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A RESPONSABILIDADE POR OUTREM NA ÉTICA DE LÉVINAS

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Academic year: 2021

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A RESPONSABILIDADE POR OUTREM NA ÉTICA DE LÉVINAS

Maria Rosa Afonso

E-mail: rosa_afonso_42@hotmail.com

Introdução

Quando investigamos sobre aspectos éticos subjacentes à profissão docente – uma das minhas áreas de investigação – aparecem com grande premência as questões que respeitam às relações interpessoais, quer quando se pede aos professores que indiquem os valores que consideram fundamentais, quer quando analisamos os problemas e as questões de natureza ética – situados, muitas vezes, ao nível das discriminações, das faltas de respeito, dos interesses e egoísmos individuais dos diferentes intervenientes.1. Entendemos, por isso, que a ética de Lévinas – a responsabilidade por outrem – ajudará a fundamentar a reflexão e a compreender melhor estas questões, o que só será possível a partir de uma abordagem sistemática de alguns dos seus aspectos – o que, a seguir, procuraremos fazer.

Há na ética levinasiana, pelo menos para mim, um fascínio que julgo tenha a ver com uma nova noção de humanidade: ser humano é ser para o outro, não há humanidade sem relação ética, sem escuta e abertura àquilo que o rosto do outro tem para me dizer e pedir. Assim, a ética deixa de ser um conjunto de princípios morais a determinar a acção ou um conjunto de virtudes a mediar a obtenção de fins bons, para se tornar um acontecimento, um encontro quotidiano: eu e o outro face a face. Falar de ética é falar desse encontro, do modo como o eu responde ao outro que o interpela. Trata-se, portanto, de uma ética que exige, antes de mais, diálogo e acção. Se frente ao outro, o eu nada fizer, não há encontro, não há relacionamento ético.

Neste texto, procuraremos compreender os aspectos fundamentais que acabámos de enunciar: por que acontece o encontro face a face (1); de que modo a relação ética surge no acolhimento do rosto (2); em que consiste a responsabilidade por outrem (3); e, por último, quais as implicações desta perspectiva ética para as relações interpessoais (4).

1 - O encontro: o eu e o outro face a face

O outro da relação face a face não se deixa submergir debaixo de nenhum conceito, nem encerrar sob nenhuma definição – o que sempre fez a ontologia ocidental, ao criar conceitos, teorias e sistemas, que transformavam o estranho em semelhante, o desconhecido em conhecido, o diferente em igual, tornando impossível qualquer alteridade.

Para Lévinas, há entre o eu e o outro uma separação radical, uma exterioridade, uma vez que não posso conhecê-lo a partir de categorias ou de conhecimentos existentes em mim, por mais que saiba sobre a sua origem, a sua cultura, o seu viver, etc. O outro da relação face a face é e permanecerá sempre um estranho, um desconhecido. É certo, por exemplo, que posso falar de um católico a partir do tema da religião católica, de um

1

Refiro-me, por exemplo, à análise das entrevistas que o grupo de investigação, no âmbito do projecto, em curso, " Pensamento e Formação Ético-deontológicos de Professores", fez. Este projecto, coordenado pela Professora Teresa Estrela, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Faculdade de Lisboa, pode ser consultado em: http://eticadocente.uidce.fpce.ul.pt/?page_id=9

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cientista a partir da ciência que estuda, de um português a partir da cultura portuguesa, e assim por diante, mas jamais poderei dizer que conheço a pessoa que tenho em frente, porque, na relação face a face, o outro, enquanto interlocutor, rompe com o saber que o pretende reduzir a um tema e toma a palavra. Fala, comunica.

Por isso, aquele que chega ao encontro é absolutamente outro – é outrem – em relação a mim, em relação a nós, em relação a qualquer conhecimento e, até, em relação a si mesmo, pois há nele uma verdade que transcende o conhecido e o dito e se torna presente no acto do encontro, a que ele próprio assiste. Nesta medida, o outro da relação face a face é também uma revelação para si próprio.

Mas será esse encontro inevitável, ainda que seja a única maneira de o poder conhecer? Na verdade, não é. O encontro face a face é uma decisão minha, não é um acidente, não acontece por acaso, apenas se eu o desejar e se decidir fazê-lo. Sem desejo e decisão éticas, nunca nos encontraremos com ninguém no sentido da proximidade ética, ainda que possamos viver fisicamente muito próximos de outras pessoas e nos relacionemos todos os dias com muita gente.

A primeira questão da ética de Lévinas é saber que desejo é este que nos faz iniciar um movimento em direcção ao outro. Diz o autor que: "O outro metafisicamente desejado não é o «outro» como o pão que como, como o país que habito, como a paisagem que contemplo, como, por exemplo, eu para mim próprio, este «eu» esse «outro». Dessas realidades, posso «alimentar-me» e, em grande medida, satisfazer-me, como simplesmente me tivessem faltado. Por isso mesmo, a sua alteridade incorpora-se na minha identidade de pensante ou de possuidor. O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa para o absolutamente outro".2

Não se trata, portanto, de um desejo sensível, no sentido comum da satisfação de uma necessidade ou da recuperação de algo que tenhamos vivido ou de que sintamos falta. Não é um desejo que tenha a ver com necessidades ou interesses nossos, é um desejo desinteressado, generoso, que não visa transformar o outro em objecto do nosso conhecimento ou da nossa propriedade – facto que anularia a sua alteridade – mas, antes, acolhê-lo como "absolutamente outro".

Nestes pressupostos, o eu vai ao encontro voluntariamente, com autonomia e sem pré-condições, numa aventura pessoal que será sempre uma surpresa – pois, nunca saberemos o que esse encontro nos reserva. Esta imprevisibilidade faz de cada encontro uma novidade, sempre repetida, todos os dias e todas as horas são momentos de encontro, de experiências humanas mais ou menos conseguidas, dependendo do modo como acontece e é vivido cada encontro com outrem.

2 - Acolher o Rosto do Outro

Desde logo, um aspecto importante seria questionar como é que o eu e o outro chegam ao encontro. Como se posicionam face a face? Como iniciam a relação ética? Em que consiste essa relação?

Não sendo o outro redutível a nenhum conhecimento – filosófico, antropológico, sociológico, psicológico, etc. – não pode chegar como alguém a quem possamos conhecer, representar, reduzir a uma imagem, mas, antes, como alguém a quem podemos acolher, dar abrigo, deixando que tome a palavra para nos dizer, pedir ou propor o que entender.

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Deste modo, o encontro é dominado pelo aparecimento do rosto, que se torna presente como linguagem e discurso, verbal ou não, pois todos sabemos como os gestos e, às vezes, os profundos silêncios podem ser reveladores da verdade do outro. E, no momento da manifestação do rosto, o que percepcionamos? O que compreendemos? Diz Lévinas que "… a relação com o rosto pode, sem dúvida, ser dominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a ele. Em primeiro lugar, há a própria verticalidade do rosto, a sua exposição íntegra, sem defesa".3

Enunciam-se duas dimensões: o sensível do rosto, que pode ser visto, percepcionado e conhecido; e o para lá do rosto, a sua verticalidade, a sua integridade, a sua pacificidade, aspectos da ordem do valor, da ordem da ética. Na verdade, o sentido do rosto não está na descrição das suas características sensíveis – olhos azuis, nariz deste ou daquele tamanho, boca com esta ou aquela forma, etc. – nem, tão pouco, no conhecimento concreto que possamos ter sobre alguém – por exemplo, saber que é filho desta ou daquela pessoa, pai, marido, amigo, cientista, professor, músico, hindu, amante da boa comida, apreciador de râguebi, etc. – já que nenhum destes aspectos ajuda à compreensão do rosto. O verdadeiro sentido permanece desconhecido.

Diz Lévinas: "O rosto é significação, e significação sem contexto. Quero dizer que outrem, na rectidão do seu rosto, não é uma personagem num contexto. (…) Ele é o que não se pode transformar num conteúdo, que o nosso pensamento abarcaria; é o incontível, leva-nos além. Eis por que o significado do rosto o leva a sair do ser enquanto correlativo de um saber".4

Abre-se, em definitivo, a dimensão metafísica do rosto: o rosto é o que não pode ser conhecido, o que não pode ser contido, mas o que, ainda assim, significa. Na verdade, o sentido do rosto extravasa o próprio rosto, habita um não lugar, uma transcendência, que escapa ao sensível e ao que pode ser concretizado. Nesta medida, parece impossível pensar-se o para lá do rosto, a sua "rectidão", a não ser através da ideia de infinito, a única ideia capaz de efectuar "… a relação do pensamento com o que ultrapassa a sua capacidade, com o que a todo momento ele apreende sem ser chocado. Eis a situação que denominamos acolhimento do rosto".5

Sendo o outro completamente exterior a mim, e situando-se a sua verdade num infinito que não domino, resta-me acolhê-lo e esperar que ele me fale convidando-me à relação ética. Acolher o rosto, é, então, a apreensão, sem choque, daquilo que o outro tem para me dizer, vindo de uma distância da qual nada sei e sobre a qual nada posso.

O acolhimento pacífico do rosto tem a ver com as condições do próprio encontro: o eu está disponível para acolher, sem ocupar o primeiro plano, sem ditar leis, sem impor interesses ou vontades próprias; e o outro chega desarmado, despojado dos seus bens, dos seus títulos e dos seus contextos. Portanto, quando acolhemos alguém como rosto, não importa que seja rico ou pobre, desta ou daquela etnia, cultura, religião, ideologia, etc., exercendo esta ou aquela profissão, desempenhando este ou aquele cargo, com este ou aquele passado, com este ou aquele presente, uma vez que nada disso é importante, porque nada disso conta. O rosto significa por si mesmo, e isso chega.

É por isso que, no encontro face a face, todos aqueles a quem me disponho a acolher são iguais. Acolho-os de igual modo, e os seus rostos significam de igual modo. Diz Lévinas:"No acolhimento do rosto (acolhimento que é já da minha responsabilidade

3

Cf. E. LÉVINAS, Ética e Infinito, p.77.

4

Cf. IBIDEM, p.78.

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a seu respeito e em que, por consequência, ele me aborda a partir de uma dimensão de altura e me domina), instaura-se a igualdade".6 É esta igualdade, presente no acolhimento do rosto, que preside à relação ética e subjaz a todas as relações humanas. Por isso, frente a qualquer pessoa, a quem me disponho a acolher, digo: "primeiro o senhor". Na verdade, não posso ser o primeiro, quando nada sei sobre a verdade do rosto, quando desconheço completamente aquilo de que me quer falar.

Mas que mistério encerra este rosto despojado, desprotegido, que tenho frente a mim, a quem acolho, que me interpela e me exige respostas? Aparentemente, é um rosto frágil, contudo, apresenta uma "…resistência ética que paralisa os meus poderes e se levanta dura e absoluta do fundo dos olhos, sem defesa na sua nudez e na sua miséria. A compreensão dessa miséria e dessa fome instaura a própria proximidade do Outro".7

De facto, trata-se de uma resistência tão forte e indiscutível que a aparente fragilidade é, antes, um verdadeiro poder, frente ao qual todos os meus poderes se anulam. Perante a nudez e a pobreza do rosto, perante a sua exposição sem reservas, deixo cair todas as máscaras e todas as defesas, porque não têm justificação – como posso ir armada ao encontro de alguém completamente desarmado, como posso ir cheia de respostas se ignoro as perguntas, como posso dar ordens se nada sei – e é por isso que me aproximo, com toda a abertura e generosidade, sabendo que "… a minha posição de eu consiste em poder responder à miséria essencial de outrem, em encontrar recursos. Outrem, que me domina na sua transcendência, é também o estrangeiro, a viúva e o órfão, em relação aos quais tenho obrigações".8

No rosto do outro, toda a humanidade se torna presente, as necessidades, as preocupações, as dificuldades e os problemas daquele rosto são também os de todos os outros rostos em igual situação e fazendo apelos semelhantes; e eu que escuto, ao compreender por que clamam estes e todos os deserdados da terra, não posso permanecer insensível e alheia, não posso deixar de me sentir convocada – é o momento da proximidade ética, no sentido do rosto. Proximidade que implica acolhê-lo como vizinho, abrir-lhe a porta, estender-lhe a mão, dar-lhe abrigo, encontrar respostas.

Sabemos que são múltiplos e variados os apelos do rosto, porque também são múltiplas as suas necessidades, contudo, há um primeiro apelo, condição da sua própria existência: "não matarás", que não se refere apenas à supressão da vida de alguém, como no caso do assassínio, mas se refere a tudo aquilo que impede ou dificulta que o outro viva em condições mínimas de realização humana, e isso inclui desde as necessidades básicas de sobrevivência, às necessidades culturais e espirituais que todos temos.9

A ética de Lévinas faz uma exigência de objectivação, de empenhamento e de acção, uma vez que:"Perante a fome dos homens, a responsabilidade só se mede «objectivamente». É irrecusável. O rosto abre o discurso original cuja primeira palavra é obrigação que nenhuma «interioridade» permite evitar".10 Assim, quando o rosto do outro surge na minha vida, no meu quotidiano, apelando-me, o que eu pensava, sabia ou fazia, até então, deixa de ter prioridade. O outro, perante o qual eu respondo, é que é o sujeito da acção, a sua a palavra passa a ser a primeira palavra, é ela que vai determinar o que eu faço, só ela conta, porque só ela me dá a conhecer aquilo de que sente falta, aquilo que espera de mim.

6 Cf. IBIDEM, p. 192. 7 Cf. IBIDEM, p.178. 8 Cf. IBIDEM, p. 193. 9

Aqui, encontramos uma fundamentação ética para os direitos humanos.

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Na verdade, o apelo do outro, que toca a minha interioridade, não pode ser recusado, mesmo que isso não tenha directamente a ver comigo, aliás, sou igualmente responsável pelo que não depende directamente de mim. Diz Lévinas: "Entendo a responsabilidade por outrem, portanto como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito e é por mim abordado como rosto".11 Posso não ter contribuído para a "fome" dos homens, mas as

respostas a essa "fome" incumbem-me.

3 - Rosto e Responsabilidade

Sou responsável, porque o rosto me faz uma exigência ética, perante a qual ninguém pode responder por mim. Na verdade, quando alguém me dirige um apelo, a resposta a esse apelo é sempre da minha responsabilidade, e isto em relação a todas as solicitações, das mais simples às mais exigentes. Se alguém me diz bom dia, cabe-me a mim responder ao cumprimento; se alguém me solicita ajuda para atravessar a rua, cabe-me a mim pegar-lhe no braço e ajudá-lo a atravessar; se alguém me pede um prato de comida, um medicamento, um livro, uma peça de vestuário, um lugar para habitar, uma palavra de conforto, etc., seja qual for o apelo, sou a única responsável pela resposta.

A responsabilidade "… não é um simples atributo da subjectividade, como se esta existisse já em si mesma, antes da relação ética. A subjectividade não é um para si: ela é, mais uma vez, inicialmente para o outro".12 Portanto, nem a responsabilidade é

uma qualidade prévia à acção, pronta a ser actualizada, nem o sujeito existe em si mesmo antes ou independentemente da relação ética. "De facto, trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto é, a partir da posição ou da deposição do eu soberano na consciência de si, deposição que é precisamente a sua responsabilidade por outrem. A responsabilidade é o que humanamente me incumbe, não posso recusar. Este encargo é uma suprema dignidade do único. Eu, não intercambiável, sou apenas na medida em que sou responsável".13

Vemos que é a responsabilidade por outrem o que constitui verdadeiramente o indivíduo, o ser único que cada um de nós é, uma vez que, na decisão de ser para o outro, ninguém pode ser substituído. É por isso que nada é mais digno do ser humano que a responsabilidade por outrem. Aqui reside toda a ética e toda a moralidade.

Uma responsabilidade total, que não exige reciprocidade, uma vez que obrigando à deposição dos próprios interesses, se torna generosa e desinteressada. A mim cabe-me responder aos apelos do outro, sejam quais forem, disponibilizando-me inteiramente e sem pedir nada em troca; quanto aos meus apelos, é ele quem decide se quer ou não responder-me, depondo igualmente os seus próprios interesses.

Aparentemente, só o eu tem obrigações. Seria assim, se frente ao outro não estivesse um outro, mais outro, e assim, indefinidamente, toda a humanidade. Diz Lévinas: “Na proximidade do outro, todos os outros do outro me obsessionam e já esta obsessão grita justiça, reclama medida e saber, é consciência”14. A ordem da justiça enuncia-se como necessária, de facto, eu e o outro não estamos sozinhos no mundo, a responsabilidade por outrem, da relação interpessoal, não chega para responder à organização social. A existência do terceiro, apelando por justiça, limita a minha

11

Cf. E. LÉVINAS, Ética e Infinito, p. 87.

12

Cf. IBIDEM, p. 88.

13

Cf. IBIDEM, pp. 92-93.

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responsabilidade e faz com que o outro não tenha só benefícios, ambos, eu e o outro, nos devemos preocupar e responsabilizar por todos os outros.

Na verdade, são a coexistência e a contemporaneidade de todos os outros, igualmente próximos, clamando em simultâneo e esperando igualmente por respostas concretas, que colocam a necessidade da justiça, ou seja, a exigência de comparar, de medir, de ser equitativo. Por isso é necessário o conhecimento, a existência de leis e de instituições justas.

4 - Implicações da ética de Lévinas para o viver actual

Lévinas, ao encontrar um sentido para o ser e o viver humanos – a responsabilidade por outrem – funda uma ética. A consequência seria tirar todas as implicações, tanto para as relações interpessoais como para as relações sociais e, a partir daí, construir uma ética substantiva. Contudo, não deixam de existir dificuldades e objecções, algumas se poderiam colocar-se, desde logo:

- Como compreender e aceitar a ética do rosto, quando o primeiro apelo – não matarás – é todos os dias posto em causa?

Na verdade, a morte e a violência foram, ao longo da história humana, e hoje mesmo, acontecimentos diários e, em muitos lugares do mundo, até, acontecimentos banais, onde já não se questiona a barbárie, onde a morte parece não incomodar mais.

Na mesma linha de argumentação, poderíamos colocar outras questões das sociedades actuais: - Que respostas damos aos problemas dos direitos humanos, da guerra, da fome, das doenças, da corrupção, da má distribuição da riqueza, do subdesenvolvimento, etc.? O que respondemos aos rostos de milhões de pessoas que gritam pelo direito à palavra, por condições mínimas de sobrevivência, etc.?

Perante a ausência de respostas eficazes, muitos dirão que a humanidade não está disponível para a exigência ética do rosto e que, portanto, a ética levinasiana é uma impossibilidade. Ora, tal como acontece com qualquer outra perspectiva ética, a sua possibilidade efectiva depende de cada um de nós, da nossa decisão livre e individual. Cada um é que sabe se está ou não disposto a responder.

- O que se passa quando o encontro com o outro não é pacífico, como Lévinas o fundamenta, quando não ocorre a proximidade ética no sentido do rosto?

Na verdade, eu posso estar disponível para me dirigir ao outro de forma pacífica e desinteressada, e não ter a possibilidade real de o fazer, deparar-me com violência, ódio, raiva, desprezo, mentira, etc. Diz Lévinas que: "… a análise do rosto, tal como a acabo de fazer, com o domínio de outrem e da sua pobreza com a minha submissão e a minha riqueza, é primeira. É o pressuposto de todas as relações humanas".15 A relação

ética, o ser para o outro, permanece uma exigência inicial.

- O que acontece quando não temos recursos, quando não temos respostas? A exigência ética é a de dar resposta, de fazer tudo para encontrar recursos, mas, ainda, assim, ninguém pode fazer o impossível. Diz Lévinas que: "O laço com outrem só se aperta como responsabilidade, quer esta seja, aliás, aceite ou rejeitada, se saiba ou não como assumi-la, possamos ou não fazer qualquer coisa de concreto por outrem: Dizer: eis-me aqui. Fazer alguma coisa por outrem. Dar. Ser espírito humano é isso".16

15

Cf, E. LÉVINAS, Ética e Infinito, p. 81.

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Portanto, há sempre uma resposta: a disponibilidade para ir ao encontro, generosamente, sem esperar benefícios próprios, depondo todos os interesses pessoais.

Apesar destas e de outras objecções, a ética levinasiana pode ter consequências práticas na vida de cada um de nós, bastaria apenas que nos questionássemos sobre alguns dos seus aspectos fundamentais, sobretudo no que respeita à responsabilidade por outrem, no sentido do acolhimento do rosto. Nesta perspectiva, retomemos uma das questões que enunciámos na introdução, no caso concreto, a das relações interpessoais, em contexto escolar. Por exemplo, a relação professo/aluno:

- Escolho eu a verdade do face a face ou evito o encontro com os alunos? Tenho a noção de que cada um é um ser único, distinto, alteridade absoluta, a quem nunca conhecerei verdadeiramente, por muito que julgue saber sobre ele, porque estudei pedagogia, psicologia, sociologia, etc., porque consultei o seu processo individual, falei com a sua família, etc.?

- Sei que posso compreendê-lo, se decidir ir ao seu encontro, disposta a acolhê-los no sentido do rosto, dizendo-lhe: "primeiro tu"? Estou disponível para ser interlocutora, para escutar os seus problemas, expectativas, sonhos, frustrações, etc., ou sou que toma primeiro a palavra, incapaz de depor os meus próprios interesses, problemas e preocupações e, portanto, incapaz de me responsabilizar por ele?

A simples reflexão sobre estas questões – a reflexão ética é uma coisa natural, mas que podemos realizar de forma mais fundamentada, se partirmos de determinados pressupostos e perspectivas éticas – levar-nos-á a pôr em causa muitas das nossas atitudes e comportamentos, com inevitáveis consequências práticas nas relações interpessoais, no encontro e no viver diário com os outros.

Referências Bibliográficas

BRANDER, E. C. L. A. A. "Ética como responsabilidade na filosofia de Emanuel Lévinas" www.discurso.aau.dk/brander_maj04.pdf

CINTRA, B. E. L. "Emanuel Lévinas e a Ideia de Infinito", in Margem, São Paulo, nº16, PP.107-117, DEZ.2002.

LÉVINAS, E. (1989), Totalidade e Infinito, Edições 70, Lisboa. LÉVINAS, E. (1988), Ética e Infinito, Edições 70, Lisboa.

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Referências

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