• Nenhum resultado encontrado

As geografias rurais do Antropoceno: ainda uma Terra Incognita?

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "As geografias rurais do Antropoceno: ainda uma Terra Incognita?"

Copied!
14
0
0

Texto

(1)
(2)

Título

AGRICULTURA, FLORESTA E DESENVOLVIMENTO RURAL Edição

IESE- Instituto de Estudos Sociais e Económicos Coordenação editorial

António Oliveira das Neves Revisão de texto Vasco Grácio Design Zé D’Almeida Paginação Margarida Sousa Impressão Guide - Artes Gráficas

Depósito Legal 413904/16

ISBN 978-989-20-6932-6

(3)

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO (A. Oliveira das Neves)...

6

I. AGRICULTURA, AGROINDÚSTRIA E FLORESTA – ATIVIDADES E DINÂMICAS SETORIAIS...

9

Evolução da Alimentação e das Doenças de Origem Alimentar nos Países Mediterrânicos O Papel Renovado da Dieta Mediterrânica (Agostinho de Carvalho)...

11

Consumo e Produção de Carne – Velhos e Novos Desafios (Antonino Rodrigues)...

27

Setor do Leite e Laticínios – Vetores de Reconversão (Niza Ribeiro)...

37

Agroindústrias: Duas Décadas de Fundos Comunitários (1994-2013) (Celina Luís)...

51

Portugal: o Megacluster Alimentação e Bebidas – Um Mosaico à Conquista dos Mercados Internacionais (José Félix Ribeiro)...

69

As Competências Internas da Empresa como Condicionante do Sucesso na Exportação do Vinho: Proposta de um Instrumento de Auto diagnóstico de Empresas Vinícolas (Vítor Corado Simões)...

83

Investigação Florestal Aplicada (Lucinda Neves)...

95

A Caça e a Economia Verde (Carlos Rio de Carvalho)...

103

II. POLÍTICAS PÚBLICAS E GOVERNAÇÃO TERRITORIAL...

109

Exploração Agrícola: Que Ajustamentos nas Variáveis dos Instrumentos de Inquirição Estrutural do INE? (Joaquim Cabral Rolo)...

111

Avaliação da Formação dos Sapadores Florestais (Catarina Pereira)...

129

A Defesa da Floresta Contra Incêndios (DFCI) (Francisco Castro Rego)...

139

Índices de Risco de Incêndio Florestal e sua Aplicação (Luciano Lourenço)...

147

Reflexões sobre Análise Social e Empresarial de Investimentos (Nuno Cabral)...

163

A Agenda Agrorrural no Parlamento: A Política, a Retórica e os Processos de Decisão (Miguel Freitas)...

169

Gestão Pública de Instrumentos de Política (Tito Rosa)...

185

(4)

Estratégia para a Internacionalização do Setor Agroalimentar e Florestal Português –

Relato de uma Experiência de Governação (António Serrano)...

191

Coesão Territorial, Resiliência e Inovação Social: O Programa Rede Social (José Manuel Henriques)...

199

Cultura e Artes no Território Rural Português: Movimentos para a Construção de uma Sinfonia (Rui Godinho)...

215

Desafios da Governança em Meio Rural (José Ferragolo da Veiga)...

231

III. FUTURO DOS TERRITÓRIOS RURAIS – INOVAÇÃO E PROSPETIVA...

247

As Geografias Rurais do Antropoceno: Ainda uma Terra Incognita? (João Ferrão)...

249

Pobreza e Alterações Climáticas – Reflexões, Recolhas e Caminhos para um Mundo Melhor (Rui Barreiro)...

259

A Ruralidade do Século XXI – Em Busca do Lado Virtuoso da Baixa Densidade (António Covas)...

269

Para uma Nova Economia dos Territórios Rurais (Domingos Santos)...

283

Um Olhar Prospetivo sobre o Sul de Portugal (Carlos Figueiredo)...

293

A Difícil Afirmação das Regiões Periféricas e a Valorização dos Recursos Territoriais: O Papel das Instituições de Ensino Superior (João Guerreiro)...

303

Políticas de Desenvolvimento em Territórios de Baixa Densidade: a Propósito dos 25 Anos de Trabalho da OCDE sobre Políticas para as Áreas Rurais (Paulo Areosa Feio)...

315

O sistema sectorial de inovação agro-florestal em Portugal: Situação e tendências evolutivas (Manuel Mira Godinho)...

329

Anexo: Estudos Realizados pelo IESE no Âmbito da Agricultura, Floresta e Desenvolvimento Rural, entre 1996 e 2016...

339

(5)

As Geografias Rurais do Antropoceno:

Ainda uma Terra Incognita?

João Ferrão

Antropoceno: uma nova era geológica marcada pela influência humana

O

texto de apenas uma página publicado por Paul J. Crutzen na prestigiada revista Nature em 2002, sete anos após ter sido agraciado com o prémio Nobel de química, marca simbolicamente o início do debate científico sobre a existência de uma nova era geológica designada por Antropoceno94.

Na verdade, e como salienta aquele autor, esta denominação não é recente, remontando a 1873, quando um geólogo italiano, Antonio Stoppani, se referiu à influência do homem sobre o ambiente como uma «nova força telúrica que pode ser comparada, em força e universalidade, às maiores forças da terra» (Crutzen, 2002: 23). Desde então, a definição desta nova era geológica associada ao crescente impacto das atividades humanas na evolução do sistema terra – ou, dito de outra forma, à importância cada vez maior dos efeitos de fatores antropogénicos no ambiente – tem sido alvo de uma controvérsia científica, com expressão significativa na comunicação social e em outros domínios não académicos, que está longe de ter terminado.

O texto de Steffen, Crutzen e McNeill (2007), provocatoriamente intitulado, ainda que de forma inter-rogativa, «The Anthropocene: Are humans now overwhelming the great forces of nature?», expõe de forma clara a argumentação que justifica e caracteriza a emergência do Antropoceno como nova era geológica, sucedendo à academicamente bem estabelecida época do Holoceno.

Recorrendo a uma visão histórica da influência do homem sobre o sistema Terra desde o advento da agricultura, ocorrido há cerca de 10-12 mil anos, os autores defendem quatro ideias essenciais. A primeira ideia prende-se com a constatação de que, a partir da revolução industrial de finais do século XVIII / início do século XIX, baseada no uso de combustíveis fósseis, os seres humanos tor-naram-se uma força geofísica global capaz de condicionar significativamente a evolução do funciona-mento do planeta terra.

A segunda relaciona-se com o facto de o grau de concentração de CO2na atmosfera poder ser

consi-derado um indicador adequado para medir as alterações ocorridas como consequência do crescimento exponencial de atividades humanas baseadas em sistemas energéticos intensivos em combustíveis fósseis (carvão e, mais tarde, petróleo e gás).

A terceira ideia é que a era do Antropoceno se encontra hoje às portas de uma nova fase, após a etapa industrial (ca. 1800-1945), caracterizada pelo recurso sistemático a energias fósseis num contexto

As Geografias Rurais do Antropoceno: Ainda uma Terra Incognita?

94 - Esse texto retoma o essencial das ideias de um outro escrito, de pouco mais de uma página, publicado dois anos antes na newsletter do IGBP – International Geos-phere--Biosphere Programme (Crutzen e Stoermer, 2000). O facto de o texto publicado na

Nature ter sido retomado a

par-tir de um escrito incluído num simples boletim informativo de um programa mostra a relevância científica que imediatamente foi atribuída ao conceito de Antropoceno.

(6)

de modernização técnico-científica e de forte expansão do modelo de crescimento urbano-industrial, e a etapa da Grande Aceleração (1945 – ca. 2015), marcada pelo agravamento do uso de recursos finitos, da emissão de CO2, do aquecimento global, da degradação ambiental e da extinção de

numerosas espécies animais e vegetais.

A última ideia, é que a terceira etapa do Antropoceno em que hoje nos encontramos suscita respostas em torno de quatro opções: i) continuidade (business as usual): desvalorização da gravidade do problema e crença na capacidade de autorregulação da economia); ii) mitigação: regresso ao período pré-Antropoceno através de soluções tecnocientíficas; iii) geoengenharia: manipulação crescente dos processos de funcionamento do sistema terrestre, acompanhada pelo reforço do papel regulador das instituições internacionais; e, finalmente, iv) uma perspetiva alternativa que salienta o papel dos seres humanos como cuidadores do sistema terrestre: aumento da consciencialização dos impactos de origem humana na evolução do nosso planeta, atribuição de maior centralidade às questões éticas associadas à produção, avaliação dos efeitos colaterais não esperados resultantes das perspetivas anteriores, sobretudo das soluções de geoengenharia.

Não é nosso objetivo reproduzir aqui a controvérsia que a proposta de Antropoceno como nova era geológica tem suscitado95, mesmo depois de a Sociedade Geológica de Londres a ter sancionado

(Gibson-Graham e Roelvink, 2009: 320). Interessa-nos, sim, debater em que medida a consolidação desta nova era geológica poderá criar novas geografias, influenciando de forma diferenciada as características atuais dos vários territórios rurais.

O Antropoceno cria novas geografias rurais?

Sabemos que o modelo urbano-industrial e, mais recentemente, o modelo urbano-financeiro privilegiaram duplamente as cidades: por um lado, encontraram nas áreas urbanas as condições infraestruturais, socioculturais, económicas e institucionais para se desenvolverem; por outro, estimu-laram interdependências assimétricas entre as áreas rurais e os centros urbanos, privilegiando as necessidades de consumo e de produção verificadas nestes últimos em detrimento das condições de sustentabilidade dos processos de desenvolvimento nas primeiras, através de mecanismos tão distintos como o êxodo rural ou a delapidação de recursos naturais (ver, por exemplo, a obra editada por Brenner, 2014).

Desde o início da revolução industrial do século XIX que as cidades invadem fisicamente os campos, substituem-nos parcialmente por ocupações de tipo urbano, integram-nos funcionalmente através de usos e de destinos urbanos. Primeiro por destruição, depois por subordinação, mais tarde por degra-dação ou mesmo por abandono, os processos de modernização urbano-industrial e urbano-financeira condicionam de tal modo o desenvolvimento das áreas rurais que estas tendem a ser classificadas

III. FUTURO DOS TERRITÓRIOS RURAIS – INOVAÇÃO E PROSPETIVA

95 - Ver, por exemplo, o artigo crítico da autoria de Malm e Hornborg (2014), significativamente publicado no primeiro número do periódico The Antropocene

Review.

(7)

com base em tipologias que têm a distância geográfica às cidades mais próximas ou o grau de inte-gração funcional em áreas de influência urbana como critérios essenciais: áreas rurais centrais, peri-féricas e marginais; áreas rurais sob influência direta de metrópoles, cidades médias ou pequenas aglomerações; etc. Num contexto de modernização em que o homem procura controlar e ultrapassar os condicionalismos da natureza, a “sombra urbana”, física ou funcional, surge como o fator que mais influencia a evolução das áreas rurais.

Sabemos como, nos campos, as geografias da modernidade destruíram, revitalizaram ou substituíram as geografias tradicionais seculares (Ferrão, 2016). Mas as geografias do Antropoceno, que são uma consequência da modernidade diferida no tempo, vão agora colocar em causa parte das geografias que a própria modernidade produziu.

De que novas geografias rurais estamos a falar? Se relembrarmos as quatro opções referidas por Steffen, Crutzen e McNeill (2007) para a terceira etapa do Antropoceno – continuidade, mitigação, geoengenharia e seres humanos cuidadores do sistema terra – é possível observar, nuns casos, ou antever e imaginar, noutros, algumas dessas geografias.

As geografias relacionadas com os cenários de inação (continuidade) ou de mitigação tendem a ser, a curto e mesmo médio prazo, muito idênticas, já que mesmo que as medidas de mitigação conse-guissem interromper imediatamente e por completo a emissão de gases com efeito de estufa, os im-pactos dos gases já emitidos continuariam a fazer-se sentir no nosso planeta durante algumas décadas (Santos, 2012).

De entre os vários processos associados à mudança global que o Antropoceno representa, as alterações climáticas alcançaram uma importância ímpar tanto no âmbito académico como nos âmbitos político e mediático e mesmo junto dos cidadãos. Os estudos realizados, o conhecimento produzido e a informação disponibilizada neste domínio, bem como o seu reconhecimento político e social, tornam as alterações climáticas uma janela privilegiada para observar e entender uma parte relevante do significado e das implicações desta nova “era dos humanos” (Castree, 2015), o Antropoceno.

O IPCC (acrónimo inglês de Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), criado no âmbito das Nações Unidas em 1988, tem vindo a publicar sucessivos relatórios que incluem a definição de cenários climáticos e a identificação dos respetivos impactos em diferentes áreas do globo. Recorrendo a metodologias idênticas, o mesmo tipo de exercício tem sido efetuado a escalas mais finas, no âmbito de continentes, de países, de regiões e mesmo no de cidades.

O mapa das vulnerabilidades regionais às alterações climáticas elaborado ao nível das NUT III dos países da União Europeia para 2009 ressalta a situação particularmente delicada em que se encontra

As Geografias Rurais do Antropoceno: Ainda uma Terra Incognita?

(8)

o sul do nosso país, a que se adiciona ainda parte do nor-deste interior (Figura 1).

Também Portugal dispõe já de diversos estudos sobre os prováveis impactos das alterações climáticas, sob dife-rentes cenários, que permitem verificar a existência de uma diversidade regional considerável no que se refere à incidência de tendências globais, como o aumento médio de temperatura, a diminuição da pluviosidade ou a ocorrência de fenómenos extremos (ondas de calor e de frio, queda intensa e concentrada de precipitação, for-mação de tornados, etc.).

Uma visão mais ampla pode ser-nos dada pelos estudos sobre os processos de desertificação. O ponto 2 do Pro-grama Nacional de Ação Nacional de Combate à Deserti-ficação (Resolução do Conselho de Ministros n.º 78/2014, de 24 de dezembro) relembra o conceito de desertificação adotado pela Convenção das Nações Uni-das de Combate à Desertificação (CNUCD): «degradação das terras nas zonas áridas, semiáridas e sub-húmidas secas, em resultado da influência de vários fatores, in-cluindo as variações climáticas e as atividades huma-nas». A desertificação é, pois, o resultado de efeitos diretos e indiretos da ação humana, englobando, mas ul-trapassando, os impactos decorrentes das alterações cli-máticas. A Figura 2 permite visualizar a variação do índice de aridez (IA) / índice de suscetibilidade à desertificação (SD) – que inclui aspetos relacionados com clima, solos, vegetação e usos do solo – entre os períodos 1960-1990 e 2000-2010. As áreas não suscetíveis que entretanto passaram a suscetíveis refletem bem a progressão deste processo, verificada num prazo de poucas décadas. Curiosamente, ambas as figuras parecem indiciar o regresso, ainda que parcial e por razões distintas das iniciais, do tradicional contraste Norte / Sul ou, nas palavras de Orlando Ribeiro (1986), entre o Portugal atlântico e o Portugal mediterrâneo (que inclui a Terra Quente transmontana). Este contraste

III. FUTURO DOS TERRITÓRIOS RURAIS – INOVAÇÃO E PROSPETIVA

Figura 1. Vulnerabilidade potencial às alterações climáticas, 2009

Fonte: ESPON CLIMATE – Climate Change and Territorial Effects on Regions and Local Economies in Europe, Final Report | Version 31/5/2011, Executive Summary: 7. http://www.espon.eu/export/sites/default/Documents/Projects/AppliedResearch/ -CLIMATE/ESPON_Climate_Final_Report-Part_A-ExecutiveSummary.pdf Nível regional: NUTS III Origem dos dados: ver as fontes de informação relativas às dimensões "impacto" e "capacidade de adaptação". © EuroGeographics Association for administrative boundaries *Os impactos potenciais resultam da combinação da exposição regional às alterações climáticas com os dados mais recentes, ponderados por dimensão, relativos à sensibilidade às alterações climáticas em termos físicos, económicos, sociais, ambientais e culturais.

Impacto negativo elevado (0.5 - 1.0) Impacto negativo médio (0.3 - <0.5) Impacto negativo baixo (0.1 - <0.3) Impacto marginal ou nulo (>-0.1 - <0.1) Impacto positivo baixo (-0.1 - -0.25) Inexistência de dados Dados incompletos

(9)

marcou durante séculos o país rural agrícola, mas tem vindo a per-der relevância desde a década de 50 do século XX, primeiro a favor da oposição litoral-interior (típica da fase de modernização urbano-industrial do país) e depois como consequência do desigual grau de inserção dos territórios em redes e em mercados interna-cionais (participação nos processos de globalização) (Ferrão, 2002).

De uma forma mais empírica, tendo por base a experiência e as perceções dos diferentes membros das comunidades locais, é igualmente possível antever as geografias rurais do Antropoceno já hoje em formação e que ten derão a agravar-se caso prevaleçam as opções de continuidade (cenário de inação) ou de mitigação an-teriormente referidas. No âmbito do projeto ClimAdaPT.Local96, que

visa estimular a elaboração de estratégias municipais de adapta-ção às alterações climáticas, numa amostra de vinte e seis conce-lhos do país (Continente e ilhas), têm-se realizado workshops de envolvimento de stakeholders que mobilizam decisores e técnicos das autarquias e representantes da administração central e regio-nal, da sociedade civil, da economia e da academia (Schmidt et al., 2015). Um dos resultados dessas reuniões é a formulação de um

diagnóstico partilhado dos eventos climáticos principais em cada município e a identificação dos res-petivos impactos considerados de maior relevância.

Os diagnósticos efetuados em municípios rurais permitem efetuar uma síntese dos aspetos mais salientados, tanto em termos de eventos climáticos como dos seus impactos atuais e previsíveis (Quadro 1).

Do ponto de vista das geografias rurais do Antropoceno, são particularmente interessantes os elemen-tos que poderão induzir alterações significativas nos elemenelemen-tos básicos água, solo e ar, nos ecossis-temas e na biodiversidade, nos usos e nas formas de ocupação do território, nas atividades económicas, como as explorações agro-silvo-pastoris, a floresta e o turismo, ou, ainda, nas paisagens, todos eles estruturantes das geografias rurais. Sendo uma síntese construída a partir de realidades locais distintas, o conteúdo do Quadro 1 não diferencia a desigual incidência dos diferentes aspetos nos vários municípios estudados. Mas o que importa aqui ressaltar é o modo como as novas geografias rurais (ou, pelo menos, algumas delas) poderão vir a ser, num futuro próximo, mais condicionadas por fenómenos naturais de origem antropogénica do que pelas suas características endógenas ou pela

As Geografias Rurais do Antropoceno: Ainda uma Terra Incognita?

Figura 2. Progressão das áreas suscetíveis à desertificação entre 1960-1990 e 2000-2010

Fonte: Rosário, Lúcio do (2011), Indicadores de impacte globais e nacionais propostos pela CNUCD. Propostas do PANCD 2011 / 2020 para Portugal, Seminário Nacional Indicadores de Combate à Desertificação para Portugal,

Indicadores de Impacte da CNUCD e Resultados do DesertWatch Extensão,

Lisboa, Auditório da DGOTDU, 28 e 29 de setembro de 2011.

http://www.icnf.pt/portal/naturaclas/ei/unccdPT/pancd/resource/ficheiros/ -111004_dw-ext-presentations/proposta-de-indicadores-de- impacto-globais-e-nacionais-propostos-pela-cnucd

▀Áreas não susceptiveis que se mantiveram

▀Áreas não susceptiveis passaram a susceptiveis ▀Áreas susceptiveis que se

mantiveram

96 - http://climadapt-local.pt/

(10)

forma como se integram funcionalmente na “sombra urbana” das cidades e das metrópoles mais próximas ou em mercados globais. Se é possível antecipar alguns aspetos das geo-grafias rurais do Antropoceno sob a prevalência das opções de continuidade e de mitigação, já a situação é bem mais complexa no que se re-fere às duas outras opções: bioengenharia e seres humanos como cuidadores do nosso pla-neta. Exemplos circunscritos, a partir dos quais seria abusivo estabelecer quaisquer generaliza-ções, dão-nos, ainda assim, algumas pistas. As soluções de bioengenharia, que Mardsen (2013) associa ao paradigma da bioeconomia, têm produzido novas ruralidades de enclave, re-correndo a técnicas de engenharia genética de plantas e de animais, e criando, por vezes, ex-tensas superfícies de “paisagens transgénicas” em torno de monoproduções, de que a soja constitui, talvez, o exemplo mais conhecido. Mas é difícil conceber uma geografia diversifi-cada, cobrindo o conjunto das áreas rurais, ex-clusivamente construída a partir de soluções de bioengenharia e de bioeconomia. A possibili-dade da sua ocorrência generalizada parece aproximar-se de uma distopia que, como tantas outras, é mais anunciada do que concretizada. A sua possível extensão, eficácia e durabilidade são, de momento, uma verdadeira terra

incog-nita.

Da mesma forma, existem hoje ruralidades de enclave construídas a partir de princípios de integração harmoniosa entre os seres humanos e o sistema Terra. As soluções assentes em iniciativas coletivas de base local, associáveis ao que Marsden (2013) designa por paradigma ecoecológico, e que encon-tram expressão tanto no âmbito teórico (com destaque para a agroecologia proposta por Gliessman,

III. FUTURO DOS TERRITÓRIOS RURAIS – INOVAÇÃO E PROSPETIVA

Quadro 1. Alterações climáticas em áreas rurais: exemplos dos impactos considerados mais significativos pelos agentes locais

Fonte: elaboração própria, a partir de vários Relatórios dos Workshops de Envolvimento de Stakeholders do projeto ClimAdaPT.Local, realizados em diversos municípios do Continente no último trimestre de 2015, coordenados pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em colaboração com a Faculdade de Ciências da mesma universidade. Para mais informação sobre este projeto, ver http:// -climadapt-local.pt/

Principais eventos climáticos

Aumento da temperatura média e diminuição da precipitação Maior incidência de fenómenos extremos Impactos (exemplos)

Seca de aquíferos, diminuição das reservas e da qualidade da água

Afetação da produção agropecuária e florestal (aumento dos custos de produção, diminuição da produtividade, etc.)

Aumento de doenças e pragas Aumento de risco de incêndios

Aumento do consumo de água e dos custos de rega Migração de espécies para norte

Redução da biodiversidade Degradação de ecossistemas

Alteração das épocas de colheita agrícola e de reprodução animal

Alteração das espécies agrícolas, florestais e animais Alteração de usos do solo e da paisagem Cheias, inundações

Deslizamento de vertentes Erosão / degradação do solo Danos materiais

Afetação dos níveis freáticos (p. e., contaminação) Destruição de ecossistemas

Incêndios florestais Perda de colheitas

Aumento de morbilidade e mortalidade (sobretudo idosos)

Maior procura de serviços de saúde

Aumento de consumo de energia com climatização Novas necessidades de conforto térmico do edificado Danos materiais (infraestruturas, equipamentos, etc.) Danos nas produções agrícolas

Danos nas habitações com dificuldade de recuperação em situações de maior fragilidade social

Queda de árvores

Diminuição da resiliência das populações mais idosas e geograficamente mais dispersas

Secas

Atenuação das estações do ano

Precipitação excessiva

Ondas de calor e de frio

Tornados / tempestades

(11)

1990) como em experiências de base comunitária, parecem pronunciar a opção da terceira etapa do Antropoceno desejada por Steffen, Crutzen e McNeill (2007). Mas a natureza localizada ou até localista de muitas destas experiências, ainda que integradas em movimentos globais e em redes translocais, coloca-as, de momento, entre a utopia e, como no caso anterior, uma terra incognita.

O Antropoceno cria(rá) novas geografias rurais? Sim, na verdade já está a fazê-lo. Mas, de momento, a evolução e o rumo que essas geografias irão tomar, bem como as formas de combinação com geo-grafias rurais anteriores, apenas podem ser entrevistos, pressentidos, imaginados ou até desenhados, mas não previstos e anunciados. A força relativa das quatro opções apresentadas no futuro é global-mente incerta e será, por certo, marcada por diferenças nacionais e regionais consideráveis. A própria evolução do Antropoceno, isto é, das consequências da influência da ação de indivíduos e de socieda-des enquanto agentes geofísicos globais, encontra-se rodeada de dúvidas e de perplexidasocieda-des. Antropoceno: desastre, controlo ou oportunidade?

Enquanto constructos sociais, os territórios refletem fatores estruturais de diversa ordem (o território como produto) e, ao mesmo tempo, constituem contextos que produzem novas realidades (o território como condição). Uma leitura imediatista das geografias do Antropoceno e das mudanças globais a ele associadas focaliza a nossa atenção na primeira perspetiva: a “nova era humana”, pela força dos seus impactos, produz novos territórios, novas geografias. Mas uma visão mais reflexiva apontará, inevita-velmente, para a relevância da segunda perspetiva, com o objetivo de encontrar novas respostas societais e de conceber agendas políticas inovadoras e transformadoras.

A visão apocalítica de Antropoceno como desastre, como colapso da modernidade e até como fonte de autodestruição (da própria época do Antropoceno), é equacionada por McGrath (2014: 1): «vemos a impossibilidade de [exercer um] total domínio científico e tecnológico sobre a natureza, [do prosse-guimento de] um crescimento económico potencialmente infinito apesar de os recursos serem finitos, [da persistência da] noção de que uma espécie pode transformar e destruir sistematicamente o seu próprio habitat sem se confrontar com o desastre que ela própria criou». Para muitas áreas rurais, as “ruínas do Antropoceno tardio”, para retomar o título do texto a que nos reportamos, serão, neste caso, a geografia inevitável, se prevalecer o cenário da inação, ou uma geografia provável, num cenário de recurso exclusivo a soluções de mitigação.

Talvez seja preferível considerar que mesmo os territórios rurais mais expostos aos impactos negativos do Antropoceno poderão transformar-se temporariamente em lugares mortos-vivos (undead places), isto é, territórios que, como as casas desocupadas, se encontram num interlúdio entre aquilo que já foram e aquilo que ainda não são, entre a decadência, ou até a morte, e o renascimento (Romero, 2014).

As Geografias Rurais do Antropoceno: Ainda uma Terra Incognita?

(12)

A ideia de renascimento permite retomar o debate sobre as duas últimas opções em confronto: a dis-topia da bioengenharia e a udis-topia da sociedade cuidadora do sistema Terra, o controlo humano por manipulação genética, no primeiro caso, a coevolução entre sistemas humanos e sistemas naturais, no segundo.

Como nos relembra Dalby (2007: 113), os geógrafos – e, acrescentamos nós, as ciências sociais em geral – são responsáveis por uma visão “terrestrocêntrica”, ao privilegiar o conhecimento autónomo da terra e do que aí se passa «em detrimento de um entendimento dos seres humanos como parte in-tegrante de uma biosfera que é dominada pelos oceanos e pela atmosfera». Entender as geografias rurais do Antropoceno implica essa refocalização. Mas supõe, também, práticas éticas a favor de uma economia que «envolva o ser-em-comum de humanos e do mundo para-além-do-humano» (Graham e Roelvink, 2010: 320).

É à luz dessas práticas éticas que devem ser avaliadas, enquanto opções alternativas, a via do controlo genético e a via da coevolução de sistemas humanos e sistemas naturais. O reconhecimento do valor destas novas práticas éticas permite, por sua vez, um olhar mais otimista sobre o Antropoceno e as suas geografias rurais. Afinal, talvez esta nova “era dos humanos” seja um bom pretexto e uma exce-lente oportunidade para construir novas ecologias rurais (Cooke e Lane, 2015), baseadas numa nova relação entre humanos e não-humanos, entre a sociedade e os sistemas biofísicos, com tradução em formas mais reflexivas de uso, ocupação e gestão do solo, e capazes de promover uma maior susten-tabilidade territorial nas várias geografias das áreas rurais.

«Who will speak for the Earth, and how, will it become one of the most crucial questions of the 21st century?»: este é o repto lançado por Castree (2015: 245) aos seus colegas geógrafos, mas que deve ser levado a sério por todos os cientistas sociais, com o consequente envolvimento em estudos interdisciplinares e mesmo transdisciplinares sobre o futuro do planeta. Talvez então seja possível desenvolver novas agendas de investigação e influenciar decisões e políticas, contribuindo para a construção de novas geografias do mundo rural, de acordo com valores, meios e fins consentâneos com uma ótica de responsabilidade virtuosa (Bina e Vaz, 2011; Castree, 2015).

Bibliografia

Bina, O. e Vaz, S. G. (2011), Humans, environment and economies: from vicious relationships to virtuous responsibility, Ecological Economics, 72: 170-178.

Brenner, N. (ed.) (2014), Implosions/Explosions. Towards a Study of Planetary Urbanization, Berlim, Jovis.

Castree, N. (2015), Geographers and the discourse of an earth transformed: influencing the intellectual weather or changing the intellectual limate?, Geographical Research, 53(3): 244-254.

III. FUTURO DOS TERRITÓRIOS RURAIS – INOVAÇÃO E PROSPETIVA

(13)

Cooke, B. e Lane, R. (2015), Re-thinking rural-amenity ecologies for environmental management in the Anthropocene, Geoforum, 65: 232-242.

Crutzen, P. J. (2002), Geology of mankind, Nature, 415.6867: 23.

Crutzen, P. J. e Stoermer, E. F. (2000), The Anthropocene, Global Change Newsletter, 41: 17-18.

Dalby, S. (2007), Anthropocene geopolitics: globalisation, empire, environment and critique, Geography Compass, 1.1: 103-118. Ferrão, J. (2002), Portugal, três geografias em recombinação: espacialidades, mapas cognitivos e identidades territoriais,

Luso-topie, 2002/2: 151-158.

Ferrão, J. (2016), Ruralidades e território no capitalismo contemporâneo: uma visão de longa duração sobre Portugal, Fernando Luís Machado, António Firmino da Costa e Ana Nunes de Almeida (orgs.), Sociologia e Sociedade. Estudos de Homenagem a João Ferreira de Almeida, Lisboa, Mundos Sociais.

Gibson-Graham, J. K. e Roelvink, G. (2010), An economic ethics for the Anthropocene, Antipode, 41(1): 320-346.

Gliessman, S. R. (ed.) (1990), Agroecology: Researching the Ecological Basis for Sustainable Agriculture, Nova Iorque, Springer. Malm, A. e Hornborg, A. (2014), The geology of mankind? A critique of the Anthropocene narrative, The Anthropocene Review,

Vol. 1(1): 62-69.

Marsden, T. (2013), Sustainable place-making for sustainability science: the contested case of agri-food and urban-rural relations, Sustainability Science, 8 (2): 213-226.

McGrath, J. (2014), Apocalypse, or, the logic of late Anthropocene ruins, Cross-Currents: East Asian History and Culture Review, E-Journal n.º 10 (março 2014). http://cross-currents.berkeley.edu/e-journal/issue-10 (acedido em 18 de janeiro de 2016). Ribeiro, O. (1986), Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora.

Romero, C. Losada (2014), Undead Places. Spectral Ontology of Ghostly Rural Areas.

http://www.inter-disciplinary.net/at-the-interface/wp content/uploads/2014/05/romerodiaspaper.pdf (acedido em 18 de janeiro de 2016)

Santos, F. D. (2012), Alterações Globais: Os Desafios e os Riscos Presentes e Futuros, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Schmidt, L.; Ferrão, J.; Guerra, J.; Alves, A.; Baixinho, A. e Ferreira, J. Gomes (2015), Adaptação às alterações climáticas nos municípios: um processo de aprendizagem social, João Ferrão e Ana Horta (eds.), Ambiente, Território e Sociedade. Novas Agendas de Investigação, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais: 125-131.

Steffen, W.; Crutzen, P. J. e McNeill, J. R. (2007), The Anthropocene: are humans now overwhelming the great forces of nature, AMBIO: A Journal of the Human Environment, 36 (8): 614-621.

Nota biográfica

Doutorado em Geografia Humana, investigador coordenador do ICS-U Lisboa e especialista em estudos urbanos, ordenamento do território e desenvolvimento regional e local. Coordena o Grupo de Investigação ´Ambiente, Território e Sociedade` do ICS. Foi avaliador de políticas para o Governo português e a Comissão Europeia, consultor da OCDE, presidente da Associação Por-tuguesa para o Desenvolvimento Regional e Secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades. É membro do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS) e pró-reitor da Universidade de Lisboa.

As Geografias Rurais do Antropoceno: Ainda uma Terra Incognita?

(14)

Imagem

Figura 1. Vulnerabilidade potencial às alterações climáticas, 2009
Figura 2. Progressão das áreas suscetíveis à desertificação entre 1960-1990 e 2000-2010

Referências

Documentos relacionados

Controle químico da traça do tomateiro Scrobipalpula absoluta (Meyrick, 1917) (Lepidoptera: Gelechiidae) no Submédio São Francisco.. Anais da Sociedade Entomológica do

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

Os equipamentos necessários para pesquisa conjunta e para projetos experimentais ao amparo do Acordo Básico de Cooperação Técnica, Científica e Tecnológica

Isso vem de Mato Grosso, isso vem da Rondônia, isso virá mais tarde do Acre, mas virá também do Amazo- nas, de Humaitá e Lábrea, porque em Hurnaitá e Lábrea o BNDES já está

The purpose of this study is to recognize and describe anatomical variations of the sphenoid sinus and the parasellar region, mainly describing the anatomy of

Mais uma característica importante do parque habitacional português prende-se com a pouca atractividade do mercado de arrendamento, que pode ser explicada pela falta de procura

Tendo-se em vista que a comparação dos resultados das crianças em função do tipo de escola indicou que havia diferenças estatisticamente significantes entre as médias das