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Determinantes da satisfação dos utentes dos cuidados primários : o caso de Lisboa e Vale do Tejo

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Academic year: 2021

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Pedro Lopes Ferreira é professor associado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra. António Luz, médico de saúde pública e técnico da Agência de Contratualização dos Serviços de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. Sara Valente é socióloga e técnica da Agência de Contratualização dos Serviços de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.

Victor Raposo é assistente da Faculdade de Economia da Univer-sidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos e Investi-gação em Saúde da Universidade de Coimbra.

Paula Godinho é socióloga e técnica da Agência de Contratualiza-ção dos Serviços de Saúde do Centro.

Determinantes da satisfação dos utentes

dos cuidados primários: o caso de Lisboa

e Vale do Tejo

PEDRO LOPES FERREIRA ANTÓNIO LUZ

SARA VALENTE VICTOR RAPOSO PAULA GODINHO

ERMELINDA DIAS FELÍCIO

Os objectivos deste estudo são: (a) avaliar a percepção que os cidadãos utentes dos centros de saúde têm relativamente aos cuidados prestados; (b) entender mais as razões subja-centes a estas avaliações. Para esse fim realizou-se um inquérito retrospectivo a uma amostra de quase 4000 utentes dos centros de saúde das três sub-regiões da Região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo: Lisboa, Santarém e Setúbal. Os questionários foram entregues por elementos da ARS directamente aos utentes, aos quais foi pedido que os preenchessem e os devolvessem em sobrescritos de fran-quia paga, garantindo assim um completo anonimato. O questionário (Europep), já anteriormente validado, per-mitiu obter valores e indicadores de satisfação com os cui-dados primários nas seguintes áreas: (i) relação e comuni-cação; (ii) cuidados médicos; (iii) informação e apoio; (iv) continuidade e cooperação; (v) organização dos servi-ços. A taxa de resposta foi de 40,5%, considerada uma boa

participação dos cidadãos em inquéritos de satisfação em Portugal.

Como principais resultados, observa-se que grande parte dos utentes está satisfeita com os cuidados prestados, em especial com a sua interacção com os médicos de família, quer em termos humanos, quer em termos técnicos. No entanto, verifica-se que os aspectos relacionados com a gestão e organização obtiveram avaliações mais negativas, como é o caso da acessibilidade dos tempos de espera.

Introdução

A afirmação de James McCormack abre-nos, prova-velmente, o caminho para o conhecimento dos valo-res do indivíduo que acorre aos centros de saúde como doente2. Ao centrarmos a nossa atenção neste grupo de cidadãos — o utilizador dos serviços —, estamos necessariamente a preocupar-nos com a forma como os cuidados primários satisfazem as suas necessidades objectivas e subjectivas e como contri-buem para melhorar o seu estado de saúde e a sua qualidade de vida (Ferreira, 2000).

E é evidente que não basta analisarmos os ganhos em saúde ou as necessidades satisfeitas. É também

Knowing the patient who has the illness is as important as knowing the disease the patient has.

JAMES MCCORMACK1

1Cit. no prefácio da obra de Richard Grol (Grol e Wensing, 2000). 2Fazendo um pequeno desvio de natureza conceptual, neste texto utilizaremos o termo «doente» para representar não só o cidadão utilizador dos serviços de saúde, como também algum familiar ou amigo próximo.

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importante medir de que forma os serviços de cuida-dos primários estão a responder aos cidadãos de uma maneira que garanta a sua acessibilidade aos cuida-dos, a organização dos serviços, a atitude dos presta-dores, a sua educação e a comunicação que estabele-cem com os doentes.

Vários autores e organizações internacionais têm real-çado a importância de ouvir os doentes, argumentando que são normalmente estes que melhor conhecem qual o resultado de saúde desejável, fornecendo expectati-vas, quereres e prioridades diferentes das dos profis-sionais. Por outro lado, os doentes cada vez mais se apresentam perante os sistemas de saúde com um poder específico, como parceiros nos cuidados e nas tomadas de decisão (Grol et al., 2000; Guadagnoli e Ward, 1998; Mossialos, 1997; WHO, 2000).

Segundo Wensing e Grol (1998), há vários métodos para envolver os doentes na prestação dos cuidados. Um deles é recolher dados de satisfação com os cui-dados e devolvê-los aos prestadores para serem usa-dos em planos e acções orientausa-dos para a melhoria dos cuidados.

Métodos

Foram identificadas quatro áreas de interesse: 1. Qual é, em geral, a percepção que os utentes dos

centros e saúde possuem?

2. Com base na sua satisfação será que os doentes recomendam o seu centro de saúde a outros e qual a probabilidade de não mudarem de médico de família?

3. Quais os determinantes da satisfação destes utentes?

4. Haverá diferenças na satisfação relacionadas com as características sócio-económicas dos utentes? O estudo teve como população-alvo os utentes dos centros de saúde da Região de Lisboa e Vale do Tejo, incluindo as Sub-Regiões de Lisboa, Santarém e Setúbal, e teve o apoio da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e da Agência de

Contratualização dos Serviços de Saúde da Região, nomeadamente nos aspectos logísticos da entrega dos questionários aos utentes. Os questionários foram entregues aos doentes nos centros de saúde, dando--lhes uma imagem de que os seus prestadores — neste caso os centros da saúde e a região de saúde — estão interessados na sua opinião para melhorar os cuida-dos prestacuida-dos. Após preenchimento, a devolução foi feita por sobrescrito RSF para o Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra, conseguindo-se, assim, uma verdadeira separação entre a prestação de cuidados e a análise dos questio-nários.

Tendo sido contactados 9800 utentes e tendo respon-dido um total de 3969, obteve-se uma taxa de res-posta de 40,5%, considerada uma muito boa partici-pação dos cidadãos, tendo em conta outros inquéritos que utilizavam semelhante metodologia. Pratica-mente 97,3% dos questionários chegaram em seis semanas; no entanto, prolongámos o período de recolha de dados mais onze semanas na esperança de ainda recebermos mais respostas. O Quadro I apre-senta a distribuição dos respondentes pelas três sub--regiões. Como se pode ver, Santarém, provavel-mente por ser uma sub-região mais rural do que as restantes, apresentou a taxa de respostas mais baixa. É também interessante chamar a atenção para a recepção de 30 questionários em branco (0,8%), sig-nificando, porventura, ainda algum receio das pes-soas em participarem.

O desenho seleccionado para o estudo foi o de inqué-rito retrospectivo por questionário. Os principais dados recolhidos podem agrupar-se em várias cate-gorias, conforme pode ver-se no Quadro II. A satisfação foi medida através do instrumento Europep, já anteriormente testado e validado em Por-tugal (Ferreira, 1999) e desenvolvido no âmbito de um estudo financiado pela União Europeia (Grol, 1995), com o reconhecimento da WONCA (Grol e Wensing, 2000). Os objectivos do desenvolvimento do Europep foram documentar e comparar as necessidades e que-reres dos doentes, desenvolver um instrumento de medição válido, fiável e exequível e, por fim, documentar e comparar as avaliações dos doentes.

Quadro I

Distribuição das respostas

Sub-Região Região de Santarém de LVT Questionários recebidos 2459 682 828 3969 Centros de saúde 46 21 19 86 Taxas de resposta 42,7% 32,5% 40,8% 40,5% Lisboa Setúbal

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O seguimento de processos metodológicos rigorosos e aceites internacionalmente (Ferreira, 2001) permite--nos hoje discutir com garantias os resultados deste novo estudo e dessa discussão tentar inferir algumas conclusões que nos ajudem a melhorar a situação exis-tente. Este instrumento de satisfação dos doentes mede essencialmente cinco principais dimensões dos cuida-dos primários: (i) relação e comunicação; (ii) cuidacuida-dos médicos; (iii) informação e apoio; (iv) continuidade e cooperação; (v) organização dos serviços.

Este estudo adopta uma abordagem centrada no cida-dão utilizador dos centros de saúde. Deste modo,

houve necessidade de complementar os dados de satisfação com os da percepção do estado de saúde, da utilização dos cuidados e outros dados de natureza sócio-demográfica úteis para uma melhor explicação da satisfação.

Resultados

As características gerais dos utentes que responde-ram ao questionário Europep são apresentadas no Quadro III. Em relação aos dados demográficos,

Quadro II

Composição do questionário Europep

Área Dimensão Número de perguntas

Relação e comunicação 6

Cuidados médicos 5

Satisfação Informação e apoio 4

Continuidade e cooperação 2

Organização dos serviços 6

Intenções Recomendar 1

Mudar de médico de família 1

Utilização Número de visitas no último ano 1

Percepção geral de saúde 1

Percepção de doenças 11

Sexo 1

Dados sócio-económicos Idade 1

Escolaridade 1

Quadro III

Distribuição das respostas

Sub-Região Região de Santarém de LVT Sexo: feminino 1 446 (61,1%) 426 (64,2%) 498 (62,3%) 2 372 (61,9%) Idade: < 25 anos 254 (11,4%) 99 (15,0%) 153 (19,3%) 606 (15,9%) 25-44 anos 666 (29,9%) 217 (32,9%) 207 (26,1%) 1 111 (29,2%) 45-64 anos 773 (34,7%) 200 (30,3%) 272 (34,3%) 1 245 (32,7%) ≥ 65 anos 535 (24,0%) 143 (21,7%) 162 (20,4%) 841 (22,1%) média ± desvio-padrão 47,2 ± 19,7 46,1 ± 19,3 45,5 ± 20,2 46,7 ± 19,8 Escolaridade: ≤ básico 816 (39,4%) 358 (53,7%) 445 (55,4%) 1 920 (49,9%) secundário/médio 1 018 (49,1%) 253 (38,0%) 305 (38,1%) 1 576 (41,0%) superior 240 (11,6%) 55 (8,3%) 52 (6,5%) 348 (9,1%)

Visitas ao médico por ano: média 5,2 5,7 5,0 5,2

Estado de saúde: óptima/muito boa 305 (12,7%) 57 (8,5%) 94 (11,6%) 456 (11,8%)

boa 647 (27,1%) 167 (24,9%) 220 (27,1%) 1036 (26,7%)

razoável 1 438 (60,2%) 448 (66,7%) 497 (61,3%) 2383 (61,5%) Estado de saúde

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62% são mulheres e a idade média dos respondentes foi de 47 anos. 50% tinham uma escolaridade igual ou inferior ao ensino básico, dos quais 6% não sabiam mesmo ler ou escrever. Finalmente, os utentes que responderam a este inquérito tinham uma média de 5,2 visitas por ano ao seu médico de família. Mais de metade (61%) manifestou ter uma qualidade de vida má ou razoável. Em contrapartida, cerca de 12% sentiam ter uma qualidade de vida muito boa ou óptima. Finalmente, quando perguntados se eram portadores de alguma doença crónica, 71% afirma-ram que sim. As doenças mais referidas foafirma-ram as osteoarticulares, seguidas da hipertensão arterial e das enxaquecas e outras dores de cabeça crónicas e fortes. As menos referidas foram os AVCs e as doen-ças malignas.

Em termos de intenções, 75% recomendariam este centro de saúde aos seus amigos e familiares e 78% não vêm qualquer necessidade de mudarem de médico de família. Como pode ver-se no Quadro IV, a opinião que os utentes da Região de Lisboa e Vale do Tejo têm do seu centro de saúde leva-os a pode-rem recomendá-lo a familiares e amigos ou a não quererem mudar de médico de família. Por cada 10 pessoas que não recomendam o seu centro de saúde há 88 a fazê-lo e por cada 10 pessoas suficientemente insatisfeitas ao ponto de quererem mudar de médico de família há 62 a quererem ficar como estão. E há a realçar que, no estudo das prioridades efectuado, este último item foi um daqueles a que os cidadãos deram maior importância.

As distribuições obtidas das respostas estão dentro de parâmetros considerados aceitáveis. Há apenas a realçar uma evidente deslocação para valores cada vez mais negativos quando passamos dos aspectos de prestação de cuidados para os aspectos de organiza-ção dos serviços, conforme pode ver-se na Figura 1. A Figura 2 apresenta as médias de cada uma das dimensões de qualidade em cada uma das sub--regiões que constituem a Região de Lisboa e Vale do Tejo. Como pode ver-se nestes gráficos, os utentes dos centros de saúde têm avaliações particularmente positivas acerca da interacção com o seu médico de família, quer em termos humanos, quer em termos técnicos. É interessante, no entanto, ver que os aspec-tos relacionados com a gestão obtiveram avaliações mais negativas, como é o caso dos tempos de espera, da acessibilidade, da disponibilidade e da organiza-ção dos serviços.

Comparando as três sub-regiões com a região, pode-mos dizer que em Lisboa houve uma avaliação, em geral, mais satisfatória do que em qualquer outra das sub-regiões (p < 0,001). Santarém está mais satisfeito do que Setúbal no que respeita a relação e comuni-cação (p < 0,01), cuidados médicos (p > 0,001) e, especialmente, organização dos serviços (p < 0,001). Apenas em relação à informação e apoio Setúbal manifestou uma maior satisfação do que Santarém (p < 0,001). Estas duas sub-regiões não diferiram em relação à continuidade e cooperação.

Analisámos também as avaliações dos doentes relati-vamente aos dados sócio-demográficos e de

quali-Quadro IV

Distribuição das intenções face aos centros de saúde e ao médico de família

Sub-Região Região

de Santarém de LVT

Recomenda o médico: sim 1 757 (76,4%) 463 (70,2%) 560 (72,4%) 2782(74,5%)

não 189 (8,2%) 56 (8,5%) 70 (9,0%) 315 (8,4%)

não sabe 353 (15,4%) 141 (21,4%) 144 (18,6%) 638(17,1%) Tenciona mudar: sim 262 (11,9%) 83 (12,9%) 104 (13,7%) 449(12,4%) não 1 728 (78,3%) 487 (75,7%) 566 (74,7%) 2782(77,1%) não sabe 217 (9,8%) 73 (11,4%) 88 (11,6%) 378(10,5%)

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Todas as dimensões Figura 1

Distribuição das dimensões de qualidade

Relação e comunicação

Cuidados médicos Informação e apoio

Continuidade e cooperação Organização dos serviços

Má Excelente Má Excelente Má Excelente Má Excelente Má Excelente Má Excelente 40 30 20 10 0 40 30 20 10 0 40 30 20 10 0 40 30 20 10 0 40 30 20 10 0 40 30 20 10 0

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dade de vida, conforme está referido no Quadro V. De uma maneira geral, são as mulheres as mais in-satisfeitas. Também são os jovens os mais insatisfei-tos e os mais exigentes, especialmente nas dimensões «relação e comunicação» e «organização de cuida-dos».

Os utentes com menor literacia, provavelmente pro-venientes de classes mais baixas, são também os mais insatisfeitos, especialmente nas dimensões «informação e apoio» e «continuidade e coopera-ção». No que respeita à «organização dos serviços», assiste-se a uma inversão da situação, pois aqui são

Quadro V

Distribuição das dimensões de qualidade

Variável Dimensão Valor t Sig. P

Sexo Relação e comunicação 3,310 < 0,001

[masc.-fem.] Cuidados médicos 3,791 < 0,001

Informação e apoio 2,762 < 0,001

Continuidade e cooperação 2,355 < 0,050

Organização dos serviços 4,455 < 0,001

Idade Relação e comunicação –3,775 < 0,001

[jovens-idosos] Cuidados médicos –1,211 n. s.

Informação e apoio –1,409 n. s.

Continuidade e cooperação –0,545 n. s.

Organização dos serviços –6,326 < 0,001

Literacia Relação e comunicação –1,864 n. s.

[menor-maior] Cuidados médicos –1,453 n. s.

Informação e apoio –2,113 < 0,050

Continuidade e cooperação –2,708 < 0,010

Organização dos serviços 3,365 < 0,001

Estado de saúde Relação e comunicação 6,003 < 0,001

[óptimo-mau] Cuidados médicos 9,678 < 0,001

Informação e apoio 7,1213 < 0,001

Continuidade e cooperação 8,010 < 0,001

Organização dos serviços 4,970 < 0,001

Figura 2

Média das dimensões nas sub-regiões e na região

80

70

60

50

Lisboa Santarém Setúbal LVT

Relação e comunicação Cuidados médicos Informação e apoio Continuidade e cooperação Organização dos serviços

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os utentes com mais literacia os que mais facilmente discordam do estado de coisas. Também os utentes que se sentem com pior qualidade de vida avaliaram mais desfavoravelmente a qualidade dos cuidados prestados.

Por fim, analisámos os comentários que 1096 utentes dos 86 centros de saúde (28%) nos forneceram. Corresponderam a 1578 subcategorias numa classifi-cação por nos construída. Os comentários positivos concentram-se essencialmente na actividade dos médicos, ao passo que os comentários negativos se distribuíam principalmente pela organização das con-sultas e pelo pessoal administrativo. Vejamos então com algum detalhe estes comentários negativos, ilus-trados em notas de rodapé.

Em relação às consultas, os doentes referiram sobre-tudo as oportunidades que existem para marcação das consultas3, apenas existir um dia por semana ou terem de se dirigir ao centro de saúde muito cedo4. Além disso, queixam-se do tempo de espera nas salas de espera5 e sentem uma grande discrepância entre a altura da marcação e a efectivação da consulta6. Em relação ao próprio tempo das consultas, também alguns se queixam de que consultas não são só pres-crição de medicamentos.

Em relação aos médicos, há comentários sobre a sua sobrecarga e sobre o facto de terem de ver muitos doentes ao mesmo tempo em virtude de serem pou-cos7. Por outro lado, afirmam que o médico não devia estar a fazer coisas como medir a tensão. Os médicos são também criticados pela falta de um atendimento personalizado e de alguma falta de simpatia8. No entanto, a maior queixa é a assiduidade e o cumpri-mento de horários9. Isto apesar de os considerarem

grandes amigos, conselheiros, até parte da sua famí-lia e mesmo com um estatuto próprio10.

No respeitante ao pessoal administrativo, no entanto, há grandes queixas relativamente à falta de simpatia, à falta de carinho, ao não saber como tratar com o público11 e a algum compadrio12.

É interessante, por fim, observar que os enfermeiros são pouco referidos pelos utentes, talvez porque o seu papel não é muito visível. A quase inexistência de cuidados domiciliários pode também ser outra explicação.

Conclusões

Na ausência de um padrão para a satisfação dos doentes, é difícil classificarmos a percentagem de doentes satisfeitos neste estudo como «alta» ou «baixa». No entanto, utilizando apenas como ponto de referência o valor de 50% para ponto de corte, já utilizado por outros autores (Roos et al., 1993), podemos mesmo arriscar que é demasiado preo-cupante a situação dos cuidados primários sob o ponto de vista dos cidadãos. No entanto, o baixo nível das expectativas do cidadão português em rela-ção aos serviços públicos, e, por outro lado, em pre-sença de um fenómeno interessante de analisar que consiste num quase «branqueamento» dos défices de qualidade dos aspectos organizacionais e de gestão face ao impacto de ter sido cuidado e observado por um médico de família, faz com que o cidadão, no global, não seja tão exigente como seria de esperar. A grande vantagem de inquéritos como este é permi-tirem identificar problemas que de outro modo seriam de muito difícil detecção ou que demorariam tempo de mais. Com este estudo demos uma vez mais voz aos cidadãos e captámos a sua satisfação face à forma como os cuidados de saúde são presta-dos nos centros de saúde. Para além disso, permitiu--nos compreender um pouco melhor quais os deter-minantes da satisfação em clínica geral. Os seus resultados podem ser usados para identificar áreas 10«Vamos marcar uma consulta, são 5 horas da manhã, e depois temos de esperar pela médica, que chega a vir com três horas de atraso [...] um gajo está sempre tramado quando reclama de alguma coisa, nunca tem razão; há má saúde em Portugal porque os médicos não são funcionários públicos.»

11«De resto, as funcionárias necessitavam de uma reciclagem»; «estive pendurada ao telefone cerca de duas horas para me marca-rem a primeira consulta [...] isto passou-se no dia 1 de Março e só consegui consulta para o dia 14 de Abril.»

12«A nível de pessoal nem dá para falar; só são simpáticas para as amigas e quem lhes leva prendas»; «depois é como nos atendem que mais parecem ser os donos do centro e o mal pior está no compadrio porque os familiares desses senhores têm sempre con-sulta quando querem».

3«Presentemente, as consultas são marcadas, no mínimo, com pra-zos de dois meses»; «deveria ser possível minimizar o tempo entre a marcação da consulta e a consulta»; «acho que não deviam ser marcadas com tanta antecedência porque, quando nós precisamos, por vezes, vamos às urgências, e não ao médico de família». 4«Para ter consulta no próprio dia tenho de estar às 6 da manhã à porta do posto porque, se assim não for, tenho de estar à espera seis meses pela consulta.»

5«O tempo de espera das consultas é sempre muito grande; quando a consulta tem início às 9 horas, às vezes a consulta só é efectuada às 11 horas ou ao meio-dia.»

6«Se marcamos uma consulta, é porque estamos doentes e devía-mos ser atendidos o mais depressa possível.»

7«O maior problema que tenho é a falta de médico de família há praticamente dois anos».

8«Este médico não tem perfil de médico de família; é incorrecto e não presta atenção aos seus utentes»; «empurra-os para o consul-tório particular».

9«Deviam chegar às 9, chegam às 11, ainda vão tomar o pequeno--almoço e, quando vêm, começam por ver os delegados de infor-mação médica»; «o médico vem sempre atrasado e não dá consulta a todos os pacientes desse dia»; «apenas discordo da prioridade dada aos delegados de propaganda médica durante as horas marca-das para as consultas».

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mais carentes de uma intervenção por parte de audi-tores e gesaudi-tores da qualidade, permitindo mesmo uma afectação mais orientada dos recursos, sempre escassos.

Por este estudo é evidente a existência de áreas de organização e de gestão que exigem por parte do Ministério uma atenção mais pormenorizada, para além de uma maior harmonização. Não nos parece fazer qualquer sentido que um centro de saúde só admita, por exemplo, marcações de consultas às quartas-feiras, outro exija que as pessoas vão para lá de madrugada e outro ainda decida, por sua livre iniciativa, um qualquer procedimento diferente des-tes. Tal como é referido no Relatório de Primavera 2001 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (Portugal, 2001), mantém-se uma grande des-responsabilização da administração em saúde aos vários níveis, que, por um lado, tem levado a uma crescente insatisfação por parte dos utentes dos cen-tros de saúde e, por outro lado, à constatação da existência de assimetrias no acesso dos cidadãos aos cuidados primários. Estas assimetrias não resultam, provavelmente, de uma maior preocupação pelas características específicas dos grupos populacionais em que os centros de saúde estão inseridos; são even-tualmente mais consequência de uma despreocupa-ção generalizada por estes assuntos.

Para além disso e de medidas administrativas condu-centes a uma reforma necessária da administração pública na saúde, parece-nos ser urgente haver uma qualquer forma de incentivo para aqueles centros de saúde que apresentem bons níveis de impacto nos ganhos em saúde da população e em temos financei-ros, mas que também consigam obter bons níveis de resposta e de satisfação por parte dos seus utentes. Isto porque, em saúde, o rigor e o bom desempenho não podem estar desligados do afecto.

Antes de concluir, é importante vermos qual o papel que os inquéritos de satisfação desempenham e qual o papel que queremos desempenhar neste processo. Os resultados encontrados por este estudo correm o risco de serem contraditórios. Se, por um lado, os principais indicadores de intenções dos utentes podem levar-nos a uma imagem cor-de-rosa dos cui-dados primários, por outro, pegar nas dezenas de comentários negativos que recebemos dos doentes poderia levar a conclusões completamente diferentes. No entanto, quer gostemos, quer não, ambas as situa-ções são um espelho da realidade que temos, ambas

coexistem. São os cidadãos emocionalmente depen-dentes do seu médico de família, habituados à situa-ção e a esquemas organizacionais que lhes são impostos sem alternativa; são cidadãos sem cidadania assumida, que não entendem como direitos os da participação nas áreas relacionadas com os cuidados de saúde e ainda se satisfazem com a democracia formal que os leva, num processo estático, em dias certos, a irem colocar um pedaço de papel para a eleição dos seus representantes.

Por outro lado, são os prestadores de cuidados de saúde e restantes profissionais que muitas vezes encaram o seu dia a dia como uma tarefa meramente burocrática num contexto rigidificado e não assumem o seu papel — também eles — de agentes do cida-dão, em cujo nome as decisões devem ser tomadas, os cuidados prestados, os serviços e a organização dos cuidados desenhados.

Deste modo, que papel nos resta, que papel podemos assumir? Estando o cidadão doente duplamente fragilizado e mantendo-se o prestador apenas num processo de adaptação a um sistema que não só lhe permite alguns desvios à boa conduta, como princi-palmente o penaliza em geral, não beneficiando aqueles que, de entre eles, se assumem com brio como prestadores de cuidados de saúde, resta-nos tudo fazer para que, dentro das suas organizações, tenham os diagnósticos necessários para alterarem esquemas organizacionais, situações e comportamen-tos. Pensar no doente no centro do sistema é isto! Citando o Relatório de Primavera 2001, «isto é ainda, em grande parte, contracultura. No entanto trata-se de uma tendência universal» (Portugal, 2001, 54).

Agradecimentos

É de reconhecer o apoio pronto da Dr.a Ana Jorge, presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e do Dr. Vítor Ramos, coorde-nador da respectiva Agência de Contratualização dos Serviços de Saúde, na época em que este estudo foi realizado. No terreno de pouca preocupação pela res-posta do sistema de saúde aos cidadãos, apoios como estes são, sem dúvida, corajosos e merecedores de realce. Os autores também agradecem a colaboração dos doentes e dos profissionais de saúde participantes neste projecto.

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Summary

DETERMINANTS OF PATIENT SATISFACTION WITH PRIMARY HEALTH CARE IN THE HEALTH REGION OF LISBON AND THE TAGUS VALLEY.

This study aims at (a) evaluating health centers users percep-tions in relation to health care that is there provided to them and (b) better understanding the determinants of these percep-tions. A mail questionnaire was submitted directly to approxi-mately four thousand health center users of the Health Region of Lisbon and the Tagus Valley (3,200 thousand population). The questionnaire previously validated (Europep study) ascer-tained the following dimensions of primary health care deliv-ery satisfaction: (a) communication and relationships; (b) medical care; (c) information and support; (d) continuity and co-operation; (e) service organisation. The response rate was of 40.5%. This is considered a satisfactory response rate for user satisfaction mail questionnaires in Portugal. The large majority of those surveyed seemed satisfied with the way primary health care is delivered in Portugal, specially in what concerns their relationship with GPs both in personal and technical terms. However the results are considerably less positive when organisational and managerial issues, such as accessibility and waiting times, are addressed.

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Portugal, 12 • Resto do Mundo, 36

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