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Até onde é possível tolerar as perversidades humanas?

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Academic year: 2021

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Até onde é possível tolerar as perversidades humanas?

Paloma Silveira1,2

O ano de 2021 começou para muitas pessoas como aquele que traria novos tempos, os das esperanças de dias melhores. Era necessário acreditar em algo que nos permitisse vislumbrar outros horizontes diante de tantas mortes, violências e genocídios que constituíram 2020. A pandemia escancarou os horrores e as perversidades da sociedade brasileira. Nunca fomos uma sociedade cordial e muito menos harmoniosa, vivendo em uma idílica democracia racial. Esses mitos ditos e repetidos exaustivamente produziram/produzem diferentes deformações, incluindo o obscurecimento do caráter perverso de nossa sociedade extremamente violenta, racista, desigual e patriarcal/machista, que odeia tudo aquilo que contradiz

1 Mulher cis, heterossexual, reconhecida socialmente como branca, professora, psicóloga e às vezes artista. Mestra em Psicologia pela UFPE e Doutora em Saúde Coletiva pelo ISC/UFBA.

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essa falaciosa “mitologia”. Nem a realidade concreta foi/é suficiente para encararmos esse mundo terrível onde nos habituamos a viver.

Exterminar os povos originários e negros desde que o Brasil se tornou Brasil não conta. Os números parecem não dizer nada e muito menos a realidade da vida como ela é, já que são essas pessoas – pessoas? – que têm seus direitos constitucionais sistematicamente desrespeitados e vivem, em sua grande maioria, em condições indignas, precárias, de vida. A vida humana – humana? – pouco tem importado. A noção do que pode ser considerado humano é sócio-histórica e varia muito, como podemos inclusive notar em algumas falas do antipresidente3: "O índio

mudou, tá evol... Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós” e “Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem pra procriador serve mais”.

A violência contra as mulheres e os feminicídios também. Estupros de mulheres indígenas e negras – mulheres? – constituíram nossa história. Mesmo sendo brancas, em geral, nós mulheres sofremos diversas violências desde o período colonial, entretanto, ocupando lugares bem distintos dentro dessa perversa estrutura social que se reproduz e se reatualiza. A morte de Miguel no ano passado é emblemática nesse sentido. Miguel, uma criança negra de 5 anos, filho de Mirtes Souza (ex-empregada doméstica), morreu ao cair do 90 andar de um prédio de luxo

em Recife. Foi deixado no elevador sozinho pela patroa branca e rica, que em entrevista ao Fantástico disse: “fiz tudo que podia”. Sarí Côrte Real, a “sinhá”, foi indiciada por abandono de incapaz e está aguardando os trâmites processuais em liberdade. Se fosse o contrário, não é difícil de imaginar qual seria a situação de Mirtes.

Chegamos em março de 2021 com a sensação de que 2020 não acabou, estamos vivendo o pior momento da pandemia. Mortes de milhares pessoas por dia, quase trezentas mil morreram, sendo que os números podem ser ainda maiores por causa das subnotificações. Colapsos nos sistemas de saúde de várias cidades; um programa de não-vacinação que até o momento vacinou menos de 5% da população brasileira; risco de faltas de insumos importantes como

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oxigênio; uma inflação altíssima, carestia, sem o auxílio emergencial; milhões de

desempregades, milhões na miséria. Nem o passado e nem esse presente nefasto

tem sido capaz de afetar solidariamente a parcela da população, os/as 20% a 30% de apoiadores/as do antipresidente que continuam a bradar a favor do “mito”, realizando inclusive carreatas em algumas cidades brasileiras.

Deturpações da realidade foram/são realizadas constantemente. Palavras como democracia têm ganhado novos sentidos, opostos ao sentido original –

dēmokratía, de dêmos 'povo' + kratía 'força, poder'. Violências e mortes são

justificadas dentro de uma lógica minimizadora ou de uma crença de um “mal” necessário ou que são apenas algumas bobagens, alguns erros, afinal, “quem não

fala bobagens”? “Quem não erra?” Escutamos essas indagações algumas vezes e

de diferentes pessoas. Algumas explicitamente apoiadoras e outras que relativizam as atitudes do antipresidente para justificar um apoio parcial, invocando até Deus nessas justificativas. Esse Deus opressor das perspectivas religiosas conservadoras. As nuances das perversidades humanas vão aparecendo com diferentes vernizes.

Para essas pessoas, são bobagens ou pequenos erros ele ter dito: “Ela

não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece". Seu regozijo ao votar a favor do impeachment da

presidenta Dilma Rousseff, exaltando a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador do período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Suas afirmações de que o erro da ditadura foi torturar e não matar, que deveria ter matado mais; que o Brasil não é um país de maricas e “E, daí?” diante das mortes pela Covid-19, uma “gripezinha”, dentre outras barbaridades.

Colocar também nos ministérios e secretarias pessoas sem competência técnica como o agora ex-ministro da Saúde, que ao assumir o cargo disse que nem conhecia o SUS, pouco tem importado. Outros/as que acreditam que a terra é plana; que o novo coronavírus na verdade é um “comunavírus”; que não existe fome no Brasil, pois “temos mangas”; que “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”; que utilizam em seus discursos menções nazistas etc. Nada

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participação ativa em velhos jogos da política institucional brasileira (promessas eleitorais não cumpridas). Nada.

Difícil, quase insuportável, viver nesse momento histórico. Difícil constatar o quanto podemos ser perversos/as e que o conhecimento racional é insuficiente para construir saídas desse projeto social, em curso acelerado, de apenas mortes. Difícil nos deparar, de forma tão crua, com essas nuances bizarras que constituem a humanidade porque elas também, de alguma maneira, se referem/refletem a gente. Somos sociais/relacionais, em geral, constituídes por diferentes dimensões significadas socioculturalmente como boas e ruins, somos uma síntese e não o maniqueísmo que nos habituamos a viver, julgando e qualificando as pessoas a partir de polos opostos do bem ou do mal. Somos seres complexos e contraditórios, mas essas constatações sobre a condição humana não deveriam nos levar a aceitar e até justificar o que é inaceitável – a destruição deliberada de outres – e é isto o que está acontecendo nessa pandemia com esse governo que, além de tudo, incita e promove constantemente o que há de pior em nós.

Apesar disso, ainda encontramos argumentos e posições que procuram conciliar o que é irreconciliável. Defendem que diante dessa polarização, desse caos distópico, dos esgarçamentos e das rupturas dos laços afetivos/sociais, temos que buscar respeitar mais o próximo, as suas diferenças que seriam meros pontos de vista ou aquela máxima “não vamos discutir política”. Não se trata de um respeito em si às diferenças e muito menos de não discutir política. A política institucional e a mais ampla constituem a vida de todas as pessoas. Todes nós somos afetades pela política, reconheçamos isso ou não. Não existe vida humana apolítica.

Se as tais diferenças defendem o que está aí, um projeto de sociedade genocida, relativizam violências ao significá-las como bobagens, erros ou como um “mal” necessário para garantir algum tipo de “ordem” social, o que devemos fazer? Isso não seria um limite? Em nome de um respeito em si, de uma liberdade absoluta, vamos continuar tolerando o que é intolerável? Limites ético-políticos devem existir. Não podemos viver em uma sociedade que apregoa respeito e liberdade totais para tornar justificáveis violências,

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de sempre. Esses limites não deveriam ser ultrapassados e estão sob nossas responsabilidades tanto nas esferas da política institucional quanto na política da vida cotidiana.

Como podemos construir outros pactos coletivos se continuarmos a aceitar o que é inaceitável? Se continuarmos a relativizar quase tudo em nome de um respeito em si que tem desrespeitado o que existe de mais importante, a dignidade da vida humana? Como vamos explicar para as próximas gerações que quase nada fizemos diante das barbaridades desse governo, agravadas na pandemia? Que nos calamos e nos omitimos para apenas preservarmos alguns laços afetivos/sociais em nome de um respeito desrespeitador dos direitos humanos? Em que tipo de sociedade queremos viver? Esta que está aí cada vez mais brutalizada, com seu projeto de apenas mortes simbólicas e/ou totais, ou outras possibilidades? São perguntas difíceis e que requerem de nós reflexões profundas.

Talvez a partir desses questionamentos e reflexões encontremos os limites ético-políticos fundamentais – os inegociáveis – que não são aqueles que se referem apenas às nossas vidas individuais e dos/as nossos/as, mas os que têm como horizonte a humanidade mais ampla. Que prospectam terrenos para a construção de pactos coletivos que tenham em suas bases a solidariedade e a valorização da vida humana em sua diversidade. Pactos coletivos que ampliem a nossa noção de coletividade para além do que nos é familiar. Pactos coletivos que façam a gente refletir sobre as nossas implicações políticas, de como nossas vidas individuais estão inexoravelmente ligadas ao sociopolítico: “A felicidade ético-política

é sentida quando se ultrapassa a prática do individualismo e do corporativismo para abrir-se à humanidade” (Sawaia, 1999, 105p.). Sem isso, tenderemos a sucumbir

cada vez mais no abismo que já nos encontramos.

Referência

SAWAIA, B. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. In: SAWAIA, B. As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 1999.

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