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A QUESTÃO AGRÁRIA NO GOVERNO BOLSONARO: PÓS-FASCISMO E RESISTÊNCIA

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Academic year: 2021

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Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, Dossiê Temático “Conjuntura no Brasil: retrocessos sociais e ações de resistência”, n. 42, v. 4, p. 333-362, dez, 2020.

ISSN: 2176-5774

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A QUESTÃO AGRÁRIA NO GOVERNO BOLSONARO: PÓS-FASCISMO E RESISTÊNCIA

Bernardo Mançano Fernandes

Pesquisador do Núcleo de Estudos, Projetos e Pesquisas de Reforma Agrária (NERA) da Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus Presidente Prudente

E-mail: mancano.fernandes@unesp.br João Cleps Junior

Pesquisador do Laboratório de Geografia Agrária (LAGEA) da Universidade Federal de Uberlândia – UFU

E-mail: jcleps@ufu.br José Sobreiro Filho

Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Agrárias sobre Desenvolvimento, Espaço e Conflitualidades (NEADEC) da Universidade Federal do Pará – UFPA

E-mail: sobreiro@ufpa.br Acácio Zuniga Leite

Pesquisador do Núcleo de Estudos Agrários (NEAGRI) da Universidade de Brasília - UnB E-mail: acacio_briozo@yahoo.com.br

Ronaldo Barros Sodré

Pesquisador do Grupo de Estudos em Dinâmicas Territoriais (GEDITE) da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA

E-mail: ronaldo-sodr@hotmail.com Lorena Izá Pereira

Pesquisadora do Núcleo de Estudos, Projetos e Pesquisas de Reforma Agrária (NERA) da Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus Presidente Prudente

E-mail: iza.pereira@unesp.br Resumo

O objetivo principal deste artigo é debatermos sobre o avanço do capital no campo e acerca da descontinuidade da reforma agrária no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (Sem Partido), inserindo na discussão a análise das ocupações de terra, manifestações, assentamentos de reforma agrária, estrangeirização da terra e de Projetos de Leis e Decretos que permitem a expansão do agronegócio no Brasil. Para atingir este objetivo e pautar a nossa discussão utilizamos dados do Banco de Dados da Luta pela Terra (DATALUTA) e do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CEDOC/CPT). Concluímos que o primeiro ano do governo Bolsonaro foi caracterizado pela promoção de uma política ultra neoliberal com alguns elementos próximos do pós-fascismo, onde o latifúndio tem a total liberdade para praticar a violência.

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ISSN: 2176-5774

334 THE AGRARIAN QUESTION IN THE BOLSONARO GOVERNMENT:

POST-FASCISM AND RESISTANCE Abstract

The main objective of this article is to debate about the advance of capital in the countryside and about the discontinuity of agrarian reform in the first year of the government of Jair Bolsonaro (Without Party), inserting in the discussion the analysis of land occupations, demonstrations, land reform settlements, land foreignization and draft laws and decrees that allow the expansion of agribusiness in Brazil. To achieve this objective and guide our discussion, we used data from the Land Struggle Database (DATALUTA) and Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, of the Comissão Pastoral da Terra (CEDOC / CPT). We conclude that the first year of the Bolsonaro government was characterized by the promotion of an ultra neoliberal policy with some elements close to post-fascism, where the latifundio has total freedom to practice violence.

Keywords: Agrarian question; Post-fascism; Agribusiness; Peasantry.

LA CUESTIÓN AGRARIA EN EL GOBIERNO BOLSONAR: POST-FASCISMO Y RESISTENCIA

Resumen

El objetivo principal de este artículo es la discusión sobre el avance del capital en el campo y sobre la discontinuidad de la reforma agraria en el primer año del gobierno de Jair Bolsonaro (Sin Partido), insertando en la discusión el análisis de ocupaciones de tierras, manifestaciones, asentamientos de reformas agrarias. , exteriorización de tierras y proyectos de leyes y decretos que permiten la expansión de los agronegocios en Brasil. Para lograr este objetivo y guiar nuestra discusión, utilizamos datos del Banco de Datos de Lucha por la Tierra (DATALUTA) y el Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, de la comissão Pastoral da Terra (CEDOC/CPT). Concluimos que el primer año del gobierno de Bolsonaro se caracterizó por la promoción de una política ultra neoliberal con algunos elementos cercanos al post-fascismo, donde el latifundio tiene total libertad para practicar la violencia.

Palabras-clave: Cuestión agraria; Post-fascismo; Agronegocios; Campesinado.

Introdução

O REAL RESISTE Arnaldo Antunes Este artigo é continuação das reflexões iniciadas no artigo do Boletim DATALUTA (n. 145, janeiro de 2020). É de nossa práxis teórico-metodológica, atualizar os estudos sobre a questão agrária brasileira, desde os governos neoliberais, pós-neoliberais e o início da ascensão da extrema direita ao poder. Discutimos as mudanças na questão agrária na primeira fase neoliberal, que inicia em meados da década de 1980 com a redemocratização do Brasil até a segunda gestão do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). A eleição de Luiz

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335 Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores) inaugurou uma nova fase definida como pós-neoliberal ou neodesenvolvimentista, que continuou até o golpe político no dia 31 de agosto de 2016, na segunda gestão do governo Dilma Rousseff. O golpe iniciou a segunda fase neoliberal com o governo de Michel Temer e, nas eleições de 2018, havia a perspectiva de retomada dos governos pós-neoliberais ou a continuidade dos governos neoliberais.

A vitória de Jair Bolsonaro mudou o rumo das disputas neoliberais e pós-neoliberais e inaugurou uma nova fase. Tomando como referência, o livro “As novas faces do Fascismo: populismo e a extrema direita” do historiador Enzo Traverso (2019), analisamos algumas políticas e ações do governo Bolsonaro que podem ser caracterizadas com o que Traverso (2019) definiu como pós-fascismo.

Refletimos sobre as ocupações de terra, assentamentos e a descontinuidade da reforma agrária, as medidas políticas de 2019, a estrangeirização da terra e a forma violenta de avanço sobre a Amazônia, como novas características de um governo de extrema direita que divergem dos governos neoliberais e pós-neoliberais das últimas quatro décadas. Concluímos com as manifestações no campo como uma das formas de resistência entre tantas outras que os movimentos socioterritoriais criaram como, por exemplo, a doação de alimentos durante a pandemia da COVID-19.

Para atingir os objetivos estabelecidos, utilizamos como procedimentos metodológicos a revisão da literatura referente a temática e usufruímos dos dados do Banco de Dados da Luta pela Terra (DATALUTA) e do Centro de Documentação dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CEDOC/CPT) para evidenciar a materialização da questão agrária no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.

Questão agrária em movimento

Pesquisadores da Rede DATALUTA1 e convidados têm publicado mensalmente os

resultados de suas pesquisas, seus ensaios teóricos e metodológicos sobre a questão agrária brasileira no Boletim DATALUTA2. Esses trabalhos são fundamentais para compreender os

movimentos da questão agrária e conhecer a lógica de funcionamento de sua estrutura por

1 Maiores informações disponíveis em:

https://www.fct.unesp.br/#!/pesquisa/dataluta/rede-dataluta/. Acesso em: 20 mai. 2020.

2 Maiores informações disponíveis em: http://www2.fct.unesp.br/nera/boletim.php. Acesso em: 20

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336 meio das territorialidades de subordinação, resistência e emancipação do campesinato e as territorialidades de dominação do capitalismo expressas pela territorialização do latifúndio e do agronegócio.

Evidentemente que essas territorialidades têm suportes ou negligências das políticas governamentais para o campo. As alterações das ações dos governos no apoio ou negação das territorialidades constroem as diversas conjunturas agrárias. Nosso método de análise permanente, alimentado por um banco de dados3, nos possibilita observar os movimentos

conjunturais da questão agrária no acompanhamento das mudanças políticas.

Mantemos distância das leituras deterministas da questão agrária que preveem os fins a partir de referencial teórico determinado e ignoram as disputas territoriais e paradigmáticas que acontecem cotidianamente.

Analisamos as mudanças na conjuntura agrária desde o golpe de 1964, pela ditadura militar, aos governos José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (FERNANDES, 2000). Nesse período, as disputas territoriais cresceram com a potente participação do agronegócio e a resistência contínua do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tornando os latifundiários cada vez mais coadjuvantes. Registramos esse processo em um dos primeiros artigos sobre as disputas territoriais entre o agronegócio e o campesinato (FERNANDES, 2004).

Em todos os governos, o campesinato tem sido visto como um anexo da agricultura capitalista. Desde a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), em 1996, os governos fomentam esta condição de dependência, da produção subordinada ao agronegócio. Em 1998, com criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), e de 2003 a 2016, a criação de diversos programas, como por exemplo: do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), das ações de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), dos Programas Terra Sol e Terra Forte para promover a agroindustrialização e a comercialização, abriu possibilidades para fortalecer o processo de emancipação do campesinato.

Esse processo começou em um caminho de mão dupla, das proposições dos movimentos camponeses para a construção de políticas públicas pelos governos Fernando

3 Maiores informações disponíveis em:

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337 Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, com as ações realizadas, nas últimas duas décadas, quando o campesinato despontou como um dos principais protagonistas dos modelos agroecológicos na construção da reforma agrária popular (MARTINS, 2019) e do Plano Camponês (GÖRGEN, 2017; MPA, 2019).

Desde a redemocratização, a reforma agrária está entre as principais disputas territoriais e paradigmáticas. Essas disputas são representadas pela correlação de forças no controle das terras e das políticas de desenvolvimento (FERNANDES, 2013a; 2013b). Os assentamentos de reforma agrária são unidades territoriais disputadas para a produção de commodities, nas territorialidades subalternas e nas territorialidades emancipatórias para a produção agroecológica. Nas últimas duas décadas, foram construídas políticas de sustentabilidade da agricultura camponesa que começaram a ser extintas com o golpe de 2016.

Na continuidade de nossa leitura, em janeiro de 2017, publicamos o artigo de conjuntura agrária sobre a questão agrária na segunda fase neoliberal no Brasil (FERNANDES et al, 2017), onde analisamos as mudanças na questão agrária com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e as mudanças políticas do governo Michel Temer4.

Acompanhando essas mudanças, em fevereiro de 2018, publicamos o artigo “O golpe na questão agrária brasileira: aspectos do avanço da segunda fase neoliberal no campo” (SOBREIRO FILHO et al, 2018).

A questão agrária no governo Bolsonaro ou questão agrária no pós-fascismo brasileiro?

Nesta parte, analisamos a conjuntura agrária do primeiro ano do governo Jair Bolsonaro. A eleição de Bolsonaro está associada ao crescimento da extrema direita em diversos países do mundo e tem desafiado cientistas da área de humanidades em interpretar as ações desses governos. O governo Bolsonaro tem se caracterizado de ultradireita, defendendo o uso de armas contra o campesinato, indígenas e quilombolas que lutam pela terra e territórios. A extrema direita tem propagado o ódio contra a esquerda, principalmente

4 Ver também o número especial da Revista OKARA sobre a questão agrária no governo Temer.

Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/okara/issue/view/2129. Acesso em: 28 abr. 2020.

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338 com difusão do antipetismo, com notícias falsas, xenofobia, homofobia, aporofobia e aversão às relações sociais não capitalistas.

As leituras sobre o governo Bolsonaro são controversas. Azevedo e Pochmann (2019), destacam a subserviência, a incerteza, o desmanche do Estado e risco à democracia. Ribeiro (2019) usa o termo fascismo para o governo Bolsonaro, enfatizando a violência banal cotidiana, a destruição das instituições e a invasão totalitária da vida privada como características do fascismo, citando máximas de Mussolini: “Nada acima, fora ou contra o Estado” que pode-se relacionar com as máximas do governo Bolsonaro: “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”.

Boron (2019) considera um erro grave caracterizar o governo Bolsonaro como fascista e oferece, pelo menos, quatro argumentos, que caracterizaram o fascismo do século XX: 1 – participação de bloco dominante da burguesia nacional; 2 – os regimes fascistas foram radicalmente estadistas; 3 – foram regimes de mobilização de massas, especialmente da classe média; 4 – foram nacionalistas.

Enquanto o filósofo Renato Janine Ribeiro associa características do fascismo do século XX com atos do governo Bolsonaro, o cientista político Atílio Boron apresenta características do fascismo do século XX que podem ser associadas com particularidades do governo Bolsonaro, como por exemplo: a participação predominante da burguesia nacional e de grande parte da classe média na eleição da ultradireita. O nacionalismo do governo Bolsonaro pode ser colocado em questão por sua postura entreguista, adotando políticas de exploração dos recursos naturais por corporações estrangeiras. Mas não é difícil entender a diferença das posturas estadistas dos regimes fascistas do século XX com postura de estado mínimo do atual governo.

O historiador italiano Enzo Traverso (2019) tem estudado as diferenças e semelhanças das ações da extrema direita do século XXI com o fascismo do século XX. Na década de 1930, aconteceu um crescimento da ultradireita que levou à formação do fascismo e que possui algumas semelhanças com o momento atual. Este espectro volta ao debate presente usando novas roupagens. Mesmo que tenha abandonado velhos hábitos fascistas, ainda não se tornou uma coisa completamente diferente, e não é um componente normal de nossos sistemas políticos e é impossível prever sua evolução.

No século XX, o fascismo utilizou de políticas com forte intervenção do Estado (TRAVERSO, 2019, p. 24 e 25). E no século XXI está associado ao neoliberalismo com o

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339 fortalecimento do capital financeiro, defesa da competitividade, empreendedorismo, individualismo, destruição dos direitos humanos, precariedade, desterritorialização de comunidades tradicionais, estrangeirização da terra, etc.

Traverso (2019, p. 6-7) conceitua este fantasma como pós-fascismo.

“O conceito de pós-fascismo não tem o mesmo status do conceito de fascismo. O debate historiográfico sobre o fascismo ainda continua aberto, mas é definido como um fenômeno cujas fronteiras cronológicas e políticas são suficientemente claras. {...} Pós-fascismo pertence a historicidade de um regime particular que começou no século XXI.”

Traverso (2019) considera o pós-fascismo como um fenômeno global que não possui características monolíticas ou homogêneas. Acontece de forma diferente em cada país, mas sempre associado ao neoliberalismo. Também é uma expressão do fracasso das políticas de esquerda e centro esquerda. Apoiado pela banda predadora da burguesia neoliberal, ainda não conseguiu conquistar a totalidade das elites neoliberais. Por outro lado, as elites neoliberais se juntaram contra as políticas pós-neoliberais ou neodesenvolvimentistas.

Diferente do fascismo, o pós-fascismo não possui uma utopia e não tem um projeto original de futuro, sua lógica é pessimista em defesa de valores tradicionais, da ditadura, tortura etc. Por isso, agarra-se no neoliberalismo, onde encontra apoio para suas políticas de exclusão dos direitos e concentração de riquezas (TRAVERSO, 2019 p. 101 e 103).

As características dos estudos de Traverso (2019) sobre o pós-fascismo assemelham-se às peculiaridades do governo Bolsonaro neste primeiro ano a um projeto neoliberal de precarização dos direitos dos trabalhadores e transferência de riqueza para a elite que o apoia, como por exemplo o caso anunciado pela Carta Capital (2019): “O valor devido de aproximadamente 17 bilhões de reais é maior do que a economia prevista pelo governo com as mudanças nas aposentadorias dos servidores públicos da União (13,8 bilhões de reais) com a reforma da Previdência”.

Desde o início, o governo está demarcando uma postura de destruição de políticas de educação, pesquisa, saúde e, no campo, extinguindo, descontinuando ou reduzindo políticas criadas nos governos Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, como o PRONERA, PAA, PNAE, Planapo, Ater, dos Programas Terra Sol e Terra Forte etc.

A política de reforma agrária foi uma das mais atingidas, como demonstramos na parte seguinte. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) tem tratado

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340 apenas da titulação dos assentamentos de reforma agrária. O governo criou a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários e a entregou a Luiz Antônio Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) uma das organizações defensoras dos privilégios dos latifundiários. Em uma declaração insultante, Nabhan declarou que os povos indígenas são os maiores latifundiários do Brasil (ROSA & MONTEIRO, 2019).

Sem uma política de reforma agrária e com os territórios ameaçados, os camponeses procuram uma resistência ativa para superar este momento de exclusão de políticas públicas de desenvolvimento. A luta pela terra está sob ameaça com o governo Bolsonaro querendo caracterizar a ocupação de terra como ato terrorista (CORREIO DO POVO, 2019).

A governo Bolsonaro, a criminalização da luta pela terra e a paralisação da reforma agrária

Ocupações de terra

As ocupações de terra são a principal ação para pressionar os governos na criação de assentamentos de reforma agrária. No ano de 2019, foram realizadas 43 ocupações (mapa 1 e gráfico 1), o menor número desde 1990 durante o governo Collor que também se utilizou da criminalização das ocupações como forma de impedir a luta pela terra. O governo Bolsonaro tem defendido o armamento da população e, principalmente, dos latifundiários. A violência contra a luta pela terra no Brasil tem ceifado dezenas de vidas todos os anos. O primeiro ano de governo que declaradamente defende a violência contra as ocupações teve um forte impacto na luta pela terra.

As ocupações de terra acontecem em todas as regiões do Brasil e em 2019 não foi diferente, mantendo-se o maior número de ocupações na Amazônia e Nordeste. Estima-se que cerca de 130 mil famílias sem-terra ainda lutam para ser assentadas em todo o país, contudo, as ações de despejos por meio do uso da força policial multiplicaram no ano de 2019, envolvendo praticamente ações de reintegração de posses em diversos estados como no Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Maranhão, Bahia, Alagoas, Pará, Mato Grosso do Sul entre outros. As ações de reintegração de posses também ocorrem com famílias acampadas em áreas ocupadas há décadas cujas pessoas encontram-se produzindo.

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341 Mapa 1. Brasil – Geografia das ocupações de terra – 2019 – número de ocupações.

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342 Fonte: DATALUTA, 2019.

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343 Gráfico 1. Brasil – número de ocupações/retomadas por unidade da federação – 2019.

Fonte: CEDOC Dom Tomás Balduíno (CPT), 2019. Assentamentos rurais

No ano de 2019 a reforma agrária sofreu a maior retração da história, desde 1985, quando foram criados apenas 3 assentamentos. Em 2019 nenhum assentamento foi criado e nenhuma propriedade foi decretada para fins de Reforma Agrária. O governo Bolsonaro reconheceu apenas dois territórios quilombolas, que já tinham suas áreas delimitadas em anos anteriores como áreas do Programa Nacional de Reforma Agrária: a comunidade quilombola Povoado Forte, nos municípios de Nossa Senhora das Dores e Cumbe, estado de Sergipe (delimitado em 2017) e o Quilombo Invernada Paiol de Telha-Fundão, no município de Guarapuava, estado do Paraná (delimitado em 2014). Dois territórios conquistados depois de décadas de lutas das comunidades, sendo que o Quilombo Invernada conquistou o território após determinação judicial:

“Cinquenta anos de luta e mais de um século de resistência estão presentes na voz embargada de quem hoje comemora a vitória conquistada pelas famílias do Quilombo Invernada Paiol de Telha-Fundão {...} O título expedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), após determinação judicial, transfere para a Associação Quilombola Pró-Reintegração Invernada Paiol de Telha-Fundão o título de reconhecimento de domínio coletivo de duas áreas que somam 225 hectares de terra - uma pequena parte dos 2.959 hectares que a comunidade tem direito” (TERRA DE DIREITOS, 2019) grifo nosso.

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 AC AL AP AM BA CE DF ES GO MA MT MS MG PA PB PR PE PI RJ RN RS RO RR SC SP SE TO BRASIL - OCUPAÇÕES/RETOMADAS - 2019

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344 O gráfico 2, do Relatório DATALUTA BRASIL, demonstra que 2019 foi o pior ano para a reforma agrária. Evidente que esta leitura é desde a compreensão da importância da reforma agrária para o desenvolvimento do país. Todavia, para o perspectiva pós-fascista, este pode ser considerado um resultado regular, porque mesmo estes dois territórios quilombolas não fizeram parte de uma política do governo Bolsonaro. Observe que os primeiros governos neoliberais Sarney, Collor e Itamar foram medíocres em resultados de criação de assentamentos. Fernando Henrique Cardoso se sobressai sob a pressão dos movimentos camponeses, especialmente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Tendência que continua nos governos pós-neoliberais de Luiz Inácio Lula da Silva, mas o governo Dilma Rousseff retomou a mediocridade anterior. A reforma agrária afunda na segunda fase neoliberal com o governo de Michel Temer e praticamente desaparece a partir de 2019 (GIRARDI & SOBREIRO FILHO, 2019).

Gráfico 2. Brasil – número de assentamentos rurais criados e reconhecidos – 1985-2019.

Fonte: INCRA/DATALUTA, 2019.

Não realizar a reforma agrária é uma estratégia do governo Bolsonaro, que tem defendido o uso de armas contra as ocupações de terra. O ano de 2019 foi marcado por despejos, violência contra as comunidades tradicionais e indígenas, acampamentos e assentamentos, pelo aumento de assassinatos. Desde a campanha eleitoral, o discurso de Jair

3 76 217 110 99 21 76 162 68 36 392 468 719 765 668 424 479 386 323 456 872 716 387 327 298 211 111 119136 143 81 28 29 79 2 0 100 200 300 400 500 600 700 800 900 1000 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

GRÁFICO 2 - BRASIL - NÚMERO DE ASSENTAMENTOS RURAIS CRIADOS E RECONHECIDOS - 1985-2019

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345 Bolsonaro é caracterizado pela “criminalização” de movimentos e tem atingido as iniciativas de ocupação de terra defendendo que os ruralistas e latifundiários “devem reagir a bala aos ocupantes de terra” (O Estado de S. Paulo, ed. 14/04/2019).

O desmantelamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) tem ocorrido por meio de atos normativos com interrupções de processos desapropriatórios, redução do orçamento e diversas medidas administrativas como a nomeação de pessoas que são contra a reforma agrária. Para exemplificar, as superintendências regionais receberam orientações determinando a interrupção de todos os processos para compra e desapropriação de terras. De início, cerca de 250 processos em andamento foram suspensos, ato considerado como primeiro passo para interrupção da Reforma Agrária. O INCRA tem atuado apenas na segunda etapa da reforma agrária, que é a legalização de terras já desapropriadas e emissão de títulos definitivos de posse da terra.

A política de criação de assentamentos da Reforma Agrária, fruto de décadas de luta de milhares de famílias sem-terra, estão agora disponíveis à reconcentração fundiária uma vez que a titularização de terras tem se constituído numa política das gestões Temer e Bolsonaro, atingindo o pico em 2017 quando foram expedidos 26.523 Títulos de Domínio e 97.030 Contratos de Concessão de Uso, o que supera a soma dos últimos dez anos. Em 2019, foram emitidos 852 títulos definitivos e 14.868 contratos de concessão de uso de janeiro a setembro (REPÓRTER BRASIL, ed. 11/09/2019). Esta política aprofunda a disputa territorial, beneficiando o mercado de terras, pois muitas famílias fragilizadas podem ceder à pressão do agronegócio e do latifúndio e venderem seus lotes.

Terras, agrotóxicos e finanças

O primeiro ano de gestão teve um rol curto de medidas, mas que merecem destaque pelo seu caráter agressivo, antidemocrático e pró-capital. A primeira medida legislativa tomada, a edição da medida provisória n. 870, em 01 de janeiro de 2019, exterminou a Secretaria Especial de Agricultura Familiar (que concentrava o restante das competências do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e tentou subordinar toda a agenda fundiária e ambiental à agenda agrícola (para detalhes ver Leite, Tubino e Sauer, 2019). Separamos as medidas em três blocos-síntese: terras, agrotóxicos e finanças. Todas as medidas apresentadas fortalecem os interesses de setores do capital na agropecuária e estão

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346 ancoradas a partir da concepção neoliberal de menos Estado, ou como diz o próprio presidente para “facilitar a vida dos patrões”.

Primeiro, cumprindo suas promessas eleitorais, o poder executivo não decretou nenhuma área para os povos indígenas, quilombolas ou para a criação de assentamentos de reforma agrária. Na contramão, editou duas medidas provisórias com o intuito de destinar as terras públicas para aqueles que deram suporte a sua eleição: a MP 901 (que destina terras da União aos governos estaduais de Amapá e Roraima) e a MP 910 (que amplia as possibilidades de regularização de terras públicas ocupadas irregularmente em todo país – ver detalhes em Sauer et al, 2019). Ao tempo que há uma explosão do desmatamento nos anos-referência5 de 2018/2019 e 2019/2020 nos biomas Cerrado e Amazônia (INPE, 2020),

há também indícios de uma corrida cadastral de terras. Conforme dados abertos do Sistema Nacional de Cadastro Rural, entre os meses de janeiro e fevereiro de 2020 foram incluídas no sistema áreas de contabilizam mais de 800 mil hectares, com destaque para Amazonas (260 mil hectares), Mato Grosso (108 mil hectares), Pará (80 mil hectares), Bahia (69 mil hectares), Goiás (60 mil hectares), Piauí (58 mil hectares), Minas Gerais (50 mil hectares) e Maranhão (36 mil hectares).

A leitura dessas medidas provisórias deve ser realiza no contexto da comemoração do Dia do Fogo, em agosto, pelo Presidente e com a edição da MP 884, convertida em Lei n. 13.887/2019, que acaba com o prazo de inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Todo esse pacote de flexibilizações é um convite e, ao mesmo tempo, uma premiação ao desmatamento e a grilagem de terras.

Segundo, também em caráter de continuidade das suas manifestações na Câmara dos Deputados como presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio, a Ministra de Bolsonaro para a pasta de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) declarou, antes de tomar posse, que a alteração das regras para os agrotóxicos teria muito espaço na sua gestão (BRASIL DE FATO, 2018). Em 2019, foram liberados o registro de 502 agrotóxicos para comercialização. Soma-se à liberação abusiva de agrotóxicos, as alterações realizadas na classificação de toxidade publicada pelo MAPA. No Ato n. 58, de 27 de agosto de 2019, o MAPA deu publicidade a alterações na classificação toxicológica, definindo que produtos classificados como “extremamente tóxicos” por provocar corrosão ou inflamações na pele

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347 ou nos olhos, serão reclassificados considerando apenas o risco de morte. (TUBINO, LEITE & SAUER, s.d.)

Em terceiro, o agronegócio também teve seus interesses garantidos por meio de mudanças na relação capital-trabalho e no financiamento público. Se a primeira medida legislativa de Bolsonaro foi a alteração do organograma ministerial, a segunda foi a obstacularização da aposentaria rural. A edição da MP n. 871, convertida em Lei n. 13.846/2019, pode ser considerada o primeiro degrau da reforma da previdência desse governo. A medida certamente dificultará o acesso à aposentadoria para milhões de brasileiras e brasileiros, gerando miséria e aumentando a desigualdade social, em especial nos pequenos municípios, dado que nestes a aposentadoria rural tem impacto maior no orçamento (LEITE, TUBINO & SAUER, 2019). Por fim, a MP n. 897, editada no início de outubro e convertida em Lei n. 13.986 em abril de 2020, ampliou a alocação de recursos para o crédito rural, criou subvenções econômicas para construção de armazéns pelo setor cerealista e facilitou os mecanismos de financeirização da terra com a emissão de títulos do agronegócio em dólar e a autorização para afetação de somente parte do imóvel rural como garantia em operações de crédito.

As medidas listadas nos três blocos são amalgamadas por iniciativas pró-violência no campo, como a ameaça de edição do decreto de Garantia de Lei e Ordem para viabilizar reintegrações de posse e a aprovação da Lei n. 13.870/2019, que amplia o armamento no meio rural.

Apesar de previstos, o governo não conseguiu viabilizar em 2019 as alterações no licenciamento ambiental e na anistia do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL). Além dessas medidas, outras agendas devem ter relevância no Congresso Nacional em 2020, ainda que com as restrições impostas pela pandemia do coronavírus, como a própria votação da MP 910 e a liberação da aquisição de terras por estrangeiros (PL n. 2.963/2019), de autoria de Irajá Abreu (PSD/TO) e outros 26 senadores.

Estrangeirização da terra

A estrangeirização da terra, aqui entendida como um processo histórico de controle do território (multiescalar e multidimensional) pelo capital estrangeiro (PEREIRA, 2017a), assume novas características em um contexto marcado pela convergência de múltiplas crises e mudanças geopolíticas globais (BORRAS JR., FRANCO, e WANG, 2012). Dentre as

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348 novas qualidades destacamos as renovadas formas de acesso e controle, que não exigem necessariamente o direito de propriedade; a expansão do capital financeiro, especialmente em áreas de fronteira agrícola, possibilitando a acumulação pela renda da terra (FERNANDES, FREDERICO e PEREIRA, 2019) e multiplicidade de territorialidades da estrangeirização.

O avanço da estrangeirização da terra no Brasil é inegável. Em 2019 foram identificadas 149 empresas estrangeiras ou brasileiras com presença de capital estrangeiro territorializadas no Brasil dedicadas ao agronegócio e a geração de energias renováveis, como eólica e fotovoltaica (DATALUTA, 2019). A maior parte destas empresas são oriundas dos EUA, Japão e países europeus como Reino Unido e França. No que tange as localidades, as unidades da federação com maior incidência de investimentos estrangeiros são Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Mato Grosso do Sul. Há uma expansão da estrangeirização da terra em direção a região do MATOPIBA6, considerada a última fronteira agrícola em áreas de

Cerrado (FERNANDES, FREDERICO e PEREIRA, 2019). A formação social preexistente e as características edafoclimáticas influenciam na estrangeirização da terra, por isso em cada localidade/região a mesma se materializa de forma distinta. No sul de Minas Gerais a territorialidade dominante da estrangeirização da terra é o café, enquanto no leste do estado o monocultivo de árvores é mais emblemático.

A estrangeirização desperta o interesse de empresas (nacionais e estrangeiras) e também da bancada ruralista, que tende a lucrar com o processo. No Brasil, a Lei n. 5.709/71 regulamenta e restringe a estrangeirização da terra através de limites de apropriação e autorizações especiais. Desde o golpe de 2016 a flexibilização da apropriação de imóveis rurais por agentes estrangeiros frequentemente é pauta de discussões na Câmara dos Deputados e no Senado. Em fevereiro de 2017, inclusive, o então Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, declarou que o governo pretendia, por meio do PL n. 4.952/2012, liberar a aquisição de terras brasileiras para os estrangeiros ainda em março de 2017 (PEREIRA, 2017b). A justificativa que a abertura do mercado rural a investidores estrangeiros ajudaria

6 O MATOPIBA corresponde a uma região que abrange 337 municípios em nos estados do Maranhã,

Tocantins, Piauí e Bahia. A regionalização foi criada pelo Grupo de Inteligência Territorial Estratégica (GITE) da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e institucionalizada por meio do Plano de Desenvolvimento Agropecuário do MATOPIBA em 2015. O MATOPIBA evidencia a atuação do Estado em identificar áreas para a expansão do capital (PEREIRA e PAULI, 2019).

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349 na reversão da crise econômica. O PL em questão não foi debatido e a liberação da apropriação de terras por estrangeiros não avançou até o final do governo Temer.

Ao assumir a presidência em 2019, Jair Bolsonaro fez uma série de declarações a respeito de como a liberação da estrangeirização poderia afetar a soberania nacional. Contudo, Bolsonaro apenas pontuava o avanço de empresas chinesas no agronegócio brasileiro, como se estes fossem os únicos agentes estrangeirizadores atuantes ou com interesse em terras brasileiras (DIALOGO CHINO, 22 jan. 2019). A posição do Bolsonaro não agradou membros da bancada ruralista, pois a China é o principal destino de exportação da soja produzida no Brasil, logo, tais declarações poderiam afetar a relação comercial entre China e Brasil.

A postura do presidente do Brasil é problemática, pois o foco no capital chinês mascara a principal dinâmica da estrangeirização (OLIVEIRA, 2018), camuflando aqueles que realmente tem se apropriado de terras no país7. Em 2008, a partir de denúncias referentes

a apropriação de terras por parte de agentes chineses em diferentes países do globo, grande parte dos investimentos em terras foram cancelados. Os agentes que mais avançam na estrangeirização da terra são oriundos dos EUA e de países da Europa, e não a China como pontua Bolsonaro. Mesmo com as declarações controversas de Bolsonaro, em fevereiro de 2019 o PL, agora sob o n. 2.963/2019, foi desarquivado e em dezembro foi aprovado nas Comissões de Assuntos Econômicos e de Agricultura.

Em abril de 2020, a Lei n. 13.986/2020 alterou o parágrafo 2º do artigo 1º da Lei n. 5.709/71, declarando que as restrições estabelecidas nesta Lei não se aplicam aos casos de sucessão legítima; às hipóteses de constituição de garantia real, nacional ou estrangeira e; aos casos de recebimento de imóvel em liquidação de transação com pessoa jurídica, nacional ou estrangeira, ou pessoa jurídica nacional da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e que residam ou tenham sede no exterior, por meio de realização de garantia real, de dação em pagamento ou de qualquer outra forma. Assim, a aprovação da Lei n. 13.986/2020 abre lacunas que permitem a apropriação de terras rurais por empresas estrangeiras ou brasileiras controladas por estrangeiros.

7 Ademais, a principal região de atuação do capital chinês é o Sudeste asiático (HOFMAN e HO,

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350 A liberação da estrangeirização da terra não é um evento isolado, mas faz parte de um amplo pacote de políticas neoliberais que visam a expansão do capitalismo no campo, incorporando terras de camponeses, indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais a lógica contraditória do capital. A estrangeirização resulta na desterritorialização e afeta a segurança e soberania alimentar, pois terras antes destinadas a produção de alimentos passam a cultivarem commodities para a exportação.

Amazônia

A escalada da ultradireita e seu primeiro ano de governo federal tem marcado o avanço dos processos de expropriação, estrangeirização e o acirramento das disputas e tensões territoriais na Amazônia. A disputa territorial capitalista por recursos e meios de produção, lastreada na correlação desigual de forças, e a sociobiodiversidade sempre foram fatores motivadores de conflitos na região e contribuíram para tornar sua questão agrária sui generis. Na contramão dos incentivos às classes populares conquistados nos últimos anos de governo pós-neoliberal, o governo Bolsonaro tem apoiado e proposto um modelo de desenvolvimento que tem valorizado e criado oportunidades para os latifundiários, as mineradoras e o agronegócio em detrimento dos sujeitos da Amazônia, ou seja, seus recursos estão cada vez mais próximos das empresas capitalistas e longe dos cidadãos amazônidas.

Neste contexto, a Amazônia passou a ocupar papel de destaque na agenda de ataques do governo aos povos que vivem, dependem e preservam as florestas, os campos e as águas. Além de propagandeá-la enquanto um espaço povoado por recursos a serem explorados, também houve expressivo desprezo sobre as problemáticas da Amazônia e o estímulo à promoção de ataques e cortes contra as instituições, pesquisadores e lideranças internacionalmente reconhecidas utilizando-se, sobretudo, de agressões e Fake News. Os casos mais notáveis da atuação do governo Bolsonaro sobre a Amazônia foram: 1) A insinuação de que organizações não governamentais (ONGs) e ativistas, dentre eles o ator Leonardo DiCaprio, teriam relação com o aumento das queimadas; 2) Os constantes ataques à legitimidade e posicionamento político de lideranças indígenas como o cacique Raoni Metuktire, que tem sido acusado de não representar os povos indígenas da Amazônia; 3) a demissão do ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Ricardo Galvão após a publicização dos dados de queimadas e desmatamento com o objetivo de questionar e acometer ao desrespeito a ciência brasileira; 4) os cortes de financiamento para pesquisas e

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351 o “contingenciamento” no setor da educação que comprometem e inviabilizam a produção científica in loco; 5) divergências e extinção de fundos de financiamento internacionais voltados à pesquisa após o envolvimento em polêmicas e a divulgação do posicionamento sobre as queimadas na Amazônia.

A flexibilização das leis e o enfraquecimento das instituições de pesquisa, ensino, proteção e fiscalização, bem como o ataque ideológico aos povos amazônidas, também compuseram o roteiro de estratégias favoráveis à exploração de recursos naturais, humanos e apropriação de territórios de forma predatória e ilegal. Ao passo em que a precarização da vida cotidiana se amplificou, o agronegócio e o latifúndio se aproveitaram para avançar no processo de regularização de terras. No estado do Pará, por exemplo, a lei estadual 8.878/2019, tem o objetivo de criar condições ainda mais favoráveis e seguras para a expansão do agronegócio e sua produção de commodities. Em outras palavras, pode-se dizer que a monocultura e a pecuária continuaram a avançar na mesma Amazônia onde a grilagem de terras e o trabalho escravo expressam a sanha do capital em se reproduzir.

Além dos vazamentos de rejeitos da Hydro Alunorte no estado do Pará, cujas consequências não são mensuradas ainda, a floresta ardeu em fogo e o desmatamento avançou como nunca visto nos últimos anos. De agosto de 2018 a julho de 2019 foram desmatados 9.762 km² nos nove estados da Amazônia Legal Brasileira, uma área equivalente a 1,4 milhão de campos de futebol. Esse valor corresponde a um aumento de 29,54% em relação a taxa de desmatamento apurada em 2018, que foi de 7.536 km² (Prodes-INPE, 2019). Do questionamento dos dados às crises diplomáticas, o governo brasileiro minimizou os fatos e procurou construir uma imagem soberana. A reação internacional não tardou. Pela primeira vez, desde que foi criado, em 2008, o Fundo Amazônia – maior projeto de preservação da Floresta – terminou um ano sem aprovar projetos. A Noruega e a Alemanha suspenderam suas contribuições em resposta ao governo brasileiro. Foram paralisados R$ 2,2 bilhões em financiamentos e milhares de famílias foram prejudicadas, por birra do governo. Diferentes governos no mundo se manifestaram criticamente e em defesa da Amazônia.

Para além das alfinetadas anteriormente trocadas com chanceler alemã Angela Merkel, sobre democracia e preservação ambiental, pode-se dizer que foi com Emmanuel Macron, presidente da França, que a inabilidade diplomática do governo Bolsonaro alcançou o seu ápice. A disputa com o governo francês tornou-se nítida quando Macron sugeriu que

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352 assuntos sobre a Amazônia pudessem ser tratados em reunião pelo G7. Enquanto a hashtag #prayforamazonia se popularizava nas redes sociais, o debate se arrefecia entre os governantes. Enquanto o governo francês, acompanhado de muitos outros, passou a criticar a situação das queimadas que se espacializavam pela Amazônia, o governo brasileiro o acusava de buscar atacar a soberania nacional e, por fim, o embate culminou na ofensa pública proferida pelo Presidente Bolsonaro à primeira dama francesa, Brigitte Macron, como forma de retirar a atenção do problema de fato.

Historicamente preteridos do plano de desenvolvimento do país, os povos amazônidas – que cabe ressaltar, vivem de forma integrada à natureza – estão, agora ainda mais ameaçados, a demarcação de terras e territórios foram paralisadas e se tornaram mais frequentes as investidas contra os povos originários, quilombolas, ribeirinhos, sem-terra, entre outros. Essas ações se resumem na maioria das vezes em atos de violências, segundo dados parciais registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) (2020), dos 29 assassinatos registrados no campo em 2019, 25 deles foram na Amazônia Legal, o correspondente a 86% do total. O estado do Pará registrou doze casos, logo em seguida, o Amazonas com cinco, Maranhão e Mato Grosso, três assassinatos cada um. Dentre os assassinados, oito eram indígenas, dos quais, sete eram lideranças. De acordo com a CPT, esse é o maior número de lideranças indígenas assassinadas nos últimos onze anos. Não obstante, o ano ainda se encerrou com áudios vazados por fazendeiros ameaçando professores-pesquisadores, sindicalistas e militantes e os movimentos socioterritoriais buscando refletir sobre o paradoxo entre as necessidades de ofensivas e o recuo estratégico pela manutenção da vida.

Manifestações do campo

As crescentes mobilizações nos últimos 20 anos no Brasil, por meio de manifestações e protestos pelos movimentos socioterritoriais, sindicatos de trabalhadores e coletivos organizados da sociedade, revelam aspectos importantes a serem analisados. São componentes de crises econômicas e momentos de insatisfação política vividas no País.

No ano de 2019 foram registradas 1.301 manifestações dos movimentos socioterritoriais e socioespaciais no Brasil, com participação de mais de 243.712 pessoas. A questão da terra predomina no total das manifestações registradas desde que iniciamos os registros e confrontações, atingindo praticamente 40% do total. Foi o maior número de ações

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353 desde o início dos registros e confrontações das bases de dados realizadas a partir de 20008. Foi ainda o ano que as manifestações ultrapassaram o último recorde, registrado em 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff e da reedição da fase neoliberal com o golpe, decorrentes não só da conjuntura do processo político, mas também quando os camponeses e trabalhadores saíram às ruas para protestar em defesa de seus territórios e das políticas públicas conquistadas contra o conjunto de medidas adotadas pelo governo de Michel Temer. As manifestações ocorreram em todos os estados da federação, porém apenas seis representaram cerca da metade dos registros e quantidade de pessoas envolvidas. O Estado da BA é o que liderou os protestos e mobilizações (162 ocorrências/ 47.920 pessoas), seguido por MG (131 ocorrências/ 34.723 pessoas) e o RS (104 ocorrências/ 10.771 pessoas), PR (91 registros/ 29.359 pessoas), MA (84 registros/ 5.889 pessoas) e PE (80 registros/ 9.130 pessoas).

No mapa 2 são espacializadas as manifestações do ano de 2019, ressaltando-se que a maior ocorrência (círculos maiores) está presente em todas as unidades da federação, porém com maior número nas capitais estaduais. Pelas razões que serão detalhadas mais adiante, muitas delas refletem lutas sociais relacionadas aos problemas localizados espacialmente ocorridos no ano. Outro aspecto diz respeito a desconcentração dos protestos no interior dos estados, ou seja, uma difusão territorial como componente espacial, ou seja, uma distribuição das manifestações por diversas cidades do litoral brasileiro, além das capitais. Num olhar mais atento aos registros, em especial às características e tipos de reivindicações, em grande parte elas refletem o contexto de reformas administrativas e econômicas ocorridas no ano, como também de parte da sociedade que foi atingida principalmente por desastres ambientais, notadamente no litoral da região Nordeste, motivado pelo problema do derramamento de óleo, e na região do entorno da região metropolitana de Belo Horizonte-MG, em razão dos desastres de Brumadinho e Mariana.

Com o novo governo que assume em 2019, iniciam-se as reformas administrativas e econômicas assumidas por Jair Bolsonaro desde a sua campanha, com o desmonte de órgãos colegiados como do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e na estrutura administrativa do Governo (IBAMA, INCRA, FUNAI etc.), acabaram provocando

8 As manifestações dos movimentos socioterritoriais no Brasil são registradas pela Comissão Pastoral

da Terra (CPT) desde 1988 e pela REDE DATALUTA desde o ano 2009. Neste artigo são utilizados e analisados os dados de 2019 do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (CEDOC/CPT).

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354 grandes reações coletivas nas organizações sociais. Somente com relação às questões da Previdência Social e de Educação foram registrados cerca de 330 atos (25% do total) em todas as unidades da Federação. As ações temáticas conjuntas foram caracterizadas por atos públicos, bloqueios de estradas e rodovias, marchas, caminhadas e panfletagem, contra as reformas, o feminicídio e ataques aos direitos sociais.

Mapa 2. Brasil – Geografia das Manifestações do Campo – 2019 – número de manifestações.

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355 Fonte: DATALUTA, 2019.

Quanto às características das manifestações, a questão da terra continua a ser o principal tema, perfazendo 513 ações (39,5%) das manifestações no Brasil em 2019. O tema envolveu principalmente a realização da Reforma Agrária e o assentamento de famílias, mas também figuram questões relacionadas à luta pela soberania alimentar, as regularizações fundiárias e contra o uso de agrotóxicos e os desmatamentos. Ao analisarmos a questão da soberania alimentar que está contida nas lutas sociais pela reforma agrária surge como destaque nas manifestações em 2019 o “banquetaço” (uma refeição coletiva festiva), manifestações realizadas no dia 27/02/2019 em mais de 30 cidades, principalmente nas capitais. Foram atos que expressam um novo tipo de movimento político e ativismo alimentar, no caso, em razão da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar

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356 (Consea), por meio da Medida Provisória nº 870, editada pelo presidente Jair Bolsonaro em seu primeiro dia de governo, fragilizando o funcionamento o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) e comprometendo assim o processo de garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada em todas as esferas de governo.

As Jornadas Universitárias em Defesa da Reforma Agrária - JURAs, realizadas desde 2014, completou o 6º ano em 2019, muitas delas ocorreram simultaneamente e articuladas entre movimentos socioterritoriais e outras organizações da sociedade. As JURAs vêm se tornando a ação mais importante das universidades brasileiras, criando identidade em torno de dois grandes eixos articulados: questão agrária e questão educacional. Além da atividade principal de discussões das temáticas centrais, concomitante foram realizadas atividades que compreenderam eventos culturais e ciclos de debates, feiras da Reforma Agrária, culminando com diversos atos públicos em favor da agroecologia e contra o uso de agrotóxicos, a injustiça e a violência.

A questão indígena, depois dos temas trabalhistas, ocupou o segundo maior tema das manifestações no país, somando 227 ações (17,5%), cujas causas envolveram protestos contra a municipalização da saúde indígena e a política indigenista geral adotada pelo Governo Federal.

O problema da água dominou em quase todos os estados da federação, com atos contra a construção de barragens e mineradoras, motivadas pelos rompimentos da barragem de Mariana-MG (2018) e da Mina do Feijão, em Brumadinho-MG, em 25/01/2019. Pelos crimes ambientais e em memória e solidariedade às vítimas de Brumadinho, Minas Gerais foi o estado que registrou predominantemente os tipos de manifestações de luta dos atingidos pelas mineradoras Vale e Samarco, não só em Brumadinho, como em outras localidades com barragens ameaçadas e, posteriormente, culminaram com protestos contra a impunidade e o descumprimento de acordos pela Fundação Renova, que somaram 82 atos (63%) do total de 131 manifestações.

Outro tipo de manifestação ocorrida em 2019 que mereceu destaque nas lutas sociais foram os atos relacionados à questão de gênero com maior relevância para a temática da mulher, representados pela Jornada Nacional de Luta das Mulheres/Contra a Reforma da Previdência e o Feminicídio e o Dia Internacional de Luta das Mulheres, principalmente no Rio Grande do Sul, além de outras grandes manifestações pelo Dia Internacional da Mulher quando se completou 1 ano do assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro.

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357 Contudo, com o aumento dos ataques aos direitos sociais, da violência e dos assassinatos no campo e o desmonte do setor público em geral, os movimentos organizados, em conjunto com a sociedade, têm reorientado e reforçado suas estratégias de lutas para reafirmação de ações do tipo “temáticas”, que somaram 406 atos em 2019, quase 1/3 do total. Ações temáticas anuais realizadas pelos movimentos socioterritoriais e outros setores organizados da sociedade têm sido destaques nos últimos anos, com abrangência nacional, estadual e internacional.

No conjunto das manifestações, além das temáticas, os bloqueios corresponderam a ação importante adotada, perfazendo cerca de 181 atos, sendo na maioria obstruções de rodovias e de algumas ferrovias. Foram reivindicações contra as mineradoras, que causam prejuízos ao meio ambiente e às populações atingidas pela exploração dos recursos naturais, e atos que denunciam a grilagem de terras, as queimadas na Amazônia e a injustiça e violência contra os povos indígenas.

Por fim, não há como deixar de destacar os conflitos entre capital e trabalho representados pelo tipo de reivindicação nas manifestações. Assim, no ano de 2019 os protestos contra a reforma da Providência Social alcançaram o maior número dentre os tipos de manifestações, representando cerca de ¼ do total (331 registros), realizadas principalmente nos meses de maio e junho de 2019, com participação significativa de manifestantes em todas as capitais e grandes cidades do interior.

Os manifestos de 2019 são resultados das insatisfações pela ruptura política de 2019, que provocaram reações dos grupos organizados, alguns deles em processo de fortalecimento de ações e lutas sociais e coletivas, tais como os manifestos de combate à violência contra a mulher, de reconhecimentos da comunidade LGBT, de inserção produtiva de mulheres e de jovens agricultores camponeses.

Considerações finais

Este texto traz nossas reflexões sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro no poder. Discutimos as características que o diferenciam dos governos neoliberais e pós-neoliberais, embora, como afirmamos no texto, Bolsonaro pratica uma política ultra neoliberal com alguns elementos próximos do que Enzo Traverso chamou de pós-fascismo.

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358 Este primeiro ano foi carregado de ações e políticas que deram a marca do governo Bolsonaro em termos de políticas agrária, agrícola, ambiental e social. E este artigo procurou registrar alguns exemplos como referências para compreendermos suas singularidades. Os dados e debates aqui apresentados sobre as ocupações de terra, as manifestações, os assentamentos, sobre o aumento da estrangeirização, a liberalização de uso do agrotóxicos, o avanço da fronteira agrícola em direção a Amazônia e acerca dos diversos Projetos de Leis e Decretos que regulamentam a grilagem, evidenciam que com o governo atual o latifúndio tem a total liberdade para praticar a violência.

O fortalecimento das corporações capitalistas, por meio da liberação de usos agrotóxicos e a venda de terras para o capital estrangeiro, tem provocado o enfraquecimento das organizações dos trabalhadores e o aumento dos conflitos, perseguições, assassinatos, homofobia, racismo entre outros reacionarismos, revelaram a face do governo Bolsonaro. As políticas para o campo apresentaram um enorme retrocesso, pois foram direcionadas em favor dos interesses dos capitais, representados pelos latifundiários, agronegócio, madeireiros, mineradoras, grileiros e as empresas transnacionais ligadas à agricultura.

A Reforma Agrária e de abandono dos programas de aquisição de alimentos da agricultura familiar, fruto de décadas de luta de milhares de famílias sem-terra, agora estão paralisados e praticamente inexistentes, juntamente com as demarcações de terras indígenas e quilombolas. Nesta onda de liberalização estão ainda o estímulo à invasão de terras públicas para formação de pastagens e exploração mineral por meio do aumento do desmatamento e queimadas de florestas na Amazônia e no Cerrado.

As formas de resistência da sociedade organizada manifestaram-se, mas não foram suficientes para mudar o rumo do governo. Espera-se que o segundo ano do governo traga novas formas de resistência para mudar o rumo do Brasil em direção à democracia.

Bibliografia

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