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JOÃO ALBERTO DA COSTA PINTO *

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Academic year: 2021

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gerações” contra o “espetáculo” das “banalidades de base” da sociedade capitalista.

JOÃO ALBERTO DA COSTA PINTO*

O Maio de 1968 ainda representa, cinquenta anos depois, a possibilidade concreta da revolução autogestionária anticapitalista. Representa historicamente a luta pela supressão das práticas institucionais do modo de produção capitalista pela organização social de práticas institucionais de novo tipo, centradas na solidariedade dos trabalhadores, com esse novo poder político definindo-se como poder social, indicando como possibilidade concreta a sociedade comunista. Esse é o real sentido histórico da efeméride e não a marca de uma manifestação estudantil que explodia contra as expressões formais da imaginação e consciência alienadas dos estudantes e trabalhadores na sociedade capitalista. Não foi apenas uma “recusa” ou o “é proibido proibir” reclamado contra as instituições da repressão social, o efetivo sentido histórico dos acontecimentos deu-se pelas práticas cotidianas da auto-organização dos trabalhadores e estudantes franceses como a negação absoluta do capitalismo e a afirmação da materialidade concreta da ordem comunista. O autonomismo conselhista foi o mote central das lutas no Maio de 1968. Na autogestão conselhista desenhada por aquela experiência o poder político procurava realizar-se como ato da sociedade e não como ato político separado da sociedade.

O grupo da Internacional Situacionista (organizado por Guy Debord em torno da revista Internacional Situacionista [que circulou de 1958 a 1969]) desenvolveu aspectos teórico-críticos de fundamental importância para o entendimento das macroestruturas do capitalismo global em seu duplo movimento: no modelo capitalista do espetáculo difuso (da mais-valia relativa) no campo hegemônico dos EUA e no modelo do espetáculo concentrado (da mais-valia absoluta) no campo hegemônico do capitalismo de Estado da URSS. A elaboração teórica dos situacionistas não se restringiu à obra de Guy Debord. Vários outros intelectuais com a mesma magnitude de Debord demarcaram a visão de mundo situacionista, especialmente Asger Jorn e Raoul Vaneigem.

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Nesta ocasião apresento uma rápida notícia sobre a trajetória política de Raoul Vaneigem, poeta e filósofo belga que coadjuvou com Debord nas páginas da revista Internationale Situationniste descrevendo alguns pontos dos textos programáticos do movimento, especialmente com o ensaio: Banalidades básicas (1962/1963) e o livro: A arte de viver para as novas gerações, publicado em novembro de 1967, que junto ao livro A sociedade do espetáculo, de Guy Debord, publicado na mesma ocasião, formam o conjunto documental mais importante das intervenções teórico-políticas da Internacional Situacionista. Raoul Vaneigem é autor de vários livros, entre outros, destaco As Heresias, História desenvolta do Surrealismo e A economia parasitária. Enfim, um autor, uma trajetória ideológico-política fundamental na história política do movimento situacionista francês, mas que ainda é relativamente desconhecida do público leitor brasileiro. Esta comunicação resulta de pesquisa que venho desenvolvendo na Faculdade de História da UFG sobre trajetórias políticas de intelectuais derrotados no campo da esquerda marxista anticapitalista (e antileninista) de título: Derrotados e Malditos: Ensaios historiográficos sobre a derrota política do intelectual anticapitalista no século XX.

A seguir apresento uma sumária descrição dos fatos do Maio de 68 para justificar o sentido da intervenção política dos situacionistas, ressalvando a intervenção de Vaneigem.

Paris, 10 de maio de 1968. No Quartier Latin (Bairro Latino), alguns milhares de estudantes iniciariam ao fim do dia uma marcha de protesto contra as prisões de vários colegas pertencentes ao grupo Enragés, da Universidade de Nanterre. Pelas ruas do bairro, o grafite “É proibido proibir – Lei de 10/05/1968” prenunciava umas das mais importantes sentenças da comuna estudantil que ali estava para nascer. Ao fim do dia mais de vinte mil estudantes põem-se em marcha pela Rua Gay Lussac para logo põem-se defrontarem com a polícia (CRS – Corpo Republicano de Segurança), estabelecendo-se naquela noite um dos confrontos mais violentos da história da república francesa. As barricadas erguidas com carros e o confronto generalizado dos estudantes com a polícia colocavam nas ruas de Paris o fantasma dos acontecimentos da Comuna de Paris (1871).

Na “noite das barricadas” da comuna estudantil do Quartier Latin inaugurou-se aquela que seria uma expressão emblemática dos grandes conflitos sociais do século XX. No quadro histórico das lutas sociais anticapitalistas os acontecimentos do Maio de 1968 representaram

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efetivamente a generalização da grande recusa por parte dos estudantes e dos trabalhadores ao modelo social do capitalismo tecnocrático que o mundo via organizar-se na transição da sociedade fordista ao modelo societário da acumulação flexível da sociedade pós-fordista (toyotista) centrada em práticas organizacionais crescentemente tecnocráticas. Das barricadas da comuna estudantil acendeu-se um estopim de protestos generalizados que levou em menos de três semanas a uma greve geral por todo o país o espantoso número de mais de dez milhões de trabalhadores paralisando praticamente todos os setores produtivos da sociedade. Nunca uma potência capitalista estivera sob ameaça tão grave de destruição de suas instituições políticas. Estudantes e trabalhadores em voz uníssona recusaram-se durante quase um mês a qualquer diálogo com as representações políticas tradicionais nas negociações entre capital e trabalho no capitalismo. Estudantes e trabalhadores generalizaram aquilo que Karl Marx definia como o “poder social”, com a grande recusa do movimento social as instituições capitalistas desabavam a olhos vistos na sua completa vacuidade de sentido histórico. Nem partidos, nem sindicatos, nem o parlamento ou qualquer outra agência governamental podia assumir-se como porta voz da colossal manifestação social que varria as ruas do país. Da comuna de estudantes e trabalhadores definiram-se práticas sociais de novo tipo, de uma solidariedade radical nunca vista nessa proporção e magnitude na história das lutas anticapitalistas do século XX. Como afirmou Maurice Brinton (do grupo inglês conselhista Solidarity, que acompanhou os fatos acontecidos nos primeiros dias da comuna estudantil), com aqueles acontecimentos as pessoas souberam que a revolução comunista era possível mesmo sob as condições violentamente repressivas do capitalismo burocrático moderno. As lutas sociais anticapitalistas traziam à sociedade francesa o legado conselhista que sempre fora derrotado historicamente pelos partidos políticos que se diziam representantes políticos da revolução junto ao Estado. O autonomismo conselhista nascido da organização diária dos estudantes e trabalhadores recusava não apenas as instituições da sociedade capitalista como recusava também aqueles que historicamente sempre se afirmaram como os “organizadores” da revolução: os sindicatos, os partidos comunistas e todas as demais frações partidárias da “extrema” esquerda (no caso em questão, principalmente os grupos trotskistas e os maoístas). A esquerda tradicional e mesmo os grupos mais extremistas do dirigismo neobolchevique, daqueles que se autonomeavam como “vanguardas revolucionárias”, não conseguiu impedir o avanço do movimento global dos fatos

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desencadeados pelos estudantes e trabalhadores e foi essa mesma esquerda a principal responsável pelas negociações políticas junto ao governo que levaram ao fim daquele processo revolucionário.

Os fatos que marcam o Maio de 1968 como um dos mais radicais experimentos revolucionários do século XX estão diretamente relacionados à crise da Universidade francesa, nesse sentido, a separação dos atores sociais envolvidos (estudantes e trabalhadores) aparece aqui como meramente formal, isto porque, a crise da Universidade em França afirmava diretamente a condição proletarizante a que estavam envolvidos os estudantes. Tom NAIRN (1998) diz que de fins da década de 1950 aos fatos da comuna estudantil de 1968 o número de estudantes universitários franceses saltara de 170 mil para mais de seiscentos mil, crescimento esse que não teve o mesmo acompanhamento na construção de novos prédios e outras instalações que pudessem acomodar esse crescimento numérico de estudantes. Só em Paris, essa massa estudantil chegava a 182 mil pessoas. Nairn conclui que como corolário desse crescimento esses estudantes praticamente ficavam impedidos de ter acesso a condições de estudo e manutenção adequada de sua sobrevivência. Diante de uma sociedade altamente burocrática, a tendência que o modelo capitalista francês sugeria era a da “industrialização da universidade”, termo expresso pelas reformas educacionais encaminhadas pelo regime gaullista no período. A proletarização da universidade empurrava o movimento estudantil às interfaces do mundo do trabalho, mas para organizá-lo na posição de novos quadros da tecnocracia. O movimento estudantil organizou-se contra essa condição de dirigentes subalternizados desse capitalismo tecnocrático ou “neocapitalismo esclarecido” (QUATTROCCHI & NAIRN, 1998: 202). Dessa realidade institucional em que se encontravam os estudantes, conforme Maurice BRINTON (2008), afirmaram-se desde inícios do ano de 1968 duas propostas originadas da universidade francesa aos órgãos governamentais. A primeira, era a dos professores e de uma parte do movimento estudantil, para esses, a universidade estava desadaptada às condições estruturais do modelo capitalista tecnocrático e exigiam assim reformas na educação, aumentos no orçamento para a educação e que os universitários pudessem formar-se com emprego assegurado. A segunda proposição que vinha dos estudantes “rebeldes”, não era exatamente uma proposta, mas a manifestação da recusa, estes rejeitavam integralmente a própria sociedade moderna, a constatação da alienação era a condição da própria revolta contra a falta de

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significado da vida no capitalismo burocrático. Evidentemente que é na insatisfação generalizada dos estudantes que encontramos o sentido concreto das jornadas estudantis. Cabe ressalvar, contudo, que essa insatisfação com a própria condição de estudante afirmando-se como quadro gestor do capitalismo já tinha profundas raízes no movimento estudantil através da atuação do grupo situacionista que tinha em Guy Debord e Raoul Vaneigem suas expressões teóricas mais destacadas. Dos estudantes que foram presos e punidos com sanções disciplinares na Universidade de Nanterre pertencentes ao grupo dos Enragés, sete deles tinham vínculos com o movimento situacionista. Segundo Dumontier, os Enragés organizados como grupo em Nanterre, em janeiro de 1968 estiveram envolvidos com a ocupação da sede administrativa da universidade no mês de março e por causa disso um de seus membros Gerard Bigorgne foi expulso de todas as universidades francesas por um período de cinco anos. No mês de maio foram ativos na ocupação da Sorbonne, destacando-se a ação do situacionista René Riesel (DUMONTIER, 1995: 117-133).

Os situacionistas organizavam-se desde 1958 em torno da revista Internationale Situationniste coordenada por Guy Debord. A revista não tinha uma periodicidade regular pelas dificuldades financeiras do grupo. O artista plástico dinamarquês Asger Jorn, que como Debord participara de alguns grupos de vanguarda estética no início da década de 1950 (como o Movimento para uma Bauhaus Imaginista e a Internacional Letrista) é que com algumas de suas intervenções artísticas conseguiu garantir a editoração dos primeiros números da revista (Jorn afastou-se do grupo e da revista em 1961). Os doze números da revista constituem-se hoje como um dos maiores documentos da cultura política dissidente da década de 1960, com os situacionistas encontramos uma das mais expressivas manifestações políticas do marxismo conselhista do século XX. A proposição política situacionista era radicalmente autonomista e esse programa estabeleceu-se definitivamente na história do marxismo contemporâneo com a obra de Guy Debord, Raoul Vaneigem, Asger Jorn, René Riesel entre outros (BOURSEILLER, 1999; JAPPE, 1999; DUMONTIER, 1995; GOMBIM, 1972; HOME, 1999).

Seis meses antes dos acontecimentos das barricadas estudantis que desencadeariam os conflitos do Maio de 1968, Debord definia o “proletariado atual” (para a década de 1960), como a imensa maioria dos trabalhadores que perderam todo o poder sobre o uso de sua própria vida e que assim que tomavam conhecimento disso, se redefiniam como proletariado, o negativo em

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ação nessa sociedade. Proletariado que se definia pela “extensão da lógica do trabalho fabril” que estaria aplicada à grande parte dos “serviços” e das profissões intelectuais” (DEBORD, 1997: 81). E como proposição política de práticas superadoras de tais realidades, Debord defenderá no seu livro aquela que seria a marca institucional e a agenda política do Maio de 1968: o autonomismo dos conselhos operários. Se a agenda do movimento social insurrecto no Maio de 1968 tinha variáveis de auto-organização resolvidas diretamente nos fatos nascidos no dia a dia das barricadas, era inquestionável a presença teórica ou pelo menos a influência política dos situacionistas no cotidiano dessas lutas.

É importante frisar que não foi a crise econômica que levou os estudantes à revolta, o fato é que não havia uma cisão econômica brutal na sociedade, o que levou os estudantes às ruas foi a recusa generalizada da sociedade capitalista tecnocrática e ao fazê-lo recusavam também os chefes que a organizavam administrativamente nos seus fundamentos institucionais, a burguesia, os gestores do capital, os gestores sindicais e os dos partidos políticos ditos de esquerda. Nos dias seguintes às primeiras lutas estudantis, como um incêndio social, os trabalhadores das maiores firmas industriais e comerciais do país paralisaram seus trabalhos em favor da greve geral convocada para o dia 13 de maio em solidariedade aos estudantes. Mais de um milhão de pessoas foram às ruas naquela data. As principais centrais sindicais tentaram organizar o fim da greve geral no fim do dia, mas nada conseguiram e a greve seguiu nos dias seguintes não só em Paris, mas também em outras cidades. Na tarde do dia 14 de maio os trabalhadores começavam a ocupar as principais fábricas do país (a primeira fábrica a ser ocupada foi a Sud Aviation, em Nantes).

Com as ocupações das fábricas, os estudantes, que já ocupavam a Sorbonne, decidem apoiar as greves operárias. Nesse processo de solidariedades ampliadas, estudantes e trabalhadores uniram-se num só bloco, num só movimento social como nunca se vira na França. Com essas práticas políticas, repito, as lideranças políticas dos sindicatos e dos partidos políticos, principalmente as do PCF, foram imediatamente derrotadas. Enfim, como descrito, o maior significado histórico do Maio de 1968 foi a espontaneidade da auto-organização social, termo esse que apresentava ao mundo uma nova prática política: a autogestão social generalizada.

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A autogestão da vida cotidiana contra uma vida alienada organizada apenas para a sobrevivência: essa foi a proposição central da intervenção política de Raoul Vaneigem com a sua obra na década de 1960 e termo que ainda reitera em textos mais recentes, datados da década de 1990.

Raoul Vaneigem pensou a revolução social como um poeta da radicalidade anticapitalista, seus textos estão entre os mais bonitos já escritos no século XX. Um ensaísmo libertário densamente conceitual, mas em descrição poética sem paralelo na crítica marxista contemporânea. O livro A arte de viver para as novas gerações é uma obra-prima do ensaísmo marxista no século XX, impossível resumir-lhe as teses nesta oportunidade. Limito-me a uma sucinta descrição e recorte de alguns argumentos apresentados nesse livro conjuntamente com o que apresentou nas trinta teses que compõem o documento teórico Banalidades básicas. Com esse texto, Vaneigem junto a Guy Debord pautou a guinada política da revista Internationale Situationniste de um ativismo cultural experimental (BOURSEILLER, 1999: 233 e DUMONTIER, 1995: 35) à agenda do comunismo autogestionário na tradição dos comunistas conselhistas. De 1962 em diante, com a formulação conceitual do “compromisso situacionista” (na expressão de Vaneigem), a revista passa a desenvolver sistematicamente “uma crítica da vida cotidiana adaptada às novas condições de exploração” (BOURSEILLER, 1999: 247). Importa ressalvar que o diálogo situacionista da crítica da vida cotidiana na alienação capitalista já vinha sendo gestado através do diálogo de Guy Debord com Cornelius Castoriadis (de 1957 a 1960), e com Henri Lefebvre (1958-1961) que foi quem apresentou Vaneigem a Debord em 1961 (CORRÊA & MHEREB, 2018: 28). Vaneigem mantêm-se vinculado à revista até o último número publicado em 1969 e ao grupo situacionista até 1970.

No ensaio Banalidades básicas, Vaneigem diagnosticou o mal-estar da sociedade capitalista do “bem-estar social” definindo-a como o mundo da vida cotidiana da sobrevivência organizada no consumo alienado de mercadorias conquistadas pela escravidão do trabalho libertador (VANEIGEM, 2002b: 75). Um cotidiano de sobrevivência consagrado ao não-viver ou a viver em meio a um “luxo de pobreza”, como afirma. A sociedade capitalista padronizou o espetáculo da sobrevivência no isolamento, a apropriação privada das coisas como fundamento da alienação social. No capitalismo “ser proprietário é se arrogar de um bem do qual se exclui os outros do gozo” (VANEIGEM, 2002b: 81), o reconhecimento social de um

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“direito abstrato de posse” determinado pelas classes dominantes aos não-possuidores. Alienados pela exploração do trabalho os não-possuidores subordinaram-se historicamente (pelas formas burocráticas do capitalismo) a trabalhar pela sobrevivência na abundância das mercadorias passando a participar da “posse” das mercadorias no ralo acesso à fruição do luxo de pobreza tornando a alienação uma condição da própria sobrevivência. O acesso aos produtos na sobrevivência média garantida pela burocracia do moderno capitalismo de bem-estar social (para o contexto francês das décadas de 1950 e 1960) garantia a reprodução da alienação na vida cotidiana porque a posse do luxo de pobreza é sempre a garantia da fruição isolada da mercadoria. Garantir o acesso ao consumo das mercadorias era manter a organização social do isolamento e o isolamento era a manutenção da sobrevivência. Sobreviver é não viver. Resgatando a tradição do radicalismo herético de Sade e Lautréamont, do dadaísmo e surrealismo, Vaneigem defende a ação histórica daqueles que se recusaram a obedecer às regras do jogo, como os piratas, os gangsteres e outros fora da lei (VANEIGEM, 2002b: 93) que mesmo quando eliminados pelo poder dos senhores recusavam-se a se vender para sobreviver. Aqueles que se vendem para sobreviver perdem o direito de viver. Sem qualquer projeto institucional de transformações celebradas pelo espetáculo da política, Vaneigem afirma nesses termos a revolução como possibilidade concreta nas particularidades do cotidiano. “A vida cotidiana é o campo de batalha onde se dá o combate entre a totalidade e o poder, que utiliza toda a energia para controla-la” (VANEIGEM, 2002b: 100). A totalidade é o particular dos indivíduos sob negação da espetacularização mercantil alienada, a totalidade é a negação da sobrevivência colonizada pelas mercadorias na vida cotidiana. Nesse sentido, como marca política situacionista, Vaneigem em acordo com Debord afirma a única revolução possível: a reivindicação integral de tudo através da tática do détournement, a tática do desvio, isto é, fazer uso das coisas existentes sob outros significados. A revolução cotidiana do valor de uso contra a abstração do espetáculo como lugar onde o trabalho forçado pela sobrevivência estava transformado em sacrifício consentido dos não-possuidores à lógica alienada do capital.

A realidade vivida é fragmentada e etiquetada espetacularmente em categorias, como biológicas, sociológicas ou outras, as quais embora relacionadas ao comunicável, não comunicam jamais qualquer coisa além dos fatos esvaziados de seu conteúdo autenticamente vivido. É nesse sentido que o poder hierárquico, que aprisiona todos no mecanismo objetivo da apropriação privada, é também uma ditadura sobre a

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subjetividade. Ele é uma ditadura sobre a subjetividade que força, com limitadas chances de sucesso, cada subjetividade individual a se objetivar, isto é, a tornar-se um objeto que ele possa manipular. (VANEIGEM, 2002b: 112).

Como consequência dessa situação, afirma Vaneigem que a liberdade do “sobrevivente” se limitaria a assumir o personagem abstrato que ele “escolheu” se reduzir (VANEIGEM, 2002b: 112). Mas se a transformação desalienadora do espetáculo da sobrevivência estaria na ação-reação do indivíduo, então a práxis desse indivíduo, mesmo alienada seria a única possibilidade de transformação do cotidiano da sobrevivência. Se é a ação do indivíduo na práxis mesmo alienada que o coloca em contato com a totalidade, ao revela-la como fragmentada, o coloca em situação de entender sua realidade como uma totalidade fragmentada, uma realidade privada de centro, uma realidade insuportável porque organizada no fazer as coisas no vazio das coisas. Essa era a banalidade básica da abstração do espetáculo na vida cotidiana, mas também o espaço-tempo da revolução que o homem unitário deveria enfrentar contra a sociedade do espetáculo. E a única tática possível para o homem unitário se construir ontologicamente estava na prática do desvio (détournemant), na prática subversiva da construção de situações que se comuniquem, que se irradiem contra as hierarquias institucionais do poder político do espetáculo (difuso ou concentrado), o poder das classes capitalistas nas sociedades planificadas ou não que insistem na manutenção do “sentimento de humilhação” (VANEIGEM, 2002a : 27). Nesse sentido, todos os que perderam qualquer poder sobre o uso de sua vida afirmam-se como “proletariado” (DEBORD, 1997: 81), logo, quando esses tomam conhecimento de sua condição as condições para as situações revolucionárias estão apresentadas.

E qual seria, portanto, a “arte de viver para as novas gerações”? Vaneigem, no seu belíssimo livro de 1967 respondia premonitoriamente: “Três mil anos de escuridão não resistirão a dez dias de violência revolucionária. A reconstrução social irá ao mesmo tempo reconstruir o inconsciente de todos” (VANEIGEM, 2002a: 284). E completa: “Não queremos ser justiceiros, mas senhores sem escravos, reencontrando, para a além da destruição da escravidão, uma nova inocência, uma nova graça de viver” (VANEIGEM, 2002a: 284). E a “nova inocência” exigia a “destruição de uma ordem de coisas que apenas tem entravado a arte de viver e hoje ameaça aquilo que resta de vida autêntica” (VANEIGEM, 2002a: 284).

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A agenda política da Internacional Situacionista de “reunir a poesia esparsa” da revolução exigia o engajamento no único ato político possível e coerente: radicalizar os grupos autônomos revolucionários, radicalizá-los, federá-los, mas “sem nunca assumir a direção deles” e com isso constituir “microssociedades coligadas, verdadeiros focos de guerrilha em luta pela autogestão generalizada” (VANEIGEM, 2002a: 288-289). A “utopia” da “nova inocência” de Vaneigem era fundamentalmente um realismo anti-utópico. Se ser situacionista era ser um indivíduo que construía situações através da prática dos desvios subversivos das realidades existentes, Vaneigem e os demais situacionistas impunham como prática política possível a exigência da revolução permanente na vida cotidiana já que a vida cotidiana no moderno capitalismo se apresentava banalmente no pesadelo das mercadorias espetacularizadas. E por essa condição estrutural, a do espetáculo das mercadorias, a realidade cotidiana no moderno capitalismo já ultrapassava a necessidade da utopia por se apresentar ao homem da sobrevivência como uma imensa riqueza de possibilidades na arte política do détournement. Os situacionistas exigiam, portanto, a subversão permanente da vida cotidiana no capitalismo, a nova “inocência” nasceria dessas práticas.

No radicalismo estético dos malditos, nas experiências práticas da derrota política dos malditos e no radicalismo social-transformador já anunciado nas derrotas conselhistas, Raoul Vaneigem, Guy Debord e os demais situacionistas não lutavam para serem chefes do quartel-general da revolução anticapitalista nos acontecimentos do Maio de 68, mas demonstravam com a sua ação o quão real, concreta e possível era a afirmação do cotidiano da vida plenamente vivida. E a vida para ser plenamente vivida, não poderia continuar a ser uma afirmação societal capitalista. Nesse sentido, os situacionistas que se organizaram como teórico-práticos da concretude da imaginação anticapitalista mantêm-se permanentemente atuais. E como é obrigação fundamental do historiador tentar com o seu trabalho de investigação explicar as possibilidades do real derrotado, a realidade do não acontecido, então a investigação sobre o sentido das práticas institucionais da derrota política da imaginação libertária é trabalho de fundamental urgência para a compreensão do nosso mundo de sobrevivências humilhadas.

Referências:

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CORRÊA, Erick & MHEREB, Maria Teresa (Orgs.). 68: como incendiar um país. São Paulo: Veneta, 2018.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DUMONTIER, Pascal. Les Situationnistes et Mai 68: theorie et pratique de la revolution (1966-1972). Paris: Éditions Ivrea, 1995.

DUPUIS, Jules-François (Pseudônimo de Raoul Vaneigem). História desenvolta do surrealismo. Lisboa: Antígona, 2000.

GOMBIN, Richard. As Origens do Esquerdismo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1972. HOME, Stewart. Assalto à cultura. Utopia, subversão, guerrilha na (anti) arte do século XX. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 1999.

INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.

JAPPE, Anselm. Guy Debord. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1991. JORN, Asger. A roda da fortuna. Lisboa: Canal Gráfico, 1989.

LEFEBVRE, Henri et alli. A Irrupção – a revolta dos jovens na sociedade industrial: causas e efeitos. São Paulo: Editora Documentos, 1968.

MALLET, Serge. Le gaullisme et la gauche. Paris: Éditions du Seuil, 1965.

MINISTÉRIO DA CULTURA. Asger Jorn. Um desafio à luz (Catálogo de exposição das obras de Asger Jorn no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo e Museu Nacional, Brasília, em 2013). Brasília, 2013.

QUATTROCCHI, Ângelo & NAIRN, Tom. O Começo do Fim: França, Maio de 68. Rio de Janeiro: Record, 1998.

SOLIDARITY (BRINTON, Maurice). Paris: Maio 68. São Paulo: Conrad Editora do Brasil. Disponível em: www.baderna.org

VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002a.

VANEIGEM, Raoul. Banalidades básicas (1962-1963). In: INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002b, p. 75-117.

VANEIGEM, Raoul. A economia parasitária. Lisboa: Antígona, 1999. VANEIGEM, Raoul. As heresias. Lisboa: Antígona, 1995.

VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para a geração nova. Porto: Afrontamento, 1980.

VANEIGEM, Raoul. Isidore Ducasse e o Conde Lautréamont nas poesias. Lisboa: Antígona, 1980.

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