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O FENÔMENO ANAFÓRICO E A IDENTIDADE DE REFERÊNCIA

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O FENÔMENO ANAFÓRICO E A IDENTIDADE DE

REFERÊNCIA

Eva de Mercedes Martins Gomes1

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Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

Caixa Postal 549 – 79070-900 - Campo Grande – MS - Brasil mercedes_0908@hotmail.com

Abstract. Using the descriptive-interpretative method of qualitative nature, this article proposes a reflection on the phenomenon of the anaphora’s references co-referring of the non co-referring in the textual progression, tends in view the sense construction. Tends as base Rodolfo Ilari's article – Anáfora e correferência: por que as duas noções não se identificam? - This work plans to distinguish defined descriptions co-referring anaphora of the non-coreferring. The study is part of the project of dissertation (in process) of the Program of Pos graduation in Estudos de Linguagens/UFMS.

Keywords. Textual progression; anaphora; coreference.

Resumo. Utilizando o método descritivo-interpretativo de natureza qualitativa, este artigo propõe uma reflexão sobre o fenômeno das referências anafóricas correferenciais ou não na progressão textual, tendo em vista a construção de sentido. Tendo como base o artigo de Rodolfo Ilari - Anáfora e correferência: por que as duas noções não se identificam?- este trabalho pretende distinguir descrições definidas anafóricas correferentes das não-correferentes. O estudo é parte do projeto de dissertação (em andamento) do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Palavras-chave. Progressão textual; anáfora; correferência. 1 Introdução

A década de 1960 consagrou-se como um período de intensas transformações nos estudos lingüísticos, sendo considerada a década do surgimento da Análise do Discurso na França, fazendo emergir algumas propostas teóricas, independentes umas das outras, eclodindo no que hoje se conhece por Lingüística Textual (KOCH, 1997).

Salienta-se, porém, que, somente a partir da década de 1980, a Lingüística Textual passou a estudar o texto dentro de seu contexto de produção. Noções como textualidade, coesão e coerência textuais tornam-se, então, figuras recorrentes nas agendas de autores, como: Halliday, Hasan, Beaugrande, Dressler, Teun Van Dijk, Charolles, Koch e Travaglia.

Na verdade, a redefinição do texto e dos objetivos da Lingüística Textual coaduna-se com as outras abordagens pós-estruturalistas da linguagem, na medida em

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que todas negariam, de alguma forma, a visão de língua enquanto um código homogêneo

Koch (2003) acredita que essa noção de código é sobrepujada pela noção de língua como ‘lugar de interação’, levando-se em consideração a Lingüística Textual, o que permite entender que o sujeito constrói sentidos por meio da língua, valendo-se, para isso, não só de formas lingüísticas, mas da situação de interação imediata, do seu entorno sócio-político-cultural e de conhecimentos arquivados em sua memória. Marcuschi (2003), por sua vez, comenta que o sentido situa-se quando marcado por atividades de negociação entre os interlocutores e por processos referenciais de progressão textual, ou seja, recursos formais de coesão.

Entende-se por recursos formais de coesão todas aquelas partículas e expressões que obrigam o leitor a recuperar em outra parte do texto alguns elementos que o auxiliam a compreendê-lo, mediante referências explícitas ou implícitas e mediante substitutos. Incluem-se nesse grupo as anáforas, catáforas, dêiticos, elipses e os substitutos léxicos (KOCH; MARCUSCHI, 1998; 2002). Koch e Elias (2006) postulam que uma oração onde aparece um desses elementos não expressa em si mesma toda a informação que se requer para transmitir o sentido. Para as autoras, é preciso referir-se a outras partes do texto (co-texto) para identificar a informação que falta e, uma vez obtida, suprir ou atualizar a informação realmente expressa.

Koch (1999) refere que, inicialmente, autores como Harweg e Isenberg desenvolveram as chamadas análises transfrásticas, que procuravam explicar fenômenos compreensíveis no interior do texto, como: a correferenciação, a pronominalização, a seleção de artigos, a concordância entre os tempos verbais etc. Não se consideravam, até então, os elementos de referenciação contidos no texto para o entendimento da linguagem, ou seja, o contexto era apenas sinônimo de entorno verbal.

Entre os fenômenos que excedem as fronteiras oracionais, a anáfora constitui um dos mecanismos mais importantes de coesão entre enunciados no interior do discurso. A anáfora, como se sabe, remete a um segmento textual anterior, estabelecendo relações de identidade semântica entre unidades textuais descontínuas. Considera-se, então, que o estudo da anáfora é um campo em plena renovação teórica e metodológica que apresenta perspectivas diversas (KOCH, 2001; ILARI, 2001; 2002).

2 Objetivos/metodologia

Utilizando o método descritivo-interpretativo de natureza qualitativa, este artigo propõe-se a refletir sobre o fenômeno das referências anafóricas correferenciais ou não na progressão textual, tendo em vista a construção de sentido no texto. Toma a referenciação como seu objeto de estudo e, mais precisamente, o papel das anáforas na construção do objeto do discurso, ou seja, na progressão textual. Tendo como base o artigo de Rodolfo Ilari - Anáfora e correferência: por que as duas noções não se identificam?- este estudo pretende, também, distinguir descrições definidas anafóricas correferentes das não-correferentes.

3.3.1 Anáfora

De acordo com as definições mais tradicionais, entende-se a anáfora como um fenômeno discursivo de dependência interpretativa entre dois segmentos textuais de dimensões variáveis (HAAG e OTHERO, 2003).

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As marcas lingüísticas que compreenderiam esse conjunto de unidades suscetíveis de ativar no discurso um processo de interpretação anafórica são diversas do ponto de vista morfológico: pronomes pessoais e demonstrativos, sintagmas nominais definidos, sintagmas nominais demonstrativos, advérbios, tempos verbais etc. Koch (2004a) considera que o estudo dessas unidades se situa no âmbito da gramática da frase e da lingüística do texto (gramaticalidade e coerência textual).

Assim, nos enunciados que contêm uma dessas unidades referenciais anafóricas, a marca aparece depois do segmento que permite a interpretação da anáfora. Alguns autores, entretanto, põem em dúvida os dois pilares em que se apóia tal definição das relações anafóricas: a noção de antecedente e a concepção dos fenômenos anafóricos como processos que consistem simplesmente em retomar uma informação anterior.

Apothéloz (2003) argumenta que afirmar que uma expressão anafórica remete a um antecedente não é totalmente correto, já que, em muitos casos, o dito antecedente não é um elemento indispensável para a interpretação. Em outras ocasiões, a identificação de um antecedente não basta para apreender a relação estabelecida pela marca anafórica: no processo interpretativo intervêm outros tipos de conhecimentos extralingüísticos e mecanismos inferenciais.

Tudo isso nos leva a entender que a interpretação das marcas anafóricas requer muito mais que a recuperação de um antecedente atualizado no discurso prévio por se tratar de um processo no qual se põe em jogo inferências e pressuposições. A decodificação da referência anafórica implica, portanto, a mobilização de conhecimentos implícitos obtidos a partir das instruções do texto e daquelas que o co-enunciador pode inferir graças à sua bagagem enciclopédica e cultural (SILVA, 2006; KOCH e MARCUSCHI, 2002).

É conveniente lembrar, também, que a anáfora é considerada um elemento lingüístico que permite discutir a referenciação na construção do texto, estabelecendo uma ligação com algum tipo de informação que se encontra na memória e que é reconstruído de maneira significativa para o sujeito quando este escreve ou reescreve um texto.

A anáfora se constitui, então, num fenômeno textual de referenciação e correferenciação, de ativação e reativação de referentes ao longo do texto, definida tradicionalmente como toda retomada de um elemento anterior em um texto. Para Rocha (2000) e Zamponi (2003), anáfora é o nome dado a uma relação ou processo no qual um termo anafórico, em uma instância de discurso, vincula-se a um elemento identificável (antecedente) para que a interpretação semântica seja realizada com êxito.

O termo anafórico pode, assim, retomar seu antecedente em um processo de correferenciação:

(1) O Pantanal abriga flora e fauna exuberantes. Ele atrai muitos turistas.

Observa-se que, no exemplo (1), o termo anafórico ele retoma o sintagma nominal (SN) o Pantanal, que é seu antecedente no texto. Para Ilari (2002), a anáfora não é apenas um fenômeno (entre outros) que acontece nos textos, mas sim o fenômeno que constitui os textos, garantindo sua coesão. Todo texto seria, nesse sentido, uma espécie de grande “tecido anafórico”.

Koch (2004b, p. 244) pontua que “são formas referenciais anafóricas os grupos nominais com função de remissão a elementos presentes no co-texto ou detectáveis a partir de outros elementos nele presentes”. A autora informa, ainda, que a referência anafórica é um fenômeno habitualmente associado aos pronomes, especialmente pronomes pessoais. Entretanto, o fenômeno também está relacionado aos pronomes

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possessivos e demonstrativos, entre outros, como a locuções não-pronominais, tais como as descrições definidas caracterizadas como expressões referenciais compostas por artigo definido (o, a, os, as) e um núcleo-nome, sendo que, por vezes, podem apresentar modificadores. Essas expressões podem ser usadas para introduzir entidades novas no discurso (não-correferentes) ou podem fazer referência a entidades já mencionadas (nesse caso, descrições definidas anafóricas correferentes).

Tudo isso nos leva a entender que a questão da referência tem uma ligação direta com o problema da caracterização do contexto, visto que, sem informações sobre o mundo, não é possível determinar completamente o significado de certas sentenças.

Halliday e Hasan (1976, apud KOCH e TRAVAGLIA, 2002) postulam que a relação anafórica clássica dá-se por meio das expressões pronominais, as quais, vazias de significação, são interpretáveis porque se referem a elementos já explicitados no co-texto.

Convém lembrar que, por um bom tempo, perdurou na literatura a associação da anáfora a três características básicas: retomada de um antecedente; presença de um elemento anaforizante (o que retoma) e, outro, anaforizado (o que é retomado); correferência (o mesmo referente designado no discurso por duas ou mais expressões).

Esses traços relacionam-se à concepção limitada do fenômeno anafórico, ou seja, a relação anafórica emerge quando uma expressão aponta para um referente já designado no co-texto anterior, isto é, na superfície textual até então mostrada. Segundo esse ponto de vista, a anáfora atrela-se à idéia de correferencialidade, supondo uma ligação direta e explícita entre o elemento anafórico e o seu antecedente. Entende-se, contudo, que a anáfora é uma referência a um termo empregado anteriormente no discurso, envolvendo um antecedente e um termo anafórico, que pode ser correferente ou não (MARCUSCHI, 2005; MILNER, 2003).

3.3.2 Correferência

O fenômeno de correferência que ocorre na linguagem natural consiste em duas ou mais expressões de um texto se referirem a uma mesma entidade do discurso. Caso uma entidade seja referenciada pela primeira vez em um texto, a expressão que a descreve é dita nova no discurso. Quando tal entidade é retomada, a expressão que a descreve é dita anafórica, e a expressão anterior é considerada seu antecedente (MARCUSCHI, 1998).

A dificuldade no tratamento de anáforas, quando se tem por objetivo o processamento da linguagem natural, reside na identificação do elemento de correferenciação nos casos em que múltiplos antecedentes são possíveis para certa referência. Além disso, algumas vezes, as referências anafóricas não se referem a trecho contido no texto (endófora), mas a entidades exteriores ao texto (exófora), tornando complexa a identificação da referência anafórica não-correferente (KOCH, 2001; 2002).

Collovini, Goulart e Vieira (2004) consideram similares os conceitos de correferência e anáfora, embora com pequenas diferenças, visto que, para esses autores, expressões correferentes fazem referência à mesma entidade, enquanto expressões anafóricas podem retomar uma referência anterior, mas também podem ativar um novo referente cuja interpretação é dependente de outras expressões referenciais anteriormente presentes no texto.

Convém ressaltar que as expressões anafóricas podem ser de diferentes tipos, como:

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- pronominais: quando o termo anafórico é um pronome. Ex: O menino leu o livro, mas ele não gostou (do texto).

- definidas: compostas por um substantivo antecedido por um artigo definido. Ex: Comprei uma blusa. A blusa é de seda.

- demonstrativas: compostas por um substantivo antecedido por um pronome demonstrativo.

Ex: Comprei uma casa. Essa casa será sempre minha.

Para Vieira et al (2000), as descrições são definidas em 4 classes, dependendo da forma em que estão relacionadas com os seus antecedentes:

a) Anafóricas Diretas: as antecedidas por uma expressão que possui o mesmo nome-núcleo e refere-se à mesma entidade no discurso. Exemplo: Li um artigo sobre anáfora. Ele me esclareceu muitas dúvidas.

b) Anafóricas Indiretas: as antecedidas por uma expressão que não tem o mesmo nome-núcleo do seu antecedente, mas refere-se à mesma entidade já introduzida no discurso. Assim, o núcleo pode ser um sinônimo do antecedente ou mesmo uma elipse. Por exemplo: O Correio do Estado apresentou as listas dos candidatos aprovados no vestibular da UFMS. O jornal tentou ouvir o Reitor da entidade.

Koch (2003) considera a anáfora indireta como uma expressão definida anafórica sem referente explícito no co-texto, mas inferível a partir de elementos nele explícitos, que a autora, bem como Marcuschi (2005), denomina “âncoras”. A âncora permite que o referente da anáfora indireta seja ativado por meio da mobilização de conhecimentos dos mais diversos tipos armazenados na memória dos interlocutores. c) Anafóricas Associativas: estas possuem um antecedente textual não-correferente no qual seu significado está ancorado. Por exemplo: “Eu tenho um fiat. Eles têm estabilidade”.

Nesse exemplo, há anáfora, e o critério para isso é que nós entendemos "Eles" voltando à sentença anterior, e localizando nela a palavra Fiat. Mas não há correferência. Porque o Fiat que eu tenho é um, e os Fiat que têm estabilidade são muitos e não referenciam a mesma entidade da primeira afirmação. Temos, nesse caso, um procedimento anafórico, ainda que não-correferencial.

Sobre anáfora associativa, Ilari (2002) pontua que ela recoloca uma condição da anáfora que é, de certo modo, a mais geral de todas, e que aponta para o caráter essencialmente pragmático do fenômeno, ou seja, todo locutor constrói sua fala a partir de uma avaliação da capacidade de interpretação do interlocutor, e da maneira como este reage às informações que lhe são passadas pelo texto escrito ou falado. Portanto, uma comunicação eficaz depende de uma boa avaliação recíproca dos interlocutores.

Koch (2004b), entretanto, considera as anáforas associativas um subtipo das anáforas indiretas:

Têm-se anáforas indiretas toda vez que um novo objeto-de-discurso é introduzido, sob o modo do dado, em virtude de algum tipo de relação com elementos presentes no co-texto ou no contexto sociocognitivo, passível de ser estabelecida por associação e/ou inferenciação (p. 253).

d) Novas no discurso (não-anafóricas): são aquelas que introduzem um novo referente no texto e não possuem uma âncora para se apoiarem semanticamente.

Convém ressaltar que as expressões anafóricas diretas e indiretas são expressões correferentes, por se referirem à mesma entidade. Já as expressões anafóricas associativas são não-correferentes, pois, apesar de possuírem uma relação semântica

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com termos antecedentes, estes não referenciam a mesma entidade. E as expressões novas no discurso são não-correferentes por não apresentarem antecedentes no discurso.

Pode-se concluir, citando Milner (2003), que a correferenciação anafórica é estabelecida entre uma expressão de referência (anáfora) e um termo que a antecede no texto (antecedente).

Observe-se a frase:

Maria comprou um gato. Ela já tem dois cachorros e um papagaio.

Nessa perspectiva, percebe-se que a essência da anáfora é a identidade referencial entre duas ou mais expressões mencionadas na superfície textual. No exemplo apresentado, o pronome ‘ela’ possui o mesmo referente que o nome ‘Maria’, já designado. Diferencia-se do modo de referir das expressões (pronominais ou não) que remetem diretamente a entidades da situação real de comunicação e não possuem nenhuma ligação co-textual.

Conclui-se, portanto, que há relação de anáfora entre duas expressões, quando a interpretação da segunda depende da existência da primeira, a ponto de se poder dizer que uma só é interpretável na medida em que ela retoma, inteira ou parcialmente, a outra (MILNER, 2003; SILVA, 2006).

Ilari (2003, p.14) compartilha dessa noção ampla de anáfora, quando diz:

[...] penso que podemos dizer que a anáfora não é apenas um mecanismo de preservação de referentes, e nem mesmo um mecanismo de preservação de conteúdos. Tem pouco a ver com formas, e tem pouco a ver com mundo; ao contrário, tem muito a ver com o modo como armazenamos o mundo em algum 'buffer cognitivo'.

Todavia, não há necessidade de retomada e correferenciação para que se dê uma relação anafórica (MARCUSCHI, 1999; ILARI, 2003).

Marcuschi (2000) amplia o conjunto das expressões anafóricas, considerando dois grandes grupos: as anáforas diretas, que estabelecem correferência ou retomadas parciais (processos de reativação de referentes prévios, recuperando-os total ou parcialmente); e as anáforas indiretas, que, por não reativarem referentes, não estão vinculadas nem à noção de correferência, nem à de retomada (constituem processos de introdução de novos referentes). A relação de correferência, portanto, determina apenas o primeiro conjunto de anáforas.

Para o autor, as anáforas indiretas remetem a um referente novo para o discurso, mas tido como conhecido para o interlocutor devido a outra expressão (âncora), já proferida anteriormente, que estabelece com o elemento anafórico uma relação de remissão, ainda que não-correferencial. Em outras palavras, a introdução desse novo referente se manifesta por um elemento formalmente definido, relacionado à outra entidade mencionada antes no co-texto, com a qual não mantém ligações de correferencialidade.

Então, a relação anafórica dá-se por inferência, pois está intimamente ligada ao conhecimento partilhado: ainda que o anafórico remeta a uma fonte explícita do co-texto, somente o conhecimento de mundo compartilhado pelos interlocutores permite o estabelecimento da conexão semântico-pragmática entre os dois elementos, o anaforizante e o anaforizado. Trata-se de uma estratégia de ativação de referentes novos e não de uma reativação de referentes já conhecidos. Entretanto, mesmo efetuando a introdução de um novo referente, a anáfora indireta, assim como a direta, contribui para a continuação da relação referencial global (MARCHUSCH, 2005).

Kleiber (1991, apud APOTHÉLOZ, 2003, p.41) também leva em consideração esses casos mais abrangentes do fenômeno anafórico, tratando-os enquanto “instâncias

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de relação associativa”. Segundo o autor, quatro características se vinculam à anáfora associativa, as quais não se afastam dos traços apontados aqui como constitutivos do fenômeno da anáfora indireta. Para esse autor, a anáfora associativa: introduz um novo referente no texto; é constituída por meio de uma expressão definida; estabelece relação com outro elemento mencionado anteriormente no texto; estabelece uma relação discursiva e contextual, mas aponta para um saber convencional associado aos elementos constituintes da relação anafórica.

Apothéloz (2003) também aponta concepção semelhante ao afirmar que a anáfora associativa é constituída, em geral, por sintagmas nominais definidos dotados de certa dependência interpretativa em relação a um referente anterior ou posteriormente designado e pela ausência de correferência entre essas duas expressões. Afirma, ainda, (p. 47) que essa concepção mais ampla da anáfora acarreta conseqüências para a noção de antecedente, como:

a) um anafórico não “se refere ao seu antecedente” (a não ser em casos de expressões metalingüísticas ou metadiscursivas); as formas de retomada também são expressões referenciais no sentido mais geral do termo;

b) o antecedente não é um elemento indispensável ao funcionamento das formas de retomada;

c) o antecedente estabelece relação semântica com a forma de retomada dentro do contexto de enunciação;

d) o funcionamento das retomadas anafóricas e das expressões referenciais em geral está intimamente associado à construção dos sentidos do texto.

Marcuschi (2000), Koch (2003) e Apothéloz (2003) pontuam que a anáfora pode ser caracterizada não por ela recuperar um antecedente, mas por depender sempre de pistas fornecidas pelo co-texto, que funcionam como âncoras. Em outras palavras, anáfora é toda expressão que remete a (mas não necessariamente retoma) um elemento-fonte explicitado ou não no co-texto anterior ou posterior (catáfora).

Marcuschi (1998, p. 5) resume claramente a distinção entre ‘referir’, ‘remeter’ e ‘retomar’.

Referir é toda atividade de designação realizável com a língua sem implicar uma relação especular língua-mundo; remeter é uma atividade de processamento indicial na co(n)textualidade; e retomar é uma atividade de continuidade de um núcleo referencial. Portanto, retomada implica remissão e referenciação; remissão implica referenciação, mas não necessariamente retomada; e referenciação não implica necessariamente remissão nem retomada. (grifos nosso)

De acordo com essa perspectiva ampla de anáfora, é apenas a remissão co-textual (e não a retomada ou a correferencialidade) que distingue os elementos anafóricos das outras expressões referenciais. Sua característica fundamental é a presença de uma âncora que permite o encadeamento, por meio do estabelecimento de relações correferenciais, co-significativasou meramente inferenciais (CONTE, 2003).

Percebe-se, assim, que a correferencialidade não implica a co-significação, como atestam as retomadas pronominais que, embora sejam correferenciais, não são co-significativas (MARCUSCHI, 1998; MARCUSCHI e KOCH, 1998; ILARI, 2002; CAVALCANTE, 2004).

Não podemos esquecer, também, que os elementos anafóricos vão construindo o texto, e as articulações entre vocábulos, entre as orações e entre os parágrafos determinam a referenciação, os contatos e conexões, estabelecendo sentido(s) no todo.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A referência anafórica, cuja primeira menção escrita remonta aos gramáticos alexandrinos do século III, a. C., segue sendo, na atualidade, um fenômeno discursivo amplamente explorado pelas investigações que se desenvolvem no campo das Ciências da Linguagem (ROCHA, 2000; MONDADA & DUBOIS, 2003).

É importante frisar que, na busca pela construção de sentidos de um texto, vários fatores são considerados, desde conhecimentos lingüísticos estritos até o conhecimento de mundo do interlocutor. Um fator coesivo que auxilia o interlocutor a compreender o texto consiste justamente no fenômeno da anáfora e da informação nova que são introduzidas no texto pelo locutor.

A anáfora constitui um fenômeno que vai além do estritamente lingüístico para articular na linguagem a rede de conhecimentos e experiências humanas que formam seu suporte. A variedade de fatores lingüísticos e extralingüísticos que põem em jogo um enunciador para construir em um texto uma referência retrospectiva, assim como a riqueza dos processos mentais que possibilitam sua interpretação por parte de um co-enunciador, faz da anáfora um objeto de investigação de grande complexidade.

Assim, pensar na progressão textual nos induz, principalmente, a refletir sobre o papel das anáforas, uma vez que se trata de elementos importantes na manutenção temática. Elas são, também, responsáveis por uma grande carga informativa no interior do discurso, constituindo-se em elementos que inserem locutor e interlocutor numa mesma moldura comunicativa, por ativarem conhecimentos partilhados que confirmam ou frustram as expectativas de ambos. Conseqüentemente, constroem objetos de discurso resultantes de uma negociação entre elementos anaforizantes atrelados ou não à idéia de correferencialidade (MONDADA & DUBOIS, 2003).

Nesse contexto, anáforas são entendidas como expressões que pertencem a categorias diferentes (pronomes, sintagmas definidos, demonstrativos etc.) e com as quais se pode construir uma cadeia anafórica que se reitera mediante um mesmo referente. Sendo assim, este estudo nos mostra que as anáforas funcionam como sinais de continuidade que permitem ao leitor identificar um elemento já mencionado no texto. Por isso, o processamento do discurso é estratégico, pois o autor deixa pistas no texto, orienta sua argumentação, repete, rotula, explica, especifica, e o leitor leva para o texto suas expectativas que podem ou não se confirmar.

Todavia, para que se reconheçam as pistas deixadas no texto, representadas pelos elementos anafóricos, é preciso que ambos (locutor e interlocutor) compartilhem do mesmo contexto sociocognitivo, ou o sentido não se constrói porque os elementos presentes no co(n)texto, responsáveis por essa construção, podem não ser reconhecidos.

Ilari (2002, p. 94) postula que uma expressão anafórica se interpreta estritamente como a recuperação de um referente (antecedente) presente no texto e associado a uma colocação posterior, correferente ou não, pois, para o autor, a “anáfora textual e a correferência são dois fenômenos imbricados, porém distintos”.

Percebe-se, aqui, então, a necessidade de repensar a noção de correferencialidade e distingui-la da de anáfora. O estudo deixou bastante claro que a correferência não se dá no plano lingüístico do texto, mas no processo de referenciação, por meio da correlação entre a linguagem e o mundo. Enquanto a referência trata das

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relações entre a linguagem e o mundo extralingüístico, ou seja, aspectos externos ao texto, a anáfora diz respeito às relações semânticas e cognitivas.

Dessa forma, parafraseando Ilari (2002, p. 93), “assimilar anáfora à correferência é um equívoco”. O autor considera que correferência, ou seja, identidade de referência se dá quando duas expressões pinçam, no mundo, o mesmo objeto, ou exatamente os mesmos objetos. Ilari entende que pode haver anáfora entre expressões nominais mesmo quando essas expressões não são referenciais e, reciprocamente, é possível haver correferência entre sintagmas nominais que aparecem em pontos diferentes de um mesmo texto sem que haja anáfora. É bom lembrar que a resolução da correferência anafórica também foi durante décadas uma das áreas de investigação que concentrou mais esforços no processamento da linguagem natural.

Diante do exposto, percebemos que algumas questões relacionadas ao fenômeno da anáfora foram mais esclarecidas, porém merecem ser aprofundadas. Ficou claro, também, que, para compreender a anáfora, recorre-se a conhecimentos lingüísticos, conhecimentos contextuais e conhecimento de mundo.

Sem pretender esgotar o assunto, tentamos, no decorrer do texto, mostrar a importância do papel textual da anáfora, pois, como dito na introdução, trata-se de um aspecto fundamental para a compreensão do texto, sem esquecer que o emprego desse elemento de referenciação implica opções discursivas que agregam efeitos diversos.

Assim, de tudo o que foi visto, conclui-se que os textos progridem graças às muitas estratégias de construção dos objetos de discurso e que essas estratégias só são possíveis porque o locutor e o interlocutor procedem a escolhas passíveis de serem negociadas no ato enunciativo e jogam com as inúmeras possibilidades de organização discursiva do mundo. A língua é constitutivamente instável e é justamente da instabilidade que nasce a possibilidade de se construírem sentidos.

5 REFERÊNCIAS

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Referências

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