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As Parabolas Da Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio

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Í

NDICE

Capa Rosto

Apresentação

I - Introdução Jesus, a misericórdia e as parábolas

II - Aquele a quem pouco foi perdoado, pouco ama: os dois devedores Lc 7,36-50 III - A compaixão de um estrangeiro: o bom samaritano Lc 10,25-37

IV - À procura da ovelha perdida e da moeda encontrada Lc 15,1-7 V - Uma compaixão excessiva: o pai misericordioso Lc 15,11-32

VI - O contrário da misericórdia: o rico anônimo e o pobre Lázaro Lc 16,19-31 VII - Como muda o coração de Deus? O juiz e a viúva Lc 18,1-8

VIII - Quem é justificado por Deus? O fariseu e o publicano no Templo Lc 18,9-14 Conclusão - O Evangelho e a misericórdia em parábolas

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N

A

PRESENTAÇÃO

a Bula Misericordiae vultus (MV), o Papa Francisco escreveu que, tendo o olhar fixo em Jesus e na sua face misericordiosa, é possível colher o Amor da Santíssima Trindade. A sua missão recebida do Pai não é outra senão revelar este amor que a todos se dá sem excluir ninguém: «Tudo nele fala de misericórdia. Nele, nada há que seja desprovido de compaixão» (MV, n. 8). Esta bela expressão pode introduzir coerentemente na reflexão das páginas deste instrumento pastoral que expõe as Parábolas da misericórdia. Será uma leitura provocativa. Entrar na parábola, de fato, não significa apenas ter uma compreensão do ensinamento que emerge, mas sobretudo ajuda a reconhecer o próprio papel dentro dessa narração. Nada melhor do que as parábolas, provavelmente, envolve o leitor a compreender a dimensão existencial que nelas transparece e a deixar-se levar pela mão rumo à mudança de vida.

É sempre o Papa Francisco que, na Bula Misericordiae vultus, convida a captar a grande mensagem contida nas parábolas, quando afirma: «Jesus revela a natureza de Deus como a de um Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superado a recusa com a compaixão e a misericórdia. Conhecemos estas parábolas, três em especial: as da ovelha perdida e da moeda encontrada, e a do filho pródigo (cf. Lc 15,1-32). Nessas parábolas, Deus é apresentado sempre cheio de alegria, sobretudo quando perdoa. Nelas encontramos o núcleo do Evangelho e da nossa fé, porque a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, enche o coração de amor e consola com o perdão» (MV, n. 9).

O Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização sente o dever de agradecer a monsenhor Antonio Pitta por ter acolhido o convite para escrever este comentário. Sua reconhecida competência bíblica e seu estilo direto permitem que tenhamos em nossas mãos um precioso instrumento para a pastoral. A reflexão pessoal, a catequese e a lectio divina encontrarão neste

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comentário uma verdadeira ajuda espiritual e de notável profundidade cultural. O convite, portanto, a escutar as Parábolas da misericórdia dirigidas a cada um de nós permitirá viver o Ano Santo com um empenho para dar à profissão de fé o coerente testemunho de vida.

✠ RINO FISICHELLA

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I

I

NTRODUÇÃO

J

ESUS

,

A MISERICÓRDIA E AS PARÁBOLAS

«Sejam misericordiosos, como o Pai de vocês é misericordioso» (LC 6,36) é

uma das afirmações mais audazes de Jesus. Que Deus Pai era misericordioso, o povo hebreu bem o sabia; era problemático pensar que os seres humanos pudessem ser como Ele. Poderá alguém ser misericordioso como o nosso Pai do Céu? E por que motivo se deverá ser como Ele? O “evangelho da misericórdia”, como é definido o texto de São Lucas, narra a vida de Jesus escolhendo a misericórdia como principal fio condutor.

Antes de falar dela, Jesus fez tocar e ver a misericórdia. Um dos seus primeiros milagres foi em favor de um leproso por quem teve compaixão, estendeu a mão e tocou-o (cf. MC 1,41). Movido de compaixão, Jesus não tem medo de se infectar.

O grito do cego de Jericó é mais forte do que o de quem o obriga a calar-se: «Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim […]» (Lc 18,38).

Os seus encontros com os doentes e os pecadores estão plenos de misericórdia. Pela compaixão, liberta uma prostituta destinada à lapidação (JO 8,11). O modo

pelo qual se deixa tocar por uma pecadora repugna Simão, o fariseu (LC 7,36-50).

Jesus não fala da misericórdia de modo abstrato, e mais do que a definir, narrou-a narrou-atrnarrou-avés de pnarrou-arábolnarrou-as. Que pnarrou-arábolnarrou-as? Por que, como e pnarrou-arnarrou-a quem narrou-a misericórdinarrou-a em parábolas?

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1. Que parábolas da misericórdia?

Para quem tem familiaridade com a Bíblia, “as parábolas da misericórdia” evocam as três narrações de Lucas 15,1-37: a ovelha perdida, a moeda encontrada e o filho pródigo. Na realidade, a misericórdia é aprofundada também noutras parábolas de Jesus: os dois devedores (LC 7,41-43), o bom samaritano (LC

10,29-37), o rico e o pobre Lázaro (LC 16,19-31), o juiz injusto e a viúva insistente (LC

18,2-14), o fariseu e o publicano no Templo (LC 18,10-14).

São oito as parábolas de Jesus que, a partir de vários pontos de vista, tocam a misericórdia no terceiro Evangelho. Sete delas foram contadas durante a viagem de Jesus para Jerusalém (LC 9,51–19,46). Somente a breve parábola dos dois

devedores (LC 7, 41-43) foi narrada durante a sua pregação na Galileia. Porque,

no Evangelho de Lucas, a grande viagem é mais interior do que física, foi necessária uma ação tão difusa sobre a misericórdia. A misericórdia não é uma virtude natural, que depende do caráter de uma pessoa – quem tem uma boa índole será mais misericordioso do que os outros –, mas, antes, uma disposição interior que amadurece estando junto de Jesus: a misericórdia aprende-se com a consequência! Naturalmente, nem todas as parábolas de Jesus abordam a misericórdia, nem esta é comunicada somente em parábolas. As parábolas da misericórdia, todavia, merecem um espaço distinto: a exortação a sermos misericordiosos, como é misericordioso o Pai celeste, é a sua geral chave de acesso.

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2. Por que em parábolas?

Por que falar da misericórdia em parábolas e não servir-se de outros instrumentos de comunicação? E por que tantas parábolas sobre a misericórdia? Não bastaria a parábola do filho pródigo ou, como se prefere denominá-la hoje, do “pai misericordioso”? Ao elogio da caridade, da sapiência, podia acrescentar-se o da misericórdia. Pensando bem, se se deve ser misericordioso como (e porque) é o Pai do Céu, é impossível falar da misericórdia distinguindo-a das pessoas que a vivem ou a ignoram. Se Jesus prefere narrar a definir a misericórdia, é lógico que terá as suas razões, que aqui procuraremos evidenciar.

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2.1. O espelho da vida

As parábolas de Jesus, incluindo as da misericórdia, estão ligadas à vida e interpretam-na. Seria errado pensar que, depois de se ler uma parábola sua, esta se deve interpretar. Pelo contrário: as parábolas interpretam a vida de cada um e a questionam!

A parábola dos dois devedores (LC 7,41-43) inspira-se na situação embaraçosa

na casa de Simão, o fariseu: Jesus deixa-se lavar e beijar os pés por uma pecadora. A parábola ilustra que o devedor a quem se atribui a maior soma de dinheiro é mais grato ao credor do que aquele que tem uma quantidade menor a devolver. Se a pecadora lava os pés de Jesus é porque Ele lhe perdoou o pecado e porque foi perdoada para lhe lavar os pés.

As três parábolas da misericórdia por definição (LC 15,1-32) partem do fato de

que Jesus come com os pecadores. Ora, elas esclarecem e impõem a quantos o criticam que repensem os seus juízos. A presunção de quem considera que se é exaltado perante Deus porque se vive no mundo (LC 16,15) oferece a

oportunidade para a parábola do rico e do pobre Lázaro. A parábola do juiz injusto e da viúva insistente (LC 18,2-8) explica a importância da oração: se é

constante, é também capaz de mudar o coração de Deus. A parábola do fariseu e do cobrador de impostos no Templo (LC 18,10-14) nasce da presunção de alguns

que desprezam os outros para se exaltarem.

Nas parábolas de Jesus, é a vida real que se espelha: a da sua relação com Deus e com os pecadores. Por isso, as personagens das parábolas são anônimas e os ambientes onde atuam estão desfocados. Qualquer ouvinte sente-se envolvido nas parábolas de Jesus e nelas se reflete com uma verdade enternecedora, forçando-o a repensar-se nas relações que tece quotidianamente.

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2.2. Ele, eu e o outro

Se a realidade da vida se espelha nas parábolas de Jesus, todas as da misericórdia são contadas segundo uma relação triangular. Convencionalmente, podemos falar de “ele, eu e o outro”. Em cena estão dois devedores e um credor; um sacerdote, um levita e um samaritano; o pastor com cem ovelhas, das quais uma se perdeu, mas foi encontrada; uma dona de casa com dez dracmas, uma das quais perdida e depois achada; um Pai e dois filhos, um dos quais morreu e regressou à vida; um anônimo rico, Lázaro e Abraão; um juiz injusto, Deus e uma viúva; um fariseu, um cobrador de impostos e Deus no Templo.

Porque nos evangelhos se encontram também as parábolas que insistem num único elemento, como a do grão de mostarda que cresce por si mesmo (LC 13,

18-19), ou dos dois interlocutores, como a da massa levedada e do fermento de farinha (LC 13,20-21), o triângulo relacional nas parábolas da misericórdia é

intencional. O esquema veicula um conteúdo essencial: a misericórdia de Deus não se decreta sozinha, nem somente através de uma relação entre mim e Deus, mas refere-se sempre às relação entre pessoas. «Sejam misericordiosos como (e porque) o Pai de vocês é misericordioso» (LC 6,36) é a viga mestra da

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2.3. O reverso da medalha

As parábolas da misericórdia não dão nada por certo, porque têm em vista o reverso das situações. Levam os ouvintes a questionar-se porque apresentam soluções contrárias e inesperadas de que ninguém está à espera.

Perante a pergunta de Jesus sobre qual dos dois devedores amará mais o seu credor, Simão responde: «Suponho que é aquele a quem ele perdoou mais» (LC

7,43). Assim o justifica, sem querer, a pecadora que lava os pés de Jesus. Se a questão de quem é o próximo a amar motiva a parábola do bom samaritano (LC

10,29), o que se segue obriga o doutor da Lei a fazer-se próximo de todos (LC

10,36), imitando quem teve compaixão do moribundo. Contrário à lógica mais evidente é deixar noventa e nove ovelhas no deserto para procurar uma perdida, arriscando-se o pastor a ficar sem o rebanho (LC 15,4-7). A parábola do pai

misericordioso perturba-nos quando refletimos sobre as situações dos filhos. Ao mais novo, que pede ser tratado como um dos seus assalariados, o pai concede a dignidade de filho. E perante o mais velho, que despreza o mais novo com um constante «esse seu filho» (LC 15,30), responde invertendo a relação: «Esse seu

irmão […]» (LC 15,32). Angustiante é a mudança entre o rico e o pobre Lázaro: o

primeiro gozou dos seus bens durante a vida, o segundo é consolado na eternidade (LC 16,25). Se um juiz injusto escuta depois de muita insistência as

petições de uma viúva, Deus escuta rapidamente as dos seus eleitos (LC 18,7). A

diferença de comportamento que se verifica entre o fariseu e o publicano no Templo é inconcebível: o primeiro reza durante longo tempo, lembra as suas boas obras, mas não é reconhecido; o segundo assume-se como pecador e volta para casa reconhecido sem fazer qualquer sacrifício de expiação (LC 18,14).

Tudo é invertido, como uma pirâmide virada ao contrário! As parábolas da misericórdia abalam os ouvintes porque o agir de Deus que nelas transparece derruba qualquer certeza adquirida e obriga a rever o próprio modo de pensar Deus e de considerar Jesus.

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2.4. Do olhar interior, a misericórdia

A questão da misericórdia é uma questão de coração que, porém, não deveria ser confundida com sentimentalismo. O coração é, para a Bíblia, a sede do pensamento, das decisões mais íntimas. Por isso, “ter compaixão” ou misericórdia equivale a um movimento interior das víceras que do íntimo nos levam a aproximar-nos do outro. Se excluímos as parábolas mais breves, como a dos dois devedores, da ovelha perdida e da moeda encontrada, nas parábolas mais articuladas, o ponto de mudança dá-se no coração humano.

A compaixão por um moribundo, negada por um sacerdote e um levita, encontra-se num samaritano: «chegou junto dele, viu e se encheu de compaixão» (LC 10,33). A compaixão colocou asas nos pés do pai misericordioso:

«Ele ainda estava longe, quando seu pai o viu. Encheu-se de compaixão» (LC

15,20). Ainda que tenha sido obrigado a isso devido à fome, se o filho mais novo não tivesse caído em si, não teria decidido voltar ao lar paterno. Somente quando o juiz injusto fala consigo mesmo é que decide fazer justiça à viúva (LC 18,4). A

oração arrogante do fariseu contrasta com a intimidade do publicano: «Ó Deus, tem piedade de mim, pecador» (LC 18,13).

A beleza das parábolas da misericórdia encontra-se num coração humano aberto: descobre-se pelo grau de compaixão que demonstra para com o próximo. Estamos longe de uma misericórdia barata, em benefício de uma que gera e mede a paixão entre os seres humanos com a de Deus. Onde falta a disponibilidade de olharmos bem para dentro de nós mesmos, aí não existe misericórdia; resta apenas o disfarce de um homem rico, vestido de púrpura e de linho caríssimo, mas incapaz de olhar para o pobre Lázaro, que jaz abandonado à frente do portão da sua casa (LC 16,19)!

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3. A quem se dirigem as parábolas da misericórdia?

A misericórdia de Deus é para todos, mas é para pessoas bem precisas. Os destinatários das parábolas são de dois tipos: os internos e os externos, que as escutam.

Os dois devedores, perdoados pelo seu credor, envolvem Jesus, Simão e a pecadora! Se no início da parábola do bom samaritano o moribundo é destinatário da compaixão, no final o próximo é o próprio samaritano. Por isso, o doutor da Lei é exortado a fazer-se próximo do outro. Na mesma situação da ovelha e da moeda encontradas estão os pecadores, ao passo que os fariseus e os escribas parecem partilhar a sorte das noventa e nove ovelhas deixadas no deserto, e das nove moedas que foram deixadas em segurança (mas nem tanto!). A parábola do pai misericordioso é atravessada pela compaixão e pela súplica que o pai faz pelos dois filhos. Desta vez é mais difícil convencer os fariseus e os escribas porque são pessoas conscientes, ao contrário das ovelhas e das moedas. Enquanto o pobre Lázaro é levado pelos anjos para o seio de Abraão, o rico não vê atendido nenhum dos seus pedidos. Os que gostam muito de dinheiro não se iludam pensando que o seu alegre estilo de vida vai continuar no além. Se a viúva é destinatária de uma misericórdia que o juiz injusto lhe decide conceder, muito mais Deus escuta os seus eleitos. Um é justificado porque se reconhece pecador, mas não o fariseu que se exalta. Quem se exalta desprezando os outros tem algo para refletir perante uma parábola tão fulgurante.

A escolha, para os pecadores, não é ditada pelo populismo, nem por uma revolução social, mas porque Jesus escolhe os últimos para envolver os primeiros. Caso contrário, é fácil ceder a uma misericórdia para poucas pessoas, que viaja sobre o binário do mérito, e não sobre o da graça.

Imponente é a ponte que liga a primeira e a última parábola da misericórdia: a primeira é contada na casa de Simão, o fariseu, enquanto uma pecadora lava os pés a Jesus (LC 7,42-43); a última faz entrar em cena um fariseu e um cobrador

de impostos que se reconhece pecador (LC 18,9-14). As parábolas da misericórdia

não deixam ninguém indiferente: envolvem os ouvintes no íntimo e fazem-nos entrar na narrativa.

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II

A

QUELE A QUEM POUCO FOI PERDOADO

,

POUCO AMA

:

OS DOIS DEVEDORES

L

C

7,36-50

A breve parábola narrada em LC 7,41-43 ilumina diversas situações da vida

pública de Jesus: Ele convive com os pecadores e as pecadoras, até para ter o direito de lhes perdoar os pecados. Esta é uma prerrogativa que, para os judeus daquele tempo, pertencia somente a Deus e era regulada pelos sacerdotes no Templo. A parábola é narrada enquanto Jesus está almoçando na casa de Simão, o fariseu: pela sua beleza, merece ser lembrada a cena na qual a parábola é proferida:

Um fariseu convidou Jesus para comer com ele. Jesus entrou na casa do fariseu e se pôs à mesa. E eis que uma mulher, conhecida na cidade como pecadora, soube que Jesus estava à mesa na casa do fariseu. Ela chegou com um frasco de alabastro cheio de perfume. Ficou por detrás, aos pés de Jesus, e chorava. Com as lágrimas, começou a banhar os pés de Jesus, a enxugá-los com os cabelos, a cobrir de beijos os pés dele e a ungi-los com perfume. Quando viu isso, o fariseu que tinha convidado Jesus começou a pensar: “Se esse homem fosse profeta, saberia quem é que está tocando nele, e que tipo de mulher é essa, pois é uma pecadora”. Jesus então lhe disse: “Simão, tenho uma coisa para lhe dizer”. Ele respondeu: “Fale, Mestre”. Disse-lhe Jesus: “Certo credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentas moedas de prata, e o outro devia cinquenta. Como eles não tinham com o que pagar, ele perdoou a dívida dos dois. Qual deles o amará mais?” Simão respondeu: “Suponho que é aquele a quem ele perdoou mais”. Jesus lhe disse: “Você julgou certo”. E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: “Você está vendo essa mulher? Entrei em sua casa e você não me ofereceu água para lavar os pés, mas ela os lavou com lágrimas e os secou com os cabelos. Você não me deu o beijo de saudação, mas ela não para de beijar meus pés desde que entrei aqui. Você não derramou óleo em minha cabeça, mas ela

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ungiu meus pés com perfume. Por isso eu lhe digo: os muitos pecados dela estão perdoados, pois ela muito amou. Mas aquele a quem pouco foi perdoado, pouco ama”. E disse a ela: “Seus pecados estão perdoados”. Os que estavam à mesa começaram a comentar entre si: “Quem é esse que até perdoa pecados?” E então Jesus disse à mulher: “Sua fé a salvou. Vá em paz”.

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1. O embaraço do amor

A hospitalidade que Jesus recebe na casa de Simão, o fariseu, é de uma intimidade perturbadora. A oportunidade é oferecida por um dos habituais convites para almoçar, que Jesus aceita de bom grado. Durante o almoço, apresenta-se uma mulher que era conhecida na cidade pela má fama. Sem ser convidada, nem pedir autorização a ninguém, aproxima-se de Jesus, lava-lhe os pés com as lágrimas, enxuga-os com os cabelos, beija-os e perfuma-os. Os seus gestos espantam, porque se trata de uma pecadora, como foi imediatamente rotulada por Simão. Todavia, a atenção de Simão concentra-se não na pecadora, mas em Jesus: Como pode ser considerado um profeta alguém que deixa que lhe lavem os pés daquela maneira? Portanto, sob juízo está não a mulher, logo considerada pecadora, mas Jesus que, deixando-se tocar por ela, se contamina com o pecado dela.

A pecadora realiza certos gestos que desconcertam Simão e os convidados. Com as mãos, as lágrimas e os cabelos contamina Jesus. Como transmitir um Evangelho tão escandaloso? Somente uma parábola pode fazer entender o escândalo provocado por Jesus!

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2. Os dois devedores

A paixão de Jesus pelos pecadores é densa de humanidade e gratuita, sem segundas intenções. A breve parábola esclarece o que se verifica na casa de Simão. É tanto mais breve quanto incisiva e consegue o que pretende! Para não revelar de imediato o impacto da parábola sobre a situação, Jesus conta a história de dois devedores e de um credor. Como habitualmente, Ele não chama os devedores e o credor pelo seu nome, mas invoca a atenção sobre o fundamental da história. O mesmo credor deve receber do primeiro devedor quinhentas moedas de prata e do segundo, cinquenta. A desproporção é notável porque as cinquenta moedas de prata do segundo devedor são multiplicadas por dez em relação à soma do primeiro devedor. Para vincar a ideia, cinquenta moedas de prata correspondem a cerca de dois meses de trabalho, e quinhentas moedas equivalem a dois anos e meio de trabalho dependente.

Jesus explicita que os dois devedores não podem restituir as somas devidas e são perdoados pelo seu credor. Aos personagens da parábola não é concedida nenhuma palavra: não se transcreve diálogo algum entre os devedores e o seu credor. Toda a atenção se concentra sobre a expressão «perdoar aos dois», que exprime a afirmação da graça em favor dos devedores. E é a graça do credor que provoca a pergunta de Jesus a Simão: «Qual deles o amará mais?».

Simão ainda não percebe ser ele uma das partes em causa e responde que é o devedor a quem foi perdoada a maior soma de dinheiro que amará mais o seu credor. A sua resposta desmascara-o e acusa-o! Se estivesse com mais atenção à parábola, ter-se-ia lembrado de que, sendo cada pecado um débito que se contrai, somente a graça pode saldar a dívida que todos têm com Deus. Vê-se que Simão não consegue superar o trauma pela graça que Jesus concede à pecadora.

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3. Aquele a quem pouco foi perdoado, pouco ama

A parábola dá lugar à revelação da situação. Simão é como o devedor de dois meses de trabalho e, por isso, não deu água a Jesus para os pés, nem lhe deu um beijo, nem lhe ungiu a cabeça. A pecadora é como o devedor que deve dois anos e meio de trabalho: nunca conseguiria saldar a dívida. A única saída é a graça para ambos! O maior impacto da parábola sobre a situação recai sobre a relação entre a remissão dos pecados e o amor da pecadora. Infelizmente, diversas traduções dizem, na frase do versículo 47, o seguinte: «São-lhe perdoados os pecados porque muito amou». Na realidade, o original em grego exprime a consequência da remissão dos pecados: «Foram-lhe perdoados os pecados e por isso muito amou». Se não se lhe tivesse perdoado uma culpa tão grande, agora não teria capacidade para amar; a mulher é capaz de amar porque lhe foi dada uma graça sem condições.

A segunda parte da resposta de Jesus confirma o primado da graça: «Aquele a quem pouco foi perdoado, pouco ama» (v. 47). A afirmação liga a parábola à vida: quem não vive o amor gratuito de Deus, não está em condições de o amar.

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4. A remissão dos pecados e a fé que salva

Durante um único almoço, Jesus escandaliza todos os hóspedes: «Quem é esse que até perdoa pecados?» (v. 49). A pergunta encerra uma resposta lógica: «Quem pode perdoar pecados, a não ser Deus somente?» (Lc 5,21). E para que Deus possa perdoar os pecados, é obrigatório expiá-los segundo a Lei. Portanto, Jesus apropria-se de um direito divino, e não humano, o que seria um abuso de poder.

Todavia, este mesmo abuso preenche a lacuna entre a parábola e a realidade do encontro em casa de Simão. Com o poder de perdoar os pecados a uma pecadora, Jesus está em linha com o modo de agir de Deus; e o faz porque reconhece a fé que a pecadora teve, desde o início, no seu poder de perdoar os pecados. Se, informada da sua presença em casa de Simão, comprou logo um frasco de perfume caro e superou qualquer obstáculo, é porque foi ajudada por uma inabalável confiança: Jesus é capaz de perdoar os pecados, como um credor a quem se devem quinhentas moedas de prata.

A fé é a única condição que Jesus pede para se ser salvo; é o denominador comum dos seus milagres. Perdoar o pecado a uma pecadora é como curar um paralítico ou um cego: em ambos os casos, é a fé que salva, e não o milagre.

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5. Que impacto sobre a comunidade?

Voltemo-nos agora para a parábola do rei bom e do servo impiedoso, contada em MT 18,23-35. Como na parábola de LC 7,41-43, fala-se de um credor (o rei) e

de dois devedores (os servos): o primeiro servo deve ao rei dez mil talentos; a sua súplica suscita a compaixão do rei, que lhe perdoa a dívida. Infelizmente, logo que sai do palácio, esse mesmo servo encontra um outro servo que lhe deve cem denários: logo o agride rudemente e o mete na cadeia.

A desproporção das dívidas é incalculável: se na época de Jesus um talento corresponde a dez mil denários, dez mil talentos são uma soma inconcebível em relação aos cem denários que o segundo servo deve ao primeiro. Na prática, com um semestre de trabalho, o segundo servo poderia pagar a dívida, mas o primeiro servo nunca poderia resolver a sua grande dívida para com o rei. Mas a graça que o primeiro servo recebeu do rei foi inútil! Informado do que aconteceu, o rei condena-o: “Então o senhor chamou o tal servo à sua presença e lhe disse: ‘Servo malvado! Eu lhe perdoei toda aquela dívida porque você me suplicou. Não devia você também ter compaixão de seu companheiro, como eu tive compaixão de você?’” (MT 18,32-33). Então, o servo foi entregue aos torturadores, até que

saldasse a dívida, impossível de pagar durante uma vida inteira. A conclusão da parábola é dramática: “Assim também fará com vocês o meu Pai celeste, se cada um de vocês não perdoar de coração o seu irmão” (cf. MT 18,35).

A Igreja é composta por servos aos quais é perdoada uma dívida ilimitada, para que possam perdoar aos outros servos. E que será de uma Igreja que impõe condições à misericórdia de Deus, embora tenha recebido a ordem de perdoar até setenta vezes sete ou para sempre (MT 18,21-22)? Seremos capazes de

reconhecer que a misericórdia de Deus supera qualquer pecado humano e que nunca se deve transformar num direito adquirido por nós mesmos e numa concessão ao outro?

Com Jesus, a misericórdia de Deus contamina-se de miséria humana e redime-a, transformando-a na gratuidade de um amor incondicional. Não há episódio mais íntimo nos evangelhos do que o que se verifica na casa de Simão: uma pecadora que toca nos pés de Jesus, os lava com lágrimas, os enxuga com os

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cabelos e os beija com os lábios. De acordo com os evangelhos, a mais ninguém, nem mesmo a sua Mãe, Jesus concedeu tal intimidade. A misericórdia de Jesus redime a miséria humana não apenas tocando-a de leve, mas deixando-se contagiar.

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III

A

COMPAIXÃO DE UM ESTRANGEIRO

:

O BOM SAMARITANO

L

C

10,25-37

A parábola do bom samaritano é uma das mais desafiadoras de Cristo. Jesus tinha iniciado recentemente uma viagem com os discípulos para Jerusalém e encontra um doutor da Lei com quem entra em diálogo sobre como herdar a vida eterna. O doutor pensa pô-lo à prova sobre uma das questões mais debatidas: Qual é o mandamento mais importante da Lei, do qual depende a vida eterna? A situação inspira a parábola do bom samaritano, que apresenta a relação delicada entre a Lei e o seu núcleo:

«E eis que um especialista da Lei se levantou e, para pôr Jesus à prova, lhe disse: “Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?” Jesus lhe respondeu: “O que está escrito na Lei? Como é que você lê?” Ele respondeu: “Ame o Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com toda a sua força, com toda a sua mente, e ao seu próximo como a si mesmo”. Jesus disse: “Você respondeu certo. Pratique isso, e você viverá”.

Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: “E quem é o meu próximo?” Jesus respondeu: “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó. Caiu nas mãos de assaltantes, que lhe tiraram a roupa, o espancaram e foram embora, deixando-o quase morto. Por coincidência, um sacerdote descia por esse caminho: ele o viu e passou pelo outro lado. Do mesmo modo um levita que chegou àquele lugar: viu e passou pelo outro lado. Mas um certo samaritano, que estava viajando, chegou junto dele, viu e se encheu de compaixão. Aproximou-se dele e tratou suas feridas, derramando nelas óleo e vinho. Então colocou o homem em seu próprio animal e o levou a uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, tirou duas moedas de prata, deu-as ao dono da pensão e disse: ‘Cuide dele. Quando eu voltar, lhe pagarei o que você tiver gasto a mais’. Qual dos três, na sua opinião, foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos assaltantes?” Ele

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respondeu: “Aquele que o tratou com misericórdia”. E Jesus lhe disse: “Vá, e faça você também a mesma coisa”».

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1. O mandamento mais importante

Entre os diversos grupos religiosos na Palestina do tempo de Jesus, parece que foram debatidas duas questões centrais sobre a Lei de Moisés: Qual é o mandamento mais importante? E quem é o próximo que devemos amar? A multiplicação das leis tornava necessário chegar a uma síntese essencial da Lei. No outro prato da balança, as tensões políticas entre os diferentes grupos, incluindo os samaritanos, exigiam que se definisse a quem se devia amar: somente quem pertencesse ao mesmo movimento religioso ou também quem partilhasse da fé no único Deus, como também o faziam os samaritanos? Portanto, ainda que a pergunta do doutor seja tendenciosa, porque pretende fazer Jesus cair numa armadil .ha, reflete o que se debatia nos vários movimentos da Palestina.

A primeira parte do diálogo aborda a questão: perante a multiplicação das leis, o doutor da Lei e Jesus concordam que o amor a Deus e ao próximo é a condição necessária para se herdar a vida eterna. O doutor da Lei cita, na sua resposta, a passagem de DT 6,5 e de LV 19,18 para unificar o amor a Deus e ao próximo.

Aqui chegados, o doutor da Lei tenta uma armadilha mais insidiosa: Quem é esse próximo que devo amar? O irmão, o familiar, o amigo, o estrangeiro ou até o inimigo? Pode considerar-se próximo alguém que ignora o amor a Deus? Com uma estratégia magistral, Jesus alinha a parábola do bom samaritano com os dois mandamentos: fala do mandamento do amor pelo próximo para envolver o amor consagrado a Deus, sem o nomear.

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2. O sacerdote, o levita e o samaritano

Como habitualmente, as personagens da parábola são anônimas, mas a atenção de Jesus concentra-se nas suas identidades religiosas e étnicas. Jesus parte de uma situação longínqua: ainda não chegou a Jericó, na viagem para Jerusalém, e já pensa num homem que desce da cidade santa para Jericó. A estrada que ligava as duas cidades (cerca de 27 quilômetros) era perigosa, porque era atravessada por Wadi Quelt. Enquanto Jerusalém está a 750 metros de altura, Jericó encontra-se a cerca de 400 metros abaixo do nível do mar. Por isso, como narra a parábola, é preciso “descer” de Jerusalém para chegar a Jericó. Jesus refere que alguns bandidos atacaram um homem e o deixaram meio morto. A condição de quem está agonizante assinala um ponto nevrálgico da parábola. Pode-se entrar em contato com um moribundo sem se arriscar a uma contaminação?

Não foi por acaso que se escolheram três personagens que, de modos diversos, se encontram envolvidos na questão do culto ao Deus único: um sacerdote que sobe (ou desce) de Jerusalém para o serviço no Templo; um levita que pertence à classe sacerdotal, mas pode também não exercer o serviço cultual; e um samaritano. E aqui as contas começam a não fazer sentido, porque a tríade normal compreende um sacerdote, um levita e um israelita (DT 18,1; 27,9). O

samaritano é um terceiro incômodo porque, segundo a mentalidade judaica, é um impuro e deve ser considerado como um estrangeiro. No diálogo entre Jesus e a samaritana, revela-se o motivo principal de atrito entre os dois povos: Em que monte se deve adorar a Deus? Em Jerusalém ou no monte Garizim? (JO 4,20).

Segundo a Lei de Moisés, todo aquele que tocar num cadáver fica impuro durante uma semana; se se contaminar e praticar um ato de culto, deve ser expulso de Israel (Nm 19,11-13). A norma vale com maior razão para o sacerdote, até mesmo no caso de um morto na sua família (Lv 21,1-4). Escolhe-se assim uma situação-limite, em que o sacerdote e o levita são colocados perante a alternativa entre a observância das regras de pureza cultuais e o socorro de um moribundo. Todavia, é importante esclarecer que as normas cultuais não desculpam o sacerdote e o levita, porque, em situações como a da parábola, eles

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também estão obrigados a socorrer um moribundo; no entanto, ambos o veem e passam ao largo.

Finalmente, um samaritano vê aquele moribundo, sente compaixão e cuida dele. Assim, a parábola cria um contraste insustentável: o que um sacerdote e um levita não fazem, realiza-o um samaritano, que é um inimigo. O conteúdo da parábola começa a ser provocativo, porque o amor para com Deus não garante o que se deve ao próximo; pelo contrário, o que se esperaria de quem conhece melhor o amor para com Deus (o sacerdote e o levita), é realizado por quem é definido somente pela sua diversidade. O moribundo recebe a salvação de um estrangeiro!

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3. Da compaixão à cura

A parábola atinge um ponto de mudança quando se refere que um samaritano «teve compaixão» do moribundo (v. 33); e, no final, o doutor da Lei reconhece que o próximo foi «aquele que o tratou com misericórdia» (v. 37). Vale a pena refletir no verbo que exprime a compaixão do samaritano. O verbo “compadecer” (splanchnízomai) deriva do sustantivo splánchna que, em grego, refere as vísceras humanas, incluindo o coração. Segundo a forma habitual de pensar na época de Jesus, por vísceras entendem-se os próprios sentimentos: o amor, a compaixão e a misericórdia. O samaritano não se limita a olhar para o moribundo, mas sente-se envolvido na parte mais íntima; e é tal a compaixão visceral que põe em movimento tudo o que lhe é possível para salvar o moribundo.

A verdadeira compaixão não é um sentimento, mas uma ação que produz a cura do outro. Com atenção aos detalhes, Jesus sublinha o cuidado extremo com que o samaritano tratou o moribundo: aproxima-se dele, desinfeta-o e enfaixa-lhe as feridas, carrega-o na sua montaria, leva-o para uma estalagem e trata-o bem. Superada a primeira noite, que é a de maior risco, o samaritano nota que o moribundo está vivo e entrega ao estalajadeiro duas moedas, que correspondem a dois dias de trabalho. Enquanto se despede, para retomar a sua viagem, garante ao estalajadeiro que, se houver necessidade de outras despesas, pagá-las-á no seu regresso.

Do início até o fim da narrativa, não se diz nada do moribundo: não se define pela sua origem nem pelo seu estatuto social. Toda a atenção recai sobre quem cuida dele, até pagar tudo do próprio bolso. A verdadeira compaixão compromete-se no bem e sai vencedora, apesar da perda de tempo e de dinheiro. Comenta bem Santo Ambrósio de Milão: «Não é o sangue, mas a compaixão quem cria o próximo» (Exposição sobre o Evangelho de Lucas 7,84).

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4. A reviravolta

À pergunta do doutor da Lei, Jesus responde com a parábola do bom samaritano; e a parábola faz luz sobre a vida porque subverte o modo comum de pensar. A propósito dos debates em voga no tempo de Jesus, observamos que aquele sobre a identidade do próximo está entre os mais acesos. Cada movimento tinha uma maneira diferente de entender o próximo que se deve amar. Jesus fornece a resposta mais original porque, apoiado em tudo aquilo que contou na parábola, revoluciona todo o debate.

Se no início o próximo é o moribundo, no fim é o samaritano. O moribundo responde à pergunta do doutor («E quem é o meu próximo?»), o samaritano à de Jesus: «Qual dos três, na sua opinião, foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos assaltantes?» O doutor não percebe que está tomando parte na cena. Com uma verdade desafiadora, reconhece que o próximo já não é o moribundo, mas quem teve compaixão dele. Assim, é obrigado a dar a resposta que não queria: o próximo é o samaritano, porém ele tem o cuidado de não o mencionar como tal.

Então Jesus revela-lhe como a parábola ilumina a vida. Exorta-o a entrar na lógica da parábola, como um leitor na narrativa: agir como o samaritano, fazendo-se próximo do outro. Colocada a partir do outro, a pergunta sobre o próximo provoca um debate sem solução. Somente quando a pergunta se dirige a nós mesmos é que se pode resolver a questão. A parábola transforma o modo comum de pensar o próximo a partir de nós mesmos: somente assim o próximo se define, não pela sua origem religiosa, cultural ou social, mas pela sua compaixão pelo outro.

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5. Jesus, o bom samaritano?

Desde a época dos Padres da Igreja, a parábola foi lida com os traços humanos de Jesus. São Clemente de Alexandria refere: «Quem mais teve compaixão de nós, de nós que, com as muitas feridas – com os nossos medos, paixões, invejas, aflições e alegrias dos sentidos –, estávamos sujeitos ao poder da morte, do príncipe do mundo das trevas? Jesus é o único capaz de curar estas feridas, porque acaba com todos os sofrimentos de modo absoluto e até a raiz» (Que rico se salva?, 29).

Vários detalhes da parábola podem fazer pensar em Jesus, que, entre outras coisas, se entreteve a falar com uma samaritana (JO 4,9). Uma compaixão tão

íntima e capaz de se transformar em assistência aos doentes é própria de Jesus. Até mesmo os detalhes secundários, como o de deixar a pensão ao regresso do bom samaritano, fizeram pensar no período que passa entre a ressurreição de Jesus e a sua segunda vinda.

Todavia, a parábola seria empobrecida se a interpretação fosse apenas focada em Jesus. O que se disse do samaritano vale para Jesus, para a comunidade cristã, onde a dedicação ao próximo se transforma em atenção cuidadosa, e para qualquer pessoa que se reconhece no outro. Portanto, a parábola interpreta a vida quotidiana de cada um e transforma-a a partir de dentro: explica ao doutor da Lei de que modo o amor para com Deus não pode ser separado do amor ao próximo.

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6. O cumprimento da Lei

As primeiras comunidades cristãs colocaram-se na trajetória de Jesus e aprofundaram o impacto da parábola do bom samaritano. Em duas ocasiões São Paulo retoma o debate sobre o principal mandamento da Lei. Perante os cristãos da Galácia, que corriam o risco de se separarem entre si, lembra-lhes: «Pois toda a Lei encontra a sua plenitude num só mandamento: Pois a Lei toda está completa num só mandamento: “Amar o próximo como a si mesmo” (GL 5,14). A

liberdade cristã é absoluta porque é dom de Cristo: «É para a liberdade que Cristo nos libertou. Fiquem firmes, portanto, e não se deixem prender de novo ao jugo da escravidão» (GL 5,1). E até mesmo porque ela não se deve transformar em

anarquia, encarna-se no serviço ou no amor ao próximo. Quando depois se dirige aos cristãos de Roma, São Paulo volta a falar do mandamento do amor e considera-o a única dívida que os crentes devem conservar, porque estamos sempre em dívida no amor (RM 13,9). Em ambas as ocasiões, São Paulo não

menciona o amor a Deus, mas chama a atenção para o amor ao próximo. Como seria possível um desequilíbrio tão acentuado sem silenciar o amor a Deus?

A razão encontra-se na Primeira Carta de São João: «Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas odeia seu irmão, esse tal é um mentiroso. Pois, quem não ama seu irmão a quem vê, não pode amar a Deus a quem não vê» (4,20). O grande risco que São Paulo e São João vislumbram é que, em nome do amor a Deus, na Igreja se possam cometer graves abusos e omissões. Porque o amor a Deus é fácil de adaptar às próprias exigências, difícil é amar o próximo em carne e osso. Portanto, não é o amor a Deus que gera o amor ao próximo, mas o amor ao próximo é o espelho do amor a Deus.

Todavia, para não nos iludirmos, é oportuno voltar à fonte: ao amor que Deus tem por nós. Na sua primeira carta, São João precisa que «nós amamos, porque Ele nos amou por primeiro» (4,19). Quanto mais formos tocados pelo amor de Deus, tanto mais estaremos em condições para amar os outros. O amor pelo próximo nasce não de um projeto social, ou de um simples altruísmo: isto seria apenas como um aguaceiro de verão! Mas é sobretudo o amor que Deus e Jesus Cristo têm pelos seres humanos que provoca o estado febril naqueles que são

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obrigados a «não viver mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou» (cf. 2COR 5,15).

A parábola do bom samaritano dá sentido à vida humana: fazer-se próximo do outro porque, de fato, Deus se aproximou e continua a inclinar-se em Cristo sobre as feridas humanas. Tal mudança põe em causa o doutor da Lei e impõe-lhe uma mudança de mentalidade. Não se trata de escoimpõe-lher entre o amor a Deus e aquele para com o próximo, mas de reconhecer que quem ama o irmão que vê, ama sempre a Deus que não vê, embora o contrário nem sempre aconteça, sendo esta uma amarga realidade da vida humana. O amor a Deus passa sempre pelo amor ao outro, de quem devemos nos fazer próximos.

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IV

À

PROCURA DA OVELHA PERDIDA E DA MOEDA ENCONTRADA

L

C

15,1-7

O capítulo 15 do Evangelho de São Lucas é dos mais belos do Novo Testamento: em cena está a compaixão de Jesus Cristo pelos pecadores, explicada em três parábolas. As “parábolas da misericórdia” (a ovelha perdida, a moeda encontrada e o pai misericordioso) sucedem-se umas às outras, sem interrupção. Todavia, é bom que se distingam as primeiras duas parábolas, não só porque a terceira é muito mais desenvolvida, mas também pelo desfecho diferente. Enquanto as primeiras duas parábolas concluem com uma festa, a terceira deixa-nos com a respiração suspensa: não nos diz se o irmão mais velho decide participar da festa pelo regresso do mais novo ou se permanece sozinho.

Todos os cobradores de impostos e pecadores se aproximavam para ouvir Jesus. Mas os fariseus e os doutores da Lei murmuravam: “Esse homem recebe pecadores e come com eles”. Então Jesus lhes contou esta parábola: “Quem de vocês, se tiver cem ovelhas e perder uma, não deixa as noventa e nove no deserto e vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la? Quando a encontra, todo alegre a coloca nos ombros e, de volta para casa, chama os amigos e vizinhos, e lhes diz: ‘Alegrem-se comigo, porque encontrei minha ovelha perdida’. Eu lhes digo: da mesma forma, haverá mais alegria no céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão”.

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1. As várias categorias de pecadores

No tempo de Jesus, é possível distinguir quatro categorias de pecadores: físicos, raciais, sociais e morais. Parece que Ele se relacionou com todas as categorias mencionadas. A primeira categoria de pecadores é física e deve-se à concepção pela qual qualquer enfermidade física é devida ao pecado. As doenças são vistas como consequências do pecado, e não como condições naturais. Quando Jesus cura um cego desde a nascença, os discípulos interrogam-no sobre se a cegueira depende do pecado do doente ou do dos seus pais (JO 9,1-2). Além

da relação entre pecado e doença, na população palestiniana tinha-se difundido a ideia de que, porque só Deus podia perdoar os pecados, qualquer milagre devia ser pago através de uma purificação no Templo. Jesus assume o direito de purificar do pecado, como quando cura um paralítico descido pelo teto da casa (MC 2,1-12). O gesto foi visto como uma blasfêmia que escandalizou os

presentes.

A segunda categoria de pecadores é racial: os estrangeiros eram vistos como pecadores porque não observavam a Lei segundo as tradições judaicas. Nesta categoria entravam os samaritanos e os gentios que viviam na Palestina: a submissão à Lei de Moisés permitia serem libertados de tal forma de pecado. Por isso, aos gentios não era concedido entrar no Templo de Jerusalém, mas eram obrigados a respeitar os confins da santidade do lugar, sob pena de apedrejamento e de contaminação do lugar sagrado.

Ao significado racial do termo “pecador” acrescenta-se o social, consagrado aos cobradores de dívidas ou aos publicanos, que recolhiam as taxas obrigatórias devidas ao poder imperial. Equiparados aos usurários, os publicanos viviam dos juros aplicados aos impostos. Para fazer parte dos seus discípulos, Jesus escolhe Levi, filho de Alfeu, que convida a segui-lo enquanto trabalhava na cobrança de impostos. Para sublinhar a reintegração deste grupo de pecadores, Jesus conta a parábola do publicano e do fariseu no Templo (LC 18,9-14), sobre a qual

meditaremos.

A última categoria de pecadores é ética e compreende os usurários e as prostitutas. Pudemos observar que a mulher que lava os pés a Jesus na casa de

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Simão é uma pecadora. A samaritana, com quem Jesus se demora a falar, teve cinco maridos e vive com um que não é o seu (JO 4,1-30).

Jesus acredita que foi enviado para curar as feridas de todos os pecadores, não excluindo nenhum. Naturalmente por tratamento é acusado de ser pecador (JO

9,24-25), porque convive com pecadores. Mas os milagres desmentem a acusação, porque um pecador não pode realizar os prodígios que Ele realiza: as parábolas explicam as razões que o levam a atender os pecadores.

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2. O pastor e a ovelha perdida

Jesus não foi o primeiro a escolher um ambiente pastoril para falar da relação entre o pastor e as ovelhas. O profeta Ezequiel conta uma ampla parábola contra os pastores de Israel que pode ter inspirado a parábola de Jesus: “Eu mesmo conduzirei minhas ovelhas para o pasto e as farei repousar – oráculo do Senhor Javé. Procurarei aquela que se perder, trarei de volta aquela que se desgarrar, curarei a que se machucar, fortalecerei a que estiver fraca. Quanto à ovelha gorda e forte, eu a guardarei. Apascentarei conforme o direito” (Ez 34,15-16).

Todavia, a parábola de Jesus é paradoxal! Em cena entra um pastor que tem cem ovelhas, mas que, perdendo uma, deixa as restantes noventa e nove no deserto e sai à procura da ovelha perdida. Logo que a encontra, põe-a aos ombros, volta para casa, convoca os amigos e pede que se alegrem com ele. O paradoxo está na pergunta com que Jesus descreve a escolha do pastor: na realidade, ninguém deixaria noventa e nove ovelhas no deserto para procurar uma perdida – correr-se-ia o perigo de ficar sem as noventa e nove no deserto e até sem a única que não se está certo de encontrar.

O modo paradoxal de agir do pastor explica o de Jesus: aqueles que consideram ou presumem estar sem pecado são como as noventa e nove ovelhas abandonadas, sem pastor. O risco é partilhado entre as noventa e nove ovelhas no deserto e a ovelha perdida, com uma diferença substancial: a que se perdeu exige que se vá à procura dela, enquanto se pensa que as outras estão seguras.

A alegria liga a parábola à vida: encontrar a ovelha perdida é a felicidade do pastor e de Deus, que se alegram mais por um pecador convertido do que pelos noventa e nove justos que não precisam (ou se iludem de não ter necessidade) de conversão. Comovente é o modo como Jesus entende a conversão: é fruto não do sujeito que se converte, mas do agir divino que procura quem anda perdido. A conversão é sempre ação da graça, dada por quem põe a ovelha perdida aos ombros e regressa a casa; e porque este milagre depende da graça, a conversão exige ser partilhada. Aos fariseus e aos escribas, a escolha deve ser feita: partilhar a alegria da conversão, doada aos publicanos e aos pecadores, ou dificultá-la, caindo na presunção de poder permanecer no deserto, como um rebanho sem

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pastor à mercê dos perigos.

Por isso, o componente humano da conversão é importante, pelo menos porque as pessoas não podem manipular-se como as ovelhas. Todavia, a parábola não deve ser moralizada nem por parte das noventa e nove ovelhas, nem por parte da ovelha encontrada. Por outras palavras, não é necessário perder-se para depois ser reencontrado, nem ser deixado no deserto para não ser procurado por Deus. Todas as ações são do pastor, e não das ovelhas; para sublinhar bem a origem divina da conversão, Jesus também contou a parábola das moedas.

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3. A dona de casa e a moeda encontrada

A situação inconcebível do pastor e das suas ovelhas torna-se mais natural numa dona de casa que perde uma moeda e se empenha de todos os modos em procurá-la. Logo que a encontrou, a mulher convoca as amigas e as vizinhas, exorta-as a alegrarem-se com ela por ter encontrado a moeda perdida. Análoga é também a conclusão da parábola: junto dos anjos de Deus há alegria por um só pecador que se converta. Numa primeira leitura parece que o conteúdo das duas parábolas é o mesmo: às cem ovelhas correspondem dez moedas, e a ovelha perdida equivale à moeda perdida. Na realidade, a atenção concentra-se agora no empenho da mulher em procurar a moeda perdida, que vale muito menos do que uma ovelha. No tempo de Jesus, uma moeda de prata valia o mesmo que um denário ou um dia de trabalho dependente.

Apesar do relativo valor de uma moeda de prata, a dona de casa empenha-se totalmente em encontrá-la. Na parábola não se especifica o estatuto social da mulher, que no caso de uma condição de pobreza explicaria tanta preocupação pela moeda perdida. Aqui a atenção concentra-se na procura meticulosa e na alegria partilhada por ter encontrado a moeda de prata perdida. A dedicação e a alegria conferem real valor à moeda, mas não pelo seu valor nominal.

Uma moeda é inanimada; isto sublinha ainda mais a conversão concebida não como resposta humana, mas como ação da graça de Deus. A mais breve das parábolas da misericórdia não relaciona a moeda perdida com as outras, como, pelo contrário, a ovelha perdida com as outras noventa e nove e o filho mais novo com o mais velho. A dona de casa procura a moeda de prata por causa do valor que tem para ela, e não pelo confronto com as outras moedas. Mesmo que fosse apenas um pecador, valeria a pena procurá-lo, encontrá-lo e alegrar-se.

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4. Jesus e a comunidade com o rosto do pastor

Voltemos à relação entre o pastor e as ovelhas: aprofundemo-la com os evangelhos de São João e de São Mateus. No Evangelho de João 10,1-16, Jesus narra a semelhança do bom pastor (que se poderá traduzir por belo pastor), com quem se identifica. Ele é o bom pastor porque conhece pelo nome e dá a vida pelas suas ovelhas. No cuidado das ovelhas, o pastor é diferente dos mercenários e dos salteadores. Se o mercenário está interessado no seu salário, o pastor doa-se às ovelhas doa-sem olhar para despesas nem ao tempo necessário para que aprendam a familiarizar-se com ele. E enquanto o ladrão rouba as ovelhas, o pastor vive por elas e a elas se doa.

Aquilo que distingue o mercenário e o ladrão do pastor é o perigo! Quando se avista um lobo, o mercenário abandona as ovelhas e foge, porque elas não lhe interessam. O pastor reconhece-se não pela função que tem, mas perante a provação e os perigos que enfrenta: quando chega o momento em que deve decidir se foge para salvar a pele ou se fica e a perde pelas suas ovelhas. Neste dom total de si mesmo, até a morte, Jesus é o bom (e o belo) pastor: de uma beleza que deriva não do seu aspecto, mas da sua permanência com as ovelhas em situações de perigo.

Se no discurso sobre o bom pastor Jesus se distingue pela exclusividade de quem se doa a si mesmo até o derramamento de sangue, o Jesus do Evangelho de São Mateus acrescenta uma nova dimensão à relação entre o pastor e as ovelhas. Em Mt 18,12-14, aparece a mesma parábola de Lc 15,4-7, mas o contexto é diferente, porque faz parte de um discurso sobre a Igreja. A primeira parte do discurso é dedicada aos «pequeninos» que se devem acolher na comunidade cristã e culmina com a parábola do bom pastor. O contexto diferente volta a atenção para o impacto da parábola: «Assim também, não é da vontade do Pai de vocês que está nos céus, que se perca nenhum destes pequeninos» (Mt 18,14). A Igreja está envolvida na primeira pessoa na parábola porque lhe é confiada a vontade do Pai: que nenhum pequenino se perca.

A Igreja assume o rosto do Pai misericordioso quando é a mãe que procura a ovelha perdida: não esquece as noventa e nove nos montes, mas alegra-se por

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aquela que encontrou. Vê-se bem que agora a parábola do bom pastor envolve a Igreja e os seus pastores. Os pequenos que não encontram espaço na sociedade assumem direito de cidadania na comunidade cristã. Não só são acolhidos, mas devem ser procurados correndo o risco de não os encontrar. A uma Igreja que avança no caminho simples do puritanismo e da eficácia, Jesus contrapõe outra que põe no centro os pequenos. Se a Igreja está onde dois ou mais se reúnem em nome de Jesus, o rosto de Cristo na Igreja é o dos pequeninos.

Com genialidade, Alexandre Manzoni reescreveu a parábola da ovelha perdida, quando conta os encontros do namorado com Lúcia e o cardeal Federigo Borromeo. Não nos podemos alongar nos capítulos XXI e XXIII de Os Noivos:

recomendamo-los pela sua beleza. Informamos apenas que estes capítulos se centram na frase de Lúcia quando encontra o namorado: «Deus perdoa tantas coisas por uma obra de misericórdia». A afirmação impede o namorado de se suicidar durante uma noite angustiante, e no dia a seguir vai encontrar-se com o cardeal Federigo. Por seu lado, o cardeal reconhece a sua culpa e censura-se, porque ele é que deveria ter saído à procura daquele rapaz, em vez de estar à espera de ser visitado; é então aqui que aparece a releitura da parábola: «Deixemos as noventa e nove ovelhas […] em segurança no monte: agora quero ficar com esta que se perdeu. Aquelas almas estão talvez agora muito mais contentes do que ao verem este pobre bispo. Talvez Deus, que em vós operou o prodígio da misericórdia, difunda nelas uma alegria cuja causa ainda não entendem».

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V

U

MA COMPAIXÃO EXCESSIVA

:

O PAI MISERICORDIOSO

L

C

15,11-32

Com todo o respeito pelas duas primeiras parábolas da misericórdia, o ser humano é diferente de uma ovelha e, mais ainda, de uma moeda! Consciente desta enorme diferença, Jesus construiu uma história que é uma obra-prima. Eis-nos, pois, perante uma excelente parábola, porém na condição de que se mude o seu título: não «o filho pródigo» nem sequer «o pai bom», mas «o pai misericordioso» ou «compassivo». Mas leiamos a parábola com a sua riqueza e profundidade.

Jesus disse também: “Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: ‘Pai, me dê a parte da herança que cabe a mim’. Então o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, o filho mais novo juntou tudo e partiu para uma região distante. E ali esbanjou seus bens, numa vida desregrada. Quando já tinha gasto tudo, houve uma grande fome naquela região, e ele começou a passar necessidade. Foi então até um dos habitantes daquela região, que o mandou para seus campos, a fim de cuidar dos porcos. Ele queria matar a fome com a comida dos porcos, mas ninguém lhe dava nada. Então, caindo em si, ele disse: ‘Quantos empregados de meu pai têm comida de sobra, e eu aqui, morrendo de fome! Vou me levantar, irei até meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra o senhor. Já não mereço ser chamado seu filho. Trate-me como um dos seus empregados’. Então se levantou e foi ter com seu pai.

Ele ainda estava longe, quando seu pai o viu. Encheu-se de compaixão e, correndo, lançou-se ao pescoço dele e o beijou com ternura. O filho então lhe disse: ‘Pai, pequei contra o céu e contra o senhor. Já não mereço ser chamado seu filho’. Mas o pai disse a seus servos: ‘Tragam rápido a melhor túnica e a vistam nele. Ponham um anel no dedo dele e sandálias nos pés. Peguem o bezerro gordo e o matem. Vamos comer e festejar! Porque este meu filho estava

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morto e voltou a viver, estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festejar. Seu filho mais velho estava no campo. Quando voltava, já perto de casa, ouviu música e danças. Chamou um dos servos e lhe perguntou o que era aquilo. Ele lhe disse: ‘Seu irmão chegou, e seu pai matou o bezerro gordo, porque o recuperou com saúde’. Então ele ficou cheio de raiva e não queria entrar. Seu pai saiu e insistia com ele. Mas ele respondeu ao pai: ‘Eu sirvo o senhor há tantos anos, e nunca desobedeci a nenhuma ordem sua. E o senhor nunca me deu um cabrito para eu festejar com meus amigos. Agora, porém, que veio esse seu filho, que devorou os bens do senhor com prostitutas, o senhor matou para ele o bezerro gordo’. O pai lhe respondeu: ‘Filho, você está sempre comigo, e tudo o que é meu é seu também. Mas era preciso festejar e se alegrar, porque esse seu irmão estava morto e voltou a viver, estava perdido e foi encontrado’”.

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1. Para além de qualquer retribuição

A parábola do pai misericordioso é um emaranhado que se pode desenlear escolhendo um dos vários fios que a compõem. Escolhamos aquele que nos parece ser o mais importante e que lhe subjaz: a retribuição. Desde o início, Jesus sinaliza o tema da retribuição, que é um dos direitos humanos mais naturais. Um homem tem dois filhos; um deles, o mais novo, pede-lhe a sua parte e o pai divide o patrimônio. Naquela época, a Lei judaica previa que o primogênito recebesse dois terços da herança, enquanto o mais novo só tinha direito a um terço dela (Dt 21,17). Sem levantar problemas, o pai entrega ao filho mais novo a parte que lhe pertence. Enquanto o mais novo gasta sua parte vivendo dissolutamente num país longínquo, a outra parte do patrimônio fica em segurança e é administrada pelo filho mais velho. Segundo um equitativo e justo modo de pensar, se e quando o filho mais novo voltasse para casa, não poderia reclamar mais nada, nem do pai nem do irmão mais velho. A culpa grave do filho mais novo poderá ser no máximo perdoada, mas não esquecida! Se alguma vez o pai esquecesse aquele triste acontecimento, o mais velho estaria sempre pronto a lembrá-lo a ambos. Seria assim respeitada a lei da retribuição: a recompensa pelo bem a quem cumpre o bem, e a recompensa pelo mal a quem faz o mal.

Na realidade, a parábola transgride, do princípio ao fim, a lei da distribuição patrimonial, revelando o excessivo amor do pai. O pai não está à espera dos filhos em casa, nem verifica se o mais novo está realmente arrependido, nem questiona o que aconteceu à parte da herança que tinha repartido, mas organiza uma festa com música e danças. Inconcebível é também como o pai se comporta com o filho mais velho: não está à sua espera quando volta do campo, onde trabalha por conta da família, nem lhe pergunta como agir com o mais novo. A parábola que revela o rosto mais humano de Deus representa-o em excesso e não por defeito: a Deus não falta humanidade, mas tem-na em excesso!

Ao contrário do pai, que transgride a lei da distribuição da herança, os dois irmãos não conseguem ir além da lógica do dar e receber. O filho mais novo recebe a parte da herança que lhe pertence, que gasta com prostitutas, mas decide regressar a casa quando se vê no extremo das forças. O filho mais novo

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não vai à procura do pai porque está arrependido, mas porque não consegue encontrar nenhuma saída. Em tal situação, o máximo que consegue imaginar é ser tratado como um dos muitos trabalhadores da casa paterna; o que o obrigou a isso não foi o arrependimento, mas a fome!

Nos confins da retribuição encontra-se também o filho mais velho: serviu o pai durante anos, nunca transgrediu uma ordem sua e esperava que, quando menos julgasse, lhe desse pelo menos um cabrito para fazer uma festa com os amigos. Perante a compaixão do pai, o filho mais velho acusa-o de ter transgredido o princípio da retribuição; não consegue considerar-se filho do mesmo pai como o seu irmão, mas define-o somente como «esse seu filho». Encurralar o pai no nicho da retribuição impede-o de reconhecer a sua paternidade e a fraternidade do outro irmão.

Alguns comentadores notam a ausência da figura materna na parábola. Na realidade, visto que o fio condutor apenas reside na distribuição do patrimônio familiar, tal direito/dever entrava nas competências do pai, e não da mãe. Na Carta aos Gálatas, São Paulo recorda que o benefício da herança dos filhos cabe ao pai, que pode estabelecer a repartição como e quando desejar (Gl 4,1-3). Aprofundemos a excessiva compaixão do pai que se relaciona com os seus filhos.

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2. Por duas vezes o pai sai de casa

Entre os múltiplos e diversos conflitos que se verificam dentro dos muros domésticos, é difícil, senão impossível, imaginar um pai que abandona a sua posição para chegar junto de um filho de quem se perdeu o rasto. Se o título «o filho pródigo», proposto pela parábola, é inadequado, é porque o protagonista é o pai, que se interpõe entre ambos os filhos e transgride o direito da distribuição hereditária.

No início da narração, o pai limita-se a ouvir o pedido do filho mais novo. Não é oferecida nenhuma explicação sobre as razões pelas quais o filho pede o que é seu. Por que está em conflito com o irmão mais velho? Não partilha o modo de agir do pai? Necessita de uma vida autônoma? Não é apresentada nenhuma razão porque ao narrador não interessam as motivações, mas o rápido afastamento do filho da casa paterna. Depois de ter descrito a vida dissoluta do filho mais novo, o pai entra novamente em cena com alguns gestos incríveis: vê chegar ao longe o filho, o que significa que espera por ele desde que se foi embora, sente compaixão, vai ao encontro dele, agarra-se-lhe ao pescoço e beija-o (v. 20). Durante alguns instantes, deixa abeija-o filhbeija-o a pbeija-ossibilidade de lhe comunicar o que tinha preparado para aquele encontro. Interrompe-o antes de ouvir o pedido para ser tratado como um empregado e ordena aos servos para irem buscar a melhor túnica, para lhe porem o anel no dedo e as sandálias nos pés, matarem o novilho gordo e organizarem e festejarem. De todas as ações que o pai realiza em favor do filho mais novo, a decisiva é a que marca a viragem da parábola, e está presente na expressão «encheu-se de compaixão» (v. 20).

O pai ama visceralmente o filho perdido, até sentir por ele a paixão humana mais profunda. Já encontramos este mesmo verbo na viragem da parábola do bom samaritano: «encheu-se de compaixão…» (LC 10,33; 15,20) A compaixão do

bom samaritano pelo moribundo é a mesma do pai pelo filho perdido. Sem compaixão, é impossível correr ao encontro do filho, lançar-se ao seu pescoço e reintegrá-lo na dignidade perdida. São João Paulo II, na Encíclica Dives in misericordia, dedica o quarto capítulo à nossa parábola: «A fidelidade do pai a si próprio está inteiramente centralizada na vida do filho perdido, na sua

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dignidade» (Dives in misericordia, n. 6). No centro da parábola está a misericórdia do pai, e não a sua bondade. Se a bondade é uma qualidade do caráter, a misericórdia é uma dimensão que amadurece no íntimo e se concretiza em gestos pelo próximo.

A prova mais dura ainda está ainda por vir e verifica-se quando é desvendado o modo de pensar do filho mais velho. Dramática é a recusa do mais velho, que decide nem sequer entrar em casa; a raiva petrifica-o junto da porta onde terá passado inúmeras vezes. Então o pai decide sair novamente de casa para lhe suplicar. Desta vez, o preço é mais elevado do que o que pagou o filho mais novo: o pai deve aguentar uma lamentação que o queima! O mais velho acusa-o de ser avarento, de nem sequer se ter disposto a dar-lhe um cabrito para festejar com os amigos. Um pai em contradição consigo mesmo é aquele que não paga a quem lhe é fiel, enquanto manda matar o bezerro gordo por aquele que dizimou tudo o que tinha. A raiva leva o mais velho a deformar a verdade que conhece desde o início: perante o pedido do mais novo da parte que lhe pertence, o pai não levantou problemas; e os três quartos do patrimônio familiar são do filho mais velho.

A misericórdia do pai é ilimitada: poderia responder que, enquanto a casa for sua, quem manda é ele. Segundo o direito patrimonial, enquanto viver, pode fazer o que quiser com os seus bens! Pelo contrário, o pai cala-se sobre a situação do filho mais velho e exorta-o a repensar as suas relações. A ternura com que se dirige ao filho mais velho é imensa: embora este nunca o tenha chamado «pai», ele é que o chama «meu filho» (teknon), um termo que denota uma relação íntima. O pai reconhece que o patrimônio que possui é do filho mais velho, mas isso não lhe interessa. A sua preocupação concentra-se mais no contraste entre «esse seu filho», que lhe foi apontado pelo mais velho, para o transformar «nesse seu irmão». A conversão mais profunda que o pai esperava não é a do filho mais novo, que voltou para casa somente porque de outra forma morreria de fome, mas principalmente a do filho mais velho, incapaz de reconhecer o pai e o irmão.

Antes de “uma Igreja em saída…”, esta parábola revela “um pai em saída”: pela sua excessiva compaixão para com os dois filhos, não espera por eles no centro

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da mesa no salão, mas corre ao encontro do mais novo e conversa com o mais velho para a ambos assistir com a sua misericórdia.

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3. O filho morto que voltou a viver

Este é o drama do filho mais novo: quanto mais se afasta do pai, mais chega a uma degradação sem fim. Depois de ter recebido a parte do patrimônio que lhe pertencia, o filho emigra para uma região longínqua, onde gasta toda a sua herança e vive dissolutamente. Se nessa região longínqua existe uma vara de porcos, significa que se está fora da terra santa onde não é permitido criar porcos, porque são considerados animais impuros. Portanto, guardar porcos é para o filho mais novo o grau elevado de humilhação, ao ponto de nem sequer lhe serem dadas a comida que os porcos comiam. Quando Santo Agostinho de Hipona refletiu sobre sua vida, antes da conversão, fez ressoar a condição do filho mais novo: «Na adolescência, afastei-me de Vós, andei errante, meu Deus, muito desviado do vosso apoio, tornando-me para mim mesmo uma região de fome» (Confissões 2,10,18).

A condição da máxima indigência conduz o jovem a entrar em si mesmo e a refletir sobre a situação em que caiu. Lamenta-se pensando nos empregados da casa paterna: enquanto ele nem pode comer a comida dos porcos, eles têm pão em abundância. Então decide empreender a viagem de regresso e pedir ao pai que o trate como um de seus assalariados, para não morrer de fome. Vendo bem o filho mais novo, reconhece haver pecado contra o céu e contra o pai, mas pensa ser suficiente ser tratado como um trabalhador. O que mais lhe interessa é receber finalmente o pão para cada dia; e porque não consegue encontrar melhor solução, inicia o caminho de regresso.

Terá sido enorme o embaraço que o filho sentiu ao chegar perto do pai, que correu ao seu encontro, agarrando-se ao seu pescoço e beijando-o. Imerecida é a compaixão do pai, capaz não só de saciar a fome do filho, mas também de lhe dar a dignidade perdida. Apressadamente e sem nenhum pedido de explicações, nem de contas, o filho veste a melhor túnica, tem o anel no dedo e as sandálias nos pés. Antes de voltar a ver o pai, estava reduzido a um ser indecente, não tinha nenhuma dignidade como filho, mas a indignidade dos animais impuros que estava proibido de comer.

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voltou a acolher o filho na família: estava morto, mas voltou à vida, estava perdido e foi encontrado. O que volta a dar vida a quem está morto não é o arrependimento, mas a excessiva compaixão do pai pelo filho, que dele fez uma criatura nova e com uma vida nova. A compaixão do pai não se fez somente de comoção, mas transformou-se em paixão capaz de fazer nascer a vida onde existia a morte.

Referências

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