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A PAISAGEM DE FEIRA DE SANTANA NA POÉTICA DE EURICO ALVES 1

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A PAISAGEM DE FEIRA DE SANTANA NA POÉTICA DE EURICO ALVES1 José Roberto dos Santos Queiroz (UEFS) Feira de Santana, como se sabe, é considerada a “princesa do sertão”, pela sua importância simbólica da cultura sertaneja. Também é o lugar de nascença de Eurico Alves (1909). Esta cidade, frequentemente é cantada pelo poeta baiano sempre que deseja determinar a si e aos possíveis interlocutores, sua origem. Revela assim, portanto, o seu lugar. Este é uma pausa no espaço, na teoria de Yi-Fu Tuan, em Espaço e lugar, é o que nos dá segurança diante da vastidão do espaço: “O lugar é a segurança e o espaço é a liberdade: estamos ligados ao primeiro e desejamos o outro” (TUAN, 2013, p. 11). O lugar já não existe por si só, ele ganha novos sentidos a partir de como o vemos e os sentidos que damos. Não por acaso, ao passar do tempo, o lugar ganha cada vez mais significado e, do olhar quando jovem, adquire profunda significação quando adulto. Cada parte de um lugar pode nos dizer algo. Como podemos ver de forma diferente cada lugar, ele conta uma história aos olhos de quem o vê: “Cada peça dos móveis herdados, ou mesmo uma mancha na parede, conta uma história” (TUAN, 2013, p. 47). Tuan ainda nos esclarece que o espaço, para o ocidente, é símbolo comum de liberdade, ao mesmo tempo pode representar uma ameaça, pois ser livre é estar vulnerável. Eurico Alves, por mais que se considere do mundo, como pode ser percebido em seu poema O hino da transubstanciação, está vinculado ao seu lugar (Feira de Santana), e, muitas vezes, é consciente disso, estabelecendo seu lugar de valores afetivos. Conhecer Feira de Santana é conhecer o poeta, entender seus versos. Como acrescenta Tuan:

O espaço fechado e humanizado é lugar. Comparado com o espaço, o lugar é um centro calmo de valores estabelecidos. Os seres humanos necessitam de espaço e de lugar. As vidas humanas são um movimento dialético entre refúgio e aventura, dependência e liberdade (TUAN, 2013, p. 72).

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Alves, em seus versos, dá pistas de como a principal cidade do sertão se constituiu como “princesa”. Uma delas é a sua localização geográfica, pois era o entroncamento, o local de encontro de viajantes que seguiam em várias direções do país, do interior à capital, ou desta ao interior, como o próprio poeta versou em A canção da cidade amanhecente: “Passam os carros velozes, os autocaminhões do sertão para o mar,/ passam os carros para o sertão vindos do mar” (ALVES, 1990, p. 49). É fácil perceber como a Feira de Santana flui na poética de Eurico e como ela é apresentada, real e imaginada, pelo poeta, pois, como bem salienta Juracy Dórea, em Eurico Alves e a Feira de Santana, seus textos, “quando não são referências explícitas à Feira de Santana, são obras quase sempre produzidas no velho solar” (DÓREA, 1999, p. 72). Diante desse pensamento, não resta dúvida da influência que o espaço sertânico de Feira de Santana exerceu na poética de Eurico Alves, que nos estimula a entender como se dá a relação afetiva do poeta e sua cidade natal e as consequentes criações paisagísticas nas vozes de seus eu líricos, uma vez que, ainda nas palavras de Dórea, “uma cidade que se revela a partir de um processo de arqueologia sentimental, onde se mesclam realidade, memória e poesia” (DÓREA, 1999, p. 71). Como se percebe, Feira de Santana é tema recorrente em Eurico Alves, seja construindo-a simbolicamente, seja utilizando-a como extensão do sertão mais longínquo por onde o poeta passou, a exemplo de Tucano, Alagoinhas e outras cidades.

Muito cedo, Eurico viajou para capital do estado, no entanto, a memória de sua terra continuou viva. Após finalizar seus estudos, retornou ao interior, e o primeiro poema que mapeou sua volta à Feira de Santana é intitulado Terapêutica (1934), o qual também representa um acidente sofrido pelo jovem formado. Neste poema, interessa-nos saber que o poeta deixa transparecer sua imaginação quanto ao que os moradores de sua cidade estariam cogitando de sua volta seguida do acidente: “Deus o ajude que ele fique bom depressa! Deus o ajude!” (ALVES apud OLIVIERI-GOGET, 1999, p. 175). Mostra-nos a religiosidade típica da cidade e dos sujeitos interioranos, a curiosidade da gente simples. E as vozes das pessoas que abençoam o poeta se misturam ou se equivalem ao acalento

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da alvorada: “Essas vozes alvas como um pedaço de alvorada” (ALVES apud OLIVIERI-GOGET, 1999, p. 175), e segue a apresentação de sua chegada invocando as atitudes humanas com o tempo de seus acontecimentos, dando o tom equilibrado e completo da caracterização de seu espaço-afetivo, uma tarde que é um beijo roubado e talvez, mais gostoso pela surpresa: “Na tarde que é como um beijo roubado/ entram morenas pelo portão da Granja./ Vêm visitar o pobre moço poeta” (ALVES apud OLIVIERI-GOGET, 1999, p. 175).

A natureza, vista como beleza e simplicidade, constitui profundamente a maneira de ser do povo de Feira,

situada às margens do principal eixo rodoviário do País, ela viveu, na década seguinte, o impacto do grande êxodo de nordestinos para o sul. Diariamente, dezenas de paus-de-arara desciam a Rio-Bahia, em busca de melhores oportunidades. Muitos, no entanto, interrompiam a viagem e ficavam na cidade. Contribuíam, assim, para modificar a paisagem e para definir o novo cenário urbano (DÓREA, 1999, p. 77).

E a configuração da nova paisagem não é despercebida por Eurico Alves. Mas o que entendemos por paisagem? Para essa compreensão, preferimos o conceito de Michel Collot que na sua teorização, afirma que a paisagem é uma percepção/olhar diante de um espaço (COLLOT, 2013, p.17). Isso quer dizer que o olhar sobre algo cria a paisagem, pois ela “não é nem uma representação, nem uma simples presença, mas o produto do encontro entre o mundo e um ponto de vista” (COLLOT, 2013, p. 18). A paisagem não é uma mera extensão de terra, uma objetivação geométrica ou geográfica, mas uma subjetividade humana, assim, um mesmo espaço pode ser captado de forma diferenciada, tanto por observadores diferentes quanto por um mesmo observador, porque depende do estado de espírito em que se encontra, e sua imaginação flui, uma vez que o invisível se manifesta a partir do visível, por isso a poesia se fundamenta na criação da paisagem. Nas palavras de Collot: “a voz lírica dá a ver o invisível da paisagem, graças à musicalidade do poema que dela exprime a ressonância afetiva, e à metáfora, que abre para além do visível o campo desta visão que é a imaginação”

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(2013, p. 53). Destarte, podemos perguntar: como Eurico vê a Feira de Santana? Como a expressa? As possíveis respostas podem ser um caminho para entender a criação da paisagem pelo poeta.

A Feira de Santana não é apenas vista por Eurico, ela é vivida. É, de certa maneira, também uma forma de se conhecer, já que, para Collot: “A busca ou a eleição de um horizonte privilegiado pode tornar-se, assim, uma forma de busca de si mesmo” (2010, p. 207). Em Elegia para Manuel Bandeira, Eurico Alves nos dá um eu lírico que contempla o horizonte de sua terra ao subir uma serra: “Estou tão longe da terra e tão perto do céu,/ quando venho subir esta serra tão alta...” (ALVES, 1990, p. 64). E mais à frente, enfim, descobre-se: “Que poeta nada! Sou vaqueiro.”. A paisagem por ele captada o fez se conhecer, ou pelo menos uma parte importante de sua identidade, de sua origem familiar do berço sertanejo. Segundo Tuan: “Viver muitos anos em um lugar pode deixar na memória poucas marcas que podemos ou desejaríamos lembrar; por outro lado, uma experiência intensa de curta duração pode modificar nossas vidas” (2013, p. 225). Nesse poema, a relação entre o eu lírico e o lugar que contempla e que se formam as paisagens, é íntima. A natureza é sua terra e isso vai moldando-o, ajudando-o a se reconhecer:

Serra de José das Itapororocas,

afogada no céu, quando a noite se despe e crucificada no sol se o dia gargalha.

Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens tecem o céu de corolas para meu acalanto

Perdi completamente a melancolia da cidade e não tenho tristeza nos olhos

e espalho vibrações da minha força na paisagem (ALVES, 1990, p. 64).

O olhar que emite na paisagem enche-lhe de alegria, “vibração”, esquecendo a tristeza e a melancolia da vida na cidade. O que lhe deu força foi a própria natureza a ele apresentada. O reconhecimento da beleza da “Serra de José das Itapororocas” permitiu ao eu lírico abandonar a “tristeza nos olhos”. Eurico Alves convida poeticamente Manuel Bandeira para conhecer Feira de Santana e tenta convencê-lo desfilando os sentidos que a mesma tem para ele, como a

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belíssima visão: “[...] venha ver a vida da paisagem/ onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam/ e enchem a alma de gritos da madrugada” (ALVES, 1990, p. 64). Feira de Santana, assim, seria uma possível cura para os pulmões comprometidos de Bandeira diante de sua vida em meio às máquinas e aos vícios.

Sendo natureza e homem uma coisa só, devido a sua íntima relação, o nordestino passa a obter tanta força quanto o sol que o queima e pode, com um grito, pôr medo ao imponente sol – sofrimentos, desafios: “Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos/ e sabe de um grito atemorizar o sol” (ALVES, 1990, p. 64). Esta era a força que Eurico gostaria que Bandeira possuísse, mas que só seria possível estando nesse lugar onde a natureza pura convive com o homem. No entanto, Bandeira não aceita o convite, respondendo a Eurico através do poema Escusa, pois não se sente digno da paisagem feirense: “Sou poeta da cidade./ meus pulmões viraram máquinas inumanas [...]. Eurico Alves, poeta baiano,/ Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça” (BANDEIRA apud PEREIRA, 1999, p. 83-84). É que o lugar de cada poeta é diferente e é íntimo a eles pelas suas próprias experiências. Tuan fala sobre o forte sentimento que o lugar exerce para os sujeitos, e, por mais que Eurico considere seu lugar como um espaço que proporciona uma vida saudável, Bandeira também sabe qual o seu lugar, o qual, mesmo não sendo perfeito, é onde encontra o carinho e sentimento necessário, para viver ou morrer.

Se estimulado pelo ambiente da infância faz Eurico Alves descobrir sua identidade, além de poeta, “vaqueiro”, esse mesmo sentimento se reflete em sua Feira de Santana, no poema Minha terra, em que o eu lírico afirma que sua

[...] terra é menino, que atira badogue que mata mocó,

que arma arapuca e sabe aboiar e nada nos rios em tempo de cheia

e come umbu quente e não apanha malina (ALVES, 1990, p. 89).

Assim, verificamos poeta e lugar na voluptuosidade que o meio proporciona. Neste poema, conferimos uma Feira de Santana como um menino,

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portanto alegre e espirituoso, que sabe viver do que a terra lhe permite. A simplicidade da cidade se personifica em menino, demonstrando como se encontra o olhar do poeta ao rememorar sua infância e como foi se constituindo sua relação de intimidade. Assim como afirma em Elegia para Manuel Bandeira ser um vaqueiro, temos nesses versos: “Minha terra é menino,/ é um vaqueirinho/ vestido de couro” (ALVES, 1990, p. 90), provando o sentimento amoroso do poeta com sua terra, pois ambos crescem com tudo que a natureza interiorana oferece, uma vida simples, mas iluminada, pela espirituosidade de seu povo, como da ambientação que “[...] tem u’a viola que toca de noite,/ quando a lua clareia” (ALVES, 1990, p. 90).

Os poemas que se referem a Feira de Santana possuem tom melancólico pela calmaria do lugar e deixa transparecer simplicidade diferente do que se vê na cidade grande. O povo ainda é “ingênuo”, religioso e crente das histórias folclóricas. Mesmo havendo diferenças econômicas entre seus moradores, através da comunhão religiosa, as pessoas acabam se unificando. Desta forma, em O dia alegre da minha cidadezinha romântica, o eu lírico fala sobre a missa dominical comum nas cidades do sertão, momento em que mobiliza toda a comunidade e que a deixa ainda mais feliz. A missa celebrada consente o desejo da continuação da paz e é tão bem recebida por seus moradores que os versos a seguir resumem a simetria do ritual com o pulsar íntimo do eu lírico: “E eu fiquei pensando: se a gente pudesse mandar/ celebrar missa festiva todo dia/ no coração da gente...” (ALVES, 1990, p. 63). Nesse poema, há uma idealização de harmonia da comunidade proporcionada pela religião, como se sua terra também fosse um lugar de convivência das diferenças, assim ele a via. Segundo Larissa Penelu Bitencourt Pacheco, em Notas sobre Eurico Alves e a lenda da Feira em transformação, Alves,

em cada momento de escrita no presente, ao reencontrar-se consigo mesmo na juventude, consegue, através de sua criação, remeter os leitores a um tempo inexistente: um período no qual a coexistência de sujeitos de classes sociais e modos de cultura diferenciados ocorria de maneira harmônica (2010, p. 113).

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Toda a cidade guarda história, principalmente suas ruas, afirmada pelo verso “Essa rua é um compêndio da história juvenil...” (ALVES, 1990, p. 106), de Poema da Rua do Bom-e-barato. A rua arquiva suas histórias. As casas acumulam os segredos e são reconhecidas pelas pessoas, o que parece ainda não haver uma “naturalização” que força o “esquecimento”, ou seja, o lugar é tão significativo que os sentidos não cessam:

Casas magras, parecem sofrer de apoplexia, Furadinhas de segredo...

Cada rapaz que passa diz compenetrado ao companheiro apontando uma: foi aqui... e sorri (ALVES, 1990, p. 106).

A rua é captada pelos sentidos, não é esquecida pelo eu lírico. Nela, vivem as lembranças de um tempo aos poucos se modificando. No poema Cinema: “Entra, às vezes, um cheiro de rua pelos ventiladores...” (ALVES, 1990, p. 62), com, além da visão, o olfato agindo para a construção de uma paisagem memorialística. A madrugada feirense aparece sensualizada, o acordar da vida. E o sol surge sempre que a vida se encontra em seu esplendor. Na verdade, tanto a noite como o sol são figurações poéticas que dão existência a Feira de Santana e ao seu ar natural e mágico. Em A escola, todos esses elementos aparecem recriando o ambiente onde a natureza convive e desenha a vida simples e prazerosa, uma convivência harmoniosa de natureza e homem:

A lua é uma pérola suja que o sol deixou à noite para não malquistá-la com a escuridão.

As sombras são a clâmide do sol,

com que ele embrulha as coisas que tem frio... As lagoas, taças caborcinadas cheiinhas [sic] de licor para a orgia da noite sonâmbula...

O vento trepa no telhado, assoviando, assoviando, assoviando, e brinca de cabriolas e não quebra telhas, nem apaga os lampiões do céu...

E, dentro da noite religiosa, ouve-se um bê-a-bá gorgolhado pelos sapinhos [...] (ALVES, 1990, p. 70).

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O poeta apreende a existência desses elementos e cria uma paisagem bucólica, romântica, sem dúvida uma perfeição encontrada nessas terras interioranas, a vida calma do campo, como ainda se encontrava a Feira de Santana antes de se tornar a segunda mais importante cidade da Bahia, enfim, a “princesa do sertão”.

Em Zabiapunga, a madrugada continua agindo e a natureza ganha perfil humano, em uma íntima sintonia. Assim sendo, ao acordar dos homens, a natureza também surge ainda sonolenta, do bocejo madrigal às salivas em forma de estrelas: “A madrugada bocejou,/ deixando cair perdigotos – as estrelas miúdas” (ALVES, 1990, 123). A sensualidade da madrugada mexe com a alma de quem a vive, de quem a observa: “A madrugada é negrinha/ e tem volúpias e tem voluteios e quebrantos e dengos,/ para entontecer a alma da gente./ Está tudo quieto...” (ALVES, 1990, p. 123). O silêncio domina a paisagem e a quieta cidade aos poucos acorda com seu toque de sensualidade, a lua beija a manhã, e a cidade enfim acorda.

Neste poema, após o gesto erótico da natureza, não resta dúvida de que a vida das pessoas também segue esse clima, e o prazer aumenta com o passar das horas. De um beijinho, de repente a “zoadeira” do dia. A descrição do dia-a-dia da gente simples afro-nordestina é feita com a mesma sensualidade que a manhã, numa pura consonância entre o homem e o ambiente ao qual ele completa:

E um grupo de pretos retintos, que saltam, que pulam, que dançam,

que bailam,

na quentura lustrosa dos seios da manhã [...] (ALVES, 1990, p. 123).

É nítido, portanto, que nos poemas de Eurico Alves os aspectos da natureza ganham ações que se assemelham aos gestos típicos do homem. E por que essa característica? Podemos inferir que pode ser uma compreensão do poeta de que a paisagem e o homem são uma coisa só. Essa concepção se torna mais

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evidente ao analisarmos outros textos do autor, como, por exemplo, as crônicas de A paisagem urbana e o homem: memórias de Feira de Santana, em especial a crônica A Paisagem Urbana e o Homem, na qual o narrador dialoga com um poema de Machado de Assis, onde este pergunta se o Natal mudou ou se foi ele quem mudou, no que Eurico Alves completa: “Mudamo-nos ambos” (ALVES, 2006, p. 90), o lugar e o sujeito andando juntos, se transformando, pois o eu só existe a partir do outro. Há uma alteridade entre espaço e o homem. Esta relação fermenta os versos de Eurico Alves, faz fluir seus versos e influencia sua poeticidade idílica, pois, como assevera Rita Olivieri-Godet, “O olhar intimista e a memória afetiva fundamentam as relações entre paisagens e afetos e vão tecendo a trama entre vivência e experiência poética” (OLIVIERI-GODET, 2010, p. 15), ou seja, o lugar pode ser considerado como importante experiência para a produção poética. Não obstante o próprio Eurico afirmar na crônica Paisagens: “A minha paisagem constante é a da minha terra” (ALVES, 2006, p. 239). Segundo Tuan, o olhar para trás tem vários motivos, no entanto, um é comum a todos, “[...] a necessidade de adquirir um sentido do eu e da identidade” (TUAN, 2013, p. 227), sendo assim, podemos entender que o canto a Feira de Santana por Eurico Alves também é uma forma de autoconhecimento, de registro do que lhe inspira a escrever, já que “A paisagem é o motivo principal de grandes saudades” (ALVES, 2006, p. 239). Francisco Ferreira de Lima, em Paisagens em Miguel Torga e Manuel da Fonseca, teorizando a partir de Paul Claval, do lugar como um meio para o autoconhecimento e consequentemente para uma confirmação de identidade, chega a afirmar que se trata de uma violência privar o homem de sua paisagem, e que ela não é apenas ou meramente um lugar de visitas ou de apreciação como a do cartão postal, mas “também o lugar onde se nasce, vive-se e morre-se, ainda que não o tratemos como tal” (LIMA, 2013, p. 190). Eurico Alves, em poemas que tratam do sertão, inicialmente luta consigo sobre os sentidos que obtém da paisagem mais sertânica do interior, pois desacostumado com o ambiente, mas na medida que sua relação com o meio se fortalece, outros sentidos acabam surgindo, ou seja, outras paisagens de sertão e a configuração, quiçá, de uma nova identidade.

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A crônica Paisagens é praticamente uma teorização sobre paisagem, algo que nos interessa, já que tentamos abordar sobre ela como inspiração ao constructo poético de Alves. Desta forma, o mesmo demonstra compreender o conceito que inicialmente pincelamos, a de que paisagem é uma construção2, é um sentido que extraímos daquilo que vemos. E mais, que a experiência com um lugar depende de cada um e que pode ser marcante ou não. No caso de Eurico Alves, Feira de Santana, é um desses lugares que possui um sentido especial e particular, por isso, argumentando sobre a criação de uma paisagem, considera que algumas ficam para sempre no coração de quem as vê, mesmo com o passar dos anos, ou com outras transformações:

Mas a paisagem que se construiu fica. Que cheguem novos arquitetos, novos desenhistas, mas o mundo que se plasmou no coração, na época da meninice ou na clarinada pagã da adolescência, este não se reforma. É patrimônio da nossa saudade (ALVES, 2006, p. 241).

Como se observa, a infância age como leque das grandes experiências. Assim afirmou Tuan: “A criança, mais do que o adulto, conhece o mundo por intermédio dos sentidos” (TUAN, 2013, p. 226). Por isso, os poetas retomam as lembranças de suas infâncias.

Deste modo, percebe-se a relação íntima do poeta Eurico Alves com sua terra, que lhe proporcionou estímulo para a produção poética. E, ao cantar sua Feira de Santana, o autoconhecimento também se realizou. Utilizando-se aqui das palavras de James Ducan, que por sua vez buscou as de Pierce Lewis, de que a paisagem é “nossa autobiografia inconsciente” (LEWIS apud DUCAN, 2004, p. 111), eu diria “in-consciente”, já que, nas memórias de Alves, ele deixa transparecer sua compreensão sobre a força que a ambiência feirense exerceu aos seus olhos e à sua escrita. Muito podemos ler nos versos de Eurico e então conhecermos um pouco da história de Feira de Santana e de seu povo, tendo como cenário sua natureza exuberante desenhada pela sensibilidade de um poeta.

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REFERÊNCIAS

ALVES, Eurico [1909-1974]. A paisagem urbana e o homem: memórias de Feira de Santana. Org. Maria Eugênia Boaventura. Feira de Santana, BA: UEFS Editora, 2006. ALVES, Eurico. Poemas: seleção de Rita Olivieri-Godet. In: OLIVIERI-GODET, Rita. A poesia de Eurico Alves: imagens da Cidade e do Sertão. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Fundação Cultural, EGBA, 1999.

ALVES, Eurico. Poesia. Org. Maria Eugênia Boaventura. Salvador: Fundação das Artes/ Empresa Gráfica da Bahia, 1990.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2007.

COLLOT, Michel. Do horizonte da paisagem ao horizonte dos poetas. In: ALVES, Ida Ferreira e FEITOSA, Márcia Manir. Literatura e paisagem: perspectivas e diálogos. Trad. Eva Nunes Chatel. Niterói: EdUFF, 2010, p. 191-217.

COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Trad. Ida Alves. Rio de Janeiro: Editora Oficina Raquel, 2013.

DÓREA, Juraci. Eurico Alves e a feira de Santana. In: OLIVIERI-GODET, Rita (Org.). A poesia de Eurico Alves: imagens da Cidade e do Sertão. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Fundação Cultural, EGBA, 1999.

DUCAN, James. A paisagem como sistema de criação de signos. In: CORRÊA, Roberto L; ROSENDAHL, Zeny. (Orgs.). Paisagens, Textos e Identidade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004, p. 91-132.

LIMA, Francisco Ferreira de. Paisagens em Miguel Torga e Manuel da Fonseca. In: LIMA, Francisco Ferreira de (Org.). Sem comparação: Torga Rosa e companhia limitada. Feira de Santana, BA: UEFS, 2013.

OLIVIERI-GODET. De paisagens e afetos na poesia de Eurico Alves Boaventura. In: História, poesia, sertão: explorado a obra de Eurico Alves Boaventura. Org. Aldo José Morais Silva. Feira de Santana: UEFS, 2010.

PACHECO, Larissa Penelu Bitencourt. Notas sobre Eurico Alves e a leitura da Feira de Santana em transformação. In: História, poesia, sertão: explorando a obra de Eurico Alves Boaventura. Aldo José Morais Silva (Org.). Feira de Santana, BA: UEFS Editora, 2010.

PEREIRA, Rubens Alves. Minha terra tem Pasárgadas (diálogo: Eurico Alves/Manuel Bandeira. In: OLIVIERI-GODET, Rita (Org.). A poesia de Eurico Alves: imagens da

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Cidade e do Sertão. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Fundação Cultural, EGBA, 1999.

TUAN, Yi-Fu [1930]. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2013.

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