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Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação RESAFE

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APOÉTICADAVIDAEALINGUAGEMDAFILOSOFIA

Tarcísio Jorge Santos Pinto1

Fomos formados no mato – as palavras e eu. O que de terra a palavra se acrescentasse, a gente se acrescentava de terra. O que de água a gente se

encharcasse, a palavra se encharcava de água. Porque nós íamos crescendo de em par. Se a gente recebesse oralidades de pássaros, as palavras receberiam oralidades de pássaros. Conforme a gente recebesse formatos da natureza, as palavras incorporavam as formas da natureza. (...)

Embicamos na metáfora. Agora a gente só sabe fazer desenhos verbais com imagens. Tipo assim: Hoje eu vi outra rã sentada sobre uma pedra ao jeito que uma garça estivesse sentada de tarde na solidão de outra pedra. Foi no que deu a nossa formação. Eu acha bela! Eu acompanho. (Manuel de Barros, Memórias Inventadas, Formação)

Na medida em que sentimos, percebemos e pensamos que a vida é devir, uma realidade em movimento, que se transforma e cria permanentemente o novo a partir do que já traz consigo, ou seja, que é potência, energia dinâmica, temporalidade, duração, concluímos que não podemos abarcá-la em toda sua multiplicidade, que ela manifesta também o imprevisível, que ela se cria continuamente. Por mais que tenhamos o hábito de ver o acontecimento presente a partir do que vivenciamos no passado e isto seja natural para que nos situemos no mundo e organizemos a vida em sociedade, sabemos que o passado não pode se repetir no presente; na verdade ele se prolonga e se mistura no presente e este vai criando num continuum o futuro que não podemos prever totalmente. Em última instância, passado, presente e futuro não são senão abstrações de uma realidade que não se divide, uma vez que é fluxo, movimento, vir a ser permanente. E por mais que a ciência consiga estabelecer, nos sistemas fechados de várias de suas pesquisas e aplicações, determinados mecanismos de controle e previsibilidade, no sistema aberto da natureza, o tempo, a vida, traz inovações que

1 Universidade Federal de Juiz de Fora.

PINTO, Tarcísio Jorge Santos. A poética da vida e a linguagem da filosofia. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 23: nov/2014-abr/2015, p. 336-349.

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não podem ser antecipadas em todas as suas dimensões. Há uma poética na vida, sua energia é continuamente criadora e ultrapassa nossas possibilidades de representação e de explicação absolutas, contem sempre mais do que podemos controlar e expressar.

Também os cientistas em geral vislumbram e particularmente alguns deles têm plena consciência de que lidam com esta realidade viva e dinâmica que não pode ser abarcada totalmente2. Contudo, ao mesmo tempo, sabem que tal realidade se dá a conhecer de determinada maneira através de seus processos materiais e que a partir deles se presta, pelo menos em parte, a ser manipulada tecnicamente (sobretudo com base em certos procedimentos e convenções da comunidade científica). Procurando geralmente não considerar a essência poética da vida, a maior parte do trabalho da ciência se dirige, então, ao conhecimento de seus processos materiais para, a partir dele, desenvolver uma série de produtos direcionados a atender diferentes apelos da vida humana em sociedade. Para além deste propósito fundamentalmente utilitarista que muitas vezes encontramos nas ciências em geral, alguns estudos buscam promover a experiência e o conhecimento da vida simplesmente pela philia, pelo interesse e prazer, de ampliar a compreensão do homem acerca da realidade que o cerca e de si mesmo como parte integrante dessa realidade. Encontramos o desenvolvimento desses estudos especialmente em alguns campos das ciências humanas, das letras e das artes que, muitas vezes, até estão, e devam mesmo estar, associados a outros campos de diferentes áreas de saber. Não se restringindo a um objetivo puramente teórico, visam se fazerem a partir do envolvimento com questões que se vinculam à vida humana, para buscar, inclusive, poder ressignificá-la e transformá-la de forma concreta. Particularmente na Filosofia e na Filosofia da Educação, pelo menos em tese, podemos encontrar estudos e produções desta natureza, por intermédio dos

2 Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química de 1977, por exemplo, refletindo sobre o contexto da

ciência na contemporaneidade escreve que “a ciência clássica privilegiava a ordem, a estabilidade, ao passo que em todos os níveis de observação reconhecemos agora o papel primordial das flutuações e da instabilidade. Associadas a essas noções aparecem também as escolhas múltiplas e os horizontes de previsibilidade limitada. Noções como a de caos tornaram-se populares e invadem todos os campos da ciência, da cosmologia à economia. (...) Desde que a instabilidade é incorporada, a significação das leis da natureza ganha um novo sentido. Doravante, elas exprimem possibilidades” (PRIGOGINE, 1996, p. 12).

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quais buscamos desenvolver uma compreensão mais profunda da vida, capaz de nos aproximar mais de sua essência temporal, criadora. Com o objetivo de continuar a refletir, ao longo deste artigo, particularmente no potencial destes campos de conhecimento em compreender e representar esta realidade poética da vida e em que medida, nesta busca, eles necessariamente devem associar a linguagem artística e literária ao discurso filosófico para ampliar suas potências significacionais, nos apoiaremos, sobretudo, na referência da filosofia bergsoniana, associando-a, em alguns pontos, às de alguns outros importantes pensadores contemporâneos. No horizonte deste texto queremos também apontar de certo modo que o problema filosófico da linguagem pode e deve associar, dentre outros, especialmente o da educação.

Ao considerarmos que a Filosofia visa o conhecimento mais profundo da vida através das suas mais diversas manifestações, das temporalidades próprias dos diferentes entes, isto é, de suas durações singulares, através dela tocamos uma realidade cuja essência poética não pode ser representada adequadamente somente através de conceitos simbólicos tradicionais. Estes símbolos apenas efetivam a tradução do ser em função daquilo que é considerado como comum a ele e a toda uma classe de outros seres e que por convenção é tomado como sendo universal. Mas se os conceitos tradicionais, conforme destaca Bergson entre outros importantes filósofos contemporâneos, não podem representar aquilo que é intuído junto à duração, isto é, as “tendências” singulares do ser que não são redutíveis ao universal, como então representar adequadamente tal experiência? No estudo que promove do desenvolvimento das formas de conhecimento na Natureza, ele defende que a linguagem humana constrói-se prioritariamente a partir de uma função determinada, dada pela faculdade da inteligência. Tal como a linguagem instintiva dos animais, a linguagem inteligente do homem tem como função primordial auxiliá-lo a comunicar-se no mundo social e organizar a utilização da matéria de forma eficaz, de modo a obter o maior êxito possível na prática e garantir sua sobrevivência (BERGSON, 1991, E. C., pp. 628 e ss.). Assim, a linguagem humana, em princípio, é destinada fundamentalmente às finalidades

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pragmáticas do “homo faber”. Todavia, na medida de sua diferença em relação à linguagem instintiva, a linguagem inteligente pode passar a representar outros sentidos que não apenas os utilitários, mesmo que por princípio não tenha esta finalidade. Isto porque, enquanto a primeira caracteriza-se pelo “automatismo”, em que cada sinal representa uma única coisa determinada, daí sua precisão, a segunda é reconhecida pela sua capacidade de “mobilidade”, em que um mesmo sinal pode doar mais de uma significação. Com efeito, diferentemente do instinto, é possível à inteligência uma “mediação” reflexiva entre a representação e a ação, o que dá ao homem, ao longo de sua evolução, o poder de variar cada vez mais sua resposta linguística, criando com isso uma linguagem própria. É exercitando este potencial de utilizar criativamente a linguagem designativa dos objetos que a inteligência humana acaba refletindo a si mesma como “forma” e com isso toma consciência dos mecanismos de sua atividade, reconhecendo sua capacidade de criar ideias mesmo que elas não tenham relação imediata com os objetos materiais. A partir então da criação de ideias, a inteligência do homem termina por elaborar um saber teórico capaz de fornecer subsídios para que ele consiga manipular o mundo material de modo ainda mais eficaz (BERGSON, 1991, E. C., pp. 630 e 631). É assim que surge a ciência, a qual na sua origem tem um cunho matemático-geométrico destinado a aperfeiçoar o domínio técnico do homem, criando uma linguagem teórica cada vez mais exata e precisa. O surgimento da Filosofia também é consequência deste processo. Segundo Bergson, a filosofia grega também promove o “recorte da realidade” que já se encontra realizado na linguagem corrente, tomando como modelo o seu caráter instrumental de fixação de sentido para criar, então, os conceitos metafísicos. Fundamentando a partir de Platão uma concepção de verdade que se vincula intimamente ao conceito de “Forma”, este discurso filosófico busca superar a ideia de mobilidade de significados vinculada à representação concreta da realidade e isto influencia toda a tradição de pensamento filosófico

É então buscando ir além desta tendência de representação do discurso filosófico tradicional que Bergson pretende encontrar um outro discurso capaz de representar agora o devir real, o ser que dura, que se cria continuamente e que, no

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seu modo de ver, só pode ser verdadeiramente conhecido através da intuição. Confessa que hesitou durante um certo tempo em denominar de ‘intuição’ o modo de conhecimento que julgou apropriado ao conhecimento da duração e, por conseqüência, apropriado à constituição do método da Filosofia necessário à renovação da metafísica. Ele reconhece inclusive que sua concepção de intuição, mesmo se aproximando de concepções como as de Schelling e Schopenhauer na medida em que elas também representam um meio de conhecimento que busca ir além da pura inteligência, delas também se distingue por pretender seguir a temporalidade viva e dinâmica da duração e não conhecer o “eterno” (BERGSON, 1984, p. 113)3.

A questão de como se criar uma linguagem apropriada para a Filosofia concebida como filosofia da duração perpassa, pois, a questão de como se encontrar o meio de expressão mais adequado para se representar a experiência dinâmica da temporalidade do devir que é conhecida mais profundamente através da intuição. Este meio de expressão deve se aproximar, para Bergson, da representação da prosa literária e da poesia, uma vez que elas se realizam efetivando o caráter dinâmico das palavras antes de elas serem convertidas em conceitos estáticos pela linguagem instrumental. Desse modo, o discurso mais apropriado para a filosofia é aquele que se desenvolve através das representações metafóricas que se afastam do pragmatismo da linguagem comum e, aproximando-se da linguagem artística, caracterizam-se pela “intenção criadora” de fazer com que o leitor possa como que reviver a intuição da realidade viva.

A partir disto, ele destaca ainda que em Bergson “a arte, principalmente a literatura e a música, pode ser tomada como paradigma da filosofia” (LEOPOLDO E SILVA, 1994, p. 25) no que diz respeito à forma de expressão, mas atentando para o fato de que é por uma questão de “exigência metodológica” que a

3 E mesmo que esta “solução” não se manifeste como uma “verdade clara e distinta” tal como

propugnada por Descartes nas Meditações e no Discurso do Método, de acordo com Bergson o método da intuição pode levar a filosofia e a ciência a alcançarem um conhecimento que tem uma “probabilidade” crescente de aproximar-se da verdade. Este método pode ainda ser visto, segundo Deleuze, como um “empirismo superior” que não se atém apenas à experiência imediata, mas a ultrapassa em direção às suas condições, ou um “probabilismo superior”, que pode resolver concretamente os problemas, relacionando a condição ao condicionado (DELEUZE, 1999, p.21).

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linguagem artística deve servir de modelo à linguagem da filosofia, não havendo, por conseguinte, apenas uma reprodução.

Se a filosofia deve adotar a linguagem imagética por exigência metodológica, a maneira como o artista opera com a linguagem só pode ser tomada como paradigma se, na própria noção de paradigma, estiver incluído um trabalho de mediação que transforme a metáfora literária num instrumento metodologicamente apropriado à expressão filosófica. Portanto, é a distância entre a expressão artística e a expressão filosófica que constitui o espaço de mediação em que deverá ser reinventado o método filosófico (LEOPOLDO E SILVA, ob. cit., p. 186 e ss).

Segundo Bergson, tal discurso deve se construir principalmente por intermédio de imagens, que se contrapõem aos conceitos universais utilizados pela ciência e pela filosofia tradicionais. Ele afirma que na verdade uma intuição metafísica realizada na duração nunca pode ser totalmente exprimível. Mesmo as imagens, consideradas isoladamente, não conseguem representá-la adequadamente. Contudo, um conjunto de imagens diversificadas, cada qual evocando diferentes aspectos desta duração, pode suscitar no sujeito um movimento intuitivo do espírito capaz de o aproximar novamente da intuição original. Desse modo só a representação imagética tem a possibilidade de fazer reviver a intuição da duração das coisas, descrevendo-as em sua realidade mais íntima; a representação unicamente através de conceitos universais, por seu lado, traz em si o perigo de promover uma visão abstrata delas, além de simbolizá-las de forma generalista, o que tende a “deformar” aquilo que realmente são em suas singularidades (BERGSON, 1984, p.18).

Ao longo da obra de Bergson encontramos exemplos de como ele utiliza este modo de representação por meio de imagens que julga ser o mais adequado para a filosofia. Para citar alguns destes exemplos, podemos recordar, primeiramente, seus diferentes modos de descrever a duração. Em Dados Imediatos, ele compara a “sucessão de nossos estados de consciência”, nossa duração interior, à “fusão das notas de uma melodia”. Em Introdução à Metafísica, ele a aproxima ora do “desenrolar de um novelo”, ora de um “espectro de nuances” quando a pensa associada à consciência humana, ou a aproxima ainda de um “elástico” contraído e depois distendido quando reflete sobre o seu movimento contínuo. Já em A

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Evolução Criadora ele a descreve, enquanto associada à Natureza em seu conjunto, como uma sinfonia, uma vez que a “imagem” da sinfonia teria a capacidade de simbolizar metaforicamente a unidade harmônica a partir da multiplicidade diversa, um conjunto vivo a partir de singularidades. Em segundo lugar, podemos citar a maneira de Bergson representar, em A alma e o corpo, a relação da atividade cerebral para a atividade mental enquanto semelhante à relação do movimento da batuta do regente para a sinfonia. Apresentando ainda mais um outro exemplo, podemos recordar o modo como ele remete, também em Introdução à Metafísica, a “experiência integral” da intuição à experiência da composição literária. Por fim, para que possamos reconhecer a importância atribuída por Bergson ao modo de representação por meio de imagens não só no campo da filosofia estrita, mas também no da filosofia da educação, pensando em como este campo pode dar significado a “intuições filosóficas” de durações vivenciadas no horizonte existencial-educacional, lembremos de uma passagem famosa da introdução de O pensamento e o movente, na qual ele critica o modo como normalmente se educam as crianças, crítica que certamente poderíamos adaptar ao modo como muitas vezes se educam também jovens e adultos:

Em todas as áreas, seja das Letras, seja das Ciências, nosso ensino conservou-se demasiadamente verbal. (...) Como seremos ouvidos? De que modo seremos entendidos? Pois que, a criança é investigadora e inventora, sempre à espreita de novidade, impaciente quanto às regras, enfim, mais próxima da natureza daquilo que o homem cria. (...) Contudo, por mais enciclopédico que seja o programa, aquilo que a criança poderá assimilar de uma ciência acabada reduzir-se-á a poucas coisas e será, muitas vezes, estudado a contragosto e esquecido logo em seguida. (...) Cultivemos antes na criança um saber infantil e evitemos de sufocá-la sob o acúmulo de ramos e folhas secas, produto de vegetações antigas; a planta nova não pede nada, senão o deixá-la crescer (BERGSON, 1991, p. 1326).

Certamente podemos encontrar outros exemplos de importantes pensadores vinculados à filosofia e à filosofia da educação que ressaltam o valor das imagens metafóricas como meio de expressar de modo mais significativo as experiências educacionais que se dão no tempo, isto é, como meio de compor de modo mais harmonioso e convincente o discurso oral e escrito em torno das experiências formativas sub specie durations. Para reforçar a perspectiva assumida por Henri

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Bergson, particularmente em relação à educação podemos evocar, entre outros, um contemporâneo seu, John Dewey que, de modo similar, ressalta o valor das metáforas e as utiliza na representação do que é intuído junto ao horizonte vivo das experiências educacionais. Tomando como referência em especial o livro Como pensamos, a partir de um trabalho orientado por uma especialista no pensamento deweyano, podemos encontrar vários exemplos disto. Primeiramente podemos nos referir ao modo como Dewey, discutindo a questão da curiosidade como impulso da vontade de aprender, a descreve como “um transbordamento de vitalidade, uma expressão de uma abundante energia orgânica" (DEWEY 1959, p. 45 apud MEIRELLES, p. 62) e traz a imagem de que "o professor precisa saber como ministrar noções quando a curiosidade fez nascer um apetite que quer ser saciado" (DEWEY 1959, p. 48 apud MEIRELLES, p. 62). Em segundo lugar, de maneira muito semelhante ao modo como Bergson, na passagem acima citada, critica a educação usualmente destinada às crianças, Dewey também critica aquela transmissão em que “fatos” se tornam como um "pêso morto" das "informações", por se afastar das experiências e estas tornarem vazias, passando, por conseguinte, a não terem nenhum valor, mesmo em sala de aula (DEWEY 1959, p. 183 apud MEIRELLES, p. 68). O filósofo estadunidense reforça tal posicionamento através do seguinte argumento metafórico:

Tanto na instrução de laboratório da educação superior, como nas lições de coisas da educação elementar, a matéria é tratada de tal arte que o estudante "deixa de ver a floresta por causa das árvores". Retalham-se e detalham-se coisas e qualidades, sem referência ao caráter mais geral que representam e significam. (DEWEY 1959, p. 183 apud MEIRELLES, p. 68).

Outros interessantes exemplos são apresentados na mesma obra por Dewey a partir da composição de imagens metafóricas, utilizadas para dar sentido, sustentar e reforçar suas ideias. Em primeiro lugar podemos destacar o modo como descreve a necessidade da vinculação prática-teoria, teoria-prática, ponderando que quando tal vinculação não é reconhecida, o educador-pesquisador não consegue "enxergar um palmo diante do nariz ou é levado a cortar o galho em que se está sentado" (DEWEY 1959, p. 220 apud MEIRELLES, p. 68). Segundo

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escreve "a preocupação exclusiva com as coisas de uso e aplicação, estreita o horizonte e, por fim, destrói-se a si mesma. Não convém amarrar o pensamento, com escassa corda, ao poste da utilidade" (DEWEY 1959, p. 221 apud MEIRELLES, p. 68). Um segundo exemplo se relaciona ao modo como critica certa tendência de ensino que acaba apresentando palavras e objetos como se fossem coisas em si, sem vinculá-las ao significado que estas carregam para cada sujeito a partir de suas vivências singulares. E aqui podemos encontrar uma semelhança em relação à crítica bergsoniana às tendências de representação por símbolos conceituais universais que acabam deixando de poder significar as experiências vivenciadas no tempo e os diferentes sentidos criados e possíveis. Segundo Dewey não é possível "gravar um sentido apenas através da palavra", pois poder-se-ia "privar a palavra de sentido inteligível". A partir disto, metaforicamente, ele defende que

É preferível a ignorância legítima: pelo menos, esta costuma fazer-se acompanhar de humildade, curiosidade, espírito aberto; ao passo que a capacidade de repetir frases de ouvido, expressões da gíria, lugares-comuns, traz a presunção de saber e é, para mente, capa impermeável a novas ideias (DEWEY 1959, p. 234 apud MEIRELLES, p. 69).

Continuando nosso sobrevoo por esse conjunto de metáforas elaboradas por Dewey, como meio também de potencializar a argumentação bergsoniana que discutimos em torno da defesa da linguagem imagética como meio de expressão da filosofia e, poderíamos dizer, também da filosofia da educação que se fazem mais próximas da vida, do devir, da duração, gostaríamos ainda nos remeter aos seguintes exemplos. Primeiro, numa construção metafórica que nos traz à mente novamente o texto de Bergson citado acima que critica o ensino “enciclopédico”, e também a crítica de Paulo Freire tecida por meio da imagem “bancária” da educação tradicional que se tornou notável, Dewey também faz, novamente no final da obra a que estamos nos referindo, uma crítica à maneira como o aluno muitas vezes é considerado na escola:

Não é exagero dizer que, mais vezes do que seria de desejar, o aluno é tratado como se fosse um disco de fonógrafo, no qual se gravasse uma série de palavras a ser literalmente reproduzida no momento em que a

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sabatina ou exame comprima a alavanca própria. Ou, variando a metáfora, a mente é travada como se fosse um reservatório, ao qual a informação é conduzida por uma série de canos que o enchem mecanicamente, enquanto a sabatina é a bomba que retira de novo o material, através de outra série de canos. A habilidade do professor é, nesse caso, medida pela sua capacidade de manejar as duas redes de encanamento que fluem para dentro e para fora (DEWEY 1959, p. 258 apud MEIRELLES, p. 70).

E complementando, assinala ele:

O espírito não é um pedaço de mata-borrão, que absorve e retém automaticamente. É, antes, um organismo vivo que precisa procurar o seu alimento, que escolhe e rejeita, segundo suas condições e necessidades presentes, e que conserva unicamente o que digere e transforma em parte da energia de seu próprio ser (DEWEY 1959, pp. 258-259 apud MEIRELLES, p.70).

Por fim, evocamos uma última composição imagética de Dewey, utilizada por outros importantes pensadores, e que vem sendo desdobrada a partir de diferentes perspectivas em suas potencialidades para o campo educacional: aquela que aproxima intimamente pedagogia e estética4. Dewey ressalta que "é frequente ouvir-se dizer ensino é uma arte e o professor é um artista" (DEWEY 1959, p. 283 apud MEIRELLES, p. 71), proposição que devemos valorizar e refletir em seus mais diversos desdobramentos. Um deles diz respeito à necessidade de concebermos o ensino e a formação, no âmbito da relação professor-estudante, como compartilhamento de criação e autoria sintonizados com o movimento da vida, potencializando-a, e não como transmissão de um saber pronto, acabado e, de certa forma, morto: “acúmulo de ramos e folhas secas, produto de vegetações antigas”, como escreveu Bergson. Nas palavras de Dewey:

O ensino corre sempre o risco de afogar a experiência vital, conquanto limitada, do discípulo, num acúmulo de noções transmitidas. Aquele que não é mais que um instrutor acaba onde começa o verdadeiro professor: no ponto em que a matéria transmitida incute, em tudo que entrara pela exígua, estreita porta da percepção sensorial e da atividade motora, uma vida mais completa e significativa (DEWEY 1959, p. 287 apud MEIRELLES, p. 71).

4 Ver, por exemplo, o que escreve Gabriel Perissé, no livro Introdução à Filosofia da Educação,

especialmente no capítulo V (PERISSÉ, 2008, pp. 76 e ss.).

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Depois de aludirmos a diferentes exemplos de metáforas trabalhados por Bergson e por Dewey relacionados aos campos da filosofia e da filosofia da educação, gostaríamos de destacar ainda um último aspecto particularmente associado ao modo como o primeiro se propõe a estudar as diversas filosofias, deixando claro uma vez mais como a representação imagética desempenha um papel fundamental no seu método filosófico fundamentado na intuição. Sua relevância se torna também manifesta na obra de Bergson por meio da forma segundo a qual ele penetra no pensamento de um outro determinado filósofo, buscando vislumbrar por trás do conjunto de conceitos utilizados por ele a intuição que teve junto à realidade viva e que está na base de todo o seu pensamento, delimitando a sua originalidade5. Para Bergson, são as imagens, através de seu poder evocativo, que se não reproduzem, ao menos nos possibilitam aproximar, com muito mais propriedade do que os conceitos simbólicos, desta intuição original e viva do filósofo que é o fundamento do “sistema” que ele depois desenvolve por meio dos próprios conceitos, reproduzindo o filosofar tradicional.

Toda a complexidade de sua doutrina (da doutrina do filósofo), que se estenderia ao infinito, é apenas a incomensurabilidade entre sua intuição simples e os meios de que dispunha para exprimi-la.

Qual é esta intuição? Se o filósofo não pôde formulá-la, não somos nós que o faremos. Mas o que chegaremos a apreender e fixar é uma certa imagem intermediária entre a simplicidade da intuição concreta e a complexidade das abstrações que a traduzem, imagem fugitiva e esvaecente, que ronda, talvez inapercebida, o espírito do filósofo, que o segue como sua sombra por entre os meandros de seu pensamento, e que, se não é a própria intuição, dela se aproxima muito mais do que a expressão conceitual, necessariamente simbólica, à qual a intuição tem de recorrer para fornecer ‘explicações’ (BERGSON, 1984, p.56)

Bergson nos dá primeiramente o exemplo de Espinosa e mostra que por trás do rico aparato de conceitos que ele utiliza para fazer comunicar seu pensamento com uma “perfeição geométrica”, há algo de “sutil, de muito leve e de quase volátil”, que a tudo perpassa e que temos um pouco de dificuldade em apreender. Trata-se justamente da intuição fundamental espinosana que nenhuma fórmula

5 A respeito desta forma própria com que Bergson resgata o caráter original de uma filosofia por

meio da sua “raiz intuitiva e viva”, ver PRADO JÚNIOR, 1989, p. 29. Aí Bento Prado também assinala o “duplo uso” que Bergson faz da história da filosofia procurando ressaltar os seus equívocos e também destacar, apesar deles, o que há de “verdade intuitiva” por trás dos sistemas.

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conceitual é capaz de exprimir e de esgotar, mas que a seguinte “imagem” pode representar de forma aproximada:

Digamos, para nos contentar com uma aproximação, que é o sentimento de uma coincidência entre o ato pelo qual nosso espírito conhece perfeitamente a verdade e a operação pela qual Deus a engendra (...) – a experiência moral encarregando-se aqui de resolver uma contradição lógica e de fazer, através de uma brusca supressão do Tempo, com que voltar seja um ir (BERGSON, 1984, pp. 58 e 59).

Estas ideias desenvolvidas por Bergson nos mostram que apesar da grande importância do trabalho da inteligência, da racionalidade humana no intuito de desenvolver uma linguagem cada vez mais elaborada para compreender o mundo e agir sobre ele, tal trabalho tem seus limites, sobretudo na medida em que se confronta com uma realidade que é temporalidade viva, que se transforma e se recria. É certo que a vida humana busca determinadas referências de certa estabilidade que possam ser valoradas como coerentes e significativas e que delineiam determinados horizontes de sentidos. Para tanto o trabalho da racionalidade se faz importante, buscando certa organização da vida em sociedade. Todavia, ele se faz no tempo e deve ser continuamente reafirmado, legitimado concreta e coerentemente para que continue fazendo sentido. As ideias, as normas, os valores, ou seja, princípios éticos, estéticos, políticos, educacionais sintetizados conceitualmente pela inteligência humana, não podem ser estabelecidos como “coisas em si” e ad eternum. Tudo isto traz questões extremamente relevantes que se desdobram nos diferentes campos do saber e da prática humanos, especialmente em nossa contemporaneidade. Bergson, entre outros pensadores, nos chama atenção para isto e valoriza o necessário “contra peso” à atividade intelectual, à racionalidade, através da atividade intuitiva que deve lhe complementar para que ela não acredite desmedidamente em si, para que o homem não perca o contato com a experiência viva e movente, não esquecendo que o tempo dura... Inclusive, como vimos, a própria linguagem filosófico-científica tradicional deve ser confrontada pela linguagem poética, mais próxima desta temporalidade viva. Tudo isto, dentro de um horizonte mais propriamente

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filosófico-educacional, relaciona-se ao que Bergson denomina, num sentido bem particular, de um “bom senso” que deve ser inclusive cultivado pela educação6. O “bom senso” nesta perspectiva bergsoniana associa-se diretamente à intuição e, em seu sentido mais fundamental indicaria o necessário contraponto7 à própria inteligência e à linguagem conceitual por ela criada, impedindo-lhe os exageros e a “confiança exagerada em suas deduções” – tanto nos campos das ciências em geral e da filosofia quanto no da vida prática –, por meio da concretização de uma maior “simpatia” do pensamento com a duração real e viva, assim sua abertura à linguagem poética e metafórica num sentido amplo.

De certo modo correspondente e complementar, encontramos em Edgar Morin, num de seus textos mais famosos, ideias que também evocam, especialmente em seus desdobramentos no campo da educação, muitos dos elementos do que procuramos apresentar neste texto, nos apoiando especialmente na filosofia da Bergson. Assim, com as seguintes palavras de Morin, gostaríamos de terminá-lo:

o ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, a transes, mitos, magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício, viveu frequentemente para preparar sua vida além da morte. (...) As atividades de jogo, de festas, de ritos não são apenas pausas antes de retomar a vida prática ou o trabalho; as crenças nos deuses e nas ideias não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao referem-ser humano em sua natureza. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a afetividade, a magia, o mito, a religião. Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Home faber, Homo ludens, Homo sapiens e Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético (MORIN, 2007, pp. 58 e 59)

6 Já escrevemos com mais vagar sobre isto em outros textos, entre eles, o artigo Subjetividade e

educação a partir da filosofia bergsoniana. Lembramos aqui que Bergson apresenta esta noção primeiramente no discurso Le bon sens et les études classiques, pronunciado por ele aos 36 anos, no Grande Anfiteatro da Sorbonne, durante a solenidade de distribuição dos prêmios do “Concours Géneral” em 13 de julho de 1895, um ano antes da publicação de Matière et mémoire (o texto do referido discurso foi reunido em BERGSON, Mélanges, 1972, p. 360-372). Tal noção Bergson retoma e amplia sua abrangência depois em passagens de suas obras fundamentais.

7 E aqui o termo contraponto foi escolhido por nós na medida em que poderia ser tomado também

como uma metáfora que alude à composição musical.

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Referências

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___________, Oeuvres. Édition du Centenaire. Paris: P.U.F., 1991 (5eme édition). ___________, Mélanges. Paris: P.U.F., 1972.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999. (Coleção TRANS). (Incluindo dois apêndices: A concepção de diferença em Bergson e Bergson).

DESCARTES, René. Textos escolhidos. São Paulo : Abril, 1973. (Coleção Os Pensadores).

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Referências

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