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Os Papas e a Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio

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NDICE

Capa Rosto

Apresentação Introdução

I - A pregação da misericórdia na história do magistério pontifício II - As fontes da misericórdia divina

III - Maria, Mãe de misericórdia IV - A misericórdia, vida da Igreja V - O cristão e a misericórdia Ficha Catalográfica

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PRESENTAÇÃO

a Bula de promulgação do Jubileu, Misericordiae vultus, o Papa Francisco citou três Pontífices para indicar a sua atenção particular ao tema da Misericórdia. O primeiro a que faz referência é São João XXIII, que no discurso inaugural do Concílio Vaticano II referiu: «Agora a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. […] A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecumênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados» (VII, n. 2-3). O segundo Pontífice é o beato Paulo VI, que, na homilia na conclusão do Vaticano II, lembrava como o ensinamento conciliar tinha sido dado à luz da parábola do samaritano. Por fim, Francisco faz como que uma síntese do pensamento de São João Paulo II na Encíclica Dives in misericordia.

Estes exemplos levaram a reunir numa breve síntese a riqueza do ensinamento dos últimos Papas sobre a mensagem central do Jubileu. Daí derivou uma profundidade insuspeita, porque a misericórdia atravessa todos os âmbitos de vida da Igreja e da existência cristã. Estas belas páginas são um testemunho precioso de como a referência à misericórdia é permanente no ensinamento da Igreja. O Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização agradece ao professor Laurent Touze, docente na Pontificia Università della Santa Croce, por ter contribuído com esta seleção para evidenciar a misericórdia como a viga mestra do ensinamento dos últimos Papas. Apenas lamentamos não poder publicar todo o material em referência; é extraordinário e rico, mas de tal dimensão que ultrapassa a de um instrumento pastoral ágil como o que se pensou para a preparação do Jubileu. Estamos certos de que a meditação destas páginas levará não somente a refletir sobre a importância da misericórdia, mas será um incentivo para que passe para a vida quotidiana de cada crente na sua responsabilidade de tornar crível o Evangelho.

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X RINO

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ISICHELLA Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização

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I

NTRODUÇÃO

A pregação da misericórdia, um eixo fundamental do magistério pontifício contemporâneo

s Papas e a misericórdia. Esta antologia situa-se no ponto de interseção de duas linhas que – entre outras – atravessam a vida da Igreja Católica dos últimos duzentos anos. Por um lado, os Papas desempenharam, pelo menos durante um século, um papel muito mais importante do que o dos seus predecessores na orientação concreta da vida espiritual dos fiéis. O modo de orar ou de anunciar o Evangelho é hoje em dia, muito mais do que ontem, vivido em parte graças aos ensinamentos dos sucessores de São Pedro. Verifica-se, por outro lado, uma tomada de consciência muito mais profunda da misericórdia divina, presente na nossa história em Jesus Cristo. Esta segunda linha é sem dúvida traçada pelo próprio Deus no coração dos seus filhos (na sua livre adesão às inspirações do Espírito Santo, na sua descoberta emocional de mensagens centradas sobre a misericórdia divina, como aconteceu com Santa Teresa de Lisieux ou com Santa Faustina Kowałska), mas ela é também prolongada em numerosos textos do magistério pontifício, que apresentam – utilizando registros de linguagem que mudam periodicamente – o mistério pascal como mistério de misericórdia.

Temos, pois, um primeiro ponto: desde há um século, ou melhor, dois, os Papas exerceram uma influência mais forte sobre a espiritualidade vivida pelos fiéis católicos do mundo inteiro. Foi em certo sentido sempre o caso, uma vez que, por exemplo, os cristãos assistiam constantemente à Missa, que está no centro e na raiz das suas vidas (Decreto Presbyterorum Ordinis, n. 14), em união com o bispo de Roma citado no Cânone, ao receberem habitualmente da Sé Apostólica novas medidas litúrgicas modificadoras da sua piedade, novos santos e beatos propostos à sua imitação etc. Mas nos séculos xix e xx, junta-se a estas dimensões tradicionais uma autêntica promoção da vida cristã por parte dos

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soberanos Pontífices, muito mais concreta e incisiva que durante as épocas precedentes. Apresentaremos aqui apenas alguns exemplos, entre muitos outros: Leão XIII escreveu dezesseis documentos importantes sobre o Rosário, dos quais onze encíclicas, para difundir ainda mais esta devoção mariana; São Pio X, sobretudo encorajando a recepção da Sagrada Comunhão, tornou-se conhecido como um dos maiores reformadores da vida interna da Igreja após o Concílio de Trento; Pio XI apoiou a difusão dos Exercícios Espirituais segundo o método inaciano (com a Encíclica Mens nostra, de 1929); além dos Anos Santos, devemos pensar também na promulgação dos Anos Marianos, como o de 1954, com Pio XII, ou o de 1987, com São João Paulo II, ou ainda os três anos de preparação do Jubileu do ano 2000, dedicados a cada uma das Pessoas da Santíssima Trindade.

Este contato mais direto do Papa com os católicos teve numerosas causas. A evolução da técnica, por exemplo: agora viaja-se mais facilmente, os Papas desde Roma e os fiéis até Roma; a rádio, a televisão e as novas tecnologias de comunicação da atualidade permitem aos cristãos seguir ao vivo as palavras pontifícias. Outras causas são mais políticas e sociais: o desaparecimento do que se chamavam as «potências católicas» colocou a Santa Sé em contato imediato com os povos. Se no final do Antigo Regime os Estados – por exemplo, os Habsburgos, no norte de Itália – se compreendiam como responsáveis por uma parte da pastoral, a presença, depois da Revolução, de autoridades políticas, tantas vezes mais ou menos abertamente anticristãs, impôs uma ligação mais ativa e religiosa entre o papado e os leigos cristãos. Quando o soberano Pontífice quer se dirigir aos fiéis, já não tem de recorrer a um mediador civil. O que na realidade se passa dentro deste quadro de diálogo direto é que os Papas da época contemporânea insistem muitas vezes na santidade dos leigos. E mais, perante os desafios comuns e cada vez mais globalizados, os cristãos são especialmente sensíveis à unidade das propostas pastorais e apostólicas, e portanto à unidade com Roma. Finalmente, as perseguições infligidas aos Papas, de Pio VI aos «prisioneiros do Vaticano» após 1870, o atentado seguido da prolongada doença suportada por São João Paulo II, o eco suscitado pela renúncia de Bento XVI, deram um tom muito mais afetivo à ideia pontifícia, permitindo falar de devoção

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ao Papa.

Primeira coordenada, pois, desta antologia: os bispos de Roma da época contemporânea exercem sobre os fiéis do mundo inteiro uma direção espiritual coletiva mais ativa do que a dos seus predecessores. Segunda coordenada: a Igreja está – há algum tempo – em escuta renovada da mensagem da misericórdia. Falando aos padres da sua diocese de Roma, o Papa Francisco dizia efetivamente, a 6 de março de 2014: «Compreendamos que nós [...] estamos aqui [...] para ouvir a voz do Espírito que fala à Igreja inteira nesta nossa época, que é precisamente o tempo da misericórdia. Disto estou certo. [...] Nós vivemos num tempo de misericórdia, desde há trinta anos ou mais, até os dias de hoje. Esta foi uma intuição de São João Paulo II. Ele teve a “perspicácia” de que este era o tempo da misericórdia».

Este tempo de misericórdia começou há pelo menos trinta anos, o que nos faz pensar nos primeiros anos do pontificado de São João Paulo II, apóstolo da misericórdia divina, especialmente graças à mensagem de Santa Faustina Kowałska. Mas o Papa Francisco precisa o seu pensamento, acrescentando «há trinta anos ou mais», e por isso pode-se propor outra data para o início deste tempo de misericórdia. Com efeito, depois de mais de um século, pode-se observar na mensagem dos Papas que se sucederam na Sé de São Pedro certo número de características que os levam a falar com frequência de misericórdia: em primeiro lugar, num cristocentrismo explícito – o ensinamento eclesial e a pastoral foram sempre cristocêntricos, mas são-no mais refletidamente na época contemporânea – que indica Cristo como presença de amor do Pai na história e como objeto de amor dos homens. Neste sentido, há como que um fio condutor de misericórdia crística que une, por exemplo, o anúncio do Coração de Jesus, fundamental para o magistério pontifício desde o fim do século xix até os anos 50 do século xx, o do reino de Cristo, muito querido a Pio XI, a proposição paciente e dialogante do mistério cristão desejado pelos dois Papas que presidiram ao Concílio Vaticano II, a civilização do amor pregada pelo beato Paulo VI, a caridade posta em relevo pelo Papa Bento XVI, e a misericórdia, diretamente proclamada por São João Paulo II e pelo Papa Francisco.

Aplicaremos por analogia a esta continuidade do magistério pontifício a 9

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espantosa observação do beato Newman sobre a história da espiritualidade: «A Igreja Católica nunca perde o que alguma vez adquiriu. […] Em vez de passar de uma fase de vida para outra, ela leva consigo a sua juventude e a sua maturidade e até a sua (ou até a) velhice. […] São Domingos não a faz perder São Bento, e ela possui ainda a ambos, ao mesmo tempo que se torna a mãe de Santo Inácio» (The Mission of the Benedictine Order). A Igreja não perde a pregação do Coração de Jesus quando está mais atenta à extensão do reino, nem perde a ambição da civilização do amor enquanto se procura converter à misericórdia. Ao mesmo tempo, esta continuidade – fidelidade à Palavra de que o Papa e o Colégio dos Bispos são servidores – não esconde a pluralidade dos acentos altissonantes, nem as medidas tomadas. Em cada período, o Vigário de Cristo e Pastor de toda a Igreja procura ler os sinais dos tempos, escutar o que o Espírito diz às Igrejas e indicar o caminho certo ao Povo de Deus.

Esta pregação da misericórdia com acentos múltiplos tem, pois, como efeito, ou talvez mais como causa, uma mensagem essencialmente cristocêntrica. Antes da época contemporânea, o magistério pontifício não era certa e unicamente disciplinar, mas desde há dois séculos que adotou um tom mais pastoral e missionário, que lhe permite falar sobretudo e diretamente de Cristo. Isto deve-se ao fato de o magistério querer principalmente apredeve-sentar Cristo aos olhos dos homens, e apresentá-lo de uma maneira biblicamente fundada e apostolicamente convincente, quando põe o acento no amor misericordioso de Deus, manifestado na história em Jesus Cristo. Estas escolhas pastorais dos Papas inserem-se no movimento cristocêntrico mais amplo na Igreja, por eles parcialmente determinado: é o Espírito Santo quem dá aos fiéis um instinto para encontrar – por exemplo, na piedade popular – caminhos novos que levam sempre a Cristo (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 31, 119, 122-126). A seguir, ilustraremos brevemente certas manifestações concretas deste cristocentrismo vivido, insistindo especialmente sobre dois pontos: de um lado, a espiritualidade do século xix, como primícias da que será a do século xx e a do início do século xxi e que veremos com as citações magisteriais da antologia; de outro lado, a conjugação entre a piedade popular e os encorajamentos hierárquicos.

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Já alguém escreveu que o século xix «redescobriu» Cristo, modelando assim a mentalidade católica dos dois séculos seguintes, e que redescobriu um Cristo perfeitamente amoroso. Dois exemplos podem ser propostos: uma maior familiaridade com a Eucaristia e uma confiança em relação ao Sagrado Coração.

A familiaridade com Cristo presente na Eucaristia difundiu-se entre os cristãos com a comunhão frequente. Este movimento afirma-se gradualmente, em especial a partir do pontificado do beato Pio IX (1846-1878). Os fatores desta mudança progressiva são vários. Existem livros que os fiéis leem com predileção, como alguns simples e curtos, de monsenhor Gaston de Ségur (falecido em 1881), filho da condessa Rostopchine, que escreveu célebres romances para crianças. Antigo magistrado da Rota Romana antes de perder a visão e de regressar à França, monsenhor de Ségur foi um dos confessores mais visitados de Paris. Em 1858, encontra-se com o Cura d’Ars, do qual diz: «Eis um cego que vê mais claro que nós»; «hoje vi um santo». Publicou numerosas obras de piedade, frequentemente traduzidas, principalmente em 1860, La Très Sainte Communion, da qual se publicaram centenas de milhares de exemplares e cuja máxima essencial era: «Não comungamos porque somos bons, mas para sermos melhores». O próprio beato Pio IX louvou o livro e distribuiu-o em 1862 aos pregadores romanos da Quaresma.

Mas os livros sobre a comunhão frequente chegaram-nos sobretudo da Itália. São especialmente as obras do venerável Giuseppe Frassinetti, fundador da congregação dos Filhos de Santa Maria Imaculada (falecido em 1868) – principalmente O banquete do amor divino (Gênova, 1867) –, e sobretudo de São João Bosco, com ênfase para O jovem preparado para a prática dos seus deveres de exercícios de piedade cristã (Turim, 1847), muitas vezes reeditado. Esta obra e a prática pastoral do fundador dos Salesianos ilustram também um movimento mais amplo e luminoso: o Espírito e a Igreja encorajam ao mesmo tempo a comunhão e a confissão frequentes, na consciência dos laços que unem estes dois sacramentos (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1457-1458).

Em alguns destes livros, as exortações pontifícias incitam igualmente à comunhão frequente: a Encíclica Miræ caritatis (28 de maio de 1902), de Leão XIII, mas sobretudo o Decreto Sacra tridentina synodus, de São Pio X, sobre a

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comunhão quotidiana (20 de dezembro de 1905). Neste sentido, a Sé Apostólica exorta os bispos a não afastarem as crianças menores da primeira comunhão. Com o beato Pio IX, a Sagrada Congregação do Concílio corrigiu as disposições dos concílios locais e dos prelados franceses sobre este tema. As grandes mudanças a este respeito devem-se a um decreto de São Pio X, Quam singulari (8 de agosto de 1910): a idade da razão foi estabelecida nos sete anos, e bastava que a criança conhecesse os mistérios principais da fé e distinguisse as espécies do pão eucarístico do pão ordinário, disposições retomadas pelo chamado Catecismo de São Pio X, que conheceu uma grande difusão.

O cristocentrismo mais consciente dos fiéis dos dois últimos séculos foi ilustrado, portanto, pela recepção mais habitual da Eucaristia. A devoção ao Sagrado Coração – sobretudo no período 1800-1950 – oferece outro exemplo desta consciência renovada da proximidade amorosa do Deus trino. Segundo a expressão frequentemente citada de monsenhor d’Hulst, primeiro reitor do Instituto Católico de Paris, falecido em 1896, o século xix foi efetivamente, «se considerado de um ponto de vista místico [...], o século do Sagrado Coração».

Certamente existe uma literatura negativa e até fundada sobre certas manifestações desta devoção, que seriam doloristas e sentimentais, e apresentariam Deus, o Pai, como sedento do sangue de Cristo e dos cristãos. Mas seria talvez muito mais justo compreender como esta devoção ajudou a destruir a quimera de uma salvação sem cooperação humana, difundindo entre os cristãos a ambição de aderir livremente ao amor de Deus e de apresentar a salvação no mundo, especialmente graças à missão apostólica e à preocupação ativa pelos mais pobres. Foi notoriamente a contemplação amorosa do Coração de Jesus que permitiu a esta pedagogia da salvação esperar a afeição e a inteligência dos fiéis.

Esta devoção foi principalmente fruto da livre determinação espiritual dos fiéis, mais do que consequência de encorajamentos hierárquicos: bem pelo contrário, em finais do século xvii, inquietada pela crise quietista, a Sé Apostólica recusou todas as novidades devocionais. Foi somente a partir do século xviii que a Santa Sé apoiou o culto do Sagrado Coração, como um antídoto contra o teísmo indeterminado e de tendências jansenistas. A festa litúrgica foi instituída em

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1765 pelo Papa Clemente XIII, a pedido dos bispos da Polônia, e o beato Pio IX estendeu-a a toda a Igreja em 1856; Santa Margarida Maria Alacoque (falecida em 1690), vidente do Sagrado Coração em Paray-le-Monial, foi beatificada em 1864 e depois canonizada em 1920.

No movimento das consagrações ao Sagrado Coração, também o papado segue os fiéis, muito mais do que os precede. Os primeiros exemplos de consagração de um Estado são a Bélgica, na vigília do Concílio Vaticano I, consagrada ao Coração de Cristo pelo primaz monsenhor Victor-Auguste Dechamps; o Equador, pelo seu presidente Gabriel García Moreno, em 1873; foi somente num segundo momento que Leão XIII, encorajado pela beata Maria do Divino Coração (Droste zu Vischering), consagrou o mundo inteiro, como refere a Encíclica Annum sacrum (25 de maio de 1899). Mais tarde, também a Colômbia será consagrada, em 1902, num gesto renovado pelo seu chefe de Estado em 1994; a seguir, a Espanha, pelo rei Afonso XIII, em 1919.

A devoção ao Coração de Cristo ilustra perfeitamente a passagem do teísmo, por vezes um pouco glacial do século xviii, à consciência da presença amorosa da Santíssima Trindade no coração dos fiéis; da passagem da religião do dever à do amor. Esta linguagem do sentimento não deve ser confundida com sentimentalismo: ela permitiu o desenvolvimento de um cristianismo do coração, num espírito verdadeiramente evangélico, que ainda hoje marca a piedade vivida pelos cristãos. A viragem, da frieza para o sentimento, e o iniciar deste tempo de misericórdia poderiam ser identificados com o pontificado do bea​to Pio IX (1846-1878). A pregação da misericórdia divina foi nele estabelecida como um meio de ultrapassar as tendências jansenistas da espiritualidade de certos católicos. Agora já não se trata do jansenismo doutrinal do século xvii, mas de um jansenismo espiritual, marcado pela severidade, em que a seriedade de uma religião se revela num sentido de dever que tem algo de kantismo filosófico ou de victorianism protestante. É o que se pode observar, por exemplo, no início da época contemporânea, no bispo italiano Scipione de Ricci e nas declarações do seu sínodo de Pistoia (1786-1787), que foram condenados pelo Papa Pio VI na Bula Auctorem fidei, de 28 de agosto de 1794. Ricci mandara imprimir certas obras dos grandes autores jansenistas de Port-Royal (Antoine Arnauld ou Pierre

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Nicole), obras contra a devoção ao Sagrado Coração, que introduziriam distinções indevidas na pessoa do Verbo encarnado, e também outros livros, que defendiam a corrupção total da natureza humana devido ao pecado original e, portanto, uma práxis penitencial rigorista. A importância que os Papas assumiram na questão da formação da espiritualidade vivida permitiu circunscrever gradualmente estas tendências jansenizantes.

A difusão da moral de Santo Afonso Maria de Ligório é uma das manifestações e das causas desta rejeição do rigorismo durante o século xix, especialmente entre o clero. O fundador dos Redentoristas, falecido em 1787, foi beatificado em 1816, canonizado em 1839 e declarado doutor da Igreja em 1871. A sua profunda reflexão moral, cuja divulgação foi encorajada pela Sé Apostólica, permitiu ultrapassar certas práticas pastorais rigoristas entre o clero. Quando Santo Afonso entrou para a vida clerical em 1723, o rigorismo tinha, com efeito, um papel importante na prática pastoral católica, como uma consequência da luta contra o quietismo – a hierarquia pretendia lembrar os imperativos práticos e quotidianos da moral contra os excessos da pseudomística –, mas também da luta contra o jansenismo – que não quer ceder ao laxismo de que os jansenistas acusavam a Igreja e, especialmente, os Jesuítas. Santo Afonso procurará então tornar mais fácil o encontro dos fiéis com o amor de Deus graças a uma piedade simples e terna.

A penetração progressiva das soluções liguorianas no clero tem um exemplo conhecido no Cura d’Ars. São João Maria Vianney entrou em contato com Santo Afonso graças ao seu bispo, monsenhor Alexandre Devie, que publicou, em 1830, uma carta pastoral elogiando a Theologia moralis liguoriana. O santo cura possuía e estudava durante os invernos a Théologie morale à l’usage des curés et des confesseurs [Teologia moral para uso dos párocos e confessores] (1844) do cardeal Charles Gousset, arcebispo de Reims e grande divulgador de Santo Afonso. Em 1839, João Maria Vianney abandonou completamente a sua práxis rigorista precedente: se verifica que os penitentes estão verdadeiramente contritos, já não retarda mais a absolvição; prega cada vez mais de modo encorajador, quase sempre sobre o amor divino. Por exemplo, nas suas palavras, «como Deus é bom, o seu bom Coração é um oceano de misericórdia. Portanto,

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por muito grandes pecadores que possamos ser, não desesperemos jamais da nossa salvação. Assim sendo, é fácil que nos salvemos!»; «As nossas faltas são como grãos de areia comparadas com a misericórdia de Deus»; «O que são os nossos pecados, se os compararmos com a misericórdia de Deus! São um grãozinho de terra comparado com uma montanha»; «Deus corre atrás do homem e fá-lo regressar». Ou então ainda: «Os jansenistas ainda têm os sacramentos, mas para nada servem por eles pensarem que se tem de ser demasiado perfeito para se poderem receber. A Igreja só deseja a nossa salvação; e é por isso que ela nos incita a receber os sacramentos». O nosso santo alia este abandono do rigorismo a um sentido agudo de devida reparação pelas faltas por ele já absolvidas, a um enérgico horror ao pecado: «Oh! Jesus, dai-nos um santo horror dos nossos pecados. Fazei passar nos nossos corações uma gota deste amargor do qual o vosso foi inundado. Se não podemos apagar os nossos pecados pela efusão do nosso sangue, pelo menos fazei que os possamos chorar»: por isso, não se deve compreender o seu abandono do rigorismo como uma conversão ao laxismo.

Se pensarmos, finalmente, nos meios que difundem entre os cristãos esta piedade pelo Cristo sofredor e misericordioso, e principalmente nos meios que os atraem como por instinto, porque eles aí reconhecem a essência do Evangelho, podemos pensar principalmente nos livros de piedade mais lidos. Para a primeira parte da época contemporânea, até os anos 50, a Imitação de Cristo será certamente um exemplo desta literatura. A Imitação ganha neste período uma audiência nunca atingida, é o livro que então todos os cristãos liam desde que tivessem de algum modo gosto para as coisas espirituais. O apologista piemontês Joseph de Maistre (falecido em 1821) leu-a, mas também a venerável Paulina Jaricot, fundadora da obra de Propaganda Fidei (falecida em 1862), o beato Frederico Ozanam (falecido em 1853), fundador das Conferências de São Vicente de Paulo, criadas em 1833, que começam as suas reuniões com a sua leitura. Esta obra não influencia apenas os meios sociais mais favorecidos, mas também os ambientes populares. O grande poeta provençal Frédéric Mistral, Nobel da Literatura falecido em 1914, refere, por exemplo, que o seu pai, agricultor que tinha participado nas guerras napoleônicas, só tinha lido três livros: o Novo

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Testamento, a Imitação e o Dom Quixote (este lembrava-lhe a campanha de Espanha e distraía-o em tempos de chuva).

Outra voz que coloca o anúncio de Cristo misericordioso ao alcance de todos será a pregação das missões populares, que começa antes do período contemporâneo – e que a bula de promulgação do Ano da Misericórdia menciona explicitamente como um meio apostólico a redescobrir. Para a Itália do século xviii, o franciscano São Leonardo de Port-Maurice (falecido em 1751) seria um exemplo, ele que pregou mais de trezentas missões, atraindo por todo o lado um número extraordinário de fiéis. Nos seus sermões, ele preferia falar da Mãe de Misericórdia mais do que do inferno, convencido de converter assim mais facilmente os pecadores. Ele edificou também cerca de seiscentos caminhos da Cruz (vias-sacras) e divulgou igualmente a devoção ao Sagrado Coração.

Portanto, é à luz deste quadro histórico que se situam os textos pontifícios desta antologia. A escolha das citações deve ser compreendida como um convite à leitura: muitas vezes teríamos gostado de tudo transcrever e os cortes devem suscitar o desejo de procurar os originais.

Como uma outra obra desta mesma coleção aborda a misericórdia na Bíblia, não faremos aqui a análise de textos escriturísticos sobre este tema, frequentemente propostos pelos Papas (por exempl, por São João Paulo II, nos números 4 – sobre o Antigo Testamento – e 5 – sobre a parábola do pai misericordioso – da Encíclica Dives in misericordia). Uma vez que este livro trata dos bispos de Roma, não retomamos diretamente os textos do Concílio Vaticano II sobre a misericórdia, nem outros documentos importantes, como o Catecismo da Igreja Católica. Quanto ao período de tempo considerado, ele começa com o pontificado de Pio XI (eleito a 6 de fevereiro de 1922) e termina com a Bula Misericordiæ vultus, do Papa Francisco, que promulga o Jubileu Extraordinário da Misericórdia (11 de abril de 2015).

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PREGAÇÃO DA MISERICÓRDIA NA HISTÓRIA DO MAGISTÉRIO PONTIFÍCIO

A pregação centrada na misericórdia é uma etapa na história do magistério pontifício: ela quer anunciar o amor de Deus e a essência do Evangelho, de um modo particularmente adaptado à nossa época – como São João Paulo II gostava de sublinhar –, como antes fizeram os Papas quando convidavam a contemplar o Coração de Cristo ou encorajando os cristãos a colaborarem na instauração do Reino de Deus.

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A finalidade dos Papas: pregar o coração do Evangelho

O magistério pretende ser o eco da pregação do Verbo Encarnado, uma pregação centrada sobre o amor (cf., por exemplo, MT 22,34-40). Esta insistência

sobre o amor anima especialmente o projeto pastoral do Concílio Vaticano II, tal como São João XXIII e os seus sucessores o apresentaram.

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Pio XI: a devoção ao Sagrado Coração

A devoção ao Sagrado Coração contém a substância da religião, enquanto facilita o amor e a imitação de Cristo. De fato, na devoção ao Sagrado Coração «encontra-se toda a substância da religião e, especialmente, a norma de uma vida mais perfeita, como a que guia para um caminho mais fácil as mentes de um conhecimento mais íntimo de Jesus Cristo e induz os corações a amá-lo mais ardentemente e generosamente a imitá-lo» (Encíclica Miserentissimus Redemptor, 8 de maio de 1928).

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João XXIII: a misericórdia e o projeto do Concílio

Ainda antes da sua eleição como Papa, São João XXIII (Giuseppe Roncalli) manifestou a sua convicção de que o anúncio da misericórdia deveria ser colocado no centro da vida eclesial. Ele fez ainda várias afirmações alusivas à misericórdia divina nas notas íntimas elaboradas durante os seus exercícios espirituais em 1940, em Terapia, no Bósforo. Nelas cita a Exposição do “Miserere”, publicada pelo padre Paolo Segneri, s.j., falecido em 1694, e onde têm origem certas citações e expressões do futuro Papa.

«Terça-feira, 26 de novembro. [...] A grande misericórdia. Não basta uma misericórdia qualquer. O peso das injustiças sociais e pessoais é tão grave que não basta um gesto de caridade ordinária para as perdoar. Invoca-se, porém, a grande misericórdia. Esta é proporcional à própria grandeza de Deus. Secundum magnitudinem ipsius, sic et misericordia illius [“a sua misericórdia é como a sua grandeza”]. Com razão se disse que as nossas misérias são o trono da misericórdia divina. E disse-se ainda melhor que o nome e o apelido mais belo de Deus é este: misericórdia. No meio das lágrimas, isto deve inspirar uma grande confiança. Superexaltat misericordia judicium [“a misericórdia está acima do juízo”]. Parece demasiado. Mas não é, se sobre ele se apoiar o mistério da Redenção: se, para dar um sinal de predestinação e de salvação, este aparecer indicado no exercício da misericórdia» (Diário da alma, Paulus Editora, 3ª edição, 2014, p. 292).

«Ao iniciar-se o Concílio Ecumênico Vaticano II, tornou-se mais evidente do que nunca que a verdade do Senhor permanece eternamente. De fato, ao suceder uma época a outra, vemos que as opiniões dos homens se sucedem excluindo-se umas às outras, e que muitas vezes os erros se dissipam logo ao nascer, como a névoa ao despontar o sol. A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor as necessidades de hoje mostrando a validade da sua doutrina do que renovando condenações. [...] A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecumênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe

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amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados» (Discurso na abertura solene do SS. Concílio, VII, n. 1-3, 11 de outubro de 1962).

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Beato Paulo VI: a caridade, espiritualidade do Vaticano II

«Desejamos antes notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais, a caridade; por esta sua declarada intenção, o Concílio não poderá ser acusado por ninguém de irreligiosidade, de infidelidade ao Evangelho, se nos lembrarmos de que o próprio Cristo nos ensina que todos conhecerão que somos seus discípulos. […] Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. [...]

Uma corrente de interesse e de admiração saiu do Concílio sobre o mundo atual. Rejeitaram-se os erros, como a própria caridade e verdade exigiam; mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do respeito e do amor, foram apenas advertidos do erro» (Homilia na conclusão solene do Concílio Vaticano II, 7 de dezembro de 1965).

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São João Paulo II: a missão da Igreja é viver e anunciar a misericórdia

«A Igreja contemporânea está profundamente consciente de que só apoiada na misericórdia de Deus poderá realizar as tarefas que derivam da doutrina do Concílio Vaticano II; e, em primeiro lugar, a tarefa ecumênica que tende a unir todos os que creem em Cristo. Empregando múltiplos esforços nesse sentido, que é mais poderoso do que a fraqueza das divisões humanas, pode realizar definitivamente a unidade que Cristo pedia ao Pai, e que o Espírito não cessa de pedir para nós “com gemidos inexprimíveis”» (Encíclica Dives in misericordia, n. 13, 30 de novembro de 1980).

«Prosseguindo na grande tarefa de dar cumprimento ao Concílio Vaticano II, no qual podemos justamente descobrir uma nova fase de autorrealização da Igreja – na medida adaptada à época em que nos coube viver –, a própria Igreja deve ser constantemente guiada pela plena consciência de que não lhe é permitido, em hipótese alguma, esmorecer nesta tarefa e fechar-se sobre si mesma. A sua razão de ser, efetivamente, é revelar Deus, isto é, o Pai, que nos permite “vê-lo” em Cristo. Por mais forte que possa ser a resistência da história humana, por muito marcante que se apresente a heterogeneidade da civilização contemporânea, e, enfim, por maior que possa ser a negação de Deus no mundo humano, ainda maior deve ser, apesar de tudo, a nossa aproximação de tal mistério que, oculto desde toda a eternidade em Deus, foi depois, no tempo, realmente comunicado ao homem por meio de Jesus Cristo» (Encíclica Dives in misericordia, n. 15, 30 de novembro de 1980).

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Bento XVI: o Concílio e o pós-Concílio, o amor ao Coração de Jesus no anúncio da Igreja

«Estou convicto, colocando-me no seguimento dos ensinamentos do Concílio Vaticano II e dos meus venerados predecessores, São João XXIII, beato Paulo VI, João Paulo I e São João Paulo II, de que a humanidade contemporânea tem necessidade desta mensagem essencial, encarnada em Jesus Cristo: Deus é amor. Tudo deve partir daqui e tudo aqui deve conduzir: cada ação pastoral e cada desenvolvimento teológico» (Homilia na Basílica de San Pietro in Ciel d’Oro, Pavia, 22 de abril de 2007).

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Francisco: a misericórdia é a força jubilosa que nos faz sair do pecado

«Deus é alegre! […] E em que consiste a alegria de Deus? A alegria de Deus é perdoar, a alegria de Deus é perdoar! [...] Aqui está o Evangelho inteiro! Aqui está! Aqui está o Evangelho inteiro, todo o Cristianismo! [...] A misericórdia é a verdadeira força que pode salvar o homem e o mundo do “câncer” que é o pecado, o mal moral, o mal espiritual. Só o amor preenche os vazios, os abismos negativos que o mal abre no coração e na história. Somente o amor pode fazer isto, e esta é a alegria de Deus! [...] Qual é o perigo? É que nós presumimos que somos justos e julgamos os outros. Julgamos até Deus, porque pensamos que Ele deveria castigar os pecadores, condená-los à morte, em vez de perdoar. Então sim, corremos o risco de permanecer fora da casa do Pai!» (Angelus, 15 de setembro de 2013).

«Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. [...] Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus. Precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, de serenidade e de paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado» (Bula Misericordiæ vultus, n. 1-2, 11 de abril de 2015).

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A misericórdia é o coração do Evangelho

Faz um século que os Papas utilizam diferentes expressões para apresentar a essência do Evangelho aos homens do seu tempo: pensemos, em particular, no Sagrado Coração, no Reino de Deus, na misericórdia etc. Apresentaremos aqui algumas destas expressões, escolhidas nas passagens onde os Pontífices analisaram estas formulações como paralelas: elas conduzem todas a Cristo e encontram a sua unidade neste fim comum.

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Pio XI: o seu programa de instauração do reino de Cristo

Pio XI observa que o seu programa de instauração do reino de Cristo está relacionado com a restauração de tudo em Cristo, promovida por São Pio X e pela obra de pacificação realizada por Bento XV.

«É, portanto, evidente que a verdadeira paz de Cristo não pode estar senão no reino de Cristo: “a paz de Cristo no reino de Cristo”; e é igualmente evidente que, procurando a restauração do reino de Cristo, faremos juntos o trabalho mais necessário e mais eficaz para uma estável pacificação. Foi assim que São Pio X, propondo-se “restaurar tudo em Cristo”, quase que por um instinto divino preparava a primeira e mais necessária base daquela “obra de pacificação”, que deveria ser o programa e a ocupação de Bento XV. Nós unimos num só estes dois programas dos nossos antecessores: a restauração do reino de Cristo para a pacificação em Cristo: “A paz de Cristo no reino de Cristo”» (Encíclica Ubi Arcano, n. 49, 23 de dezembro de 1922).

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Pio XII: o anúncio de Cristo é a pregação do culto ao seu Coração e do seu reino «O arcano desígnio que o Senhor nos confiou, sem nenhum mérito nosso, a altíssima dignidade e as gravíssimas solicitudes do sumo pontificado próprio no ano em que decorre o quadragésimo aniversário da consagração da humanidade ao sacratíssimo Coração do Redentor, proferida pelo nosso imortal predecessor, Leão XIII, no declinar do século passado, na vigília do Ano Santo. [...] Como não sentir hoje profundo reconhecimento para com a Providência, que quis fazer coincidir o nosso primeiro ano de pontificado com uma lembrança assim [...]; e como poderíamos não colher com alegria a oportunidade para fazer do culto ao “Rei dos reis e Senhor dos senhores” (1Tm 6,15; Ap 19,16), quase no introito deste nosso pontificado, no espírito do nosso inesquecível predecessor e em fiel atuação das suas intenções? Como não fazer delas o alfa e o ômega da nossa vontade e do nosso operar, do nosso ensinamento e da nossa atividade, da nossa paciência e dos nossos sofrimentos, todos consagrados à difusão do reino de Cristo?» (Summi pontificatus, sobre o programa do pontificado, 20 de outubro de 1939).

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Beato Paulo VI: construir a civilização do amor significa instaurar o Reino de Deus

[O Papa procura] «fórmulas fecundas, que nos agrada cultivar e fazer presidir ao estilo e ao programa do nosso renovamento cristão. [...] Uma fórmula foi por nós já fugazmente lançada, quando nos propusemos procurar na “civilização do amor” o fruto religioso, moral e civil do Ano Santo. [...] Mas existem outras fórmulas, ótimas e fecundas, nas quais nós podemos condensar, como sementes destinadas a maravilhosos desenvolvimentos, a força genética de um cristianismo sempre novo e vivo. [...] Nós podemos, neste momento importante da nossa maturação espiritual, chegar à fórmula originária do anúncio evangélico, fórmula que temos continuamente nos lábios e no coração cada vez que recitamos a grande e usual oração do Pai-Nosso, e fazemos nosso o tema da primeira pregação de Jesus Cristo: “Venha o teu reino”» (Audiência geral, 14 de janeiro de 1976).

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São João Paulo II: o Reino de Cristo é o reino do amor misericordioso

«Como é grande o poder do Amor misericordioso, que esperamos até que Cristo tenha colocado todos os inimigos sob os seus pés, vencendo até o fim o pecado e aniquilando, como último inimigo, a morte! O reino de Cristo é uma tensão para a vitória definitiva do Amor misericordioso, para a plenitude escatológica do bem e da graça, da salvação e da vida. Esta plenitude teve o seu início visível sobre a Terra na cruz e na ressurreição. Cristo, crucificado e ressuscitado, é, em profundidade, a autêntica revelação do Amor misericordioso. Ele é o rei dos nossos corações. [...] Este é, pois, o reino do amor para com o homem, do amor na verdade; e é, por isso, o reino do Amor misericordioso. Este reino é o dom “preparado [...] desde a fundação do mundo”, dom do Amor. E é também como fruto do Amor que, no decurso da história do homem e do mundo, se faz constantemente estrada através das barreiras da indiferença, do egoísmo, do desinteresse e do ódio; através das barreiras da concupiscência da carne, dos olhos e da soberba da vida (cf. JO 2, 16); através do resíduo do pecado

que cada homem tem em si, através da história dos pecados humanos e dos crimes, como os que agravaram o nosso século e a nossa geração [...] através de tudo isso!» (Homilia no Santuário do Amor Misericordioso, Collevalenza, n. 2.6, 22 de novembro de 1981).

«A misericórdia divina atinge os homens através do Coração de Cristo crucificado: “Minha filha, diz que sou o Amor e a Misericórdia em pessoa”, pedirá Jesus à irmã Faustina (Diário, p. 374). Cristo derrama esta misericórdia sobre a humanidade mediante o envio do Espírito que, na Trindade, é a Pessoa-Amor. E porventura não é a misericórdia um “segundo nome” do amor (cf. Encíclica Dives in misericordia, n. 7), cultuado no seu aspecto mais profundo e terno, na sua atitude de cuidar de toda a necessidade, sobretudo na sua imensa capacidade de perdão?» (Homilia na canonização da irmã Maria Faustina Kowałska, n. 2, 30 de abril de 2000).

«É necessário fazer ressoar a mensagem do amor misericordioso com um vigor renovado. O mundo precisa deste amor. Chegou a hora de fazer a mensagem de Cristo atingir todos os homens: de maneira especial aqueles cuja

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humanidade e dignidade parecem perder-se no mysterium iniquitatis. Chegou o momento de a mensagem da Misericórdia Divina derramar a esperança nos corações, tornando-se a centelha de uma nova civilização: a civilização do amor» (Homilia na beatificação de quatro servos de Deus, Cracóvia, n. 3, 18 de agosto de 2002).

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Francisco: ter um coração misericordioso como o Sagrado Coração

«Ter um coração misericordioso não significa ter um coração débil. Quem quer ser misericordioso precisa de um coração forte, firme, fechado ao tentador, mas aberto a Deus; um coração que se deixe impregnar pelo Espírito e levar pelos caminhos do amor que conduzem aos irmãos e irmãs: no fundo, um coração pobre, isto é, que conhece as suas limitações e que se gasta pelo outro.

Por isso, amados irmãos e irmãs, nesta Quaresma desejo rezar convosco a Cristo: “Fac cor nostrum secundum cor tuum”: “Fazei o nosso coração semelhante ao vosso” (Súplica da Ladainha ao Sagrado Coração de Jesus). Teremos assim um coração forte e misericordioso, vigilante e generoso, que não se deixa fechar em si mesmo, nem cai na vertigem da globalização da indiferença» (Mensagem para a Quaresma de 2015, n. 3, 4 de outubro de 2014).

«A salvação não começa pela confissão da realeza de Cristo, mas pela imitação das obras de misericórdia mediante as quais Ele realizou o Reino. Quem as cumpre demonstra que acolheu a realeza de Jesus, porque deu espaço no seu coração à caridade de Deus. Na noite da vida seremos julgados sobre o amor, sobre a proximidade e sobre a ternura para com os irmãos» (Homilia na cerimônia de canonização, 23 de novembro de 2014).

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A Divina Misericórdia no ensinamento e na vida de São João Paulo II

São João Paulo II declarou que a mensagem da Divina Misericórdia formava a imagem do seu pontificado: Bento XVI e Francisco fizeram eco desta centralidade da misericórdia no magistério do seu predecessor.

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A difusão da devoção à Divina Misericórdia é um sinal dos tempos

«É realmente maravilhoso o modo como a sua devoção a Jesus Misericordioso fez o seu caminho no mundo contemporâneo e conquistou tantos corações humanos! Este é sem dúvida um sinal dos tempos – um sinal do nosso século xx. O balanço deste século que passou apresenta, além das suas conquistas, que algumas vezes superaram as das épocas anteriores, também uma profunda inquietação e medo acerca do futuro. Onde, então, senão na Divina Misericórdia, pode o mundo encontrar saída e a luz da esperança? Os crentes intuem isto perfeitamente!» (Homilia na beatificação de três sacerdotes e duas irmãs, n. 6, 18 de abril de 1993).

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A mensagem da Divina Misericórdia forma a imagem do pontificado de São João Paulo II

«A mensagem da Divina Misericórdia sempre me foi próxima e querida. É como se a história a tivesse inscrito na trágica experiência da Segunda Guerra Mundial. Naqueles anos difíceis, constituiu um particular sustento e uma inexaurível fonte de esperança, não só para os habitantes de Cracóvia, mas para a nação inteira. Esta foi também a minha experiência pessoal, que levei comigo para a Sé de Pedro e que num certo sentido forma a imagem deste pontificado» (Discurso às irmãs da bem-aventurada Virgem Maria da Misericórdia, Santuário da Divina Misericórdia, n. 1, 7 de junho de 1997).

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A mensagem da Divina Misericórdia confiada ao terceiro milênio, para transformar a humanidade

«Como será o futuro do homem sobre a Terra? A nós não é dado sabê-lo. Contudo, é certo que, ao lado de novos progressos, não faltarão, infelizmente, experiências dolorosas. Mas a luz da Divina Misericórdia, que o Senhor quis como que entregar de novo ao mundo através do carisma da irmã Faustina, iluminará o caminho dos homens do terceiro milênio. [...] A canonização da irmã Faustina tem uma eloquência particular: mediante este ato quero hoje transmitir esta mensagem ao novo milênio. Transmito-a a todos os homens, para que aprendam a conhecer sempre melhor o verdadeiro rosto de Deus e o genuíno rosto dos irmãos. Amor a Deus e amor aos irmãos são de fato inseparáveis» (Homilia na canonização da irmã Maria Faustina Kowałska, n. 3.5).

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A Divina Misericórdia, única fonte de esperança perante o mal

«Não existe para o homem outra fonte de esperança fora da misericórdia de Deus. Desejamos repetir com fé: Jesus, tenho confiança em Ti! No nosso tempo, em que o homem se sente perdido perante as numerosas manifestações do mal, temos particular necessidade deste anúncio, que exprime a confiança no amor onipotente de Deus. É preciso que a invocação da misericórdia de Deus surja do fundo dos corações repletos de sofrimento, de apreensão e de incerteza, mas que, ao mesmo tempo, procure uma fonte infalível de esperança. É por isso que hoje viemos aqui, ao Santuário de Łagiewniki, para redescobrir em Cristo o rosto do Pai: daquele que é “Pai da misericórdia e Deus de toda a consolação” (2Cor 1,3). Com os olhos da alma desejamos fixar o olhar de Jesus misericordioso para encontrar na profundidade deste olhar o reflexo da sua vida, assim como a luz da graça que já recebemos tantas vezes, e que Deus nos destina todos os dias e para o último dia» (Homilia na Dedicação do Santuário da Divina Misericórdia em Kraków-Łagiewniki, n. 1, 17 de agosto de 2002).

Bento XVI referiu que as palavras desta homilia «foram como que uma síntese do seu [de São João Paulo II] magistério, evidenciando que o culto da Divina Misericórdia não é uma devoção secundária, mas dimensão integrante da fé e da oração do cristão» (Regina Cæli, 23 de abril de 2006).

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São João Paulo II reza pela difusão do amor misericordioso

«Desejo confiar solenemente o mundo à Divina Misericórdia. Faço-o com o desejo ardente de que a mensagem do amor misericordioso de Deus, aqui proclamado por intermédio de Santa Faustina, chegue a todos os habitantes da Terra e cumule os seus corações de esperança. [...] Oxalá se realize a firme promessa do Senhor Jesus: deve elevar-se deste lugar “a centelha que preparará o mundo para a sua última vinda” (cf. Diário, 1732). É preciso acender esta centelha da graça de Deus. É necessário transmitir ao mundo este fogo da misericórdia. Na misericórdia de Deus, o mundo encontrará a paz, e o homem, a felicidade!» (Homilia na Dedicação do Santuário da Divina Misericórdia em Kraków-Łagiewniki, n. 5)

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O ensinamento de São João Paulo II sobre a misericórdia, fruto da sua experiência pastoral na Polônia e da sua análise do século xx

«Também as reflexões que se podem ler na Dives in misericordia são fruto da minha experiência pastoral na Polônia e, de modo especial, em Cracóvia. Aqui, de fato, encontra-se o túmulo de Santa Faustina Kowałska, à qual Cristo concedeu ser uma intérprete particularmente iluminada da verdade sobre a Divina Misericórdia. [...] Falo disto porque as revelações da irmã Faustina, centradas sobre o mistério da Divina Misericórdia, se referem ao período que precede a Segunda Guerra Mundial. É precisamente o tempo em que nasceram e se desenvolveram aquelas ideologias do mal que foram o nazismo e o comunismo. A irmã Faustina tornou-se a porta-voz do anúncio segundo o qual a única verdade capaz de contrabalançar o mal daquelas ideologias é que Deus é misericórdia – é a verdade do Cristo misericordioso. É por isso que, chamado à sede de São Pedro, senti impelente a necessidade de transmitir as experiências feitas na minha terra natal, mas que pertencem ao tesouro da Igreja universal» (Memória e identidade, Milão, 2005, 15-16).

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A mensagem recebida de Santa Faustina, o Evangelho da Divina Misericórdia escrito segundo a perspectiva do século xx

«Aos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, as palavras anotadas no Diário de Santa Faustina parecem um Evangelho especial da Divina Misericórdia, escrito segundo a perspetiva do século xx. Os contemporâneos compreenderam esta mensagem. E compreenderam-na exatamente através da dramática acumulação do mal durante a Segunda Guerra Mundial e através da crueldade dos sistemas totalitários. Foi como se Cristo tivesse querido revelar que o limite imposto ao mal, de que o homem é artífice e vítima, é definitivamente a Divina Misericórdia. Certamente nela há também a justiça, mas esta por si só não constitui a última palavra da economia divina na história do mundo e na história do homem. Deus sabe sempre tirar o bem do mal, Deus quer que todos sejam salvos e possam alcançar o conhecimento da verdade (cf. 1Tm 2,4): Deus é Amor (cf. 1Jo 4,8). Cristo crucificado e ressuscitado, tal como a irmã Faustina o viu, é a revelação suprema desta verdade» (Memória e identidade, Milão, 2005, 67-71).

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A mensagem de misericórdia na vida de São João Paulo II: o poder que impõe um limite ao mal no mundo é a misericórdia manifestada na cruz

São João Paulo II «deixou-nos uma interpretação do sofrimento que não é uma teoria teológica ou filosófica, mas um fruto amadurecido ao longo do seu caminho pessoal de sofrimento, por ele percorrido com a ajuda da fé no Senhor crucificado. Esta interpretação, que ele tinha elaborado na fé e que dava sentido ao seu sofrimento vivido em comunhão com o do Senhor, falava através da sua dor silenciosa, transformando-a numa grande mensagem. [...] O Papa mostra-se profundamente sensibilizado pelo espetáculo do poder do mal que, no século recém-terminado, nos é concedido experimentar de modo dramático. [...] Existe um limite contra o qual o poder do mal recua? Sim, existe, responde o Papa [...]. O poder que põe um limite ao mal é a misericórdia divina. [...] Na consideração retrospectiva do atentado de 13 de maio de 1981, e também com base na experiência do seu caminho com Deus e com o mundo, São João Paulo II aprofundou ulteriormente esta resposta. O limite do poder do mal, o poder que, em última análise, o derrota, é – como ele nos diz – o sofrimento de Deus, o sofrimento do Filho na Cruz» (BENTO XVI, Discurso aos cardeais, arcebispos e

prelados da Cúria Romana, 22 de dezembro de 2005).

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O tempo da misericórdia: uma intuição desejada pelo Espírito e recolhida por São João Paulo II

«Estamos aqui [...] para ouvir a voz do Espírito que fala à Igreja inteira nesta nossa época, que é precisamente o tempo da misericórdia. Disto estou certo! [...] Nós vivemos num tempo de misericórdia, desde há trinta anos ou mais, até os dias de hoje. Esta foi uma intuição de São João Paulo II. Ele teve a “perspicácia” de que este era o tempo da misericórdia. [...] podemos esquecer os grandes conteúdos; as intuições excelsas e as exortações transmitidas ao Povo de Deus não os podemos esquecer. E a da Divina Misericórdia é uma delas. É uma herança que ele [São João Paulo II] nos deixou, mas que provém do alto» (FRA NCISCO, Discurso aos párocos de Roma, 6 de março de 2014).

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II

A

S FONTES DA MISERICÓRDIA DIVINA

As citações precedentes recordaram-nos esta certeza do magistério pontifício recente: o coração dos nossos contemporâneos – e primeiramente o dos cristãos – voltar-se-á cada vez mais para Deus se a Igreja souber anunciar mais claramente o amor misericordioso do Senhor. Por esta razão, os Papas encorajam sobretudo os homens deste tempo a descobrir a lógica misericordiosa da história da salvação, e especialmente do mistério pascal. Para se aproximar do amor divino, é preciso compreender e experimentar como Deus interveio na história em favor dos homens, em primeiro lugar sobre a cruz.

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A misericórdia vem de Deus

Pio XII: a união da misericórdia com a justiça é ilustrada pelo Mistério Pascal «O mistério da Redenção é um mistério de amor misericordioso da Augusta Trindade e do divino Redentor para com a humanidade inteira, visto que, sendo esta totalmente incapaz de oferecer a Deus uma satisfação condigna pelos seus próprios delitos, mediante a imperscrutável riqueza de méritos que nos ganhou com a efusão do seu preciosíssimo Sangue, Cristo pôde restabelecer e aperfeiçoar aquele pacto de amizade entre Deus e os homens, violado pela primeira vez no paraíso terrestre por culpa de Adão e depois, inúmeras vezes, pelas infidelidades do Povo escolhido. Portanto, havendo, na sua qualidade de nosso legítimo e perfeito mediador, e sob o estímulo de uma caridade energética para conosco, conciliado as obrigações e compromissos do gênero humano com os direitos de Deus, o divino Redentor foi, sem dúvida, o autor daquela maravilhosa reconciliação entre a divina justiça e a divina misericórdia, a qual justamente constitui a absoluta transcendência do mistério da nossa salvação» (Encíclica Haurietis aquas, n. 20, 15 de maio de 1956).

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Beato Paulo VI: a miséria humana e a misericórdia divina: o quadro da história da salvação

No texto seguinte, Paulo VI desenvolve uma intuição de Santo Agostinho que ele citou várias vezes e que lhe permite resumir a história da salvação como a de um encontro entre a miséria do homem e a misericórdia de Deus. Este texto oferece uma introdução esclarecedora desta parte da nossa antologia. A miséria do pecado e do mal encontra em Cristo o desígnio divino de misericórdia, no qual o homem colabora com a sua penitência.

«Santo Agostinho fornece-nos a fórmula, que não é somente verbal, mas real, humana e teológica, e que se condensa em duas palavras formidáveis: miséria e misericórdia. Ao falarmos de miséria queremos falar do pecado, tragédia humana que se desenrola na história do mal, abismo obscuro que precipita para uma espantosa ruína. O pecado: [...] agora é a oportunidade de colocar sob a lente de uma visão mais clara esta noção, a qual tem o lugar de grau inferior e negativo de toda a concepção cristã da existência humana; e isto é tanto mais oportuno porquanto as ideo​logias teóricas e práticas do mundo contemporâneo tentam expulsar o nome e a realidade do pecado do discurso moderno. Mas uma outra verdade se impõe; uma outra sorte está reservada ao homem através da chegada de um desígnio gratuito, onipotente e inefável de Deus: a misericórdia. A misericórdia divina vem em socorro da miséria do homem. E vós sabeis com que providência: “Onde foi grande o pecado, foi bem maior a graça” (RM 5,20). E,

como já sabeis, com imprevisível amor: Cristo, o Verbo de Deus feito homem, assumiu sobre si mesmo a missão redentora. «Ele, que não conhecia o pecado, fez-se pecado por nós, para que nós nos tornássemos nele justiça de Deus» (cf. 2COR 5,21). Quer dizer: Ele ofereceu-se como vítima expiadora em nossa

substituição, merecendo para nós uma restituição ao estado de graça, ou seja, à participação sobrenatural na vida de Deus. [...] Entrar neste plano significa para nós fazer penitência, ou seja, saber, aceitar e reviver esta economia de salvação. Que haverá de maior, de mais necessário, e, no fundo, de mais belo, de mais fácil e de mais feliz?» (Audiência geral, 20 de março de 1974).

«Fixai o vosso pensamento, hoje mais do que nunca, para que se torne habitual e sempre inspirador, no fato misterioso e central de toda a nossa fé, a Presença

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do Filho de Deus, feito homem, entre nós; mistério da Encarnação, que nos autoriza a repetir o verdadeiro nome de Jesus, nascido de Maria e residente em Nazaré, o nome de “Deus conosco” (cf. Is 7,14; Mt 1,23). Nobiscum Deus! Então veremos reunir-se sob esta designação, própria de Jesus, o desígnio, o sentido da sua vinda a este mundo, a intenção diretiva da sua aparição entre nós homens, na história da humanidade: esta intenção resolve-se num nome, tão comum e muitas vezes profanado, que aqui atinge o vértice da divindade; este nome é amor. [...] A história de Jesus deve ser vista a esta luz: “Ele amou-me”, escreve São Paulo, e cada um de nós pode e deve repeti-lo para si: Ele amou-me “e entregou-se por mim” (Gl 2,20)» (Homilia na solenidade de Corpus Domini, 13 de junho de 1974).

«A Redenção supõe uma condição infeliz da humanidade, a que ela está destinada; supõe o pecado. E o pecado é uma história extremamente longa e complicada: implica a queda de Adão; supõe uma herança que ultrapassa ao nascer um estado de privação de graça, ou seja, de relação sobrenatural do homem com Deus; implica em nós uma disfunção psicomoral que nos induz a cair nos nossos pecados pessoais; supõe a perda da plenitude de vida à qual Deus nos tinha destinado além das exigências do nosso ser natural; supõe uma necessidade de expiação e de reparação, impossíveis às nossas únicas forças; supõe a advertência de uma justiça implacável, de per se considerável; implica uma concepção de per se ainda pessimista das sortes humanas; supõe uma derrota de vida e um macabro triunfo da morte. Implica, ou melhor, reclama, um desígnio de Misericórdia Divina, divinamente restaurador. E então, eis o grande anúncio de Cristo entrando no mundo: Eis-me aqui! (cf. Hb 10,5-10). Jesus vem como Salvador, como Redentor, ou seja, como aquele que paga, que satisfaz por toda a humanidade, por nós. Esforcemo-nos por compreender o significado desta palavra: vítima. Jesus vem ao mundo como vítima expiadora, como a síntese da justiça realizada e da misericórdia reparadora» (Au​diência geral, 29 de março de 1972).

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São João Paulo II: Cristo torna presente o Pai como misericórdia

«Em Cristo e por Cristo, Deus, com a sua misericórdia, torna-se também particularmente visível, isto é, coloca-se em evidência o atributo da divindade, que já o Antigo Testamento, servindo-se de diversos conceitos e termos, tinha chamado “misericórdia”. Cristo confere a toda a tradição do Antigo Testamento, quanto à misericórdia divina, sentido definitivo. Não somente fala dela e a explica com o uso de comparações e de parábolas, mas sobretudo Ele próprio a encarna e a personifica. Ele próprio é, em certo sentido, a misericórdia. Para quem a vê nele – e nele a encontra –, Deus torna-se particularmente “visível” como o Pai “rico de misericórdia” (EF 2,4)» (Encíclica Dives in misericordia, n. 2,

30 de novembro de 1980).

«A cruz no Calvário, mediante a qual Jesus Cristo – Homem, Filho da Virgem Maria, filho putativo de José de Nazaré – “deixa” este mundo, é ao mesmo tempo uma nova manifestação da eterna paternidade de Deus, o qual por Ele (Cristo) se aproxima de novo da humanidade, de cada um dos homens, dando-lhes o três vezes santo “Espírito de verdade”. Com esta revelação do Pai e efusão do Espírito Santo, que imprimem um sigilo indelével no mistério da Redenção, explica-se o sentido da cruz e da morte de Cristo. O Deus da criação revela-se como Deus da redenção, como Deus “fiel a si próprio”, fiel ao seu amor para com o homem e para com o mundo, que já se revelara no dia da criação. E este seu amor é amor que não retrocede diante de nada daquilo que nele mesmo exige a justiça. E por isso o Filho “que não conhecera pecado, Deus tratou-o por nós como pecado”. E se “tratou como pecado” aquele que era absolutamente isento de qualquer pecado, fê-lo para revelar o amor que é sempre maior do que tudo o que é criado, o amor que é Ele próprio, porque “Deus é amor”. E sobretudo o amor é maior do que o pecado, do que a fraqueza e do que “a caducidade do que foi criado”, mais forte do que a morte; é amor sempre pronto a erguer e a perdoar, sempre pronto para ir ao encontro do filho pródigo, sempre em busca da “revelação dos filhos de Deus”, que são chamados para a glória futura. Esta revelação do amor é definida também misericórdia; e tal revelação do amor e da misericórdia tem na história do homem uma forma e um nome: chama-se Jesus Cristo» (Encíclica

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Redemptor hominis, n. 9, 4 de março de 1979).

«É precisamente a Redenção a última e definitiva revelação da santidade de Deus, que é a plenitude absoluta da perfeição: plenitude da justiça e do amor, pois a justiça funda-se no amor, dele provém e para ele tende. Na paixão e morte de Cristo – no fato de o Pai não ter poupado o seu próprio Filho, mas “o ter tratado como pecado por nós” – manifesta-se a justiça absoluta, porque Cristo sofre a paixão e a cruz por causa dos pecados da humanidade. Dá-se na verdade a “superabundância” da justiça, porque os pecados do homem são “compensados” pelo sacrifício do Homem-Deus. Esta justiça, que é verdadeiramente justiça “à medida” de Deus, nasce toda do amor: do amor do Pai e do Filho, e frutifica toda no amor. Precisamente por isso a justiça divina revelada na cruz de Cristo é “à medida” de Deus, nasce toda do amor, do amor do Pai e do Filho, e frutifica inteiramente no amor. Precisamente por isso, a justiça divina revelada na cruz de Cristo é “à medida” de Deus, porque nasce do amor e se realiza no amor, produzindo frutos de salvação. A dimensão divina da Redenção não se verifica somente em ter feito justiça do pecado, mas também no fato de ter restituído ao amor a força criativa, graças à qual o homem tem novamente acesso à plenitude de vida e de santidade, que provém de Deus. Deste modo, a Redenção traz em si a revelação da misericórdia na sua plenitude» (Encíclica Dives in misericordia, n. 7, 30 de novembro de 1980).

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Bento XVI:

a cruz revela-nos a gravidade do pecado e o poder transformador da misericórdia

«Contemplando com os olhos da fé o Crucificado, podemos compreender em profundidade o que é o pecado, quanto é trágica a sua gravidade e, ao mesmo tempo, como é incomensurável o poder do perdão e da misericórdia do Senhor. [...] Olhando para Cristo, sintamo-nos ao mesmo tempo protegidos por Ele. Aquele que nós trespassamos com as nossas culpas não se cansa de derramar sobre o mundo uma torrente inexaurível de amor misericordioso. Possa a humanidade compreender que só desta fonte é possível extrair a energia espiritual indispensável para construir aquela paz e felicidade que cada ser humano procura incessantemente» (Angelus, 25 de fevereiro de 2007).

(51)

Francisco: Jesus é a misericórdia “encarnada”

«Jesus Cristo é o amor de Deus encarnado, a Misericórdia encarnada» (Regina Cæli, 7 de abril de 2013).

«Depois de Jesus ter vindo ao mundo, não podemos viver como se não conhecêssemos Deus; como se fosse algo abstrato, vazio, de referência puramente nominal; não. Deus tem um rosto concreto, tem um nome: Deus é misericórdia» (Angelus, 18 de agosto de 2013).

«Com o olhar fixo em Jesus e no seu rosto misericordioso, podemos individuar o amor da Santíssima Trindade. A missão que Jesus recebeu do Pai foi a de revelar o mistério do amor divino na sua plenitude. “Deus é amor” (1JO 4,8.16);

afirma-o pela primeira e única vez em toda a Escritura o evangelista João. Agora este amor tornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A sua pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, que se abeiram dele, manifesta algo de único e de irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo nele fala de misericórdia. Nele nada há que seja desprovido de compaixão» (Bula Misericordiæ vultus, n. 8, 11 de abril de 2015).

«Quando dirigimos o olhar para a Cruz onde Jesus foi crucificado, contemplamos o sinal do amor, do amor infinito de Deus por cada um de nós e a raiz da nossa salvação. Daquela Cruz brota a misericórdia do Pai que abraça o mundo inteiro. Por meio da Cruz de Cristo, o maligno foi vencido, a morte é derrotada, a vida nos é doada, a esperança nos é restituída» (Angelus, 14 de setembro de 2014).

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O Coração de Cristo, expressão da lógica misericordiosa de Deus A devoção ao Sagrado Coração resume de forma pedagógica como a misericórdia vem do Pai, como ela se revela perfeitamente na morte do Verbo encarnado sobre a cruz e como o homem se pode associar livremente a ela. Esta devoção foi um caminho privilegiado da pregação pontifícia de fins do século XIX

até a década de 50, e ainda hoje é atual, porque exprime sinteticamente o conteúdo de toda a espiritualidade cristã.

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Pio XI: contemplar o Sagrado Coração para se compreender o desígnio misericordioso de Deus e poder reparar os pecados

«A expiação, purificando das culpas, começa a própria união, e com a participação dos padecimentos de Cristo aperfeiçoa-a, e com a oblação dos sacrifícios em favor dos irmãos leva-a à última realização. Foi tal precisamente o desígnio da misericórdia de Jesus quando, ardendo em chama de amor, nos quis revelar o seu Coração com os sinais da sua paixão, para que nós, meditando, por um lado, na malícia infinita do pecado e admirando, por outro lado, a infinita caridade do Redentor, detestássemos mais vivamente o pecado e mais ardentemente nos revestíssemos de amor. E na verdade, o espírito de expiação ou de reparação teve sempre destaque no culto com que se honra o Sagrado Coração de Jesus, e liga-se certamente à origem, à natureza, à eficácia e às práticas próprias desta devoção particular» (Encíclica Miserentissimus Redemptor, 8 de maio de 1928).

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Pio XII: o Coração de Cristo é a síntese da redenção, porque revela a misericórdia divina

«No Coração [...] do nosso Salvador [...] podemos considerar não só o símbolo, mas também como que um compêndio de todo o mistério da nossa redenção. [...] As revelações com que foi favorecida Santa Margarida Maria não acrescentaram nada de novo à doutrina católica. A sua importância consiste em que o Senhor – ao mostrar o seu Coração Sacratíssimo – de modo extraordinário e singular quis atrair a consideração dos homens para a contemplação e a veneração do amor misericordiosíssimo de Deus para com o gênero humano. De fato, mediante manifestação tão excepcional, Jesus Cristo expressamente e repetidas vezes indicou o seu Coração como símbolo com que estimular os homens ao conhecimento e à estima do seu amor; e ao mesmo tempo constituiu-o sinal e penhconstituiu-or de misericórdia e de graça para as necessidades da Igreja nconstituiu-os tempos modernos» (Encíclica Haurietis aquas, n. 42, 15 de maio de 1996).

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Bento XVI: a devoção ao Sagrado Coração exprime o conteúdo de toda a verdadeira espiritualidade cristã

«Este mistério do amor de Deus por nós [...] não constitui apenas o conteúdo do culto e da devoção ao Coração de Jesus: ele é, de igual modo, o conteúdo de qualquer espiritualidade e devoção verdadeira. [...] Quem aceita o amor de Deus interiormente é por ele plasmado. O amor de Deus experimentado é vivido pelo homem como um “chamado” ao qual ele deve responder. O olhar dirigido ao Senhor, que “tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores” (Mt 8,17), ajuda-nos a tornar-nos mais atentos ao sofrimento e à necessidade dos outros. A contemplação adorante do lado trespassado pela lança torna-nos sensíveis à vontade salvífica de Deus. Torna-nos capazes de nos confiarmos ao seu amor salvífico e misericordioso e ao mesmo tempo fortalece-nos no desejo de participar na sua obra de salvação, tornando-nos seus instrumentos» (Carta ao Superior-Geral da Companhia de Jesus, 15 de maio de 2006).

Referências

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