um impacto restrito no processo de produ-ção do espaço.

No desenrolar do pensamento de Lefebvre, é justamente as reflexões acerca das práticas no espaço que permitem enxergar as possibilidades de transformação: é pela produção de um espaço apropriado que a transformação do cotidiano se torna possível.

Uma vez formuladas essa ressalvas acerca da possibilidade de transformar o cotidiano, cabe efetuar uma escolha metodológica, e seguir as recomendações des-ses dois últimos autores. Nos parece que estes, mesmo tendo cada um seu próprio posicionamento metodológico, se juntam para nos incentivar a um repensar da es-pacialidade, através das praticas cotidianas que se apresentam nas brechas e nos interstícios do cotidiano programado. Assim, De Certeau (1990, p. 78-79)7 deseja

completar as análises desenvolvidas por Foucault sobre a sociedade do controle, partindo de outro ângulo de análise: ele escolhe pensar o cotidiano a partir dessas táticas - que ele distingue das estratégias da lógica dominante - que não deixam de jogar com as organizações espaciais e modelar o espaço do seu jeito próprio. Ele descreve a instauração de certo conceito da cidade através de um discurso utópico e urbanístico da cidade (DE CERTEAU, 1990, p. 142-146)8. Ele critica-o ressaltando seu

6 O autor ilustra isso, por exemplo, pelo uso da calça jeans, símbolo de liberdade, de independência

nos anos 60, e que não deixa de ser também um símbolo de exploração de outros trabalhadores (LE-FEBVRE, 1981, p. 32).

7 “a) Como explicar o desenvolvimento privilegiado da série particular que é constituida pelos

disposi-tivos panópticos?

b) Qual o estatuto de muitas outras séries que, prosseguindo em seus silenciosos itinerários, não deram lugar a uma configuração discursiva nem a uma sistematização tecnológica? Poderiam ser consideradas como imensa reserva constituindo os esboços ou os traços de desenvolvimentos

diferen-tes.” (DE CERTEAU, 1990, p. 78-79, tradução nossa).

8 “‘A cidade’, à maneira de um nome próprio, oferece assim a capacidade de conceber e construir o

espaço a partir de um número finito de propriedades estáveis, soláveis e articuladas uma sobre a outra” (DE CERTEAU, 1990, p. 143, tradução nossa) e “Enfim, a organização funcionalista, privilegi-ando o progresso (o tempo), faz esquecer a sua condição de possibilidade, o próprio espaço, que

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25 caráter hegemônico, denunciando estratégias científicas unívocas visando acabar

com as singularidades dos usuários e construindo o espaço a partir de um número finito de propriedades estáveis, isoláveis e articuladas, uma sobre a outra. Segundo ele, esse discurso urbanístico da cidade se intensifica, mas a cidade deixa sempre mais transparecer práticas, táticas cotidianas que se acomodam do poder pan-óptico, o desviam e até o inquietam9. Essas práticas constituem de fato uma

condi-ção determinante do espaço social vivido pelos usuários. A análise de De Certeau nos remete, numa linha de raciocínio similar a de Lefebvre, às brechas que os dife-rentes atores sociais conseguem abrir no espaço abstrato hegemônico, se aproprian-do de fato aproprian-do espaço. O exemplo de “o falar aproprian-dos passos perdiaproprian-dos tramam os lugares” (DE CERTEAU, 1990, p. 147) é uma imagem concreta do seu posicionamento meto-dológico.

Desejamos relacionar isso com o pensamento de Lefebvre que formula a ne-cessidade de outro espaço para modificar realmente o cotidiano:

Necessidades de um outro espaço: pois não há sociedade totalmente outra sem uma morfologia espacial também outra. Daí o espaço ter, enquanto estrutura de uma cotidianidade administrada, papel fundamental na re-produção social. (DUARTE, 1999, p. 78)

Pode encarrar-se melhor a virtualidade da revolução urbana que prega Lefeb-vre (1999) pelo vislumbramento de práticas urbanas radicais. Influenciados pelo próprio Lefebvre, os situacionistas enfatizavam o caráter lúdico da cidade, por exemplo, através da prática da deriva, como exploração da cidade através do jogo e, consequentemente, a reinvenção do cotidiano (SIMAY, 2008)10. Isso fica também

exposto na proposta de Constant de cidade do futuro pós-revolucionária, que ele chama de New Babylon:

sa a ser o não-pensado de uma tecnologia cientifica e político.” (DE CERTEAU, 1990, p. 144, tradução nossa).

9 “A linguagem do poder se ‘urbaniza’, mas a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que

se compensam e se combinam fora do poder panóptico. A Cidade se torna o tema dominante dos legendários políticos, mas não é mais um campo de operações programadas e controladas.” (DE CERTEAU, 1990, p. 144-145)

10 “A prática não tem nada de inédito. Pensamos imediatamente à ‘flânerie’ do Baudelaire e às

errân-cias surrealistas, dois modos de experimentação que compartilham a mesma representação da cidade como reservatórios de virtualidades, com seus pólos de atração e suas brechas nos espaços balizados. Todavia, para Debord, a deriva não é somente um modo de comportamento experimental, mas pos-sui, antes de mais nada, uma virtude heurística. Nisso, ela não é somente um meio para fugir do coti-diano, mas um instrumento para reinventá-lo.” (SIMAY, 2008, p. 8-9, tradução nossa)

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A libertação do comportamento exige um espaço social, labiríntico, mas ao mesmo tempo, continuamente modificável. Não terá mais centro para atingir, mas um número infinito de centros que se movem. Não se tratará mais de errar no sentido de 'se perder', mas no sentido mais positivo de 'encontrar caminhos desconhecidos. (CONSTANT, 1997, p. 123 apud SI-MAY, 2008, p. 11, tradução nossa)

Entretanto, Debord deixou claro que, ao contrario de Constant, ele não pre-tendia fundar um programa arquitetônico, mas antes, o “urbanismo unitário” con-sistia em um instrumento de contestação para acabar com a organização dominante da vida. Simay (2008, p. 13) lamenta essa ruptura do “urbanismo unitário” com uma prática efetiva de arquitetura e de urbanismo proporcionando modalidades de rein-ventar o cotidiano11 e ressalta que Lefebvre fez a mesma critica à Debord.

Idéias, representações e valores que não conseguem ser inscritos no espaço pela produção de uma morfologia apropriada se esgotam em sinais, são de-compostos em idéias abstratas e transformados em fantasmas. Morfologias persistentes (edifícios religiosos, monumentos políticos) preservam ideolo-gias antiquadas, enquanto idéias novas, não destituídas de poder (e.g., so-cialismo) não conseguem gerar seu espaço. Essas idéias, para se manter vi-vas, se nutrem de uma historicidade periférica, de um folclore ridículo. Sob essa luz, o 'mundo dos signos' resulta de um retraimento, tudo o que não é investido num espaço apropriado retrocede para signos e significações inú-teis. (LEFEBVRE, 1986, p. 478 apud GOTTDIENER, 1986, p. 155)

Mas é preciso sublinhar que Constant (1959) posiciona também claramente seus projetos urbanísticos como futuristas e irrealizáveis para sua época. Ele aposta nas invenções técnicas, assim como numa mudança social de peso, para levar a cabo seus projetos, que considera como vanguardistas. Parece que vislumbra justamente as virtualidades ligadas ao advento da sociedade urbana, prestando atenção aos no-vos comportamentos sociais que irão permitir a realização dos projetos que ele pro-põe. Se cabe não descartar as reservas que suscita e suscitou o urbanismo unitário, isso não diminui em nada o alcance dos escritos situacionistas, que são ainda atuais e relevantes.

É importante ressaltar que nosso estudo propõe pensar o real a partir de prá-ticas espaciais concretas que buscam modificar o espaço urbano. Os escritos acerca

11 “Todavia, em relação às perspectivas do urbanismo unitário, não podemos deixar de pensar que,

rompendo com toda prática efetiva de arquitetura e urbanismo, os situacionistas nunca tiveram co-mo experimentar as co-modalidades de uma reinvenção do cotidiano. É sempre possível admitir que eles foram construtores de situações, de ambientes transitórios. Mas como essas poderiam ter sub-vertido a ordem das formas urbanas dominantes, na medida em que, de um lado, nenhuma delas tinha um caráter durável, e de outro lado, elas foram elas também desacreditadas por uma teoria geral da revolução.” (SIMAY, 2008, p. 13, tradução nossa)

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27 do urbanismo incorporado, como desenvolve Jacques (2007), nos permitem esboçar

uma relação entre a possibilidade que o pesquisador tem de buscar o vivido no es-paço urbano, através da prática da errância, que lhe permite abordar o real concre-tamente. Essa metodologia é em parte inspirada pela prática da deriva, que desen-volveram empiricamente e teoricamente os situacionistas, que consiste em adquirir a capacidade de se perder “voluntariamente”, e escapar à rotina do cotidiano. Essa faculdade de saber se perder está também associada aos “flâneurs”, em referência particular o Baudelaire, prática retratada e analisada notadamente nos escritos de Walter Benjamin. Trata-se de se deixar surpreender pela cidade, de se deixar guiar pelos encontros, deixar os eventos nos “impressionar”. Jacques (2007, p. 98-99) menciona também a lentidão como componente da arte da errância. Lentidão signi-fica uma qualidade do movimento, na visão de Deleuze e Guattari12. Mesmo assim,

ela pode se contrapor ao ritmo veloz da cidade, que enaltecem os urbanistas neo-modernistas que menciona o autor. Portanto, é possível estabelecer também uma relação com o tempo dos homens lentos (SANTOS, Milton, 2009, p. 325). Essa lenti-dão define e qualifica um outro movimento, que permite a observação e a participa-ção ao real. À lentidão se adiciona a corporeidade, que consiste na relaparticipa-ção do corpo do pesquisador com o corpo urbano.

A Redução da ação urbana, ou seja, o empobrecimento da experiência ur-bana pelo espetáculo, leva a uma perda da corporeidade, os espaços urba-nos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados. Os no-vos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais privatizados ou não apropriados pelos habitantes locais, nos levam a repensar as relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão (JACQUES, 2007, p. 94-95)

Nos parece que é ai que reside o que está em jogo com o “repensar da cida-de”. A contribuição de Jacques é a de nos lembrar que é a partir do corpo, em toda sua amplitude e toda sua sensibilidade, que começa a reflexão. Nosso caminho que busca apropriar-se da ritmanálise de Lefebvre sai das mesmas premissas.

Assim, isso apresenta semelhanças com as considerações de Lefebvre sobre a relação entre espaço e cotidiano: o cotidiano programado tem como conseqüência

12 “Para Deleuze e Guattari, a lentidão não seria, como pode-se acreditar, um grau de aceleração ou

desaceleração do movimento, do rápido ao devagar, mas sim um outro tipo de movimento: 'Lento e rápido não são graus quantitativos do movimento, mas dois tipos de movimento qualificados, seja qual for a velocidade do primeiro, e o atraso do segundo.'” (JACQUES, 2007, p. 99)

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28 expropriar os corpos pelo lado de fora através do espetáculo, a imagem sem corpos,

impedindo a apropriação qualitativa dos corpos no espaço vivido (LEFEBVRE, 1981, p. 31):

Produtos privilegiados, realmente úteis e agradáveis […] tem essa missão: expropriar o corpo e compensar essa expropriação, substituir o desejo pela necessidade fixada, substituir o gozo pela satisfação programada.O 'real'deslocado e acomodado de uma nova maneira no cotidiano acaba ga-nhando sobre toda “idealidade”. (LEFEBVRE, 1981, p. 31-32, tradução nossa)

Duarte (1999, p. 79) ressalta justamente que Lefebvre destacou que a mais ex-traordinária contradição do espaço é o corpo. Com efeito, o corpo se constituiria num elemento “irredutível e subversivo no seio do espaço e dos discursos dos Pode-res, o corpo refuta a reprodução das relações… frontalmente… (ou)… pela calada” (LEFEBVRE apud DUARTE, 1999, p. 79).

2.2. O corpo e a produção do espaço

2.2.1. O corpo, escala geográfica

Essas reflexões sobre o cotidiano nos levam, portanto, ao conceito de corpo, uma outra escala de análise que se tornou importante na geografia contemporânea, como destaca Smith:

mais recentemente, os escritos feministas têm explorado a escala do corpo. Fundada na apropriação tanto metafórica quanto material do espaço, e en-fatizando os processos sociais e culturais, essa obra técnica sobre o corpo liga-se de muitas formas diferentes ao foco mais geográfico de, por exem-plo, discussões sobre o Estado-nação. Uma política espacializada coerente terá de encontrar um modo de expor essas conexões. Como sustenta Lefe-bvre13, “hoje, qualquer projeto revolucionário, seja utópico ou realista,

de-ve, se quiser evitar a banalidade, fazer da reapropriação do corpo, em asso-ciação com a reapropriação do espaço, uma parte não negociável de seu programa”. (SMITH, 2000, p. 143)

Na nossa perspectiva, não podemos nos propor a observar o cotidiano e suas rupturas se não levarmos em conta a escala do corpo. As transformações espaciais são possíveis somente se encarnam-se no cotidiano. Isso pode acontecer unicamente se considerar que o corpo é o lugar da resistência, individual e coletiva, às imposi-ções oriundas do exterior, relativas às lógicas de alienação. Deve-se ter em mente

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29 que as lógicas de “adestramento”, que evoca Lefebvre (1992, p. 61)14 se baseiam na

repetição linear. Essa alienação do corpo provém notadamente do fato dele se tornar um objeto de consumo15. Percebe-se, portanto, que o corpo se torna um elemento

central da lógica da acumulação do capital, o que já era presente nos escritos de Marx, como lembra Harvey (2006, p. 150). O corpo permite fazer à ligação entre o global e o indivíduo, encontra-se incluso na lógica de acumulação como parte do capital variável, ainda mais quando se integra mais plenamente às esferas da produ-ção e do consumo. A alienaprodu-ção é então mais sutil na medida em que as revoltas e os desejos contrários à ordem estabelecida são sutilmente recuperados e introduzidos na lógica da acumulação flexível do capital:

Potencialidades de reação e revolta contra o capital são definidas a partir de diferentes perspectivas da produção, da troca, do consumo ou da repro-dução. Não obstante, no agregado ainda podemos ver que as perniciosas regras capitalistas que regulam o processo de circulação do capital variável como um todo operam como uma força construtiva/destrutiva (tanto em termos materiais como representacionais) sobre os corpos laborantes nes-ses diferentes momentos. O capital se empenha continuamente em moldar os corpos de acordo com seus próprios requisitos, ao mesmo tempo em que internaliza em seu modus operandi efeitos de desejos corporais vonta-des, necessidades e relações sociais em mudança e interminavelmente ina-cabados (por vezes expressos abertamente como lutas coletivas fundadas na classe, na comunidade ou na identidade) da parte do trabalhador. (HARVEY, 2006, p. 157).

A lógica dominante tende a destituir o poder de ação do corpo no espaço so-cial. Isso se deve ao fato de o espaço ser pensado como absoluto, sem que sejam tra-tadas ao seu justo valor e proporção práticas e relações sociais que se tramam nele:

Segue-se um erro, ou uma ilusão: colocar o espaço social fora de alcance, escamoteia seu caráterprático para gerar uma espécie de absoluto à manei-ra dos filósofos. De modo que o “usuário” fazespontaneamente abstmanei-ração de si, de sua presença, de seu “vivido” e de seu corpo, face a esta abstração tornada fetiche. O espaço abstrato fetichizado engendra, ao mesmo tempo, essa abstraçãoprática do “usuário” que não se percebe num tal espaço, e a abstração da reflexão, que não concebe a crítica. (LEFEBVRE, 2000, p. 112, tradução nossa)

A ideia-chave que sustenta Lefebvre quando se debruça sobre a relação entre o corpo e a produção do espaço, é que o espaço rege o corpo, lhe confere numerosas injunções, mas que tudo isso se opera numa relação contraditória de transparência e de opacidade (LEFEBVRE, 2000, p. 111). O fato de o 'usuário' fazer “espontaneamente

14 Lefebvre fala de “dressage” (1992, p. 55-63)

15 Como já fala o Baudrillard (1970, p. 133), o corpo se torna o mais bonito objeto de consumo.

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30 abstração de si, da sua presença” nos parece totalmente atual, tanto o corpo é

sub-metido a múltiplas solicitações visuais, sonoras, interativas, pela emergência de no-vas possibilidades de comunicação e a onipresença da imagem. Thrift (2004, p. 65) destaca, em particular, as novas formas de coerção advindas com a tela. Lefebvre (2000, p. 118) afirma que a lógica de alienação vinculada à imagem tende a apagar o vivido no seio do corpo, apagando a chama do desejo e numerosas interações pre-sentes no espaço concreto. Outro aspecto da abstração do espaço se situa ao nível da reflexão: a segmentação das disciplinas cientificas e o reducionismo que pode existir em certas abordagens cientificas tendem a ter repercussões no vivido e se reverberam na limitação da ação dos corpos (LEFEBVRE, 2000, p. 127). Assim, a feti-chização do espaço afeta em primeiro lugar o corpo e convém que a reflexão geográ-fica aborde também essa alienação a partir da escala corporal.

Simonsen (2005, p. 1) pretende ressaltar a contribuição de Lefebvre ao pensar o corpo em geografia e salienta que os geógrafos anglo-saxões não aprofundaram muito esse aspecto da sua obra. A autora mostra que Lefebvre constrói uma interes-sante articulação entre o corpo e o espaço, que dialoga tanto com os fenomenologis-tas (Husserl, Merleau-Ponty), quanto Nietzsche, Heidegger, Marx e a psicanálise (em particular, Lacan). Lefebvre recusa a hipótese do espaço absoluto, tão presente na historia do pensamento filosófico, pois acredita que isso gera uma “lógica da se-paração”, levando à fragmentação do pensamento (e do espaço):

A hipótese inversa, portanto, se impõe. O corpo, com suas capacidades de ação, suas energias, faria oespaço? Sem dúvida, mas não no sentido em que a ocupação “fabricaria” a espacialidade - no sentido de uma relação imedia-ta entre o corpo e seu espaço, entre o desenvolvimento no espaço e a ocu-paçãodo espaço. Antes de produzir (efeitos, na matéria, nos instrumentos e nos objetos), antes de seproduzir (se alimentando) e de se reproduzir (pela geração de um outro corpo) cada corpo vivo é um espaço e tem seu espaço: ele aí se produz e o produz. Relação notável: o corpo, com suas energias-disponíveis, o corpo vivo, cria ou produz seu espaço: inversamente, as leis do espaço, isto é, da discernibilidade no espaço, são aquelas do corpo vivo e do desenvolvimento de suas energias. (LEFEBVRE, 2000, p. 199, tradução nossa)

No capitulo III do livro “A produção do espaço”, que se intitula “Arquitetôni-ca espacial”, o autor se debruça mais profundamente sobre a materialidade do cor-po, sua organicidade e sua sensibilidade. Ele apela para uma visão carnal e criativa do corpo:

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31

Sim, o corpo carnal (espaço-temporal) se revolta, e isso não é um recurso às origens, ao arcaico, umapelo ao antropológico; trata-se do atual, de “nosso” corpo. Desdenhado, absorvido, colocado em migalhas pela ima-gem. Mais que desdenhado: omitido. Isso não é nem uma rebelião política, substituta da revolução, nem uma revolta do pensamento, do indivíduo, da liberdade; é uma revolta elementar e mundial, que não busca seu funda-mento teórico, mas busca reencontrar pela teoria seu fundafunda-mento, procura reconhecê-lo. E que, sobretudo, exige que a teoria não mais obstrua a pas-sagem, que não mais oculte o fundamento. (LEFEBVRE, 2000, p. 232, tra-dução nossa)

Neste extrato, percebemos a articulação do método de Lefebvre e sua pesqui-sa do univerpesqui-sal concreto, busca que se encontra também no seu livro Éléments de

rythmanalyse. A meta-filosofia de Lefebvre deseja criar um vinculo direito entre a

prática social e o espaço: a teoria deve ser vivida antes de ser pensada e se justifica somente se é para defender e apoiar o “viver”. A práxis é uma realidade concreta, que fundamenta a teoria da produção do espaço. Lefebvre se demarca de numerosos discursos na moda na sua época, e se distancia notadamente de certos pré-requisitos que estavam presentes na lingüística e na antropologia, através notadamente da se-miologia e do estruturalismo.

2.2.2. O corpo e a política dos afetos

Nessa perspectiva de transformação do cotidiano através de práticas sociais, que colocam em movimento o corpo inventivo dos artistas de rua, desejamos nos apropriar em particular do conceito de afeto. Este não é tratado nesses termos por Lefebvre. Ele é mais presente nas visões de política relacional que esboçam certos geógrafos anglo-saxões, que nos ajudam na compreensão das interações entre corpo e espaço (SIMONSEN, 2005; MASSEY, 2008; THRIFT, 2004). Levamos em conta a abordagem de Thrift, pois ela permite, a nosso ver, criar um vínculo entre uma visão mais deleuziana, influenciada também por Foucault, e uma visão mais lefebvriana. Nos parece que essas duas visões não são contrárias, apesar das suas diferenças. Es-ses pensadores são contemporâneos e dialogam, numa certa medida, através dos seus escritos. Ademais, todos se inspiram de uma leitura renovada de Marx, uma redescoberta de Nietzsche e reinvindicam uma filosofia da imanência. Eles têm também um conhecimento dos fenomenologistas e dos psicanalistas, cujas teorias eles questionam.

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32 Essa visão da política dos afetos exposta por Thrift (2004) vai de encontro

com nossa reflexão sobre a produção do espaço, e isso participa do diálogo que ten-tamos esboçar entre os pensamentos de Lefebvre e nossa reflexão geográfica sobre as práticas sociais (e corporais) dos artistas de rua na era da metropolização do es-paço. Nos parece interessante e construtivo, já que continuaremos esse dialogo mais adiante nos próximos capítulos, notadamente entre a ritmanálise (LEFEBVRE, 1961, 1992, 2000) e a política relacional promovida por Massey (2004, 2008). Se Thrift (2004, p. 57) lamenta o fato que o afeto foi durante muito tempo menosprezado na história da filosofia, podemos encontrar ecos disso no próprio raciocínio de Lefebvre (2000, p. 124-125), quando ele evoca a necessidade de estabelecer uma critica do es-paço, que possa fornecer alternativas às estratégias dominantes que, concretamente, intervêm na produção do espaço:

A crítica das ideologias filosóficas não poderia dispensar o exame das ideo-logias políticas enquanto elas se referem ao espaço. Ora, elas se preocupam dele prioritariamente: nele intervêm como estratégias. A eficácia das estra-tégias no espaço, e sobretudo um fato novo, a saber: que as estraestra-tégias mundiais tentam engendrar um espaço global, o seu, e erigi-lo em absolu-to, propicia uma razão, e não a menor, na renovação do conceito de espa-ço. (LEFEBVRE, 2000, p. 126, tradução nossa)

A nosso ver, Thrift (2004) tem igualmente um real cuidado em estabelecer uma reflexão ampla e contemporânea acerca do afeto. Isso atualiza, num certa me-dida, nossa compreensão da programação do cotidiano, pois a manipulação do afe-to, com diversos objetivos, encontra sua realização na produção concreta do espaço segundo a lógica formal de fragmentação. O autor explica, portanto, porque o afeto deve ser mais levado em conta na reflexão sobre o espaço urbano:

Primeiro, o conhecimento sistemático da criação e da mobilização do afeto se tornou uma parte integral da reflexão sobre a paisagem urbana do coti-diano: o afeto se tornou parte de uma espiral reflexiva que permite inter-venções sempre mais sofisticadas em vários registros da vida urbana. Se-gundo, esses conhecimentos não estão sendo somente estabelecidos de propósito, mas eles estão sendo implantados também politicamente (prin-cipalmente pelos ricos e poderosos, mas não exclusivamente) por fins polí-ticos: o que tem sido retratado como estético é crescentemente instrumen-tal. Terceiro, os afetos se tornam parte de como as cidades são concebidas. Espera-se sempre mais que as cidades tenham 'agitação', que sejam 'criati-vas', que de forma geral trazem a tona os poderes de invenção e de intui-ção: isso tudo pode ser forjado como armas econômicas, de tal maneira que a engenharia ativa do registro afetivo das cidades pode ser ressaltado como o aproveitamento do talento de transformação. Cidades devem exibir intensa expressividade. (THRIFT, 2004, p. 58, tradução nossa)

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33 Esse uso do afeto nas estratégias de produção do espaço remete as lógicas que

presidem ao processo de metropolização. Com efeito, os planejadores contemporâ-neos do espaço levam sempre mais em conta os afetos para defender e programar em seguida seus projetos. Esse uso leva ao aperfeiçoamento das técnicas de controle sobre o corpo e seus afetos, especialmente para ganhar a adesão das populações. Isso é, por exemplo, visível nas políticas de grandes obras em curso no Rio de Janei-ro16. Da mesma maneira que Lefebvre deseja fundar uma critica do espaço que possa

desembocar à sua transformação consciente, através da ação dos corpos, Thrift pen-sa a emergência de novas práticas políticas vipen-sando a uma transformação da política relacional do espaço, notadamente por uma pesquisa sobre a articulação entre a produção do espaço e a arte (THRIFT, 2004). Isso nos interessa, pois esse estudo tente igualmente integrar concepções do espaço e práticas espaciais que os artistas de rua movimentam, participando da formação de novos espaços de representação. Suas práticas atendem manifestamente ao cuidado de constituir micro-políticas que o autor promove (THRIFT, 2004, p. 72), que se relaciona tanto à consciência corpo-ral, quanto a uma certa ética do partilhar dos afetos, vislumbrando a elaboração de novas formas espaciais.

2.2.3. O corpo relacional

Nos baseando nas visões do Thrift (2004), vamos sintetizar um pouco melhor aquilo que consideramos como corpo, que vai bem além do envelope corporal, já que toca à parte relacional do indivíduo, aos encontros e aos afetos, entendidos co-mo ordenamento das relações entre os corpos, o que resulta em um aumento ou uma diminuição do potencial de ação (THRIFT, 2004, p. 103-104). Na descrição que esse autor elabora acerca do afeto, pretendemos distinguir em particular a apropria-ção que ele efetua da visão espinoziana do corpo, retomada notadamente por De-leuze (THRIFT, 2004, p. 61-62). Seguindo a visão de Spinoza e de DeDe-leuze, Thrift (2004, p. 70) mostra que isso permite alargar o número potencial de interações das

16 De acordo com Alvaro Ferreira, em comunicação oral ocorrida durante o Simpósio Internacional

Metropolização do Espaço, Gestão Territorial e Relações Urbano-Rural (SIMEGER), na PUC-Rio, durante as discussões da mesa 1, “Metropolização e planejamento estratégico: o que fazer?”, no dia 5 nov. 2012.

Referências

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