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O belo e o sublime românticos nas paisagens de mundos virtuais on-line

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Academic year: 2021

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Visitados por milhões de usuários desde sua implementação na Internet, os mundos virtuais on-line1de temática fantástico-medieval são

jogos que representam diferentes formas de vivência em outro tempo-lugar. No presente artigo analisaremos a estética das paisagens que compõem esses mundos, buscando observar como os campos simbólicos do medievo foram transformados até se converter no que denominamos ambiências de fantasia-medieval nos mundos virtuais on-line.

O que sobretudo motivou a pesquisa foi o paradoxo existente entre o aparato tecnológico de ponta que veicula essas imagens – o computador pessoal – e o que elas evocam, que é exatamente um tempo análogo ao tempo medieval, em que as tecnologias da informação inexistem e a indústria e o capitalismo ainda não despontaram. Essas paisagens trazem em sua linguagem uma interessante bricolagem de elementos e códigos de representação que sobreviveram durante séculos na cultura ocidental, constituindo um espaço imaterial – o ciberespaço – onde pessoas podem viver por meio da virtualização de seus corpos em outro nível de realidade.

Com o nascimento da realidade virtual e dos programas 3D, pelos quais essas paisagens são

geradas, há uma máxima eficácia quanto à reprodução da perspectiva renascentista enquanto modelo de construção, aproximando as paisagens virtuais da tradição paisagística ocidental. No entanto, devemos observar outro aspecto interessante dessas imagens, que reside no fato de ultrapassarem o referencial, passando a ser auto-referentes, informantes de uma dimensão singular de realidade mediante um dispositivo interativo.

Observando os Roleplaying Games2– vulgos

RPGs – que originaram os mundos virtuais on-line de temática fantástico-medieval, é possível verificarmos as fortes relações entre o primeiro jogo desse gênero, o Dungeons and Dragons, e o universo da obra do escritor Tolkien, autor da famosa trilogia O Senhor dos Anéis. Em ambos encontramos presentes elementos dos mitos, das fábulas medievais, dos romances de cavalaria, da cultura celta e anglo-saxônica, além de conexões com o gênero literário romântico de origem inglesa denominado fantasia medieval, do qual se destaca o famoso artista e escritor William Morris.

Assim, a literatura romântica foi um ponto de partida para a pesquisa da estética e da ideologia dos séculos 18 e 19. Especialmente pelo

de mundos virtuais on-line

M a r t h a W e r n e c k

Visitados por milhões de usuários, os mundos virtuais on-line de temática

fantástico-medieval são constituídos por ambiências que carregam consigo séculos

da tradição paisagística ocidental. As paisagens desses mundos apresentam-se

como uma colagem de elementos sígnicos já estabelecidos na história das artes

visuais e recorrem a outros tantos de origem literária. Temos no romantismo o ponto

de ligação entre a Idade Média a que tais paisagens aludem e as significações que

proporcionam a quem as frui.

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passadismo ou restitucionismo romântico inglês, que tinha como característica essencial o anticapitalismo – segundo Löwy e Sayre,3

ponto nevrálgico da questão romântica –, podemos estabelecer uma ponte entre as imagens pesquisadas e o período medieval ao qual aludem. O profundo desejo de retorno ao passado do homem romântico deve-se à grande insatisfação com o presente e à constante crítica à modernidade. Mesmo sem saber ao certo o mundo ideal a ser vivenciado, há a idealização de um mundo de ficção que muitas vezes se refere ao passado medieval no que diz respeito aos modos de vida, ao contato com a natureza e à proximidade das raízes culturais, já que o romântico vive uma dolorosa e melancólica convicção de que sofreu a alienação de certos valores fundamentais para sua condição humana.

Nas paisagens virtuais analisadas existem elementos recorrentes com os quais estabelecemos uma analogia com a pintura romântica de paisagem. A estética romântica4

figura como o ponto intermediário entre as paisagens virtuais e o universo do maravilhoso medieval. Sendo assim, observamos nas paisagens virtuais a presença dos conceitos românticos do belo e do sublime,5que

podemos resumir da seguinte forma: o belo é o que traz o prazer simples da contemplação. Nele o homem está integrado a uma natureza de características acolhedoras e sente-se à vontade como parte dela, pois a domina e integra-se a seu ambiente natural. Portanto, nessa poética pode ser verificada forte vertente iluminista, diferente do que acontece com a vertente do sublime que, por sua vez, representa a relação do homem com uma natureza que lhe desperta temor, magnificência e todas as modalidades de emoções que passam pelo sentimento do sublime – tanto em Kant, que leva em conta suas características metafísicas e reconhece uma “presença” no âmago da natureza, quanto em Burke, cuja obra inspirou Kant. A natureza representada pela poética do sublime é aquela na qual o ambiente hostil desenvolve no homem o sentimento de solidão, de individualidade e até mesmo do sentido trágico da existência, arrebatando-o e remetendo-o à vastidão, ao desconhecido, mas que o fazem

perceber-se como parte de algo grandioso, como parte de uma natureza indomável.

Thomas Gainsborough, um dos primeiros pintores ingleses de paisagem, traz em suas pinturas da segunda metade do século 18 o desejo romântico de viver no seio da floresta como o homem simples, porém feliz e pacífico, estereótipo esse que exercia fascínio nos ingleses. A natureza bela e frondosa de Gainsborough está presente no ambiente idealizado e acolhedor da floresta, em que a R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M A R T E S V I S U A I S E B A • U F R J • 2 0 0 6

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pequena cabana do lenhador se confunde com a paisagem. Essa natureza serena da qual o homem é parte mostra-se como a bela natureza à qual se refere Burke. Nas paisagens virtuais que estabelecem uma dialética com trabalhos de Gainsborough podem ser observados

elementos e composições bastante similares, invocando os mesmos valores simbólicos aos quais o pintor deu atenção.

Já a paisagem de Constable apresenta um mundo ideal, autônomo, constituindo um

realizada, quando as florestas inglesas já eram vistas com um paraíso perdido, e a

industrialização e o capitalismo tidos pelos românticos como ameaças constantes. Nas pinturas de Constable a natureza mostra-se bela e tranqüila, sendo o homem apenas um ingrediente do todo, figurando nas composições de forma bastante secundária. Podemos notar no primeiro par de imagens, no qual figuram uma pasiagem de Constable (Figura 4) e uma paisagem do mundo virtual The Lord Of The Rings (Figura 5), como as paisagens virtuais captam de forma bastante evidente o clima do romantismo presente nas obras do pintor, sendo a natureza habitada e cultivada pelo homem a principal vedete. Nesse exemplo, a amplidão do espaço é dada pelas nuvens nas duas imagens. Os animais domesticados que aparecem em primeiro plano atestam a presença do homem num ambiente idealizado. Nas duas imagens uma vila de camponeses aparece em último plano. Alguns detalhes do screenshot6analisado,

como o moinho – que remete às paisagens holandesas – e as roupas estendidas em um varal à esquerda da composição, em plano intermediário, contribuem para tornar a cena extremamente familiar e feliz.

Nos séculos 18 e 19 o medievo foi trazido à tona como a Idade de Ouro, e com isso multiplicaram-se os temas para a pintura de paisagem. Castelos e ruínas medievais já louvados nas pinturas holandesas, como as de Jacob van Ruisdael, começam a figurar nas obras de Turner e Girtin.

Enquanto em Constable havia uma exploração gradual que buscava fidelidade em suas representações da natureza, Turner procurava aspectos comoventes e dramáticos que dela proviessem. Sendo assim, ambos eram românticos; no entanto, possuíam poéticas diferentes: enquanto Constable pretendia alcançar o belo pacífico que provinha da simplicidade e da calma da natureza, exprimindo emoções que giravam em torno da afeição entre o homem e o mundo que habitava, Turner buscava seus efeitos, colorações e movimentos, traduzindo os sentimentos que despertam o sublime, que em sua obra alcança a máxima potência.

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O espaço de Turner é mutável, vaporoso e cósmico. Como Constable, também ele trabalhava com a mancha, mas sua mancha era o vapor, a fusão, enquanto a mancha de Constable representa a concretude e a definição da luz. Para Turner a extensão do espaço é infinita, o mundo é tragado pelo próprio ar e pela luz, que se movimentam incessantemente. Assim, tanto Constable quanto Turner transmitem sentimentos por suas pinturas: as emoções de Constable traduzem o belo, as de Turner, o sublime.

No segundo par de imagens, no qual podemos visualizar uma pintura de Turner (Figura 6) e uma paisagem do mundo virtual Guild Wars (Figura 7), observamos ao longe uma construção – um castelo na paisagem de Turner, uma muralha medieval na paisagem virtual de Guild Wars. As nuvens e a coloração luminosa do céu transmitem amplidão e uma atmosfera agitada. Em ambas as paisagens o código cromático utilizado é praticamente igual. A mensagem presente é de que a natureza é maior do que qualquer obra humana. O mistério e a antigüidade dessas construções medievais parecem submersos pelo tempo. Elas conotam resistência e coragem através da rocha com a qual são construídas, sobrevivendo a todas as intempéries. Em diversas pinturas de Girtin, pintor e aquarelista companheiro de Turner, figuram ruínas medievais que evocam o sublime por meio da destruição causada pelo agente temporal e da grandiosidade das estruturas deterioradas. As ruínas de Girtin relacionam-se ao valor da grandiosidade da pedra e ao modo como, depois de arruinada, a construção volta a fundir-se com a natureza e suas forças brutas. É na ruína que a pedra retorna ao lugar de onde um dia foi retirada para ser lapidada por mãos humanas. Girtin não escolhe as ruínas romanas para representar, mas uma catedral do período gótico, ou um castelo medieval no topo de uma pedreira. É uma forma de aludir aos velhos tempos, uma forma de saudar o que no século 19 já se encontrava em um passado longínquo, mas cada dia mais idealizado. As ruínas medievais como parte da paisagem estão presentes também nos mundos virtuais on-line. Também gigantescas, são curiosamente imagens construídas para representar algo que nunca existiu. Em Guild Wars (Figura 3) as ruínas de

uma catedral encontram-se num ambiente selvagem, no qual a organicidade da catedral funde-se à da floresta, conferindo à

construção um aspecto grandioso e sombrio, misterioso e terrível. Em The Lord of The Rings (Figura 1) arcos góticos em ruínas são refletidos por um lago fabuloso e um personagem contempla a paisagem.. A atitude contemplativa romântica é muitas vezes representada nas paisagens virtuais. Nelas o sentimento de sublimidade é despertado pela vastidão do mundo em contraposição à pequenez do ser humano. Além disso, a natureza é reverenciada no romantismo, e a contemplação possui o valor do misticismo, de uma secreta adoração transferida para o ambiente natural.

O fascínio que as montanhas exerciam sobre os românticos pode ser verificado como parte do imaginário da época, em escritores do século 18, como Walpole e Gray, pelos sentimentos abissais que evocavam o sublime e o terrível. Relacionada ao caos, à ruína, à catástrofe, a idéia de montanha para os românticos também pode ser relacionada aos abismos das paisagens virtuais quando comparamos as pinturas de Cozens com as paisagens de Guild Wars (Figura 2). Com esses poucos exemplos já podemos perceber como as paisagens virtuais analisadas trazem para quem as frui um universo medieval traduzido por valores românticos que, por sua vez, são relidos pela contemporaneidade, relegados ao universo ficcional e ao imediatismo. Elas constituem o resultado de uma colagem de elementos transformados e idealizados pela estética romântica, que nos mundos virtuais adquirem propósitos de evasão atualizados, já que deixam de ser uma ideologia e passam a configurar-se apenas como lazer. Desse modo o espaço virtual passa a representar valores que o homem quer vivenciar. A visualidade neles presente irá instaurar para gerações futuras a percepção estética da natureza, dada pelo viés cultural.

Por meio das paisagens virtuais, em que há idealização da Idade Média e da natureza, muitos usuários buscam o acolhimento e a vastidão, o espaço que lhes é negado quando R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M A R T E S V I S U A I S E B A • U F R J • 2 0 0 6

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sem a ideologia do romântico, que se sente alijado e se revolta com sua condição, o homem contemporâneo apenas sente-se impotente diante do sistema que ao mesmo tempo o aprisiona e o consola. Ele busca companhia e novas vivências em espaços alternativos, assim como violência e revolução em outras esferas da realidade. No entanto os mundos virtuais on-line são dotados de características como a interatividade, a comunicação e a construção. Eles correspondem a um happening, possibilitam a vivência e a criação de seus participantes pela ação, pelo improviso, potencializando a criatividade e a comunicação, e não só a recepção e doutrinação destituídas de reflexão. Assim, é também por meio da estética desses mundos e do que eles proporcionam que os sentimentos poderão ser compartilhados.

Martha Werneck é mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este artigo resume parte de sua dissertação de mestrado, intitulada Fantasia, romantismo e medievo nas paisagens de mundos virtuais online, defendida em março de 2006 sob orientação do professor doutor. Rogério Medeiros, da linha de pesquisa Imagem e Cultura.

N Noottaass

1Os mundos virtuais online, mais exatamente os MMORPGs,

sigla que quer dizer massively multiplayer online roleplaying games, são jogos para computadores pessoais, constituindo versões eletrônicas derivadas dos chamados Roleplaying Games. Para a realização deste trabalho foram escolhidos mundos virtuais online com as seguintes características: temática fantástico-medieval, tecnologia de ponta com bons gráficos em 3D, produtoras com bom histórico no mercado ou nas quais se perceba boa equipe de criação, possibilidade de jogá-los no Brasil – mesmo que por meio de servidores piratas. Dos web sites oficiais desses jogos foram colhidas cerca de 800 imagens entre julho de 2003 e janeiro de 2006, estas disponibilizadas como screenshots, ou seja, capturas de telas que funcionam como propagandas, como cartões-postais dos mundos virtuais. Nessas imagens podem ser notadas paisagens capturadas por um olhar de fotógrafo, através das quais as produtoras visam transmitir um teor de aventura, mistério, magia e deleite estético para os futuros jogadores. Foram pesquisados para a dissertação os seguintes jogos: Dark Age of Camelot; Darkfall; EverQuest II; Guild Wars; Line Age II; Sphere; World of WarCraft e The Lord of The Rings baseado na obra de Tolkien e em versão beta, ou seja, em fase de teste, embora disponibilize screenshots online desde 2004.

ambos possuírem aspectos e elementos pertinentes a todos os demais.

2Roleplaying Games são jogos narrativos inventados na década

de 1970, apresentados em forma de livro, em que o jogar se desenvolve por meio de ações realizadas em um mundo de fantasia, inventado pelos próprios jogadores. Baseados em regras e descrições verbais, os jogadores desenvolvem ações por intermédio de personagens por eles assumidos.

3Löwy, Michael; Sayre, Robert. Revolta e melancolia. O

romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.

4Considera-se neste trabalho a expressão estética do

romantismo a determinação de uma tendência e uma orientação de gosto que, absolutamente, não se compreende em um delimitado espaço temporal, já que se pode perceber sua sobrevivência nos dias de hoje na própria cultura de massa.

4Tais conceitos foram desenvolvidos inicialmente em 1757

pelo inglês Edmund Burke para definir esses tipos de sentimentos, vinculados em especial à natureza. Sete anos mais tarde Kant tem acesso à obra de Burke e escreve Observações sobre o belo e o sublime, tomada como referência por muitos românticos. No entanto, em Kant existe uma tonalidade metafísica que reveste a contemplação, que é também um modo de apreender a natureza. Para ele, ao contrário de Hegel, a arte nunca poderia rivalizar com a natureza. Foi a partir do pensamento de Kant e Hegel que Schelling, entre outros pensadores alemães românticos do século 18, disse querer voltar a fruir e explorar a natureza. A natureza para esses românticos não pode ser reduzida apenas aos estados de espírito do homem, já que possui alma própria, sendo nela reconhecido um valor místico. O belo e a verdade coexistem na natureza sendo ambos, como no medievo, um reflexo da divindade. No entanto, para os românticos não é a verdade que institui a beleza, mas o contrário. Eles se voltam para a beleza natural como um local de refúgio, resgatando a unidade do homem com a natureza por meio da arte, que serviria como ligação entre um e outro. Assim, a natureza e o misticismo nela investido, mais que um fundamento para a arte seria um modo de acessar o absoluto. As definições do belo e do sublime relidas pelas teorizações da estética alemã e ligadas à arte, em especial à pintura de paisagem, retornam à Inglaterra resgatadas por Coleridge e Wordsworth, que travaram contato com a cultura alemã do período.

6Screenshot: captura de tela disponibilizada pela produtora do

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Referências

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