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A tradução anassêmica como manifestação da différance

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Zelina Beato

A tradução anassêmica como manifestação

da différance

A partir das reflexões de Jacques Derrida acerca do ensaio A casca e o núcleo de Abraham, a tradução anassêmica, e acerca do processo de significação sempre barrado pela dinâmica do adiamento infinito, meu ensaio procura estabelecer uma relação de pro-ximidade entre esse acontecimento tradutório especial, que marca a notação metapsico-lógica da psicanálise, e aquela impossibilidade de uma significação consumada, do apri-sionamento de conceitos na grafia, a que Derrida chama différance.

>Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: Psicanálise, tradução anassêmica, desconstrução, différance

Based Jacques Derrida’s reflections on Abraham’s essay entitled The Shell and the Kernel, “anasemic translation,” and the process of signification forever impeded by the dynamic of infinite postponement, my essay is intended to establish a relationship of proximity between this special “translational” event, which indicates the metapsychological notation of psychoanalysis, and the impossibility of consummated signification or of any encapsulation of concepts within writing, which Derrida calls différance.

>Key wordsKey wordsKey wordsKey wordsKey words: Psychoanalysis, “anasemic translation”, deconstruction, différance

Nicolas Abraham, apresentado por Fábio Landa como “pensador, psicanalista e discí-pulo de Freud, poeta e tradutor”, escreveu um instigante ensaio: “A casca e o núcleo”1,

a propósito da linguagem e tradução dos textos da psicanálise. Segundo afirma, já latente nas grafias especiais – e Freud fez uso recorrente de sinais (Ubw para

Incons-ciente; WBw para Consciência-Percepção) – estava a necessidade de superar a falta de uma ortografia distintiva com a qual definir a originalidade semântica do plano para o qual se abre o discurso psicanalítico (1995, p. 195).

É sabido que, no evento das primeiras tra-duções dos textos de Freud para o francês,

1> Texto inserido no livro de mesmo nome, L’écorce et le noyau, 1987, traduzido por Maria José Faria Coracini. A casca e o núcleo (São Paulo: Escuta, 1995).

artigos

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o artifício da maiúscula prestou-se a uma forma de notação de uma certa mudança radical que a psicanálise introduzia na lin-guagem produzida pela maior parte de suas noções metapsicológicas. Na opinião de Abraham, o Vocabulário de Laplanche e Pontalis (1993) teve o mérito de não camu-flar essa espinhosa tarefa: propor soluções para o problema terminológico. E esse teó-rico vai buscar nessa obra enciclopédica um exemplo da resistência que a coisa psicana-lítica enfrenta em sua organização concei-tual, em outras palavras, a dificuldade de se marcar na letra a originalidade do próprio texto. O exemplo que usa é o conceito em-butido na palavra prazer que se liga ao “princípio do prazer” – prazer inconsciente ligado a um sintoma claramente penoso (1995, p. 194).

Abraham, reportando-se ao que lê no Voca-bulário, lembra que prazer enquanto afeto2

diz respeito ao Ego consciente, sugerindo que tal questão pode levantar objeções no nível da descrição psicológica. Como inter-fere: “O que na verdade seria um prazer que não fosse sentido, e até percebido como sofrimento?” (p.195). Abraham relaciona prazer à descarga de uma tensão, o que exi-giria que, na passagem do introspectivo ao psicofísico, prazer e descarga se re-cobrissem. Mas não é isso que acontece, como constata. É nesse processo, uma ver-dadeira conversão mental promovida por conceitos que não apresentam nenhum sistema de referências conhecido, que sur-ge o artifício da maiúscula como marca a re-velar e acusar a mudança semântica promo-vida pela teorização psicanalítica no interior

da notação conhecida da linguagem (p.195). Jacques Derrida (2002), quando apresenta esse texto de Abraham, lembra que o autor de A casca e o núcleo fala todo o tempo de tradução; uma tradução que se opera no in-terior de uma mesma língua, no sentido lin-güístico de identidade, tradução entendida então como um processo de “conversão se-mântica” (p. 15, neste número).

Para essa tradução chamada semântica, Derrida oferece como exemplo a palavra do francês “plaisir” [“prazer”]. A mesma pala-vra, “plaisir”, segundo argumenta, estaria sendo traduzida por ela mesma, sem verda-deiramente “mudar” seu sentido. Uma tra-dução que se opera no interior do sentido, no território semântico – as mesmas pala-vras da língua corrente, traduzidas por elas mesmas, constituem-se numa outra língua, a língua da psicanálise. Na explicação dada por Pörksen, um germanista citado por Pau-lo César de Souza (1998), que estudou o vo-cabulário freudiano numa abordagem “his-tórico-filológica” (p. 69),

... quando Freud emprega vocábulos corriqueiros como “prazer”, “fantasia”, “desejo”, ampliando-os na direção cognitiva, não deixa de continuar evocando as antigas, ricas associações dessas palavras, fazendo apelo também aos sentimen-tos do leitor. (p. 73)

Nessa passagem, da condição de vocabulá-rio corriqueiro a vocabulávocabulá-rio terminológico, algo muda sem mudar, algo é traduzido sem sê-lo. Não se vê, de fato, um outro, mas não vê, certamente, um mesmo. Vestí-gios do sentido antigo permanecem na pa-lavra, apenas em eco, sem que um sentido

2> Vale a pena registrar aqui um desenrolar desse nó terminológico: o duplo sentido do termo alemão afekt. Segundo Osmyr Faria Gabbi Jr., tradutor de Projeto de uma psicologia, 1995, afeto comporta dois sentidos diferentes: recordação, reprodução de uma vivência de dor (p. 136) e liberação repentina de quantidade (p. 159).

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novo e diferente seja deveras realizado. Ainda segundo Derrida, haveria, verdadei-ramente, duas formas singulares de tradu-ção no interior de uma mesma língua: a tra-dução para a língua da fenomenologia, mar-cada pelas aspas; e a tradução para a língua da psicanálise, marcada pela maiúscula. A despeito de estarem envolvidas as mesmas palavras, a natureza dessas traduções, ou conversões semânticas, remete para opera-ções absolutamente heterogêneas. Na pri-meira, em que se traduz para a língua da fenomenologia a mesma palavra da língua corrente, uma vez cercada pelas aspas, de-signa o sentido intencional colocado em evidência pela redução fenomenológica, ou seja, a mesma palavra funciona de outra forma na língua natural, porém a revelar-lhe o sentido noético-noemático. Na segun-da, em que se traduz para a língua da psica-nálise, a mesma palavra se encontra tradu-zida, por ela mesma, em um código no qual não porta mais sentido, de-significada que estaria pelo contexto psicanalítico. Seriam traduções de fato, de uma língua a outra, guardando uma certa identidade (ou não-alteração semântica), porém escapando es-candalosamente à lógica clássica, ao senti-do comum. Estaria aqui envolvisenti-do um pro-cesso a que Derrida (2002) chamou de “tra-duções insólitas”, marcadas no discurso pe-las aspas da fenomenologia e pela maiúscula. No rastro desse raciocínio, e voltando-nos para o exemplo do qual se serve Abraham, prazer não significa mais o que se sente ou se entende por prazer; prazer não significa mais ele mesmo, “o que sentimos” (Derrida, 2002), mas, como outros conceitos psicana-líticos, está designando o que Lagache (1983) chamou de “estruturas e movimentos psíquicos que não existem ao olhar do sen-so comum” (p. 5).

O efeito da maiúscula na tradução da pala-vra Lust,do alemão, para o francês Plaisir

remete a essa nova estrutura psíquica ine-xistente até então, nascida a partir da teo-ria de Freud. A presença da maiúscula não faz mais que aludir a um mistério, a um im-pensado, a um litígio acerca de sua signifi-cação, assim como à necessidade de se ad-mitir que a desejada fixação do sentido psi-canalítico da palavranão toma lugar, está irremediavelmente adiada. Ou, como diria Jacques Derrida (1991) em A diferença, en-contra-se sob ação de uma força que impli-ca um retardamento, uma demora, um des-vio. Desvio esse que suspende a consuma-ção da significaconsuma-ção plena desejada (p. 39). Nesse sentido, o papel da maiúscula não é inaugurar uma nova significação, não é sig-nificar ou re-sigsig-nificar, mas antes de-signi-ficar, deixando em suspenso, “revelando o próprio fundamento da significância” (Abraham, p. 197). Podemos dizer que o ad-vento da maiúscula toca profundo no con-ceito de signo e traz à tona toda a sua fra-gilidade.

Derrida, em suas reflexões expostas em A diferença, refaz o percurso saussuriano que instituiu o signo como modelo da semiótica clássica, atendo-se aos dois princípios que a norteiam: o arbitrário do signo e seu ca-ráter diferencial. Como afirma: “... só pode haver arbitrário na medida em que o siste-ma de signos é constituído por diferenças, não por termos plenos” (1991, p. 42). Nesse texto, numa espécie de performance para suas reflexões, Derrida cria um neografis-mo, o vocábulo différance, como variação de différence, fazendo questão de nos lem-brar que, em francês, esses vocábulos não se deixam perceber como diferentes senão na grafia, numa escrita que, aqui contradi-toriamente, pretende ser fonética, pretende ser a mera notação da fala e, por isso, em posição secundária e derivada.

Ao forjar esse neografismo, Derrida não pretendeu com ele criar um conceito ou

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uma palavra, senão anunciar, para além da filosofia e da linguagem, a unidade do aca-so com a necessidade, numa economia sem fim, em constante processo de negociação. Partindo dos dois conceitos semânticos embutidos no verbo diferir: “ação de reme-ter para mais tarde” e “não ser idêntico”, Derrida conduz àquilo que está em jogo no processo de busca pelo significado, e para o que o A da différance pretende apontar: uma cadeia de diferenças – a mesma que, se por um lado permite que o processo de significação aconteça, por outro, na propor-ção inversa, interdita ao signo a significa-ção como presença em si. O conceito está inscrito numa cadeia dentro da qual ele sempre é o que o outro lhe diz que não é. No conceito de signo – signo como substi-tuto daquilo que se coloca no lugar da coi-sa que está sempre acolá, está esse adiar infinito das diferenças, com sua presença adiada, diferida.

Em resumo, podemos dizer então que o conceito de significado não é nunca, em si mesmo, presente. Todo conceito está ins-crito numa cadeia que o remete para o ou-tro, num jogo sistemático de diferenças que diferem no tempo e na não-identidade. Exemplar desse jogo do qual nos fala a des-construção, dessa sobra sempre em fuga, que não se deixa apreender, nem confinar, na palavra escrita, desse movimento de in-quietação diante de um impasse: uma pre-sença desejada e perseguida, mas sempre postergada, diferida, é a encenação promo-vida pela necessidade e impossibilidade da tradução da palavra différance para o

por-tuguês. Ottoni (2000) fez um exame de como as várias tentativas de tradução des-se neografismo derridiano comportam toda a complexidade promovida pela constante busca por uma tradução num outro sistema lingüístico. O autor cita vários exemplos de traduções sugeridas e justificadas, seja no aspecto semântico, seja no aspecto fonéti-co. São várias as soluções propostas3que,

independente de qualquer juízo em relação à sua propriedade e/ou incoerências, e pos-sivelmente justo por isso, testemunham as muitas implicações envolvidas no gesto aparentemente simples de se traduzir uma palavra de uma língua a outra.

Voltemos ao exemplo de que se vale Abraham (1995), o conceito de prazer, que sofre o que Derrida já identificou como “traduções in-sólitas” e, nesse caso específico,

... com as mesmas palavras que mudam de todo o seu sentido, transbordam de sentido, impassí-veis e imperturbáimpassí-veis, a eles mesmos idênticos, permitindo-lhes ler, no novo código dessa tradu-ção anassêmica, isso que precisaria de outra pa-lavra, a mesma diante da psicanálise, é outra língua que se serve das mesmas palavras ao lhes impor uma “mudança radical” (p. 12-3, neste número).

Nessas sucessivas passagens de uma mesma palavra, que é outra, o processo de signifi-cação é adiado e diferente, diferido. Entra irremediavelmente numa cadeia sucessiva e interminável de errância, de diferimento, de adiamento, de demora, de reserva, que pode ser resumida numa palavra derridia-na: temporização. Esse diferimento, que é espacial e também temporal, promove o

3> Dentre as propostas citadas por Ottoni estão: diferança, de Joaquim Torres Costa e Antônio M. Ma-galhães, tradutores de Margens da FilosofiaMargens da FilosofiaMargens da FilosofiaMargens da FilosofiaMargens da Filosofia; diferência sugerida por Maria Beatriz Nizza da Silva, tra-dutora de A escritura e a diferençaA escritura e a diferençaA escritura e a diferençaA escritura e a diferençaA escritura e a diferença; diferensa, em Salvo o nomeSalvo o nomeSalvo o nomeSalvo o nomeSalvo o nome, tradução de Nícia Adan Bonatti; e diferænça sugerida por André Rangel Rio, numa nova tradução do texto Différance, no livro Em tornoEm tornoEm tornoEm tornoEm torno de Jacques Derrida

de Jacques Derrida de Jacques Derrida de Jacques Derrida

de Jacques Derrida, 2000, p. 77-93). Certamente, a questão não está encerrada, e nem podemos afir-mar que estará qualquer dia.

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desvio, suspende e remete para mais tarde a consumação, a suposta presença. Nesse deslocamento infinito do conceito de Pra-zer, que é o mesmo e que é outro, não há um sentido apreensível. O conceito de pra-zer está aprisionado num processo de signi-ficação do qual não há saída, que nunca acontece porque está para sempre errante e diferente. É a esse processo que a maiús-cula faz referência, sinaliza sem resolver. Podemos mesmo pensar na linguagem da psicanálise, essa que tem como missão ser a guardiã de um conjunto de conhecimen-tos teóricos, como sendo fruto dessas vári-as instâncivári-as tradutórivári-as de caráter insólito, de traduções anassêmicas.

Como comenta Darius Gray Ornston, “Freud extraiu a maior parte de seus termos des-critivos da linguagem cotidiana” (1999, p. 25). Estaria nisso uma peculiaridade do estilo de Freud “o fato de usar uma terminologia pró-pria, mas não escrever ‘terminologicamen-te’”, na definição apropriada dada por Sou-za (1998, p. 71). Esse gesto é precisamente o que introduz um novo discurso, uma nova linguagem, o que Abraham chamou de

anasémie.4E nesse processo, [a passagem]

da linguagem do dia-a-dia para uma lingua-gem terminológica de um vasto campo de conhecimentos, como nos lembra Derrida:

Altera radicalmente as palavras, estas da língua corrente da qual se serve ainda e na qual se tra-duz em uma língua totalmente outra: então, en-tre o texto traduzente e o texto traduzido, nada apa-rentemente teria mudado, haveria, portanto, entre eles apenas relações de homonímia! Mas, ver-se-á que serão relações de uma homonímia in-comparável a qualquer outra. (p.13, neste número)

A língua da psicanálise, se isso podemos nomear, inaugurada de modo próprio pelo discurso anassêmico de Freud, desnuda o mecanismo da différance, atuante na língua em geral, mas que no texto da psicanálise, sobre seus conceitos e conseqüentemente em suas traduções, atua e faz efeitos. Na língua da psicanálise, a questão tradutó-ria, o nó da língua, apresenta-se a nós atra-vés da tentativa de traduzir Lust por Plaisir. Em que pese o fato da maiúscula no francês não guardar correspondência no uso que é feito da maiúscula no alemão, identificamos uma dificuldade, uma resistência, para o que a grafia apenas aponta, sem resolver. Nesse processo de transformação, de tradu-ção: Lust, Plaisir, “prazer”, Prazer, prazer, está a tentativa de se aprisionar em defini-tivo aquilo que está condenado à errância numa cadeia infinita de diferenças, numa cadeia diferante, revelando-se não mais que tentativas de se anotar o efeito, e sob o risco da heresia, do que Derrida nos diz ser a différance,

... o jogo da différance que faz com que nenhu-ma palavra, nenhum conceito, nenhum enunciado maior venham resumir e comandar, a partir da presença teológica de um centro, o movimento e o espaçamento textual das diferenças. (1975, p. 22)

Contrariamente, portanto, prosseguindo no pensamento de Derrida, as diversas nota-ções gráficas, as tradunota-ções, essas cadeias de substituições; “não são apenas opera-ções metonímicas, deixando intactas as identidades conceituais, as idealidades sig-nificadas que se contentariam em traduzir, em fazer circular” (Ibid., p. 22). Se não são operações metonímicas, deixemos em

sus-4> Palavra do francês, cunhada por Nicholas Abraham e apresentada no texto A casca e o núcleo, e para a qual existem duas traduções propostas: anassemia, por Maria José Faria Coracini e anasemia, por Fábio Landa. Nesse texto escolhi usar a tradução proposta por Coracini, porque creio ser possível es-tabelecer elos semânticos interessantes, o que me agrada.

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penso, como faria Derrida, a definição do que são. Como na própria cadeia diferante, da qual não estamos isentos, temos que nos contentar com as indicações do que não são. Poderíamos questionar aqui, como o faz Ottoni (1999) em relação à palavra

différance e a língua francesa: de prazer

para “prazer” para Prazer – nessas sucessi-vas traduções anassêmicas, como as identi-fica Derrida –, de quais línguas se partiu e em quais se acomodou? Ainda ecoando seus questionamentos; Prazer faz parte da língua de Freud? Ou do idioma da psicaná-lise? Dentro de que dialeto podemos identificá-la?

O importante, como afirma ainda esse teó-rico, não é qualquer resposta a que pode-ríamos chegar, se isso fosse possível, mas a possibilidade mesmo de elaborar todas es-sas perguntas. É a possibilidade de identifi-car nesses questionamentos a impossibili-dade de se falar de uma “mesma” língua. Não podemos jamais falar de uma língua materna que supostamente possuímos. Identificamos vários idiomas nessa língua, que chamamos materna, mas que nos pren-de órfãos, à medida que não nos acolhe in-condicionalmente.

Em seu artigo Tradução e desconstrução: a contaminação constitutiva e necessária das línguas,5 Ottoni identifica no neografismo – différance, um sinal do desvio, do atraso, do retardamento e, ao mesmo tempo do outro, não idêntico, discernível, uma conta-minação entre língua e idioma. É o idiomá-tico que surge contaminando a língua, dei-xando na letra a marca dessa contaminação e trazendo à luz sua hipótese: “uma língua fala

mais de um idioma” (p. 7, neste número). Voltando ao nosso exemplo do conceito psicanalítico, Prazer, também nesse caso, poderíamos identificar uma contaminação da língua pelo idiomático. Na letra, materia-liza-se a contaminação, um contato que im-possibilita a pureza, o limite entre o eu e o outro. Citando Derrida, Ottoni traduz:

A tradução pode tudo, exceto marcar esta dife-rença lingüística inscrita na língua, esta diferen-ça de sistema de línguas inscrita numa só e mesma língua; no limite ela pode fazer tudo, ex-ceto isto, exex-ceto o fato de que há num sistema lingüístico talvez várias línguas, algumas vezes, diria mesmo sempre, várias línguas, e há impu-rezas em cada língua (p. 8, neste número).

Num paralelo que poderíamos estabelecer com toda a reflexão que Ottoni desenvolve precisamente nesse texto: prazer, “prazer”, Prazer marcam a impossibilidade de se es-tabelecer fronteiras precisas entre os idio-mas de uma “mesma” língua, e marcam mais ainda a contaminação entre o idioma e a língua, a inexistência de uma possibilidade de fronteira entre a língua materna e a lín-gua do outro.

A língua anassêmica da psicanálise, que nasceu do que eu também gostaria de no-mear o idioma de Freud, encena de forma contundente o mecanismo da différance. Se essa temporalização da différance atua na língua em geral, mais particularmente se insinua no texto da psicanálise, sobre seus conceitos, e conseqüentemente em suas traduções. Nesse cenário traçado em torno de questões de tradução e língua, o meca-nismo da différance nos revela a orfandade

5> Texto traduzido do francês por Élida Ferreira publicado no presente número da revista Pulsional, p. 22-26. Uma versão desse trabalho foi apresentada como comunicação no Congreso Internacional – Últimas Corrientes Teóricas em los Estudios da Traducción y sus Aplicaciones, realizado na Universi-dade de Salamanca, na Espanha, entre 16 e 18 de novembro de 2000.

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e o desamparo, o fato de que nunca saímos de um lugar para chegar a outro, de que a tradução não promove esse transpor segu-ro, não poderemos jamais estar em casa, não seremos acolhidos, estamos, sim, con-denados a viver em trânsito, entre frontei-ras, em différance.

E aqui, apenas para concluir, poderia citar a segunda hipótese que norteia o texto de Ottoni, exatamente esse que abriu essa co-letânea Tradução e desconstrução: a conta-minação necessária e constitutiva das lín-guas: marcando o processo da tradução está então uma doação, a doação da língua materna, a língua que não nos pertence, ao outro. Num gesto de extremo amor, doar o que não temos, o que não é nosso, aquilo do que não nos apropriamos, a herança que não herdamos.

Referências

ABRAHAM, Nicolas. A casca e o núcleo. In: A

cas-ca e o núcleo. Trad. Maria José Faria Co-racini. São Paulo: Escuta, 1995.

DERRIDA, Jacques. A diferença. In: Margens da

filosofia. Campinas: Papirus, 1991. _____ EU – a psicanálise. Trad. Élida

Ferrei-ra. São Paulo, Pulsional Revista de

Psica-nálise, ano XV, n. 158, p. 11-21, 2002. _____ Posições. Trad. Maria Margarida

Cor-reia Calvente Barahona. Lisboa: Plátano Editora, 1975.

FREUD, Sigmund. Projeto de uma psicologia.

Trad. Osmyr Faria Gabbi Jr. Rio de Janei-ro: Imago, 1995.

LAGACHE, Daniel. Prefácio: razões e história

dessa obra. In LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J. B.

VVVVVocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

LAPLANCHE, JEANE PONTALIS, J.B. Vocabulário da

psicanálise. Trad. Pedro Tamen. São Pau-lo: Martins Fontes, 1983.

OTTONI, Paulo R. Traduction et Déconstruction:

La Contamination Constitutive et Necéssaire des Langues. Comunicação apresentada em 17 de novembro, no Con-gresso “Últimas Corrientes Teóricas en Los Estudios de Traducción y sus Aplicaciones”. Salamanca, España, 2000. SOUZA, Paulo César. As palavras de Freud: o

vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo: Ática, 1998.

Artigo recebido em março/2002 Aprovado para publicação em abril/2002

artigos

C l í n i c a

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