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PLANEJAMENTO URBANO ESTATAL E EMPRESARIAL: ENTRE AS POLÍTICAS HABITACIONAIS E O MERCADO IMOBILIÁRIO NAS CIDADES

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Edição 27, volume 1, artigo nº 3, Outubro/Dezembro 2013 D.O.I: 10.6020/1679-9844/2703

Página 35 de 213

PLANEJAMENTO URBANO ESTATAL E

EMPRESARIAL:

ENTRE AS POLÍTICAS HABITACIONAIS E O

MERCADO IMOBILIÁRIO NAS CIDADES

URBAN PLANNING STATE AND COMPANY:

BETWEEN POLICIES OF HOUSING AND REAL

ESTATE MARKET IN THE CITIES

Raquel Chaffin Cezario1, Rodrigo da Costa Caetano2, Geraldo Márcio Timóteo3

1

Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UE NF, Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brasil. raquelchaffin@yahoo.com.br

2

Universidade Estadual do Norte Fluminens e Darcy Ribeiro - UENF, Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brasil. profrodrigo@uenf.br

3

Universidade Estadual do Norte Fluminens e Darcy Ribeiro - UENF, Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brasil. geraldotimoteo@gmail.com

Resumo – Tendo em vista a importância de pensar as questões

habitacionais e do planejamento urbano, o artigo contempla considerações sobre o direito à cidade e o direito à moradia, bem como salienta a implementação do Estatuto da Cidade, que estabelece o Plano Diretor Municipal como o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Ressalta-se a importância do poder público (Estado em seus diferentes níveis de atuação governamental), um dos articuladores do espaço urbano, como um agente que deve preconizar o uso e a ocupação do solo por meio da gestão eficiente e mais democrática, buscando minimizar os mecanismos de segregação urbana ao ajustar o planejamento às realidades dos municípios brasileiros.

Palavras-chave: Moradia. Planejamento urbano. Estado. Mercado. Território.

AbstractConsidering the importance of think the housing issues and of the urban planning, the paper contemplates considerations about the right to the city and the right to housing, as well emphasizes the implementation of the Estatuto da Cidade (City Statue), which establishes the Municipal

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Página 36 de 213 Director Plan how the basic instrument of development policy and urban expansion. Stressing the important of the public power (State , at different levels of government action), one of the articulators of the urban space, how one agent that should to profess the use and the occupation of the soil by the efficient management and more democratic, looking for minimize the urban segregation mechanisms to adjust the planning to realities of the Brazilian municipalities.

Keywords: Housing. Urban Planning. State. Market. Territory.

1. Introdução

A situação de moradia para os estratos inferiores da população se configura como um grande desafio no âmbito das discussões entre governos, organizações da sociedade civil e meios acadêmicos. Nas discussões acerca das condições de moradia estão os possíveis mecanismos de amenização da precariedade para as áreas urbanas, não restritos à moradia, mas abrangendo também a ausência de serviços públicos e de infraestrutura, principalmente nas periferias dos centros urbanos. Assim, este artigo traz à baila desde o direito à moradia até o direito à cidade.

A garantia do direito à moradia, a partir da década de 1940 nos países capitalistas com economias centrais, exigiu uma alteração em suas bases fundiárias. Para tanto, tais países realizaram uma reforma urbana embasada em três pilares: reforma fundiária, extensão de uma infraestrutura urbana capaz de atender às necessidades de produção em massa de moradias e financiamento subsidiado à habitação. Essas e outras medidas regularam o salário e o preço da moradia, aumentando o poder de compra dos assalariados, bem como a produção de habitações (MARICATO, 1997).

Tal aumento massivo em habitações, típico do modo de produção fordista, também implicou na regulação do uso do solo e do financiamento. O resultado desse enorme processo de produção, de acordo com Maricato (1997), foi o surgimento de subúrbios americanos e cidades expandidas europeias, que garantiram o direito à moradia, mas não o direito à cidade.

Historicamente, a ocupação do solo urbano pelos estratos inferiores da população se realizou em locais desprezados pela elite. No caso brasileiro é

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Página 37 de 213 importante salientar que um dos aspectos mais marcantes da precarização da moradia foi a velocidade em que se processou a mudança de uma sociedade essencialmente rural para outra sociedade caracterizada por um forte índice de urbanização, onde eram praticamente nulas as normas reguladoras para o seu avanço (OLIVEIRA, 2009).

No início do século XX, o efetivo processo de urbanização brasileira contou com uma forte intervenção estatal na problemática urbana. Nesse período, tais intervenções priorizavam a revitalização da paisagem nas regiões centrais das grandes cidades, de modo a amenizar o aspecto de pobreza. As políticas intervencionistas sempre estiveram atreladas à histórica herança fundiária. Por conseguinte, o processo de “modernização conservadora1” transferiu para as

cidades a pobreza que assolava o ambiente rural, e se agravou pelo fato do Estado brasileiro ter concentrado seus investimentos na consolidação de um parque industrial emergente, renegando as necessidades urbanas mais imediatas da população (OLIVEIRA, 2009).

A análise da forma de ocupação urbana dos estratos inferiores da população, evidenciada no subúrbio, ou no entorno periférico (em oposição referencial aos centros) e nas favelas, ajuda a entender o padrão segregado de habitação que separou física e simbolicamente os mais pobres dos mais ricos. A expansão das cidades e a formação das Regiões Metropolitanas no Brasil acentuaram essa segregação socioespacial, devido à própria dualidade da urbanização tardia em um país “periférico”.

Essa separação física e simbólica dificulta a sociabilidade conjunta, onde a intensa fragmentação das identidades muda o caráter do espaço público e dificulta a possibilidade de uma sociedade mais justa e democrática. O Brasil se constituiu, assim, com cidades desiguais e segregadas, nas quais as camadas abastadas se

1

De acordo com Domingues (2002), “modernização conservadora” é um conceito elaborado por Barrington Moore Jr. (1966), cujo grande exemplo ocorreu na Alemanha com os Junk ers controlando a transição para o mundo moderno e industrializado sem perder o domínio do campo e mantendo suas propriedades oriundas do período feudal. Em sua abordagem, Moore Jr. demonstra que as vias socialista revolucionária, democrática e autoritária foram identificadas como três possíveis caminhos de chegada à modernidade. De forma resumida, pode -se compreender esse conceit o como uma rec usa às mudanças fundamentais na propriedade da terra, onde as tradicionais elites agrárias forçaram uma burguesia relutant e e avessa aos processos de democratização a uma modernizaç ão sob a liderança e os interesses dos proprietários agrários. No Brasil, esse conceito foi utilizado para explicar o des envolvimento econômico após 1964, quando o país se “modernizou” sem destruir elementos tradicionais, mant endo as estruturas sociais (BECKE R E E GLER, 1993), e com o poder político centrado ainda nos proprietários rurais.

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Página 38 de 213 concentram em bairros com boa disponibilidade de infraestrutura e serviços, enquanto que as classes menos favorecidas vivem em condições precárias, nas periferias pobres e desprovidas de serviços básicos.

Cabe ressaltar a importância de pensar um planejamento urbano que contemple o direito à moradia e o direito à cidade, na tentativa de não apenas minimizar, mas resolver alguns problemas historicamente incrustados na sociedade brasileira. A partir dessa problemática, o Estatuto da Cidade deve ser considerado como um importante instrumento para o planejamento urbano, que é uma emergência, a começar pela gestão dos centros urbanos, para garantir que todos os agentes transpassem o abismo que dificulta a realização plena de um cidadão.

2. A Gestão dos Centros Urbanos: do Código Civil ao Estatuto da

Cidade

Assim como os filmes, os planos de int ervenç ão urbana se apresent am segundo um estilo, isto é, um viés narrativo ou mesmo uma subordinação à visão de mundo de quem dirige ou decide os caminhos da produç ão. Podem ser dramas ou comédias. Acabam, desta forma, assumindo um estilo a partir da referência das diversas classes sociais que vivem a cidade (GOMES FILHO, 2003, p. 1).

Os planejamentos urbanos estratégicos são produtos dos sucessivos e dos intensos conflitos historicamente travados no espaço urbano. Devem ser o resultado da capacidade de articulação dos cidadãos que se relacionam no território, sendo uma ferramenta para auxiliar as comunidades interessadas em uma vida coletiva mais negociada, harmônica e menos desigual (GOMES FILHO, 2003).

Apesar de ser um instrumento de Estado, a “(des)centralização” da gestão pública acontece de maneira participativa; mesmo admitindo-se a necessidade do Estado como regulador, os agentes da sociedade civil organizada exercem na relação estabelecida, em graus variados, a capacidade de influenciar nos processos decisórios em troca da legitimidade necessária para a aprovação dos planejamentos urbanos.

Segundo Dallabrida e Zimermann (2009), a Constituição de 1988 estabeleceu a democracia como um valor fundamental e introduziu a autonomia municipal. Esse pressuposto foi incorporado no sistema federativo, contemplando a participação cidadã nas atividades da municipalidade.

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Página 39 de 213 Pensando-se em um plano estratégico para a gestão democrática da cidade, no dia 10 de julho de 2001 foi aprovada a Lei Federal nº 10.257, chamada “Estatuto da Cidade”, que regulamenta o capítulo original sobre a política urbana da Constituição Federal de 1988 (arts. 182 e 183). A Constituição de 1988 afirma o papel fundamental dos municípios na formulação de diretrizes de planejamento urbano e na condução do processo de gestão das cidades. O Estatuto da Cidade consolidou esse espaço de competência jurídica e ação política municipal, bem como o ampliou sobremaneira. Ele enfatizou processos e mecanismos para a gestão democrática das cidades e para a democratização das formas de acesso ao solo urbano e à moradia, propondo as bases para a mudança na ordem jurídico-urbanística do país.

De acordo com Fernandes (2002), o Estatuto da Cidade confirmou o Direito Urbanístico como ramo autônomo do direito público brasileiro. Tal fato serve de referência para a compreensão de complexas questões relacionadas aos processos de ocupação, uso e parcelamento do solo urbano, oferecendo suporte jurídico adequado para as práticas de gestão urbana. O Direito Urbanístico auxilia na compreensão dos problemas de (re)produção social da ilegalidade urbana, como a expansão da favelização, e na reflexão crítica da inserção de comunidades em risco ambiental iminente nos programas de urbanização por interesses político-eleitoreiros.

A gestão urbana atual não pode mais ser pensada separadamente do Direito Urbanístico. Portanto, do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidade de 2001, ou seja, do princípio da propriedade individual irrestrita ao princípio da função social da propriedade e da cidade, o Direito Urbanístico passa a orientar o ordenamento jurídico ambiental e territorial dos processos para a gestão institucional, social e administrativa do solo nas cidades, de tal modo que fortaleça o direito coletivo ao planejamento urbano, criado pela Constituição de 1988.

A Constituição de 1988 institui o princípio da função social da p ropriedade urbana, princípio esse que vem sendo moroso nas práticas efetivas de desenvolvimento urbano e gestão das cidades, visto que muitos setores privados e do poder público, ligados ao processo de desenvolvimento urbano, se pautam na noção do direito de propriedade individual irrestrita, cuja base foi dada pelo Código Civil de 1916.

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Página 40 de 213 O que o Estatuto da Cidade e a Constituição de 1988 propõem é essa quebra de paradigma, substituindo o princípio individualista do Código Civil pelo princípio da função social da propriedade, onde os cidadãos se servirão do direito a ter o desenvolvimento planejado de suas cidades não apenas com interesses individuais dos proprietários imobiliários, mas, sobretudo, conforme as demandas sociais da comunidade e da cidade como um todo (FERNANDES, 2002).

O Estatuto da Cidade estabelece o Plano Diretor municipal como o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. De acordo com Oliveira e Cavalcanti (2011), esse Plano é aprovado por lei municipal, após amplos debates e audiências públicas, que devem ser transparentes a fim de garantir o acesso da população aos documentos e às informações, de forma a proporcionar a participação de todos os cidadãos.

Para todos os municípios com mais de 20 mil habitantes o Plano Diretor é obrigatório, assim como para os municípios que fazem parte de regiões metropolitanas, os municípios integrantes de área de especial interesse turístico e os que estão inseridos na área de influência de empreendimento ou atividades com significativo impacto ambiental, regional ou nacional (OLIVEIRA e CAVALCANTI, 2011).

O Plano Diretor deve delimitar as áreas urbanas onde possivelmente serão aplicados o parcelamento, a edificação ou a utilização de maneira compulsória do solo, considerando a existência de infraestrutura e demanda para a sua utilização. Constitui-se como um importante instrumento de planejamento urbano, do qual o poder público municipal deve se valer para a realização de um efetivo planejamento urbano, de forma a promover o uso mais racional do solo, melhorar a infraestrutura urbana e assegurar o desenvolvimento econômico do município.

As cidades brasileiras, fragmentadas e excludentes, são o resultado da lógica especulativa do mercado, que vê a propriedade apenas como uma mercadoria. Assim, não basta apenas seguir um Plano Diretor, aprovar novas leis e criar instrumentos urbanísticos; faz-se necessário consolidar o paradigma proposto pela Constituição de 1988, utilizando o Direito Urbanístico como marco conceitual para a materialização do direito coletivo à moradia.

De acordo com o Centro de Estatística e Informações da Fundação João Pinheiro, no documento publicado em 2005 sobre as carências de moradia no Brasil, o cálculo do déficit habitacional, cuja denominação é Déficit Habitacional Básico, é o

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Página 41 de 213 somatório dos domicílios rústicos, dos improvisados e da coabitação familiar. Uma estimativa do déficit total de domicílios foi apresentada no documento “Déficit Habitacional no Brasil”, publicado em 2001. Para os Municípios, em números absolutos, o déficit brasileiro passou de 6.656 domicílios para 7.233, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do ano 2000. Nas áreas urbanas, passou de 5.414 para 5.470 unidades. Como pode ser observado na tabela abaixo, as Regiões Nordeste e Sudeste são as que lideram as necessidades relacionadas à habitação, com a distinção de que, no Nordeste, grande parte do problema se concentra em áreas rurais, enquanto que no Sudeste se acentua no urbano.

Fonte: Fundação João Pinheiro. Défici t habitacional no Brasil. 2005, p. 37.

O Estatuto da Cidade “reconhece” os problemas pertinentes à moradia, bem como a proliferação de formas ilegais de acesso ao solo, produzidas pela falta de políticas habitacionais adequadas e pela ausência de condições econômicas para os

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Página 42 de 213 sujeitos pertencentes aos estratos inferiores residirem em locais “oferecidos” pelo mercado imobiliário.

Dessa forma, pensar o planejamento urbano para além do direito à moradia é assaz relevante, pois somente com o pleno direito à cidade, não apenas pela posse de uma casa, mas pelo acesso a todos os serviços e equipamentos públicos, bem como aos centros e à “cidade formal”, haverá a mudança necessária de paradigma para maiores conquistas sociais democráticas. Surge, então, a questão de qual planejamento urbano pelo menos minimizaria esses problemas sociais tão recorrentes nos municípios brasileiros.

3. Pensando o Planejamento Urbano

O planejamento modernista do período dos “trinta gloriosos”, que vai de 1945 a 1975, marcou os países de economias centrais onde o poder público combinou controle legal sobre o trabalho ao mesmo tempo em que elevava o padrão de vida (em outras palavras, o padrão de consumo) da população (MARICATO, 1997). Assim, observou-se grande crescimento econômico acompanhado de significativa distribuição de renda e um maciço investimento em políticas sociais. No Brasil, como em toda a América Latina, com as atividades da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), a técnica do planejamento era conferida ao Estado, portador da racionalidade, que deveria assegurar o desenvolvimento econômico e social.

A crítica a esse planejamento modernista se concentra no modelo “importado” e incorporado pelas instituições e pela sociedade brasileira, pois não foi criado segundo a problemática que o país enfrentava. Contudo, esse planejamento conferiu boa qualidade de vida a uma parte da população das cidades, mas os problemas sociais relacionados à moradia e o acesso à “cidade formal” continuaram sendo vivenciados pela outra parte da população, em ascensão numérica nas camadas menos abastadas.

A sociedade brasileira se consolidou sob a convivência da esfera privada vinculada à pública, onde o Estado processou no ímpeto desenvolvimentista uma modernização do atraso patrimonialista, também caracterizado nas cidades. A

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Página 43 de 213 cidadania e o direito à cidade sempre foram para alguns, tais quais as relações políticas típicas do campo, baseadas na troca de favores e no paternalismo. O Brasil se industrializou em meio à atonia cívica, com baixos salários, desemprego disfarçado e com restrições na autonomia para aplicar o seu excedente econômico (MARICATO, 1997).

Ao longo de sucessivas décadas, rigorosas leis de zoneamento, exigente legislação de parcelamento do solo e detalhados códigos de edificações não foram suficientes para solucionar grande parte da ilegalidade, relacionada à habitação, em que vive a população brasileira; quando volta-se os olhos para a insalubridade, principalmente da população de rua, o problema chega ao extremo em termos de saúde pública. Utilizando a permissão da licença poética, “quem é rico mora na praia, mas quem trabalha nem tem onde morar” (Pedras que Cantam, de Dominguinhos & Fausto Nilo); com a expressão da música pretende-se revelar que muitos moradores de rua são trabalhadores e não vivem da mendicância, logo, devemos refletir sobre o axioma que “o trabalho dignifica o homem”.

Maricato (1997) aponta para o fato de que tal planejamento urbano está em crise. Pratica-se um urbanismo arcaico sob o discurso pós-moderno, onde os planejamentos se aplicam para beneficiar uma parte da cidade sem corroborar para agregar a outra. As cidades se conformam como cidades sem as pretensões das urbanidades, tanto pelo viés da sociabilidade quanto da politização dos sujeitos mais vulneráveis, distribuídos em periferias extensas e portadoras de precária infraestrutura, localizando-se muitas vezes em áreas de risco ou de proteção ambiental.

Apenas elaborar leis e estatutos é insuficiente; convém conformá-las em interpretação à aplicação. Garantir a moradia para a população de baixa renda e continuar a privar o direito à cidade é engodo quanto à democratização de acesso e, consequentemente, de fruição no uso. A segregação deve ser superada a partir de mecanismos de participação que englobem todas as esferas sociais, suprindo as necessidades dos habitantes da cidade indistintamente.

O Plano Diretor é uma proposta política de intervenção pública que se traduz enquanto política social, tornando-se operacionalizável por meio de diretrizes e objetivos estabelecidos, visando reduzir as desigualdades, segregações e exclusões sociais, contribuindo para a expansão da cidadania. A Constituição Federal de 1988 conferiu a responsabilidade pela execução da política de desenvolvimento urbano ao

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Página 44 de 213 poder público municipal, articulando-se, concomitantemente, às ações promovidas pelo governo federal. Assim, a instância federal encarregou-se de estabelecer as diretrizes e fixar as normas para a utilização dos dispositivos constitucionais que permitem ao poder público municipal intervir no espaço urbano.

Com o Estatuto da Cidade, o poder público municipal pôde propor e implementar instrumentos reguladores da produção do espaço urbano na perspectiva de ampliar o direito à cidade, possibilitando o desenvolvimento de um processo democrático de discussão e participação sociais. Portanto, cabe ao poder público dos municípios correspondentes a promoção de audiências públicas e debates com a participação popular dos vários segmentos sociais, bem como a garantia da publicidade das informações e do acesso aos documentos produzidos.

O direito de uma propriedade urbana passou a ser reconhecido a partir de regras municipais definidoras de suas potencialidades de uso. O seu conteúdo econômico passou a ser atribuído pelo Estado mediante a consideração dos interesses sociais constantes no Plano Diretor. Sob essa perspectiva, o sentido individual da propriedade foi revisto e passou a ser definido por uma função socialmente orientada. De acordo com Carvalho (2001) é através do Plano Diretor que se define a função social da propriedade e da cidade como um todo, onde são instituídos os instrumentos reguladores de parcelamento, edificação, Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), entre outros.

O planejamento urbano é o objeto de uma proposta política para o uso da cidade, que, quando bem sucedido, permite o direito à cidade para todos os cidadãos. Para tanto, ele deve ser orientado simultaneamente por duas dimensões: a política e a técnica. De acordo com Carvalho (2001), a dimensão política deve explicitar o objeto da intervenção pública, enquanto que a dimensão técnica procurará operacionalizar a política definida. O diagnóstico técnico servirá para dimensionar, escalonar, fundamentar ou viabilizar as propostas que são políticas (VILLAÇA, 1995). Essas dimensões, por conseguinte, expressam como e por que a política de planejamento urbano será executada, sendo, por excelência, uma política social.

O cotidiano urbano apresenta diversas situações de conflito, dentre as quais se destacam, neste trabalho, a apropriação diferenciada do solo urbano pelos agentes sociais, e os interesses do mercado imobiliário que, aliado à oferta de serviços e equipamentos públicos, valorizam diferencialmente as áreas urbanas,

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Página 45 de 213 agravando os processos de segregação socioespacial e legando ao espaço urbano o seu caráter altamente rentista.

Nesse sentido, o Plano Diretor, em sua essência, deve propor ordenamentos territoriais e ambientais para que seja possível administrar esses conflitos, distribuindo benefícios que atendam às demandas da população e não apenas àquelas específicas e clientelistas, de forma a diminuir as distâncias sociais.

A expansão urbana em Campos dos Goytacazes – RJ nos dois últimos decênios, por exemplo, revelou problemas pertinentes à moradia, que compõe os critérios para se analisar o direito à cidade. As desigualdades sociais se estamparam na paisagem campista, refletindo a necessidade da continuidade de um planejamento estratégico e ordenado, principalmente no aspecto que tange à infraestrutura das periferias pobres.

Com o objetivo de fazer valer o Estatuto da Cidade, a Lei nº 7.972, de 31 de março de 2008, instituiu o Plano Diretor do Município de Campos dos Goytacazes 2. A estruturação da cidade e a distribuição das atividades urbanas adotam como estratégias específicas, entre outras, a orientação equilibrada da expansão urbana, a identificação e implementação de novas formas de ocupação e adensamento do solo urbano, a melhoria das condições de mobilidade intra-urbana e a distribuição dos benefícios físicos e sociais gerados pelo crescimento da cidade a todos os cidadãos. (Capítulo V, Seção I, Art. 80, p. 42).

O Capítulo VI dispõe acerca da Construção da Cidade e Habitação. O art. 99, que inicia o capítulo, relata que:

A construção da cidade no Município de Campos dos Goytacazes adota como estratégia geral a promoç ão do desenvolvimento sem segregação de espaços urbanos, partilhando os benefícios econômico -sociais e promovendo o acesso à terra e à moradia digna e sustentável a todos os cidadãos (p. 43).

A Política Habitacional do município visa à melhoria da qualidade de vida das famílias de baixa renda que não possuem condições de acesso a uma moradia, reduzindo, dessa forma, o déficit habitacional e as situações de risco à vida humana para os que ocupam áreas impróprias à moradia. Essa política vem sendo adotada de forma a “(des)reterritorializar” parte da população mantendo a sua condição segregacional, somada com a perda da identidade pelo distanciamento do lugar de origem.

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Página 46 de 213 Atualmente, promove-se a Política Habitacional em Campos dos Goytacazes por meio do Programa Morar Feliz, que é desenvolvido pela Secretaria de Família e Assistência Social, sob uma gestão participativa com as secretarias de Serviços Públicos, Agricultura e Pesca, Meio Ambiente e Defesa Civil. Apesar das melhorias incontestáveis quanto aos riscos existentes nas antigas moradias, há uma reprodução diferencial da segregação socioespacial, tendo em vista a localização das casas populares do respectivo Programa.

Ao longo dos anos as políticas habitacionais vêm sendo adotadas no município, com destaque para a capacidade de entrega de “casas populares” do último governo municipal, sem, contudo, articularem o espaço urbano nas mesmas “passadas” da ocupação elitizada das partes mais valorizadas da cidade.

O poder público, como o responsável pelo planejamento urbano, geralmente “viabiliza” a territorialização diferenciada da elite econômica, que deseja um espaço particular para a sua prática social; por outro lado, o direito à cidade, tal qual uma conquista da cidadania para todos, se particulariza àqueles que desenvolvem a capacidade de fluidez e fruição na urbanização brasileira contemporânea.

A ilegalidade em relação à propriedade da terra tem sido, como aponta Maricato (2003), um dos principais agentes da segregação, que em alguns casos passa a ser também ambiental. Como a “cidade formal” possui valor de solo elevado, muitas vezes os segmentos mais pobres estabelecem moradia em áreas de proteção ambiental.

A tolerância do poder público em relação à ocupação ilegal dessas áreas, ou demais áreas públicas, está longe de significar uma política de respeito aos pobres. A população que aí se instala não compromete apenas os recursos naturais que são fundamentais a todos os moradores da cidade, como é o caso dos mananciais de água, mas a própria vida, especialmente pelas condições de risco estrutural.

A ocupação ilegal é algumas vezes tolerada quando não interfere nos circuitos centrais da realização do lucro imobiliário privado. Grande parte das áreas urbanas de proteção ambiental está ameaçada pela ocupação desordenada, considerando-se que as conseqüências de tal processo atingem toda a cidade; entretanto, os mais impactados diretamente são oriundos das camadas populares.

Remover pessoas de áreas de risco não é o bastante; é preciso adotar estratégias para que essas áreas não sejam mais ocupadas, planejando o espaço

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Página 47 de 213 urbano de maneira tal que o direito à moradia e o direito à cidade contemplem todos os estratos sociais dos municípios brasileiros.

O planejamento urbano se manifesta por meio de várias modalidades, tais como o planejamento de cidades novas, o controle do uso e ocupação do solo por intermédio dos códigos de zoneamento e loteamentos, e o planejamento setorial. Villaça (1995) ressalta duas dessas modalidades: a que se realiza por meio do Plano Diretor e a do chamado planejamento físico-territorial.

Tomando por base a conceituação de Villaça (1995), se pode afirmar que o Plano Diretor apresenta um conjunto de propostas para o desenvolvimento socioeconômico e para a organização espacial dos usos do solo urbano, das redes de infraestrutura, etc., a partir de um diagnóstico científico da realidade física, econômica, social, política e administrativa do município. Essas propostas são aprovadas por lei municipal e são definidas para curto, médio e longo prazo.

A outra modalidade associa o planejamento apenas aos aspectos físico-territoriais, visto que esses são de competência do governo municipal. Por essa razão, o Plano Diretor também instrumentaliza o exercício do discurso, onde se efetivam unicamente as leis voltadas para o zoneamento e para os loteamentos, que acabam sob o rótulo de “plano diretor”. De fato, o Plano Diretor as inclui como um de seus instrumentos para organizar o território urbano, mas não se resume à apenas isso. Utilizado para organizar o território, o Plano Diretor deve abordar todos os problemas de competência municipal, estejam eles na zona urbana ou rural. (VILLAÇA, 1995).

De acordo com Villaça (1995), nos anos de 1990 o Plano Diretor elegeu como objeto fundamental o espaço urbano, sua produção, reprodução e consumo, tornando-se um plano eminentemente físico-territorial. Assim,

seus instrumentos fundamentais de aplicaç ão, limitados aos da competência municipal, podem ser de natureza urbanística, tributária ou jurídica, mas os objetivos são de natureza físico-territorial. A terra urbana, a terra equipada, eis o grande objeto do Plano Diret or. Essa posição “urbanística” nada tem de determinismo físico. Trata-se de adequar o Plano Diret or aos limites do poder municipal e não tratá -lo como compêndio de análise científica do urbano, da urbaniz ação contemporânea ou do desenvolvimento social e econômico regional. A superestimação dos poderes de um Plano Diretor ainda é um dos mecanismos mais utilizados pela ideologia dominante para desmoralizar o planejamento urbano (VILLAÇA, 1995, p. 245).

Entrementes, o grande dilema “enfrentado” pelo Plano Diretor surge quando seus propósitos se defrontam com as intencionalidades da elite econômica brasileira

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Página 48 de 213 representada pelo setor imobiliário, cujos interesses vão de encontro aos princípios que devem reger um Plano Diretor efetivamente democrático. Por influenciar fortemente a elaboração dos Planos, parte dessa elite contribui para torná-los “superficiais”; por conseguinte, um dos dispositivos “observados” pelas corporações do mercado imobiliário se refere ao Coeficiente de Aproveitamento3.

Os Planos se politizaram entre interesses conflitantes. Para os movimentos populares ligados à terra e à habitação, o Plano Diretor se tornou um instrumento desgastado mediante a manipulação dos setores que buscam “dominar” a produção do espaço urbano. O capital imobiliário, maior interessado nas “fronteiras” internas e expandidas do espaço urbano, passou a influenciar outros grupos políticos e econômicos em prol de uma formalização teórica do Plano Diretor à obrigatoriedade prevista pelo Estatuto da Cidade.

As camadas populares não têm demonstrado grande motivação no que diz respeito à participação nos debates sobre os Planos Diretores, tornando pequenas as possibilidades de uma construção verdadeiramente democrática. Porém, os movimentos sociais urbanos têm manifestado a luta para que o Estatuto da Cidade se faça valer nas cidades brasileiras como um importante instrumento promotor da equidade social. Para tanto, é imprescindível que se efetive a prática do princípio da função social da propriedade imobiliária, do solo criado, do Fundo de Urbanização, da regularização fundiária das favelas e das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS).

É também indispensável que o Estado cumpra seu papel de articular o espaço urbano da forma mais “neutra” e democrática, conferindo credibilidade aos Planos Diretores por meio da legitimidade advinda da participação avançada da população com consciência de classe. Contudo, entre o que o Estado é e o que de fato (e constitucionalmente) deveria ser, percebe-se uma dualidade a ser superada.

3

Durante os anos de 1990, foi criado o Coeficiente de A proveitamento Um, que é a relação entre a área total construída em um terreno e a área des se mesmo terreno. Ele mede o volume de construção que um terreno comport a. Dessa forma, o direito de construir, associado à propriedade da terra urbana, seria o direito de construir no máximo uma área igual a do lote. As áreas adicionais deveriam ser concessão do Poder Público. (VILLA ÇA, 1995).

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4. O Estado: o articulador do espaço urbano

O espaço urbano é uma unidade com multiplicidades de consumo coletivo, composta de serviços públicos necessários à reprodução do sistema capitalista. O Estado é o planejador da distribuição espacial desses bens de consumo coletivo, ou seja, ele é o articulador dos ordenamentos territoriais e ambientais das diferentes zonas da cidade.

Para Trindade (2007), a cidade deixou de ser um espaço de convívio entre os diferentes grupos sociais para se tornar um espaço mais organizado e controlado por mecanismos de segregação, que visam separar ricos e pobres, causando enormes obstáculos ao exercício do regime democrático, especialmente para as camadas da população que se encontram excluídas do ponto de vista econômico, político e social. As camadas menos favorecidas da população, que na realidade são as que mais dependem dos aparelhos do Estado e dos serviços públicos, ficam praticamente desamparadas, em condições cada vez mais precárias de sobrevivência.

Para Maricato (2003), a exclusão social não pode ser mensurada, mas pode ser caracterizada por indicadores como a informalidade, irregularidade, ilegalidade, pobreza, baixa escolaridade e, principalmente, a ausência da cidadania. Nessa perspectiva, ser pobre não passa apenas pela esfera do “não ter”, mas, sobretudo, pela esfera do ser “impedido de ter”.

Maricato (2003) analisa que a maior parte da produção habitacional no Brasil se faz à margem da lei, sem financiamento público. Segundo relata:

A relação legislação/mercado e restrito/exclusão talvez se mostre mais evidente nas regiões metropolitanas. É nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário privado e nas áreas públicas, situadas em regiões des valorizadas, que a população trabalhadora pobre vai se instalar: beira de córregos, enc ostas dos morros, terrenos sujeitos a enchentes ou out ros tipos de riscos, regiões poluídas, ou áreas de proteção ambient al, onde (...) a vigência de legislação de proteção e ausência de fiscalização definem a des valorizaç ão (MA RICA TO, 2003, p. 154).

A segregação socioespacial interfere diretamente nas possibilidades de habitação e no exercício efetivo dos direitos de cidadania. A dinâmica urbana não apenas reflete a estrutura social, como também se constitui em um mecanismo específico de reprodução das desigualdades e das oportunidades de participar na distribuição da riqueza gerada na sociedade. A estrutura urbana releva e reproduz as desigualdades no que tange à distribuição do poder social na sociedade,

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Página 50 de 213 entendido como a capacidade diferenciada dos grupos e classes em desencadear ações que lhes permitam disputar os recursos urbanos (RIBEIRO & SANTOS JUNIOR, 2003).

O desenvolvimento urbano inclusivo exige que se atue em dois eixos: urbanizar e legalizar a cidade informal conferindo -lhe melhor qualidade e o status de cidadania; e produzir novas moradias para aqueles que, sem recursos técnicos ou financeiros, ocupam terras para morar. À melhoria da cidade ilegal com incipiente urbanização se exige a produção de novas moradias, do contrário se consolida a dinâmica do processo de favelização (MARICATO, 2003).

Como bem aponta Raichelis (2006), essa dinâmica dual existente no campo das políticas sociais e da gestão pública, deixa a cargo do Estado a promoção de políticas compensatórias e seletivas, que não impedem a lógica especulativa do mercado e desencadeiam uma reconfiguração nos territórios das cidades, transformando as relações entre cidadãos e as lutas por acesso à cidade. Nesse sentido, pensar a questão da moradia e do planejamento urbano requer a análise da convergência que se processa entre o Estado, o território e o mercado.

5. A Convergência entre Território, Mercado e Estado

A cidade, em suas diferenciações e significações, é o espaço onde o sistema capitalista se (re)produz com mais velocidade, gerando contradições que sustentam a desigualdade e a segregação socioespacial. Um dos frutos dessa desigualdade se manifesta na questão da moradia, pensada como um direito a ser conquistado e garantido.

Para Henry Lefebvre (2001), dois grupos de questões ocultam os problemas da cidade e da sua sociedade emergente: as questões de moradia e as de organização urbano-industrial. Esses problemas foram concebidos, planejados e justificados pelos gestores do crescimento econômico em prol do suposto desenvolvimento, que só pode ser efetivado na cidade pela realização da vida urbana com a condição de uma democracia e de um humanismo renovados.

Analisando a sociedade francesa de sua época, Lefebvre (2001) apresenta o processo que gerou uma periferia desurbanizada e dependente da cidade. Os

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Página 51 de 213 subúrbios, assim, nasceram como fruto de uma “urbanização desurbanizante e desurbanizada” (LEFEBVRE, 2001, p. 25). Mesmo com a construção de habitações por parte do Estado, a democracia socioespacial na cidade, como um direito do homem, não foi reconhecida. Para a obtenção plena do direito à cidade, o direito à moradia é fundamental, mas não é o bastante.

Lefebvre (2001) demonstra que a construção de habitações não se tornou um serviço público efetivo; o direito à moradia não aflorou na consciência social como um direito do homem. O direito à moradia fomentado pelo Estado não interrompeu a especulação sobre os terrenos, pois se verificou a elevada entrada de riqueza imobiliária e a contínua criação de solo urbano para valor de troca. Por outro lado, o direito à cidade se afirmou como um apelo e uma exigência; indo além do direito à moradia, não pode ser concebido como um simples direito de visita ou retorno às cidades tradicionais, mas deve ser formulado como o direito à vida urbana em sua plenitude.

A partir da questão da moradia, pode-se pensar na convergência entre o território, o mercado e o Estado. O Estado é o articulador legítimo do território e, nas últimas décadas, vem favorecendo o mercado imobiliário no Brasil. Assim, os locais mais valorizados por esse mercado apresentam infraestrutura urbana e serviços adequados, atendendo principalmente ao público constituído pelas classes mais abastadas economicamente. As classes inferiores e segregadas ocupam, por tantas vezes, áreas de risco, insalubres e que, “desamparadas” pelo mercado imobiliário (por apresentarem pequenas expectativas de lucro imediato), carecem de serviços básicos, infraestrutura, e logística para as atividades geradoras de emprego e renda. O território, delimitado pelo viés jurídico-cartorial, em sua essência legalista, é o local onde o mercado pode executar as suas funções, transformando-o em uma mercadoria e em um estrato para a produção e a reprodução do capital. O território está submetido a um poder político-administrativo e o mercado imobiliário, com a permissão do Estado, extrai das áreas mais valorizadas da cidade, ou com possibilidades às vindouras especulações, o estrato territorial a ser personificado para as classes mais ricas ou emergentes.

De acordo com Santos (2007), o território é o lugar onde se encontram e se desdobram as “paixões” e os poderes; é o palco de toda a história realizada a partir das manifestações da existência do homem no espaço, conjunto indissociável de ações e objetos (SANTOS, 2002). Para além do cartorialismo-legalista, o território

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Página 52 de 213 não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de coisas superpostas; ele é identidade, ou seja, o sentimento de pertencimento àquilo que se pretende; é também o fundamento do trabalho e o lugar das trocas materiais e simbólicas. O território ajuda a conjecturar o Estado, para que depois de consolidado, este último o aperfeiçoe em formas, funções, conteúdos e dimensões.

O mercado, por sua vez, decorre da vida econômica, que se tornou complexa com o tempo; com a ampliação das trocas, do comércio e com a crescente interdependência entre as sociedades, o uso e a eficácia do dinheiro na conformação do espaço urbano se concentraram. Os objetos das cidades passaram a ter correspondências em valor – dinheiro, sendo vistos e intencionados mais pela troca do que pelo seu uso, modificando a história dos lugares no/do mundo (CARLOS, 2007), para além de seus limites locacionais.

A circulação do dinheiro, fundado sob a lei do valor de troca, do consumo à acumulação, passa a comandar também a produção, estendendo-se aos lugares. Por conseguinte,

(...) quanto maior a complexidade das relações externas e internas, mais necessidades de regulação, e se levant a a necessidade de Estado: o Estado e os limites, o Estado e a produção, o Estado e a distribuição, o Estado e a garantia do trabalho, o Estado e a garantia da solidariedade e o Estado e a busca da excelência na existência (SA NTOS, 2007, p. 16).

É nesse momento que se faz presente a convergência entre o território, o mercado e o Estado. O território, por submeter-se a um poder político e jurídico, reflete o controle que o Estado exerce em sua articulação legal com o mercado.

Santos (2007) aponta que ao fim do século XX, com a instalação das técnicas de informação e comunicação, o mundo passa a ser rápido, ou pelo me nos passa a ter a ilusão da velocidade como necessidade indispensável para garantir a fluidez efetiva de capitais globalizados. O dinheiro torna-se fluido e, consequentemente, global. O dinheiro tem distribuições difusas, não equânimes; há territórios onde ele muito se concentra e territórios onde ele é escasso.

O dinheiro diferencia os lugares, acentuando a segregação socioespacial. Tal processo faz com que diferentes classes ou camadas sociais se concentrem em distintos pontos do espaço urbano. Portanto, tratando-se da heterogeneidade interna das cidades brasileiras, pode-se dizer que esta é espacialmente proporcional à diversidade social de seus habitantes, que criam uma espécie de seletividade e se concentram por padrões de identificação, ou seja, a concentração de pessoas em uma mesma área residencial acaba por reunir características semelhantes entre si.

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Página 53 de 213 Essa diferenciação está ligada às variações nos níveis de renda, refletindo na conformação dos arranjos espaciais, onde indivíduos com o mesmo padrão econômico tendem a se concentrar em espaços com estilos de vida e proporções de consumo comuns (OLIVEIRA, 2009).

6. Considerações finais

A segregação socioespacial impede que a periferia pobre tenha o direito à cidade, não só por conta do preço do solo e da especulação imobiliária, dificultando o acesso à “cidade formal”, como também devido à sua locomoção (transportes) e devido à estigmatização dos locais habitados pelas classes menos abastadas, pois os relacionam com a violência urbana e com o tráfico de drogas. Esse quadro de extrema desigualdade social impede cada vez mais a construção de uma sociedade justa, que garanta igual acesso à cidade e o pleno exercício de cidadania à sociedade.

Diante desses fatos, percebe-se que o direito à moradia têm sido uma problemática na conformação urbana do Brasil. Os altos índices de déficit habitacional e a exclusão das camadas menos favorecidas do mercado imobiliário formal são incessantemente discutidos, porém sem muito sucesso na resolução de seus maiores problemas nas grandes e médias cidades; para além da moradia, destacam-se a acessibilidade (fluidez e fruição espacial) e a igualdade de oportunidades à ascensão social. Nesse processo, os que foram excluídos do sistema habitacional formal são “levados” a ocuparem lugares à margem da sociedade ou da “cidade formal”. Tal marginalidade mantém o baixo custo da reprodução da força de trabalho e também um mercado imobiliário fortemente especulativo, sustentado sobre a arcaica estrutura fundiária brasileira (MARICATO, 1997).

É nesse novo universo de (des)usos do território que o mercado imobiliário, guiado pela lógica global do dinheiro e com o “consentimento” do Estado, realiza seu controle sobre as melhores áreas das cidades. A questão da moradia, então, divide-se em duas perspectivas: a moradia para os ricos e a moradia dos pobres. No primeiro caso, todos os esforços para garantir o conforto, a segurança e a satisfação

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Página 54 de 213 das elites são dispensados para que a moradia seja de alta qualidade. No segundo caso, a moradia é produzida sob os auspícios do planejamento de Estado, como os conjuntos habitacionais populares, ou é construída autonomamente, geralmente sem infraestrutura adequada.

O Estado divide-se entre o “atendimento” aos interesses do mercado nas questões de moradia, que se utiliza das melhores áreas da cidade para que os mais abastados economicamente ocupem esses territórios, e o “acolhimento” às demandas das classes menos ascendentes, que têm suas moradias construídas em locais periféricos, com poucos serviços e, às ve zes, precária estrutura urbana, sendo, em alguns casos, erguidas em áreas de risco, insalubres e sujeitas aos desastres ambientais.

Faz-se necessário pensar em formas de planejamento e gestão das cidades, de modo a torná-las mais democráticas, garantindo a todos os cidadãos os seus “direitos inalienáveis”: moradia, trabalho, socialização, cultura, lazer e saúde, enfim, a vida digna nas cidades, ou em suma, o direito à cidade em todas as suas perspectivas.

Os Planos Diretores bem desenvolvidos primam pela capacidade da sua aplicabilidade em curto, médio e longo prazo, tornando -os mais do que Planos teóricos, quando ajustados às realidades dos munícipes da população brasileira.

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Sobre os autores

Raquel Chaffin Cezario - Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil(2012). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da UENF.

Rodrigo da Costa Caetano - Possui graduação em Geografia (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Geografia (Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico) e doutorado em Geografia (UFF). Tem experiência na ciência geográfica e áreas afins, com ênfase nas disciplinas: Geografia Agrária, Urbana, Política e da População. As atuais pesquisas, bem como as orientações na graduação e na pós (mestrado), concentram-se nas seguintes temáticas: Estado, políticas públicas, patrimonialismo, ambiente, trabalho, produção e sociedade / população. Na área da educação tem produção em cartografia escolar, inclusão e educação do campo.

Geraldo Márcio Timóteo - Professor Associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), no Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA) e Editor Chefe da Revista Eletrônica Agenda Social. Realizei estudos avançados em estatística aplicada as ciências sociais na Universidade do Texas, EUA, em 2006, com bolsa sanduíche da CAPES. Possuo experiência como coordenador de equipe social multidisciplinar, já tendo prestado serviços à Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (FUNDEP-UFMG); Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e à Prefeitura Municipal de Sete Lagoas, em processo de reassentamentos de famílias de baixa renda; Fui assessor da Secretaria Municipal Adjunta de Habitação da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, além de Gerente do Orçamento Participativo de Habitação; Assessorei a Ação Social e Política

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Página 57 de 213 Arquidiocesana (ASPA) de Belo Horizonte, em programas de pós-ocupação de assentamentos populares. Fui professor adjunto do Núcleo de Engenharias da Faculdade Pitágoras, ministrando as disciplinas de sociologia, metodologia científica e Trabalho de Conclusão de Curso. Tenho experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica, atuando principalmente nos seguintes temas: segregação espacial, mercado de trabalho, sociologia do trabalho, favela e desenvolvimento de comunidades.

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